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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.43 Belo Horizonte jul. 2015

 

 

Sobre o Centro de Atendimento Psicanalítico do CBP-RJ - clínica social, formação e supervisão em psicanálise

 

About the CBP-RJ’s Center for Psychoanalytical Assistance - social clinic, psychoanalytical training and supervision

 

 

Anchyses Jobim Lopes

I Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro
II Universidade Estácio de Sá

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

História e descrição do Centro de Atendimento Psicanalítico (CAP), clínica social do Círculo Brasileiro de Psicanálise-Seção Rio de Janeiro (CBP-RJ). A mudança do CAP em 2005 com a criação das triagens, supervisões coletivas e do atendimento quase exclusivo pelos candidatos em formação. O grande aumento de procura por atendimento no CAP a partir de 2005. O retorno aos diagnósticos de Freud. Problemas sobre a análise pessoal obrigatória dos candidatos em formação. A supervisão como análise quarta segundo Stein. A dinâmica inconsciente nas supervisões individuais e coletivas. A supervisão coletiva como o lugar preferencial do passe.

Palavras-chave: Clínica social de psicanálise, Formação psicanalítica, Supervisão em psicanálise, Supervisão coletiva, Análise pessoal, Análise quarta, Passe.


ABSTRACT

The CBP-RJ’s social clinic, the Center for Psychoanalytical Assistance (CAP), it’s history and depiction. CAPs 2005 great changes with the introduction of: directing interviews, collective supervisions and candidates almost attending exclusivity. The numerical increase of treatment patient applicants since 2005. A return to Freud’s diagnosis. Problems around the candidates’ personal analyses. According to Stein supervision as a fourth analysis. The unconscious dynamics of individual and collective supervisions. Collective supervisions as the favored place to the psychoanalytical pass.

Keywords: Psychoanalytical social clinic, Psychoanalytical training, Supervision, Collective supervision, Personal analysis, Fourth analysis, Pass.


 

Na instituição psicanalítica a produção científica se faz sobre os restos inalisáveis, fazendo destes traços secretos uma condição de formação permanente. [...] A instituição psicanalítica testemunha a permanente passagem para o “tornar-se analista”, que se traduz na possibilidade de dar lugar para o inacabamento, através da produção teórica, da prática clínica e da supervisão.
(da Carta de Princípios do CBP)

 

Introdução: do planejamento e da necessidade

A partir de uma diretriz e de um planejamento que vêm sendo sistematicamente realizados nos últimos dez anos, o Centro de Atendimento Psicanalítico (CAP) tornou-se um dos principais pilares do Círculo Brasileiro de Psicanálise-Seção Rio de Janeiro (CBP-RJ). Revigorou a formação teórica, tornou-se um dos motivos essenciais da busca pela formação psicanalítica, permitindo que se refundasse o tripé teoria/análise pessoal/supervisão.

Recentemente procuramos por relatos sobre clínicas sociais de psicanálise e sobre supervisão. Visões diferentes que permitissem a reflexão sobre a nossa própria experiência. E que fornecessem sugestões de mudança e melhoria. Como tudo o mais no acervo psicanalítico, quando se passa da teoria para a clínica, principalmente uma clínica mais detalhada e com questões práticas, não vagos discursos ou esquemas, a bibliografia diminui consideravelmente. Sobre clínicas sociais há quase nada. Quando se chega aos livros e artigos sobre supervisão, contam-se nos dedos. Pesquisando pelo principal mecanismo de busca da internet, logo na primeira página de busca, tivemos a grata surpresa que os anéis de dois desses dedos são de artigos das publicações do CBP, de colegas do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (MENDES, 2012, p. 49-56) e do Círculo Psicanalítico de Pernambuco (PADILHA, 2005, p. 103-109).

Com o apoio de Maria Leda Jucá e Anna Lúcia López, colegas supervisoras no CBP-RJ, decidi escrever o relato da nossa experiência. Apesar de tentativas anteriores, o CAP não possui ainda um regulamento interno próprio. Num aparente contrassenso mas que revela nosso desejo, os itens do artigo são designados como se fossem itens de um regulamento.

Aqueles que frequentam uma instituição psicanalítica sabem o quanto gostamos de discorrer sobre A Lei, mas sempre buscando umas brechinhas ou deixando-a como artigo na estante. Se a ética está na essência do discurso psicanalítico, na prática, por mais liberal que se queira ser, não há como não normatizar. Para a maioria dos membros efetivos e candidatos essas normas são supérfluas. Mas sempre sobram uns poucos, por vezes um único, para o qual a norma precisa ser imposta. Ou seria o desrespeito com o sofrimento dos pacientes.

 

Da história do Centro de Atendimento Psicanalítico (CAP)

O CBP-RJ foi fundado em 19 de março de 1981, a partir de um grupo que havia se separado do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (CPRJ) em 1977. O CPRJ, por sua vez, havia sido fundado em 1969, com o nome de Círculo de Psicanalítico da Guanabara, a partir de interessados em psicanálise reunidos ao redor de Igor Caruso e Kattrin Kemper (D. Catarina). Em ata da reunião da diretoria do CBP-RJ, de maio de 1983, é mencionado um grupo de pesquisa para o estabelecimento do centro de atendimento. O tema foi retomado nas reuniões seguintes. Em agosto desse ano outra ata já menciona a sigla CAP, mas referindo-se à denominação Centro de Atendimento Psicoterápico. O último termo deve ter sido mudado pouco tempo depois para Psicanalítico. A ausência de dados mais exatos, em parte, se deve ao fato de o CAP ter ficado subordinado ao Departamento de Formação. Constituía uma coordenação autônoma, contudo oficialmente não separada até os anos 1990. Por motivos diversos parte da documentação do CBP-RJ entre o final dos anos 1980 e o início da década seguinte extraviou-se. Mas existem listas de presença em supervisões de grupo desde 1993 até a data atual. A primeira dessas listas tem como supervisor Roberto de Souza Bittencourt.

Desde 2000 o CAP passou a ser divulgado através da página do CBP-RJ na internet. Mas antes de 2005 permanecia uma entidade pouco significativa. Até então os interessados em terapia telefonavam para a secretaria do CBP-RJ que, por sua vez, fornecia o telefone da coordenadora. A coordenação era exercida por uma psicanalista que pelo telefone encaminhava o futuro paciente. Havia uma lista de membros efetivos e candidatos da formação interessados em receber pacientes. Aos candidatos sempre foi exigido que estivessem pelo menos no início do terceiro ano do curso teórico (num total de quatro anos de curso teórico) e que fossem aprovados por uma entrevista pessoal com a coordenação do CAP. Normas ratificadas por assembleia geral e incluídas no Regulamento do Centro de Estudos Antonio Franco Ribeiro da Silva, ao qual pertencem os alunos e candidatos.

O CBP-RJ contava ao início da década de 2000 com menos de quarenta nomes entre efetivos e candidatos. A lista de terapeutas do CAP existia apenas na memória da coordenadora. Mas tem-se a lembrança de que não constavam de mais de dez ou doze pessoas entre efetivos e candidatos. O principal motivo alegado para que houvesse somente contatos telefônicos com os interessados em terapia, era evitar a transferência institucional. Era suposto que os casos passados aos candidatos seriam levados a suas supervisões individuais, obrigatórias para a formação. Também era muito pequeno o interesse de efetivos em pacientes que pudessem pagar pouco. Frequentemente surgiam queixas, das pessoas interessadas no atendimento pela clínica social, de que tinham sido descartadas injustamente pelos efetivos. Era trazida a denúncia de que na verdade estes estavam selecionando os possíveis pacientes de melhor poder aquisitivo. Pelos vieses da fofoca tradicional comentava-se que esses psicanalistas eram os menos competentes e, à semelhança do monopólio análise didática em certas instituições, só que ao inverso, pretendiam uma clínica garantida e cativa.

Com a divulgação pela internet e um pequeno, porém contínuo crescimento do CBP-RJ, a partir de 2001 passou a surgir maior número de interessados no tratamento pela clínica social. O encaminhamento telefônico começou a se tornar cada vez mais oneroso para a própria coordenadora. Uma vez que agora os possíveis pacientes buscavam terapia a partir da página do círculo, considerou-se que a transferência institucional, mesmo telefônica, sempre ocorreria. Alguma forma de seleção de pacientes afirmou-se como necessidade indispensável. Principalmente aos encaminhados para os candidatos da formação. Esse encontro marcado às cegas entre possíveis pacientes e terapeutas apresentava perigos concretos, desde a possibilidade do aparecimento vários tipos de perversos até assaltos.

