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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.42 Belo Horizonte dez. 2014

 

 

Notas sobre o ato político no Movimento de Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras

 

Notes on the political act in the Movement of Psychoanalytic Entities Brazilian Articulation

 

 

Mariana Abreu Mayerhoffer

I Laço Analítico - Escola de Psicanálise
II Prefeitura do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A questão de como se pensar o ato político no Movimento de Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras é o cerne deste artigo, que tem como norte a via do ato analítico tal como definido por Lacan. No Seminário 15 Lacan define o ato analítico como aquele que, não elidindo a dimensão do Outro, traz consequências que se referem ao efeito divisor do objeto a no sujeito, deixando a questão de como, a partir do ato analítico, se definiria o ato em geral, o que ele “não nomeia”, como diz. Nessa breve reflexão tenta-se pensar se um ato político, a partir da experiência de Articulação, pode com essa referência ser definido como um ato que instaura uma divisão, no coletivo, colocando-nos uma interrogação sobre como essa divisão seria verificada. Se pudermos chamar de ato político alguma(s) das intervenções do Movimento que fez(fizeram) mudar o rumo do que estava sendo proposto em relação à regulamentação da psicanálise – o que lhe destituiria de sua condição estrutural de ser não regulamentável – teríamos que pensar em como verificar o efeito de divisão, que é apenas no sujeito que pode ser verificado. De que forma um coletivo nos testemunharia efeitos de ato nesse campo das ações de Articulação?

Palavras-chave: Política da psicanálise, Ato analítico, Ato político.


ABSTRACT

The question of how to think about the political act within the Brazilian Movement of Articulation of Psychoanalytical Entities is the aim of this paper. It conceives the analytic act as defined at Seminar book 15 by Lacan. There the analytic act is outlined as one that, not eluding the Other’s dimension, causes consequences that refer to the splitting effect on the subject by the object “a”, leaving the interrogation of how, departing from the analytical act, would define the act in general, the act that he “doesn’t name”. In this brief reflection we try to see if a political act that stems from the experience of the Articulation, could be defined as an act that establishes a division among a collectivity, bringing us the issue of how this division would be verified. If we name as a political act some of the interferences of this Movement – that changed the course of what was being proposed about legalizing psychoanalytic practice and which would deprive of its structural condition of not being legalizable – we would have to think about how to check the effect of division, which is only subjectively verifiable. How could a collectivity witness effects of act in this field of action named Articulation?

Keywords: Politics of Psychoanalysis, Analytic act, Political Act.


 

 

Este trabalho é fruto de minha fala na mesa-redonda “Mais além do código social: análise leiga”, que fez parte do IV Colóquio Internacional do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise, com o título Psicanálise leiga e seus destinos: entre a arte e a política, realizado em abril de 2014, no Rio de Janeiro. Meus agradecimentos ao Corpo Freudiano, pela honra de ter estado nessa mesa, com colegas cujo trabalho admiro (Anchyses Jobim, Heloneida Nery e Sonia Alberti), para debatermos sobre o Movimento de Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras, pelo qual tenho um apreço especial e participo representando minha Escola, o Laço Analítico.

Dividirei algumas questões que andaram me tomando, para tentar formular da melhor forma a pergunta sobre de que ato se trata no trabalho de Articulação e, em sendo do ato político, em que condições é possível verificá-lo.

A Articulação é um movimento que pretende responder a tentativas de regulamentação da psicanálise, com o intuito de manter a psicanálise como leiga na sustentação de uma transmissão do que seja nossa posição política, a política da psicanálise, que tem seu ato como não regulamentável. Para história e reflexões sobre o Movimento, ver o livro Ofício do psicanalista: formação vs. regulamentação (ALBERTI, AMENDOEIRA, LANNES, LOPES, ROCHA, 2009).

No Seminário 15: o ato psicanalítico, Lacan (1967-1968, p. 28) diz em relação aos profissionais, que “desse ato, à medida que se faz dele profissão, resulta uma posição da qual é natural se sentir assegurado pelo que se sabe, pelo que se guarda dessa experiência”. Em relação à psicanálise Lacan dirá em seguida que da natureza própria do ato nesse campo resulta uma “posição que se deve manter por estar apto a exercê-lo”, do qual “dependem consequências mais sérias” em relação ao que resulta disso. Nesse ponto Lacan diz que “o ato psicanalítico diz respeito, e muito diretamente, em primeiro lugar” aos que dele não fazem profissão, mas que, “desse ato fazem profissão de agente”, como cita Alberti (1998, p. 97). Seu ato é não regulamentável porque “a psicanálise não se transmite como qualquer outro saber”, como citado no Seminário 17: o avesso da psicanálise, citação que assim prossegue:

O psicanalista tem uma posição que eventualmente pode ser a de um discurso. Ele não transmite um saber – não porque não tenha nada a saber, ao contrário do que imprudentemente se diz. Isto é o que está posto em questão – a função, na sociedade, de um certo saber, aquele que lhe transmitem. Ele existe (LACAN, [1969-1970] 1992, p. 188).

É igualmente por ser o discurso do analista, segundo Lacan ([1969-1970] 1992) o conceitua com os discursos no Seminário 17, aquele que fará interrogar os outros, e suas citadas estruturas de dominância a partir de um certo lugar agente, que a psicanálise não é uma profissão, e não há como verificar, senão em termos particulares, sua eficácia, que lhe será inculcada somente pelo valor da interpretação, que é sempre no um a um que se produz. O discurso analítico não fará jamais mudar a estrutura social, mas não é nunca sem ele que qualquer troca de discurso se processa, como dito, por exemplo, no Seminário 20 (LACAN, [1972-1973] 1985, p. 26-27). O saber que é transmitido numa análise é um saber deveras particular, no sentido de não compreender mais do que a estrutura topológica, enodada por um savoir y faire1 adquirido singularmente pelo sujeito – o qual lhe trará um estilo, tributário de seu sinthoma.

Retomando a referência do Seminário 15, onde Lacan já de saída diferencia ato e tarefa, então nessa questão sobre do que se trata de tomar como responsabilidade da Articulação, podemos talvez também pensar, por um lado, qual é sua tarefa e, por outro, se é quando o Movimento faz ato. O que queria dizer Lacan (1967-1968, p. 87) ao afirmar nesse seminário que o ato psicanalítico reinterroga “esse ponto de equilíbrio, em torno do qual se coloca a questão do que é o ato” e em texto contemporâneo (LACAN, [1970] 2003, p. 269), que “está claro que, se todo ato é apenas uma figura mais ou menos completa do ato psicanalítico, não há quem domine este último”?

Lacan ([1970] 2003, p. 407) explicita que somente o ato analítico pode esclarecer qualquer outro ato – mesmo não sendo dominado, uma vez que algo da dimensão do ato analítico está mais ou menos presente em qualquer ato que assim possa ser nomeado, o que está muito longe do que comumente chamamos de ato no senso comum. Resta nomear o que é um ato e no que ele comporta a dimensão de consequência de um dizer por um efeito de divisão, de sujeito, que define o ato analítico. Um ato político, dando um passo a mais no que nos move, poderemos também defini-lo como o ato que instaura tais efeitos de consequência de divisão do sujeito?

Lacan diz que o ato analítico se dá do lado do analista, enquanto a tarefa da psicanálise é do analisante. O que define a posição do psicanalisante que pautamos como a posição política mais interessante do ponto de vista de tolerância quanto à singularidade, princípio da psicanálise é o discurso do analista. Situamo-nos para pensar a posição do psicanalisante com o que Lacan (1967-1968) no Seminário 15 chama de sua tarefa na psicanálise, analisar, contrapondo-a com o ato, que então é do analista. Ato ou tarefa, do que quer que se trate em Articulação é de coisa bem distinta do ato analítico, obviamente, mas o tomo como referência a partir do que Lacan desenvolve nesse seminário, que é a conceitualização do ato analítico, que ele diz ser o único que pode esclarecer qualquer outro ato.