De comum acordo com a nova coordenadora do CAP, Maria Leda Jucá, e/ou por sugestão sua, a partir de 2005 várias mudanças foram sendo feitas. Mudanças que foram sendo aperfeiçoadas ao longo dos anos. Foi estabelecida uma entrevista de triagem na sede do próprio Círculo, mediante a cobrança de uma pequena quantia em proveito da instituição. A partir dessa entrevista há o preenchimento a posteriori pelo candidato da formação de uma mistura de anamnese e ficha padronizada. Documentos criados pela então nova coordenadora, as fichas de triagem são numeradas e arquivadas após o encaminhamento. Consideramos que seria um arquivo útil para futuras decisões administrativas e pesquisas clínicas. Todos os dados são considerados sigilosos, e só a coordenação pode ter acesso aos arquivos.

A tarefa de triagem é exclusiva dos candidatos da formação. São exigidos dois ou três meses unicamente nessa função, assim como a assistência de alguns meses de supervisão, até receberem seus próprios pacientes. Mas até concluírem toda a travessia de sua formação e ser admitidos pela assembleia geral como membros efetivos, todos os candidatos devem disponibilizar horários para triagens. Depois da triagem, que é caracterizada não como atendimento, mas como encaminhamento, os pacientes são atendidos nos consultórios providenciados pelos candidatos.

Exceto pela triagem, a negociação sobre o preço das sessões, pagamento e encargos, ficou sob a responsabilidade dos terapeutas, sendo que o CBP-RJ não recebe nenhum percentual financeiro dos tratamentos. Mas pouco após o início das mudanças no CAP a coordenação se viu obrigada a arbitrar um preço mínimo e um preço máximo para as sessões. O abuso cometido por uns poucos candidatos impeliu a uma normatização que atingisse todos. A arbitragem do preço mínimo foi feita para que fosse seguido o princípio freudiano de que o paciente tem de colocar a mão no seu bolso para que se responsabilize e afetivamente invista na terapia, bem como para domar alguns furores e onipotências terapêuticas dos candidatos. Já no outro extremo, a arbitragem de um preço máximo, foi feita para cercear denúncias que chegaram à instituição de que a clínica social não estava sendo nada social. Para o caso de pacientes que podem pagar além do máximo estabelecido, o fato deve ser comunicado à coordenação. Adiante veremos como a demanda dos pacientes adequou-se ou não à proposta dos honorários psicanalíticos numa clínica social.

Além da história de vida, das queixas que motivaram a busca por tratamento, de tratamentos anteriores e do uso de medicação, na ficha de triagem, também ficam anotadas as preferências do futuro paciente quanto ao bairro para atendimento e ao sexo do(a) terapeuta. Mas é avisado que, apesar de dada primazia, nem sempre esses pedidos podem ser atendidos. As triagens são apresentadas nas supervisões coletivas, em princípio por quem entrevistou o interessado em atendimento. Ao mesmo tempo da criação dessa nova modalidade de triagem, foi muito modificada a dinâmica e aumentada a frequência das supervisões.

A criação das entrevistas de triagem e do encaminhamento através das supervisões coletivas não ocorreu sem algum trauma como a saída do Círculo da antiga coordenadora do CAP, bem como queixas de alguns efetivos por que o encaminhamento de pacientes do CAP foi tornado exclusivo aos candidatos da formação. Passaram a ser dirigidos aos efetivos que se dispusessem apenas os casos considerados difíceis demais ou perigosos. Também são indicados para os efetivos os interessados em terapia que sejam estudantes de psicologia ou, mesmo com outra origem universitária, quando manifestam possível interesse em fazer formação. Tanto pelo fato de que nenhuma sociedade psicanalítica séria aceita candidatos analisando candidatos, quanto pelo fato de que seria antiética a discussão de casos de possíveis futuros colegas de formação nos grupos de supervisão.

Partindo da orientação surgida desde 2000 buscando enfatizar a clínica e sendo a instituição fortalecida com novas e ininterruptas turmas de candidatos a formação desde 2001, houve uma mudança radical em relação às supervisões em 2005. As supervisões do CAP são contínuas pelo menos desde 1993, mas representavam pequeno peso na formação como um todo. Até 2003 as supervisões estatutárias eram duas, individuais, cada qual de 45 sessões, não podendo ser simultâneas. Tendo surgido em sua origem (1977/1981) a partir de oposição ao modelo da IPA de análise didática, o CBP-RJ nunca exigiu que o analista dos candidatos pertencesse ou tivesse feito a sua formação na instituição. Mas sempre foi mantido de que os supervisores fossem do Círculo.

Participando como representante do CBP no Movimento de Articulação das Entidades Psicanalíticas, bem como a frequência como aluno ou em eventos de outras instituições do Rio de Janeiro, permitiu-se que obtivesse informações sobre diversos modelos de supervisão. A carga horária total de 90 horas parecia muito pequena. A primeira medida, aprovada em 2003 por Assembleia Geral, foi aumentar as supervisões individuais obrigatórias para duas de 50 horas. Calculando a média de uma por semana, totalizaria cerca de dois anos em supervisão. A duração era o mais importante que uma quantificação puramente numérica, logo sempre arbitrária. Mas, obsessiva e cabalisticamente, o número 100 ficava mais bonito.

Entretanto esta centena ainda parecia insuficiente. Várias sociedades tinham sua tabela arbitrada em 200 horas. Como as supervisões individuais são pagas à parte da mensalidade da instituição, pensou-se na criação de supervisões coletivas, inclusas na mensalidade dos candidatos. Era uma forma de aumentar a carga horária de supervisão sem majorar muito aos candidatos o dispêndio monetário correspondente. Possuo a lembrança feliz de supervisões coletivas e multidisciplinares (claro que com o predomínio numérico e da voz dos médicos), seja como auxiliar psiquiátrico na UERJ, seja no internato e na residência médica do Instituto de Psiquiatria da UFRJ. E também a boa experiência de supervisão em grupo, junto com colegas recém-formados que se cotizavam para pagar uma psicanalista como supervisora para nossa incipiente clínica particular. Por sua vez, Maria Leda Jucá tem boas recordações das supervisões coletivas no Serviço de Psicologia Aplicada (SPA) do curso de graduação em Psicologia.

Resolvemos incentivar a prática de supervisão em grupos no CBP-RJ. A prática é documentada desde 1993, mas sempre tivera uma periodicidade reduzida e inconstante. Em novembro de 2005 foram criadas duas supervisões quinzenais, em dias e semanas alternadas e em horários diferentes. Sendo o ideal que houvesse a frequência dos candidatos em ambas as supervisões. Mesmo que isso não fosse possível, como por questões de horário e emprego, por exemplo, pelo menos a participação em uma delas. Mas para os candidatos com dupla participação passou a haver mais 100 horas de supervisão ao longo do prazo de dois anos. Uma carga horária hoje ainda maior, na medida em que, devido ao aumento da demanda do número de pacientes, uma das supervisões tornou-se semanal, e a outra três vezes por mês. As supervisões coletivas também só podem ser assistidas pelos candidatos a partir do terceiro ano do curso de formação. Nos dois primeiros anos da formação há um abandono constante de um número ora pequeno, ora grande de candidatos. Sobram aqueles que parecem ser os mais dispostos ao discurso psicanalítico, também dando aos coordenadores maior segurança contra o risco de quebra de sigilo.

Em assembleia geral do CBP-RJ de março de 2011, a partir de proposta de Anna Lucia Leão López, foi criada uma nova instância do CBP-RJ: o Núcleo de Estudos Psicanalíticos da Infância (NEPsI). Além da discussão de textos sobre psicanálise infantil, passou a existir um terceiro grupo de supervisão, específico para o atendimento de crianças e alguns pré-adolescentes.

As supervisões obrigatórias e estatutárias continuaram sendo as duas individuais. Embora hoje seja muito mais raro, ainda há candidatos da formação que já a iniciam tendo em seu consultório particular um número suficiente de pacientes. Na medida em que o CAP tornou-se mais conhecido e um dos atrativos para a procura pela formação no CBP-RJ, alguns candidatos acreditaram ser o recebimento de pacientes uma obrigatoriedade da instituição com seus alunos. Muitas vezes teve de ser reiterado frente aos candidatos que o compromisso fundador do CAP era atender a uma população de menor renda. Ao contrário dos internatos das faculdades de medicina ou dos serviços de psicologia aplicada dos cursos de psicologia, a prioridade não são os alunos, mas a população. Compromisso reforçado na escuta da acusação feita por entidades de cunho religioso que desde 2000 tentam se apossar do nome “psicanálise” através de regulamentações espúrias, e usam do chavão que os ‘psicólogos são muito corporativistas e os psicanalistas (ditos tradicionais) muito elitistas’.