Quando logo no início da lição 6, Lacan (1967-1968, p. 87) se refere ao ato analítico na interrogação do que é o ato, diz que tem duas ambições falando do ato, a curta, “a melhor”, é saber em que consiste o ato analítico e a longa, que diz que não pode ser descartada, é esclarecer o que é o ato. Dessa longa ambição recorto então o que seria o ato político, e em Articulação.

Articular o ato analítico, diz Lacan aí, se for um ato, implica sua consequência uma vez que o ato é um dizer e um dizer na medida em que a dimensão do Outro no testemunho que ele faz não pode ser eliminável. Lacan (1967-1968, p. 211) diz que o que constitui o ato está no objeto a, que permite destituir de sua função a relação com o “todo”.

No ato analítico, a encarnação do objeto a faz a destituição subjetiva para que o sujeito possa aceder ao lugar de objeto no seu desejo, o que só pode ocorrer por um efeito de hiância. O analisante, Lacan diz que chegando à realização que é a da castração, consuma nesse ato sua divisão. Ele define o ato analítico como ato de natureza, por introduzir outra dimensão que é a de não agir por si mesmo, como de natureza a lançar luz sobre o ato “sem qualificação”.

Esse ato que Lacan diz ser o “que não nomeia”, entendemos, seria o ato, se houvesse, do psicanalisante. O ato é “fato de significante”, diz Lacan (1967-1968, p. 216), “por onde tem lugar o retorno do efeito dito efeito de sujeito, que se produz pela fala, na linguagem”, uma vez que “ele é radicalmente divisor”.

Essa construção desemboca na afirmação de que todo pensamento ordenado se situa “a partir de um bivium” que, diz Lacan, é “particularmente claro” em nossos dias, ou se rejeita o efeito de divisão de sujeito ou o pensamento “entrega-se à dimensão do ato e, para isto, basta que toque no efeito de sujeito” (LACAN, 1967-1968, p. 217). Para concluir o acompanhamento teórico de Lacan nesse ponto, é por ora apenas importante dizer que segundo ele a valorização da presença do objeto a somente pode ser feita à luz da psicanálise (LACAN, 1967-1968, p. 225).

A partir dessa construção poderíamos definir o ato político como o que instaura um efeito de sujeito, de divisão, por um dizer que não elimina a dimensão do Outro? Se assim é, esse ato só pode ser esclarecido pelo ato analítico, pois é à medida que faz intervir a dimensão do objeto a que se faz ato. Lacan ([1970] 2003, p. 269) fala sobre todo ato ser “apenas uma figura mais ou menos completa do ato psicanalítico”. Como poderíamos verificar um ato como político, e, mais ainda, um ato político como tendo dimensão de ato analítico? Se verificamos num ato político a consequência do ato, uma divisão, ela seria consumada de forma análoga ao que seria o ato psicanalisante na assunção de uma divisão.

Voltando ao que se refere ao que fazemos em Articulação, temos, podemos dizer, como “tarefa” manter o quanto possível a psicanálise como leiga no que tange às tentativas nefastas de extirpação da singularidade nos projetos que pretendem regulamentá-la. Seria tarefa num sentido diferente, mas próximo do que faz o analisante ao narrar sua história, acompanhando sua construção aí mesmo, em transferência com um analista que, ao encarnar no lugar de objeto a a partir do ato, faz o sujeito não eliminar mais o lugar do Outro, mas considerá-lo desse vazio divisor que o pequeno a representa?

Na posição de analisantes, segundo esse raciocínio, em transferência com o texto freudiano, acompanhando as tentativas de regulamentar a psicanálise e sua transmissão, cabe verificar se e em que momento fazemos o ato de aceder a essa divisão a partir da consequência que um ato pode testemunhar na não eliminação do Outro, que se faz a partir desse ato. Podemos chamar de ato o que testemunhamos em momentos como os da presença de membros desse Movimento no Congresso Nacional, que teve o efeito de derrubada de projetos de lei que pretendiam regulamentar a psicanálise?