 

Da demanda clínica

A partir de 11 de novembro de 2005 até 27 de novembro de 2014 foram realizadas 691 triagens. Em média quase 70 triagens por ano até 2012, sendo que houve um aumento para 99 triagens em 2013 e 106 em 2014. Os números tornam-se mais expressivos quando se lembra de que o CBP-RJ é uma instituição pouco numerosa. Ao longo desses anos passou de aproximadamente de 18 membros efetivos para 26 ou 27, e o Centro de Estudos Antonio Franco Ribeiro da Silva, ao qual pertencem os candidatos do Curso de Formação Psicanalítica e os alunos do Curso Teórico, cresceu para pouco mais de 30 integrantes. E nos mais de vinte e cinco anos em que testemunhamos pessoalmente com nossa participação, jamais se viu um tostão de dinheiro público, nem que fosse para congressos ou publicações.

Claro que nem todas as triagens resultaram em terapia. Muitos sequer chegaram à primeira entrevista com o terapeuta designado. Outro tanto não retornou para a segunda ou terceira consultas. Mesmo assim mais de duas centenas de casos com a duração de alguns meses ou de até vários anos foram repetidamente levadas às supervisões coletivas do CAP e/ou as supervisões individuais da formação psicanalítica.

Apesar de numerosas exceções, o padrão socioeconômico predominante dos inscritos para triagens não atingiu muito as classes menos favorecidas, rotuladas nos meios de comunicação como D e E. A questão de o paciente ter sempre de pagar não parece ter tido influência nesse fato. Muitas vezes candidatos aceitaram pacientes abaixo, alguns bem abaixo, do preço mínimo estipulado. Há relatos de sessões a cinco ou dez reais.

Desde sua fundação o CBP-RJ instituiu-se como sociedade sem fins lucrativos, e não como sociedade filantrópica. O motivo que nos foi transmitido pelos membros mais antigos é que já tendo em vista uma clínica social, partiu-se do já mencionado princípio de que toda análise tem de ser paga pelo paciente. Mesmo que fosse uma quantia muito pequena. Mas que o pagamento é essencial para o comprometimento do paciente com a terapia. E também do terapeuta, que não se sinta um ser superior ou utilizando o paciente como cobaia. Mesmo um valor “simbólico” sempre acarreta no provimento de algum pequeno benefício como, por exemplo, garrafas de água mineral para a geladeira da sala de atendimento. Ainda assim, com frequência, os pacientes conscientemente relatam se sentirem culpados, por saberem que pagam ao analista abaixo da tabela dos consultórios.

Ao contrário da famosa Clínica Social de Psicanálise, fundada por Kattrin Kemper e colaboradores em 1972 (PAULA, 2014, p. 21), no CAP é mais que desencorajado, é mesmo proibido, o trabalho gratuito dos psicanalistas. Mesmo quanto aos seminários e supervisões institucionais, o estatuto do CBP-RJ exige que sejam remunerados. Apesar de essa remuneração ter sido sempre uma quantia pequena e, em momentos de crise da instituição, simbólica. Já o resto da descrição socioeconômica da clientela que procurava a antiga Clínica Social, texto descoberto durante a redação do presente trabalho, pode ser minuciosamente repetido quarenta anos depois ser aplicado à maioria dos que procuram ao CAP:

[...] A procura dos pacientes foi enorme. Todavia o engajamento social dos psicanalistas atingia pouco a população mais pobre. Mais a classe média mais baixa, frequentemente estudantes que também não podiam dar ao luxo de uma terapia psicanalítica. Eles possuíam, no entanto, condições mais favoráveis ao processo psicanalítico. Além disso, o fato da clínica se localizar em Copacabana, um bairro de classe média, favorecia também isso. E também porque os problemas psíquicos das populações mais pobres, em geral não podiam ser solucionados sem a melhoria material das suas condições de vida (FÜCHTNER, 2011, p. 28).1

Ainda que a maioria dos interessados em análise possa ser incluída quarenta anos depois nesta descrição, há alguns com poder aquisitivo de classe média e mesmo média alta. Ocorre um fenômeno relatado também pelos de menor poder aquisitivo: a reputação do CAP. Infelizmente há um festival de barbaridades que se passa pelo nome de psicanálise, muito favorecido pela propaganda dirigida na internet. O que faz que grande parte dos interessados em terapia comparem as informações dos diversos sites. Pesquisam nos mecanismos de busca da internet dados sobre os membros e psicanalistas das diferentes instituições. E ao suposto saber associa-se a necessidade em se acreditar num razoável grau de confiabilidade dos terapeutas.

Mesmo assim nem todos escapam de armadilhas. Embora se considere que muitas vezes quem inicia várias terapias e não vai adiante configura uma grave resistência, chegaram ao CAP vários relatos de supostos terapeutas sem um mínimo de escuta, neutralidade e ética. Outro tanto de queixas sobre as clínicas universitárias em que as terapias são sempre interrompidas devido à saída dos alunos. Um grupo pequeno, mas significativo veio por pesquisa e indicação de profissionais de ambulatórios e postos de saúde, cientes de que há necessidade de um tratamento mais longo e contínuo do que podem oferecer.

Apesar desses dados, atualmente algo entre um terço ou metade dos candidatos a paciente vem por indicação de amigos, parentes ou colegas de faculdade. Descobrimos que muitas vezes aqueles tratamentos que do ponto de vista mais ortodoxo não teriam sido satisfatórios, o foram. Foi a análise possível: algumas consultas, algumas semanas, alguns poucos meses, milhões de desculpas para faltar e interromper a terapia. E, no entanto, através dos parentes ou amigos indicados, ficamos sabendo que foi uma experiência positiva e ocorreu benefício.

Passemos aos diagnósticos dos que procuram o CAP. Apesar de considerarmos que a prática psicanalítica deva ser contrária à mania rotulatória da psiquiatria, principalmente em seus CIDs e DSMs, para o encaminhamento das triagens, os diagnósticos foram discutidos nas supervisões grupais. Tanto os rótulos atuais quanto a nomenclatura tradicional. Um modo interessante de se obter várias observações para pesquisa. Mas as fichas de triagem preenchidas pelos candidatos da formação não foram acrescentadas de quaisquer diagnósticos ou hipóteses psicanalíticas, permanecendo nelas apenas o registro da história e queixas dos entrevistados.

Primeira constatação foi o uso abusivo de medicamentos psiquiátricos, relatado na maioria das triagens, muitas vezes receitados por profissionais de outras especialidades médicas. O mais comum é o relato do uso simultâneo de duas ou mais substancias. Talvez na metade destas triagens onde havia relato do uso de psicotrópicos, os entrevistados ou queixaram-se que o remédio não abrandava mais as queixas, ou tinham abandonado o medicamento por conta própria. O uso de benzodiazepínicos é a regra para a maioria, e o clonazepam uma preferência nacional dos médicos, seguida pelo o uso abusivo da fluoxetina. O segundo dado é que, em geral, a maioria dos que procuram o CAP é do sexo feminino. Em terceiro, sendo a sede do CBP-RJ em Copacabana, bairro do Rio de Janeiro de maior, para não dizer imensa, população de idosos, a procura por pessoas de mais de 60 anos foi bem grande. Pode-se afirmar que em inúmeros casos ocorreu ou ocorre uma análise de alguns anos. Bem como muitos analisandos de terceira idade cuja rigidez psíquica é bem menor que a de outros com menos da metade de sua idade. Fica para o mais adiante que os candidatos da formação e futuros psicanalistas do CBP-RJ elaborem trabalhos sobre análise na terceira idade.

Independentemente do sexo ou faixa etária, a maioria dos pacientes enquadra-se no tradicional rótulo de “neurose”. Em algumas das supervisões coletivas pedi que cada candidato presente elencasse quantos pacientes estava atendendo e quais suas queixas, seus sintomas iniciais e os supostos diagnósticos. Apesar de uma amostragem grande mas tosca contada na ponta do lápis, o resultado obtido foi surpreendente. Utilizei a nomenclatura tradicional misturada com aquela empregada pelo próprio Freud: neurose de ansiedade, histeria (dissociativa e conversiva), neurose fóbica (a antiga histeria de ansiedade freudiana), neurose obsessiva e depressão. Consideramos as fobias, com seus rótulos contemporâneos – fobia específica, fobia social, agorafobia – com o antigo nome freudiano de histeria de ansiedade. Também consideramos como histeria conversiva grande parte do que hoje é rotulado como transtornos somatoformes, isto é, queixas que não são explicadas medicamente e não possuem base orgânica: transtorno somatoforme indiferenciado, transtorno de somatização, transtorno doloroso (inclusive a fibromialgia tão em moda) e transtorno conversivo com déficit motor ou sensorial. Conclusão: pelo menos metade dos relatos dos candidatos se encaixava no centenário diagnóstico de histeria.

Com frequência escuta-se algo como: “histeria era algo da Viena de 1900, que na clínica atual é a clínica da depressão”. Muitas vezes essa afirmação é feita por psicanalistas. É bastante evidente que a sociedade muito competitiva e a solidão individual cercada de Facebooks e WhatsApps fomentam um caldo de desamparo e depressões. Mas o dito acima, nas mãos da psiquiatria organicista, que aboliu inclusive o diagnóstico de neurose depressiva, englobando as depressões mais leves ao lado da antiga psicose maníaco-depressiva em transtornos do humor, equivale a dizer que toda clínica atual é exclusiva e neurocientificamente medicável (LOPES, 2009). Pela conta na ponta do lápis ficou aparente que a clínica do Rio de Janeiro e arredores, principalmente Zona Sul e Tijuca, apresenta fenômenos histéricos, e quaisquer outros, até psicóticos, externamente envoltos em modas e termos contemporâneos. A cultura molda a expressão dos quadros clínicos, mas em sua essência esses quadros são semelhantes à época e às descrições de Freud. A patoplastia, a figura como os sintomas se manifestam, sempre se transforma ao longo do tempo, mas a patogênese, a origem dos sintomas, continua a mesma do tempo de Freud. O papel da sexualidade, apesar de todo o aparente maior liberalismo na cultura ocidental do século XXI, permanece tão atual como na Viena de 1900. A resistência dos médicos e terapeutas (e não apenas dos não psicanalíticos) a importância do sexual quase tão intensa como naquele tempo.

Quanto a vários outros dados, não foi coletada uma estatística mais precisa, mas a frequência dos relatos foi significativa. Candidatos da formação e supervisores concordaram que as histórias contendo várias formas de abuso e violência são muito comuns em uma clínica social do que no consultório particular, desde que se ouça com uma escuta mais aberta. Num passado ainda recente não havia uma série de conceitos hoje codificados em psicologia e direito, tais como: violência doméstica, violência contra a mulher, abuso sexual infantil, assédio moral, homofobia, bullying. Em décadas não há muito tempo atrás, provavelmente os psicanalistas não tivessem muita escuta, e os pacientes não contavam ou, num pacto perverso entre terapeuta e paciente, era dada pouca importância a certas condutas socialmente aceitas, mas que na verdade eram formas de violência e de abuso à dignidade e a integridade humana.

Também o incesto real – principalmente entre pais ou padrastos e filhas e entre irmãos – foi relatado muito mais vezes do que o esperado. Poucas vezes se pode atribuir o relato apenas à fantasia do(a) paciente. Incesto continuado, quase sempre associado à conivência de familiares e à incapacidade de escuta de muitos religiosos e muitos terapeutas procurados antes do CAP. Quando não praticado pelos próprios religiosos ou terapeutas. Nunca pareceu tão atual o tema tão caro à obra de Freud. O próprio fundador da psicanálise teve dificuldade em contar para seus leitores suas descobertas sobre o incesto, mesmo em aceitar e se dar conta da importância clínica. O mais que centenário caso de Catarina, com uma nota de rodapé colocada quase trinta anos depois da publicação original dos Estudos sobre histeria, mostra como certas descobertas eram chocantes para o próprio Freud (FREUD, [1893-1895] 1978, p. 134).

Por outro lado, a divulgação do CAP pela internet e o preço baixo pago pelas triagens talvez tenham facilitado o aparecimento de um número razoável de pessoas com traços que Freud caracterizaria com o antigo nome de neurose de caráter. As velhas psicopatias e sociopatias, hoje rotuladas de transtornos de caráter, sendo o mais grave o antissocial, compareceram com uma frequência aparentemente um pouco maior do que se precisassem pagar um preço três ou quatro vezes maior em um consultório particular. E parece que, desde a época da correspondência entre Edoardo Weiss e Freud (FREUD; WEISS, 1979), é um pouco difícil convencer aos ávidos psicanalistas iniciantes a dispensar certos tipos potencialmente perigosos e sem perspectiva de melhora. Grande parte desses casos, seja em mera triagem, seja em algum tempo de atendimento, foi encaminhada para ambulatórios psiquiátricos.

A impessoalidade da divulgação pela internet e a inscrição para triagem numa instituição provavelmente teve um aspecto positivo ao facilitar o aparecimento de muitos futuros pacientes de diferentes orientações sexuais. Também deve ser levado em conta que a Zona Sul do Rio de Janeiro e alguns bairros como a Tijuca são locais de um discurso bem mais liberal que outros bairros mais periféricos e municípios vizinhos. Uma vez que a maior parte das triagens foi com futuras pacientes do sexo feminino, foram frequentes pacientes lésbicas, aquelas com mais idade, quase sempre casadas. Em ambos os sexos a orientação sexual era ou é sintônica ao eu, e não era uma questão a ser tratada. Mas em relação a alguns candidatos da formação a escuta de diferentes sexualidades foi meio distônica. Ler os Três ensaios sobre a sexualidade (FREUD, [1905] 1978) é fácil, no papel.

 

Da análise pessoal dos candidatos

O CBP-RJ sempre exigiu análise pessoal aos seus candidatos em formação. Além da não existência de análise didática, a aceitação de analistas que não sejam do próprio Círculo para a análise pessoal de candidatos da formação é uma de suas características históricas. Com a proliferação exagerada de instituições com fins lucrativos e religiosos, de conselhos profissionais e sindicatos espúrios (até de uma Academia Brasileira de Psicanálise), criou-se a possibilidade de que algum analista ou instituição dessas questionasse legalmente o porquê da sua não aceitação entre os analistas para candidatos da formação. Por isso, há alguns anos votou-se em assembleia geral que analistas de todas as sociedades psicanalíticas signatárias dos manifestos do Movimento de Articulação das Entidades Psicanalíticas seriam aceitos como analistas dos candidatos em formação. E a lista colada no livro de atas. Em anos seguintes mais algumas sociedades psicanalíticas, não signatárias dos manifestos, também foram aceitas por assembleia geral.

Mas tanto quanto se lembra, até 2005 havia pouca fiscalização. Para o ingresso na formação e ao final do percurso no centro de estudos e para a passagem a membro efetivo, era exigida a comprovação de análise pessoal. No esquema de supervisões individuais em consultório apenas, ou certos fenômenos clínicos várias vezes ficavam mascarados, ou com certa frequência ocorriam pactos perversos entre supervisor e candidato. De modo que deficiências de análise pessoal ficavam encobertas.

As supervisões coletivas facilitaram que ficassem nuas as dificuldades de um grande número de candidatos em se colocar numa escuta minimamente psicanalítica. Candidatos dando conselhos pessoais já na triagem. Outros induzindo respostas e dando “notas” a condutas aos pacientes já em terapia. Terapeutas tomando ativamente partido contra terceiros. Outros se deixando assustar ou fascinar por relatos escabrosos, sem ter mínima consciência de que estavam no papel de testemunha para perversos. Candidatos que mesmo ao longo de muitas sessões, meses, permaneciam apenas as queixas e os problemas concretos e atuais, sem tentar compreender o discurso inconsciente, sem deixar que a atenção flutuasse, sem que espontaneamente possíveis construções analíticas surgissem (o que ainda acontece no atendimento de alguns poucos candidatos até hoje). Os supervisores presenciavam uma grande dificuldade por parte de alguns candidatos da aceitação de que tudo que se possui é o discurso do paciente. Uma impossibilidade de que os futuros analistas se deixassem levar por uma escuta psicanalítica, de entrega à atenção flutuante.