O que Lacan diz sobre o ato implica uma consequência podemos ver se refletir nessas ocasiões, mas podemos verificar tais efeitos de divisão, e como efeitos de ato, a serem atribuídos ao que fez Articulação? Se sim, podemos considerá-los efeitos que testemunham uma posição política a partir da posição do analisante, definida pelo discurso do analista, portanto pelo sujeito no lugar de trabalho, sobre o qual incide a inclusão do que há de divisor no objeto a.

Lacan (1967-1968, p. 229) diz que a noção de consequência se liga às funções de sequência lógica, pela qual o que tem consequência é “a articulação de um discurso, com o que ele comporta de sequência, de implicação”. Certamente um discurso foi articulado nas experiências de Articulação citadas, o discurso da psicanálise, que coloca a questão da verificação de terem ocorrido ou não atos políticos nos citados exemplos de transmissão. Tomo todo esse cuidado, pois, como sabemos, o nosso ato de referência, o ato analítico, traz consigo uma extrema dificuldade no que tange sua transmissão. A própria questão do passe, dispositivo que Lacan criou para verificar a existência de um analista, consequentemente seu ato – que é o que o define –, ser tão difícil de ser implantada corrobora essa dificuldade de como verificar um ato analítico, um analista, fora da análise ainda por cima.

Em relação ao ato político, é prudente tomar as mesmas referências, de verificação de sua consequência ter ou não trazido efeito de divisão, o que diz respeito ao sujeito. Portanto, no ato político a dificuldade aqui aparece em como verificar num coletivo tal efeito.

Diz Lacan (1967-1968, p. 230) em relação aos efeitos do ato que por:

[...] sua duração, sua persistência e seu efeito aderente ao que dura, ao que se mantém nesse esforço de articulação, poderemos, com efeito, medir indiretamente o que há de deslocado no outro campo que é precisamente o campo das forças reais. Mas é sempre por algum nó de consequências, e de consequências significantes, que apreendemos o que ocorre.

“Forças reais”, interessante expressão que nos remete ao que há de mais político, no sentido amplo do termo, de viver na polis.

Em “todo discurso há efeitos de ato”, diz Lacan (1967-1968, p. 104). Então, quando diz que somente o ato analítico pode esclarecer qualquer outro ato, isso nos autoriza a tentar esclarecer a leitura política a partir do discurso do analista? Esse discurso tem como produto um significante-mestre, mas “outro estilo de significante-mestre” (LACAN, [1969-1970] 1992, p. 168), que se produz através da histerização do discurso que tem num outro giro discursivo o advento dos efeitos do discurso do analista, a ida do saber para o lugar da verdade, o que não seria verificável num coletivo, que determina a política.

Em Radiofonia, Lacan ([1970] 2003, p. 405), diz que “o efeito que se propaga não é de comunicação da fala, mas de deslocamento do discurso”. Assim, não se pode deslocar o discurso na política, a não ser pontualmente. Complementando a frase que abre o parágrafo, Lacan a termina da seguinte forma: “Se houvesse apenas a dimensão do discurso, isso deveria propagar-se mais rápido” (LACAN, 1967-1968, p. 104).

Quanto à questão de se objetivar histerizar o discurso, tal qual Lacan ([1969-1970] 1992, p. 31) diz, no Seminário 17, que é o objetivo do discurso do analista, também na política, poderíamos fazer a analogia de nesta se desejar fazer histerizar os discursos. Voltando num giro ao discurso da histérica propriamente dito, este é o que leva ao saber, mas para nada saber sobre isso, ela quer levar o mestre ao saber, fazer furo no discurso do mestre. Se esse passo é desejável, tem-se a condição de não ficar aí para aceder ao saber no lugar da verdade como barrado a ser agente, uma vez que esse discurso oblitera o objeto. O discurso do analisante é o que se histeriza a partir do lugar do analista, o que faz ressaltar a diferença sobre o discurso da histérica, no qual o sujeito está no lugar de agente, portanto não do trabalho, que não faz mais do que fazer o outro trabalhar. O lugar do analisante, então, se define de saída como diferenciado em relação ao agente histérico. Desse modo, uma posição política deve desta se diferenciar.