Também foi frequente o excesso de envolvimento emocional por terapeutas pouco capazes de, na prática, se dar conta da importância da neutralidade. Desprezando-a com a racionalização de que é era “coisa do passado”. Apesar de já serem centenários os Três ensaios sobre a sexualidade (FREUD, [1905] 1978) muitas vezes em que o supervisor chamava a atenção da importância do sexual no sintoma, era denegrido com algum termo semelhante a acusação de “pansexualismo” feita a Freud (o que também é um elogio). Perceber a questão edípica e equacionar o relato presente com hipóteses sobre a primeira infância, nem pensar. Uma candidata expressamente afirmou que “Édipo” era uma visão psicanalítica ultrapassada e uma ideia fixa do supervisor.

Some-se a esse quadro caricatural a incredulidade de vários candidatos diante do dito freudiano de que tudo que interfere com a livre associação é resistência. Em geral uma grande dificuldade em manter uma neutralidade suficiente e de perceber fenômenos de resistência do paciente. Desculpas dos pacientes para faltas eram tomadas só como fatos objetivos, assim como a proposta de redução do número de sessões até para menos de uma por semana aceitas na hora. Não somos partidários de que toda resistência seja do analista, mas era fato que alguns candidatos não conseguiam sequer vislumbrar a dos pacientes.

Em vários candidatos oriundos dos cursos de psicologia foi difícil deixar de lado o aconselhamento e o intervencionismo. Nestes. mas também num número razoável daqueles com outras origens universitárias, também foi frequente a contestação de que os sintomas tinham origem genética e biológica. Ainda no primeiro ano das supervisões em grupo ficou nítido que candidatos de fortes crenças religiosas não conseguem passar para uma escuta psicanalítica. O paroxismo ocorreu quando um candidato, homem de uns trinta e cinco anos, bom aluno e colega, na melhor das intenções e com toda simplicidade, relatou ao grupo de supervisão ter numa sessão de terapia ter aplicado um passe espírita a um paciente.

Seria fácil culpabilizar apenas a incapacidade dos candidatos. Mas foi necessário pensar o que afinal estava a instituição psicanalítica transmitindo. Pode-se reproduzir as palavras que Valabrega (apud STEIN et al., 1992) usou para descrever a relação entre a instituição e a prática da análise de controle, sem dúvida também repetida na relação entre paciente e candidato, entre candidato e supervisor, mas que igualmente parecia uma grande dificuldade em passar do discurso teórico sobre a psicanálise para a prática da psicanálise:

[...] uma relação hierárquica, autoritária, normativa, escolar, paternalista, por vezes sedutora e por vezes repressiva, da qual se encontram alguns modelos na relação pai-filho, na relação mestre-aluno, na relação desobjetivada administração-subordinados, até na relação juiz-testemunha ou inquisidor-suspeito. [...] De fato é essencialmente antianalítico, por que esta prática introduz, postula, favorece e introduz uma relação alienante (VALABREGA apud STEIN et al., 1992, p. 42).

A dificuldade de uma escuta minimamente psicanalítica denunciava que alguns candidatos viam a instituição como a vendedora de um certificado que os autorizaria a se intitularem psicanalistas. Acrescentemos na lista acima a relação de compra e venda de uma autorização imaginária. E que o discurso do tipo universitário, do mestre, sobre a psicanálise, parecia ser tudo que importava, e não a passagem de uma passagem da psicanálise numa transmissão que já foi comparada à transmissão xamânica. A história desvelada ao longo de todos os fatos acima levou ambos os supervisores, em um discreto pânico, a se perguntarem como andariam as análises pessoais dos candidatos. Pois como disse Freud, a universidade pode ensinar algo sobre a psicanálise, mas a psicanálise só se aprende no divã.

O primeiro sentimento dos supervisores era de que mais tempo de análise deveria ser exigido, mesmo que implicasse mudanças formais estatutárias e regimentais da instituição. Foi então que se descobriu que estava errada a informação, passada há mais de uma década pelas sucessivas coordenações e supervisores, e repassada aos candidatos desde as entrevistas de seleção até o final da formação, de que a análise pessoal só era exigida durante o curso teórico (quatro anos), e não durante a formação toda (seis anos ou mais em geral). Relendo estatuto, regulamento, regimento interno e atas, descobriu-se que a exigência de análise durante toda a formação sempre existira. Se já é problemático falar de inconsciente coletivo, mais ainda em resistência coletiva.

A fiscalização das declarações de análise pessoal teve de se tornar semestral. Exercida pela coordenação da Comissão Científica e de Formação Permanente, defrontou-se com a má vontade de muitos analistas, esquecimentos por parte dos candidatos e até mesmo da própria coordenação. Além da exigência para toda a duração da formação, também foi descoberto que vários candidatos tinham sessões de apenas uma vez por semana, quando sempre foram exigidas duas. E sobre isso não tinham sido fornecidas informações erradas. Em quase todos os casos foi diretamente confirmado que os problemas clínicos apresentados pelos candidatos, eles mesmos, nos grupos de supervisão estavam associados à falta de análise pessoal.

Alguns anos depois também foi aprovada em assembleia geral a norma de que o analista, quando do próprio Círculo, não pode ser também supervisor de seu paciente. Várias vezes os pactos perversos acima mencionados se estendiam da relação analista/paciente para a de supervisor/candidato. Na melhor das hipóteses houve a suspeita que falar um pouco dos pacientes na própria análise é indispensável, mas falar demais pode se tornar notável fonte de resistência. Ao final não ocorria plenamente nem análise, nem supervisão. Quando da redação do presente texto foi interessante ler os comentários de Stein sobre o tema de:

[...] uma mistura de análise com supervisão, um pouco como algumas vezes faz Françoise Dolto que, sem recusar a supervisão feita com outro psicanalista, não deixa de aceitar tomar em supervisão seus próprios pacientes. Ela lhes propõe para isso uma sessão suplementar, julgando que seria lamentável que sacrificassem uma de suas sessões para falar dos pacientes deles (STEIN, 1992, p. 25-26).

É fácil discorrer sobre a lei em seminários teóricos. A não fiscalização da análise pessoal, sob a capa de um pretenso liberalismo por parte da instituição e de seus membros, e de que tudo deve ser deixado ao desejo do candidato. Mas o que havia era uma sedução mascarada de se querer sempre ser tomado por bonzinho e popular, o favorito dos candidatos. Ocultando a repressão adjudicada aos futuros pacientes/vítimas, quando das reuniões entre efetivos se dizia que eventuais problemas dos candidatos seriam tolhidos pela seleção natural que ocorreria quando esses maus analistas fossem postos no mercado. Isso é uma seleção natural darwinista em que imperaria a lei do mais forte. Nem Darwin, nem seu discípulo Freud, supomos, concordariam com esse uso espúrio do evolucionismo.

Entre os representantes das instituições que participam do Movimento de Articulação das Entidades Psicanalíticas (ALBERTI et al. 2009) sempre é repetido o consenso de que a formação psicanalítica se assenta no tripé: teoria, supervisão e análise pessoal, sendo esta a mais importante. O que mantém a necessidade da existência de instituições psicanalíticas é que, ao contrário dos cursos de especialização e pós-graduação stricto sensu de universidades, as sociedades psicanalíticas podem exigir a obrigação de análise pessoal. Nos dois manifestos levados ao poder legislativo com o intuito de impedir projetos espúrios de regulamentação da psicanálise, o argumento principal levado aos deputados era que pseudoformações de cunho religioso ou não, do tipo alunos com análise ‘didática’ de 50 sessões e a prática 50 sessões com um único ‘paciente piloto’ (supervisionado?), colocavam a saúde da população em risco. Sabe-se inclusive, por pessoas oriundas de algumas destas ‘formações’ que na prática, na maioria das vezes, não há qualquer análise pessoal dos alunos.

Os problemas do CAP deixaram claro que o compromisso assumido com a integridade dos pacientes, e reafirmado no manifesto, passa principalmente pelo terceiro item do tripé: análise pessoal. Na formação em uma sociedade psicanalítica a análise pessoal dos candidatos não pode ficar à mercê do “[...] é necessário que haja uma demanda de análise”. Em primeiro lugar, a própria busca pela formação já é uma demanda de análise, que aumenta mais ainda a partir do próprio percurso de formação, porque “[...] a demanda de supervisão é sempre uma demanda de análise” (STEIN, 1988, p. 101). Segundo, porque a resistência maior é a dos próprios analistas. Já escrevera Freud sobre os admiradores da psicanálise nas Conferências introdutórias a psicanálise – terceira parte (teoria geral das neuroses), naquela designada Resistência e recalque: “Todo mundo está rapidamente disposto a tornar-se adepto da psicanálise – com a condição de que a análise pessoalmente o poupe” (FREUD, [1917] 1978, p. 289, tradução do autor).

Tendo sido paciente durante mais de cinco anos com cinco sessões por semana, depois outro período igual ou maior quatro vezes semanais e só no último ano de análise com três sessões, registro aqui meu julgamento de que duas vezes apenas é muito pouco. Para pacientes comuns, em geral duas, até uma vez por semana, pode ser suficiente, não para candidatos e analistas, que configuram uma clínica muito mais grave, difícil e resistente.

 

Da prática da supervisão e da análise quarta

As supervisões individuais já traziam consigo todo tipo de indagação sobre a função do supervisor. O que seria essa visão superior, semelhante à dos deuses antigos sobre os simples mortais? A exigência institucional de duas supervisões sucessivas, mas não simultâneas para cada candidato traz em si que é fundamental que um candidato seja confrontado com duas experiências clínicas diferentes. Por sua vez não há nenhuma institucionalização de como devam ocorrer essas supervisões. Exceto que a não regulamentação deixa clara a recusa ao modelo de formação no qual um caso clínico deve ser obrigatoriamente acompanhado de perto em toda a sua duração. Das conversas informais entre os membros do CBP-RJ, dos quais todos os efetivos são supervisores, os candidatos ficam livres de levar o que quiserem, por quanto tempo quiserem, provavelmente focalizando onde estão tendo mais dificuldade. Podem até mesmo acompanhar um ou mais casos em toda a sua extensão. Mas não apenas esses pacientes, pois quando isso é feito, se verifica que o resto da clínica do candidato fica completamente à solta. A resistência do candidato acaba se dirigindo inteiramente para o material que não é trazido à supervisão.

Apesar das juras de fidelidade ao tripé de formação analítica, a diminuta produção teórica sobre o tema disponível no Brasil acedia um sinal vermelho, como advertência de que o tema ia desde um tabu dentro das instituições como entre elas mesmas. O bom de quando não há uma receita pronta é ter de inventá-la. Claro que não existe criação a partir do nada. Parte vem da análise pessoal, parte das supervisões sofridas. Sem lembrar muito bem de qual delas, de décadas passadas ficaram duas recomendações explícitas conscientemente na memória. A primeira é que a supervisão sempre se refere a um momento de análise já pretérito, que apenas pode-se ajudar o supervisionando a ter uma versão diferente desse passado, tomando o cuidado de não utilizar o poder da suposta ‘super-visão’ para culpabilizá-lo. Quem estava lá era ele, e sempre é mais fácil para quem está de fora dar palpites. A segunda recomendação é que toda supervisão é uma análise de ego.

Já exercendo a prática das supervisões individuais, muito antes da criação dos grupos de supervisão do CAP, deixando ao candidato trazer o material clínico que quiser, foi observado que não é ao acaso nem por uma deliberação apenas consciente do candidato que é trazido o material clínico. Mesmo no caso daqueles que anotam todas as sessões de cada paciente há uma escolha inconsciente. O que muito depois foi corroborado pela leitura de Conrad Stein:

[...] a exposição não poderia ser um relato fiel das sessões que ele teve com seu paciente – lembra-se é escolher e interpretar – alguns o levam a manter tanto quanto possível a ficção de um relato fiel, enquanto outros lhe concedem a liberdade de não ter que fingir que está contando outra coisa além de lembranças necessariamente lacunares e deformadas (STEIN, 1988, p. 92).

Inicialmente a presença do supervisor passa por opiniões sobre questões práticas (pagamento, contrato, faltas, divã ou não), sobre dúvidas diagnósticas, sobre intervenções diretas, uso de medicamentos, etc. Problemas atuais como os celulares que chamam durante a sessão. E a ênfase no direito do paciente ao sigilo absoluto, que se estende ao que é relatado aos supervisores. Até esse momento se está direcionado para questões básicas ao estabelecimento do setting. Questões práticas já descritas por Freud (1911-1915 [1914] 1978) em parte de seus Artigos sobre técnica, leitura e releitura obrigatória. Embora todos esses itens sejam condições mínimas para análise, ainda não se está dentro da psicanálise.

A entrada na psicanálise através da supervisão ocorre quando se inicia o relato do material trazido pelo paciente. O relato das intervenções e silêncios do candidato, mesmo quando escrito sempre fruto das suas lembranças deformadas e lacunares, acompanhado de todos os matizes de afetividade. E uma boa quantidade de medo e angústia para quem está se iniciando. A esse material o supervisor sempre reage de alguma forma que é algum modo de interpretação. Mesmo sutilmente disfarçada de aconselhamento prático. Mesmo quando o supervisor se supõe neutro e não quer se imiscuir nas questões pessoais do candidato (para o que também não está sendo pago), e diz: “acho melhor você ver isto com seu analista”.

Não corroboramos a ideia de que toda supervisão seja uma análise de ego, mas é uma análise. Donde Valabrega utiliza a expressão “análise quarta” (VALABREGA apud STEIN, 1992). A primeira é aquela entre o paciente e o candidato; a segunda, a do candidato com seu analista, e a terceira, a desse analista em sua própria análise pessoal. Todas as quatro constituem a rede de desejos de análise, com os restos e as sobras de análise, que, transbordando, resultam em uma formação. Com as quatro derramando transferência e resistência, amor e ódio. E sendo as quatro análises as principais mantenedoras de uma sociedade psicanalítica, pode-se também invocar todos os fenômenos grupais descritos por Freud desde Totem e tabu (1913) até Moisés e o monoteísmo (1939).

Nunca a análise quarta está completamente desimpedida da situação institucional. Inclusive numa sociedade como o CBP-RJ, em que os supervisores não prestam contas do “desenvolvimento” do candidato a uma comissão de formação. Apenas ao final das cinquenta horas assinam uma declaração de que a duração exigida institucionalmente foi cumprida. Mesmo assim o membro efetivo nunca está desvinculado do papel de lei e de mestre. Por mais liberal e supostamente mantida apenas pelo desejo de análise que seja o discurso oficial da instituição, ela se institui como um terceiro, não apenas subjetivo, mas realidade concreta.

Apesar de modo crítico e com visível desconforto, Stein (1992) fala da função de vigilância do supervisor. Ter poder sobre o candidato, como ocorria com as famosas análises didáticas, que podiam levar ao desligamento do candidato bem como decidiam como podia iniciar sua participação em seminários ou no atendimento de pacientes, evidentemente inibem a livre associação. A isso um eu mais saudável se defende com recalque, um mais cindido ou perverso com a gênese de um falso self. Uma das críticas feitas à análise didática, talvez a mais grave delas, é a criação de falsos selfs.

Tais críticas são absolutamente pertinentes também à supervisão. Prática que muitas vezes possui um significante tenebroso, mesmo em algumas instituições lacanianas, de controle: análise de controle. Novamente Stein, embora criticando, menciona que além da função de garantir a competência profissional, a supervisão também tem de “[...] proteger a sociedade contra a atuação eventual de analistas perversos” (STEIN, 1988, p. 94). Historicamente o termo perverso foi utilizado para o afastamento de candidatos homoeróticos. Mas não parece ser a isso que a leitura dos textos mencionados se refere. Quem participa de uma instituição psicanalítica conhece de perto a difícil convivência entre personalidades um pouco narcísicas e meio paranoides. Além dessas características, há candidatos simplesmente apavorados de receber seus primeiros pacientes, outros com uma onipotência terapêutica quase psicótica. Mas o mais difícil realmente é lidar com candidato que, pela já referida carência de análise pessoal, algumas vezes uma impossibilidade estrutural mesmo, conhece racionalmente a teoria psicanalítica, mas não consegue em si mesmo afetivamente compreender do que se trata uma análise e do que se trata na prática o que é rotulado como pulsão, inconsciente, repetição e transferência.

Ao se discorrer sobre perversão, há que se pensar que, apesar de todas as críticas desabonadoras a Freud, de todas as tentativas de descrédito da psicanálise frente a coisas como a neuropsicologia clínica ou a neurociência do comportamento, o significante psicanalista possui prestígio. O histórico do Movimento de Articulação das Entidades Psicanalíticas (ALBERTI et al. 2009) deixou bem claro que, se não houvesse esse renome, não existiriam/haveria tantas tentativas de se apossar do significante psicanalista.