Tomando a construção que Lacan ([1969-1970] 1992, p. 160) faz ao sustentar que o discurso do universitário é a versão pervertida do discurso do mestre, no Seminário 17, ele a nomeia como “mutação capital” que “confere ao discurso do mestre seu estilo capitalista”, que algumas páginas à frente Lacan vai complementando, primeiro dizendo ser uma “pretensão insensata” do agente desse discurso, o S2, ter como produção um sujeito, um sujeito que de modo algum pode “se perceber por um só instante como senhor do saber” (LACAN, [1969-1970] 1992, p. 166). O S1 então como agente, no discurso do mestre, ao contrário, extraía seu saber do lugar do trabalho do escravo, como Outro, o que se modifica no discurso universitário por se ter o saber como agente do discurso “a partir de certo momento da história”, sobre o que diz em seguida: “a partir de certo dia, o mais-de-gozar se conta, se contabiliza, se totaliza. Aí começa o que se chama de acumulação de capital” (LACAN, [1969-1970] 1992, p. 169).

O objeto a, assim contabilizado, totalizado, confere, entendemos, à política quando exercida a partir do discurso universitário sua semelhança com a característica desse discurso, de ocupação pelo objeto a de um lugar “da exploração mais ou menos tolerável”, como diz Lacan na página seguinte. A política assim, quando intenciona “tudo-saber” (LACAN, [1969-1970] 1992, p. 29), característica do discurso universitário, se enquadraria neste quando tivesse o saber como demanda. Mas será que a política intenciona mesmo “tudo saber”? Ou ela faz uso do saber para que tudo funcione – como as políticas hoje fazem uso dos aparatos técnicos de saber, como no discurso do mestre mesmo, que nada quer saber, mas quer que isso funcione?

No trabalho de Articulação testemunha-se, com essa referência, o exercício de uma política que se move pela direção contrária à totalização discursiva na contabilização capitalista: onde uma política quer regulamentar o saber, a política da psicanálise exercida em Articulação faz furá-la. É um trabalho que intenciona agenciar-se pela posição do psicanalisante, tal qual esta se apresenta, no discurso do analista, o que entendo como o que traz a possibilidade de vermos girar os discursos a partir de intervenções que se mostram, com seus efeitos, atos políticos. Em resumo, trata-se então da tentativa de fazer enquadrar a psicanálise no discurso do universitário, o que faz empuxo do “tudo-saber”, da contabilização e da totalização do objeto a. É o que Lacan (1992, p. 59) chama do que seria uma Eu-cracia,2 que pode aqui ser exemplificada pelo contexto que é o nosso na política brasileira. Temos como esclarecedor exemplo recente de intervenção do Movimento uma Carta enviada pela Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras, entregue em mãos à presidente Dilma Rousseff, com o pedido de veto da apelidada “Lei do Ato Médico”, que pela representatividade que possui o Movimento acreditamos ter ajudado em parte no veto que de fato ocorreu ao projeto de lei. Esse exemplo não diz respeito exatamente a uma tentativa de regulamentar a psicanálise, mas alia-se a ela no que implicitamente viria a ser uma reserva de mercado para o tratamento e diagnóstico também de psicanalistas, além de ser um acinte à liberdade de exercício profissional das outras profissões do campo da saúde que se veriam submetidas burocraticamente ao poder médico.