Quando afirmamos que o desejo de análise é o principal mantenedor de uma instituição psicanalítica, deixamos espaço para outros motivos. Para qualquer sociedade há um mínimo de peso e autoridade. Há candidatos, além de outros que nem passam das entrevistas iniciais para a formação, que o desejo de prestígio do título de psicanalista é maior que o de análise, que pode até não existir. Se no passado recente se apelidava de ‘superpsiquiatras’ os psiquiatras que faziam formação apenas para adornar sua parede de diplomas com mais um, no íntimo permanecendo basicamente medicalistas e organicistas, hoje podemos falar de candidatos a candidatos que apenas buscam ser ‘superpsicólogos’, ‘superexotéricos’ ou ‘super-religiosos’.

Em relação aos psiquiatras Althusser nomeou essa atitude de revisionismo psicanalítico. Mas podemos estender aos demais tipos descritos acima. Aceitar as teorias de Freud, mas apenas como apêndice de uma visão de mundo que julgam mais importante, calcada no imaginário. Para tanto, se apossam de parte da técnica psicanalítica para fins de manipulação, deixando de lado o aspecto mais importante de uma verdadeira análise: uma ética. A esses denominaríamos de analistas verdadeiramente perversos, pois seduzem pacientes em seu imaginário para práticas pseudoterapêuticas, que não são psicanálise, e acabam por recalcar ainda mais o inconsciente e alienar o sujeito de seu desejo.

 

Da supervisão em grupo

E quanto à supervisão em grupo, como ficam as questões levantadas: da livre associação do material trazido, da rede de desejos e sobras de análise que mantêm a formação, da análise quarta, da vigilância? Por falta de tempo e espaço deixemos de dissertar sobre as várias definições e sobre os principais autores que escreveram sobre grupo em psicanálise. Há que formular algumas hipóteses a partir dos próprios textos freudianos. Provavelmente o supervisor está no local do pai primevo, ora amado, ora odiado, ora no papel de ideal do eu, ora no de eu ideal. Lugar inevitavelmente reforçado pela sobra de transferência institucional de ambas as partes.

Nas questões práticas, o supervisor deve evitar que cresça demais a paranoia, do tipo “Por que essa paciente foi para fulana e não para mim? Parece que meu nome está sendo deixado de lado na lista”. Queixas que também podem ser ouvidas como: “Por que você prefere a ele?”; “Eu sou o primogênito”; “Nasci por último, logo tenho direito de ser compensado com mais presentes”. Por isso, a coordenadora do CAP, Maria Leda, pouco após as mudanças iniciadas em 2005, estabeleceu que a lista e a distribuição dos pacientes fossem sempre atualizadas e permanecesse com dois dos candidatos, que se revezam a cada nova turma que entra.

Mais que pai, o supervisor tem que ser uma mãe primeva, cronometricamente medindo um tempo igual entre três ou quatro candidatos, para que pelo menos um número razoável possa falar de seus pacientes. E escolher outros na próxima vez. As supervisões coletivas necessitam de uma hora e meia de duração. Quando todos participam comentando e interpretando cada apresentação, a escuta e o discurso circulam, ou melhor, associam-se livremente. Como nos foi ensinado há muitos anos por um grupo ambulatorial no Instituto de Psiquiatria da UFRJ, que permaneceu por vários anos, composto de pacientes diagnosticados como esquizofrênicos, a função do coordenador do grupo é só agir quando o grupo se fragmenta em conversas paralelas. Ao contrário das supervisões individuais, a troca de experiência, de leituras, de associação com outros pacientes dos candidatos, torna-se tão ou mais enriquecedora que a ‘super-visão’ individual. Ainda assim, no caso do CAP o supervisor é sempre convocado e ainda dispõe de tempo suficiente para pontificar suas interpretações. Frequentemente a duração das supervisões ultrapassa a hora e meia regulamentar.

A supervisão individual, ao dedicar mais tempo a cada candidato e a seus pacientes, pode aprofundar-se verticalmente. Mas corre o risco de maior identificação imaginária, com o supervisor no papel de mestre e o candidato como discípulo. As supervisões em grupo, apesar da maior duração de cada uma, tendem a provocar uma dispersão horizontal. Mais comentários, mais palpites, mais interpretações, mas menor possibilidade de identificação imaginária com um mestre. Citemos Maud Mannoni quando fala da importância do que nomeamos dispersão:

[...] Para mim, o trajeto a ser feito através de diversas supervisões dá lugar a alguma coisa de fato essencial em uma formação. É a possibilidade oferecida ao sujeito de não ficar prisioneiro de um só mestre, e é apenas por esta via que se formarão analistas e não simples discípulos, como é muitas vezes o caso (MANNONI apud STEIN, et al., 1992, p. 38-39).

A exigência de duas supervisões individuais já amplia a rede de análises em uma quinta análise. Os grupos expandem ainda mais essa rede. Cada participante do grupo é um analista sexto, sétimo, oitavo, etc. Muitas vezes cacofônica e discordante, a variedade de vozes obriga que o candidato desenvolva mais seu próprio modelo de analista. Enquanto irmãos da horda, os candidatos estão mais à vontade para detonar os receios que supervisores individuais possam ter em apontar pontos cegos, resistências e visões românticas sobre o paciente nos casos apresentados por outrem.

No início das mudanças do CAP houve pruridos em que o caso apresentado a um supervisor de um grupo não fosse levado a outro. Ou que os casos daquelas individuais não fossem levados às grupais, o que não foi obedecido pelos candidatos e que na realidade refletia o medo dos supervisores, como supostos donos do discurso psicanalítico, de revelar publicamente suas discordâncias. A apresentação de casos em supervisões específicas foi mantida apenas em função da questão ética e de “contaminação” com dados alheios ao discurso do paciente. Isto é, quando pacientes são cônjugues ou pai e filho, ou amigos muito próximos, pede-se que os casos sejam levados sempre a supervisões diferentes ou que um dos terapeutas se ausente da sala durante a apresentação.

Imaginem-se os candidatos que apresentam seus casos nas duas supervisões grupais e frequentemente também apresentam nas individuais, muitas vezes com nenhum dos dois supervisores de grupo. Considerando os analistas pessoais de cada candidato e de cada supervisor, numa sociedade em que não há monopólio de análise didática nem de instituição para os analistas dos candidatos, o número de Valabrega vai quase ao infinito. Assim, há um número muito maior de possibilidades de identificação inconsciente e da construção de um modelo próprio de analista para cada candidato, mais próximo de seu próprio desejo.

Mas existe o outro lado da moeda. São claras as dificuldades quando transferencialmente alguns analistas de outras sociedades, conscientemente ou não, manipulam seus pacientes, a fim de valorizá-las mais que ao Círculo. O que pode permanecer até mesmo depois de se tornar membro efetivo. Além do investimento narcísico desses analistas em suas próprias instituições, outro motivo é a não aceitação da análise leiga, à qual pertencem três quartos dos membros e candidatos do CBP-RJ. Indo até ao paradoxo de candidatos e efetivos que, por restos transferenciais, inconscientemente desprezam sua própria instituição e valorizam outra que jamais os teria aceitado por não serem médicos ou psicólogos. Alguns analistas de candidatos, de outras instituições, chegam até mesmo a abertamente sabotar a formação de seus pacientes. O modelo de análise didática exclusiva por membros da instituição acaba deixando a narcísica nostalgia de imaginariamente provocar menos problemas.

Se o pai e a mãe primeva devem incentivar o candidato, ou até mesmo atirá-lo ninho abaixo para que se vire, também estão no papel de lei. Castrações simbólicas, outras não tanto, são necessárias. A instituição não existe apenas como fonte de transferência, mas também na realidade concreta. Tendo-se por analogia que os responsáveis legais pelo atendimento dos alunos no curso de medicina são os supervisores, e que o mesmo acontece nos SPAs dos cursos de psicologia, assim ocorre no CAP, e em muito maior grau que nas supervisões individuais.

Foi o aprendizado deixado por uma tentativa de processo judicial pelos pais de uma criança autista. Caso em que, apesar de toda a inexperiência da candidata, o paciente apresentava melhora. Justamente por isso os pais começaram a atuar. A ordem do supervisor de que se interrompesse o tratamento não foi obedecida pela terapeuta. A atuação atingiu o extremo quando a clínica, onde a candidata sublocava horários de uma sala, teve se suspender suas atividades por um dia. A iniciativa do processo não foi apenas contra a candidata, mas contra o supervisor e a coordenação, sempre mencionando juridicamente também a corresponsabilidade da direção. Apesar do alto custo pessoal e monetário a questão jurídica não teve maiores consequências.