Com isso poderíamos identificar as tentativas de regulamentação da psicanálise com a tentativa sempre presente no humano de fazer Um, de identificar-se, pela unificação, plenamente com os “semelhantes” com a ajuda caridosa de um mestre que os comande, lembrando o axiomático Psicologia das massas e análise do eu (FREUD, [1921] 2011), aliado ao que Lacan diz sobre a massa visar comumente ser comandada por um Outro, na Conferência em Genebra sobre o sintoma (LACAN, [1975] 1998, p. 8) ou ao que é dito no Seminário 23: “A maior necessidade da espécie humana é que haja Outro do Outro” (LACAN, [1975-1976] 2007, p. 124). E a partir dessa realidade, tratar de responder ao que daí advém como mais-de-gozar, quando o que se apresenta é a intenção de ganho de um bônus que compensaria a perda originária, como se pode ler as tentativas de regulamentação da psicanálise, às quais a Articulação se contrapõe. Já 14 anos de trabalho ilustram a responsabilidade assumida por Articulação na persistência em sustentar a transmissão do discurso da psicanálise em nosso país. De novo no Seminário 15 Lacan diz que “só há exemplos quando os efeitos se tornam um pouco persistentes” (LACAN, 1967-1968, p. 256). Isso verifica a presença de analistas no mundo? Difícil responder, na medida em que a verificação do ato analítico é questão em sua transmissão num espaço que não seja o próprio, analítico, mas sem dúvida alguns efeitos, advindos da transmissão que faz Articulação, são verificáveis em nossa política. Lacan (1967-1968, p. 252), falando sobre a insurreição de maio de 1968, diz que assinar a título de psicanalistas parece um modo muito fácil de proceder em momentos como esse, pois seria considerar-se analista “estando quite com os acontecimentos”, o que liga a estar em “comunidade absoluta” com estes. Superficialidade, como nomeia, que nos adverte nesse momento recente tão fecundo de insurreição em nosso país – com as Jornadas de Junho de 2013 – contra a aceitação dócil da exploração capitalista. Em Articulação tratamos com a mesma advertência de responder, sem estar em comunidade absoluta, mas responder quando pertinente, a tentativas de retirar da psicanálise exatamente sua especificidade, a de ser à margem.

 

Referências

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ALBERTI, S.; AMENDOEIRA, W.; LANNES, E.; LOPES, A.; ROCHA, E. Ofício do psicanalista: formação vs. regulamentação. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009.         [ Links ]

FREUD, S. Psicologia das massas e análise do eu (1921). In: ______. Psicologia das massas e análise do eu e outros textos (1920-1923). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 13-113. (Obras completas, 15).         [ Links ]

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LACAN, J. Radiofonia (1970). In: ______. Outros escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 400-447.         [ Links ]

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LACAN, J. O seminário, livro 23: o sinthoma (1975-1976). Tradução de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.         [ Links ]

LACAN, J. O seminário, livro 24: l’insu que serait de l’une bévue s’aile à mourre (1976-1977). Inédito.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Rua Costa Bastos, 77/405 - Santa Teresa
20240-020 - Rio de Janeiro - RJ
E-mail: mariana0307@hotmail.com

Recebido: 16/10/2014
Aprovado: 21/10/2014

 

 

SOBRE A AUTORA

Mariana Abreu Mayerhoffer
Psicanalista, membro do Laço Analítico - Escola de Psicanálise. Doutoranda em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela pós-graduação do Instituto de Psicologia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Assessora de Formação, Ensino e Pesquisa da Superintendência de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde da Prefeitura do Rio de Janeiro.

 

 

1 Saber-fazer aí, tal qual Lacan (1976-1977, p. 12) se refere ao saber fazer com o sintoma, no Seminário 24. Na edição brasileira de Outros escritos se traduz como "saber haver-se", em relação à verdade (LACAN, 2003, p. 442).
2 "[...] que se encontra no horizonte da ascensão do sujeito-senhor em uma verdade que se afirma por sua igualdade a si mesma, por essa Eucracia de que falei certa vez, e que é, parece, a essência de toda afirmação na cultura que viu florescer, entre todos, esse discurso do senhor" (LACAN, 1992, p. 75).

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