Embora não tivesse ocorrido no caso descrito, também passou a ser divulgada a cada nova turma a proibição, tanto por motivos éticos quanto legais, de que casos do CAP sejam levados a supervisores que não pertençam ao Círculo. Uma das razões pela qual o monopólio de que os supervisores precisam pertencer à instituição ficou demonstrada no caso acima descrito. Ficou claro que, na instituição, quando os pais primevos dizem não, deve ser não mesmo.

Mas nunca deve ser esquecido que o totem foi erigido no lugar de um pai primevo assassinado, festivamente devorado, cujo luto só algum tempo depois aflora por culpa, mesmo assim por imposição do retorno do recalcado.

 

Do nomear-se psicanalista

Nas críticas surgidas a partir da década de 1950 ao modelo de formação da IPA, muito difundidas pelos analistas de orientação lacaniana, mas que não foi sua exclusividade, ficou claro que o tripé análise pessoal-supervisão-teoria não é suficiente para tornar alguém um analista. Muito menos o prestígio de uma sociedade psicanalítica.

A controversa questão do passe por Lacan foi a mais conhecida tentativa de superar esse dilema. Questão debatida entre as várias correntes lacanianas, vamos ater à opinião que nos parece mais prática, embora ainda extremamente pessoal e subjetiva. Foi transmitida pelo psicanalista Philippe Julien durante o Congresso Internacional de Psicanálise da IFPS, sediado em Belo Horizonte pelo CPMG em 2004, durante uma reunião em separado sobre o Movimento da Articulação e as propostas de regulamentação da psicanálise na França. Para Julien a questão essencial do passe é que os avaliadores que entrevistam o candidato avaliem se ele foi “tocado” ou não pela psicanálise. De nada adianta todo um percurso formal numa instituição se, enquanto experiência, a psicanálise não tiver de algum modo mudado a relação do candidato com sua visão de mundo, na intimidade do seu ser. Descrição que perigosamente parece com a de uma conversão religiosa, que pode ser também rotulada como fenômeno psicótico. Contudo, a descrição acima de ‘superpsiquiatras’ e outros do gênero mostra como, além de todos os estatutos e formalidades, uma mudança afetiva e íntima torna-se necessária para que verdadeiramente alguém se nomeie psicanalista.

Há vários paradoxos nesta descrição. Não se trata apenas de uma autonomeação. Como tudo muito pessoal e subjetivo, torna-se perigosamente próximo ao arbitrário, ao submeter-se a outrem (ou outros) dotado de poder, na busca de reconhecimento institucional. Portanto próximo às análises didáticas e de controle.

Outro paradoxo nos é trazido à lembrança há mais de dez anos por um candidato da formação. Homem de meia-idade, já em análise pessoal vários anos antes de buscar o CBP-RJ, graduado e com mestrado em área próxima às ciências humanas, na qual lecionava no segundo grau. Lia com interesse os textos de Freud e outros autores indicados, fazia pesquisas próprias e participava afetuosamente de todas as atividades da formação. Após os dois primeiros anos do curso teórico comunicou que deixaria o Centro de Estudos. Considerava essencial tudo que aprendera sobre psicanálise, que mudara sua maneira de ver o mundo. Utilizaria esse conhecimento em sua área de origem. Mas chegara à conclusão em sua análise pessoal de não mais trocar a carreira inicial, da qual descobrira que realmente gostava, para se tornar psicanalista. Iria realizar um doutorado desenvolvendo seu trabalho acadêmico anterior e buscar concurso para professor universitário. Consideramos que esse ex-candidato fora “tocado” pela psicanálise. Mas não havia a sobra ou resto de análise que impulsionasse o desejo de mais análise, de ser psicanalista.

Portanto ser “tocado” pela psicanálise é essencial, mas não suficiente. O mesmo pode ser dito de um resto ou sobra de análise, que, dependendo do tamanho e de pontos cegos, pode inclusive ser perigoso para a clientela. Submeter-se a uma avaliação que não deixa de ser uma ritualística oficial, como nas entrevistas e relatos para o passe, um método antissocrático, muito pouco espontâneo, de que a verdade seja nomeada por outro, e não por si mesmo.

A rede de análises, com as várias supervisões, principalmente em grupo – como análises quarta, quinta, sexta ou mais – provavelmente constituem o lugar para um passe livre, irrefletido e inconsciente. O modelo que nos vem à lembrança é o de uma candidata, já terminado o curso teórico e em sua segunda supervisão individual. As objeções que uma paciente lhe fazia sobre a terapia, em que comparava negativamente a atual com experiências passadas com medicamentos e psicólogos, foram concluídas com uma solicitação de que a terapeuta deveria se portar como os ex-terapeutas. Claro que no relato a paciente providencialmente esquecera que a busca pelo CAP ocorrera pelo insucesso de todas as tentativas anteriores. Foi quando no grupo de supervisão, diante de vários colegas, a candidata repetiu com firmeza a resposta dada à paciente: “Disse a ela que não sou médica, nem psicóloga, sou psicanalista”. O supervisor do grupo não teceu qualquer comentário, permaneceu em estudada indiferença e passou-se à apresentação de outro caso por outro candidato.

 

Conclusão: da especificidade da formação psicanalítica

Com este artigo retomamos alguns temas sobre os quais já escrevemos (LOPES, 2004, 2005), entre eles, a especificidade da transmissão do saber psicanalítico. Saber que não pode ser desvinculado da clínica. Saber que, infelizmente, nos últimos dez ou doze anos tem sido duramente atingido no currículo de graduação de muitas faculdades de psicologia, tanto pela redução ou até supressão das disciplinas de psicanálise, quanto pela insuficiência do tempo de atendimento nas clinicas universitárias. Mas que, quando dispõe de cadeiras e professores competentes (em algumas instituições profissionais da área comportamental tem sido alocados nas disciplinas de psicanálise), sempre predomina como o saber preferido da maioria dos alunos. Saber que também não pode ser transmitido por cursos universitários meramente teóricos, seja como especialização, seja como pós-graduação stricto sensu.

Como afirmou Freud em Sobre o ensino da psicanálise na universidade ([1919] 1996) a respeito do ensino para estudantes de medicina, na universidade pode-se aprender algo sobre a psicanálise, mas a psicanálise só se aprende no divã:

[...] Mas, para os objetivos que temos em vista, será suficiente que ele aprenda algo sobre psicanálise e que aprenda algo a partir da psicanálise [...] jamais aprenderia a psicanálise propriamente dita. Isso, de fato, é procedente, se temos em mente a verdadeira prática da psicanálise (FREUD, [1919] 1996, p. 109, grifos do autor citado).

O divã é uma particularidade que a universidade não tem como exigir. Só as sociedades psicanalíticas. Não é à toa que sem ele tanto a universidade quanto as sociedades psicanalíticas se tornem notáveis fontes de resistência à prática clínica.

A psicanálise foi fundada por um médico que a desvinculou completamente da medicina. A questão da análise leiga foi intensamente abordada pela Articulação das Entidades Psicanalíticas, que resultou em três artigos publicados em sua defesa no livro de coletânea para difusão do movimento (ALBERTI et al., 2009). Nesse livro foi republicado o texto A questão da análise leiga de Freud (1926) com o acréscimo dos cinco parágrafos que haviam sido suprimidos da Standard Edition (ALBERTI et al., 2009, p. 167-180).

Nunca é demais repetir que a transmissão da psicanálise implica o tratamento de si mesmo e a supervisão. Mas também depende de a instituição ser livre de outros interesses que permeiam a universidade tanto pública quanto principalmente particular. O CBP-RJ desde seu início segue a tradição de análise leiga, na qual retornamos à importância à clínica em peso igual à transmissão teórica. Com todo o desgaste pessoal de cobrança quanto à necessidade de análise pessoal. Trabalho compensado pela satisfação dos candidatos e membros efetivos no que tange às supervisões coletivas, bem como à rotineira apresentação de casos clínicos, em atividades regulares à parte. Mantido o sigilo que a ética exige.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Rua Marechal Mascarenhas de Morais, 132/308
Copacabana
22030-040 - Rio de Janeiro - RJ
E-mail: anchyses@terra.com.br
Página: http://www.anchyses.pro.br

Recebido: 13/03/2015
Aprovado: 05/04/2015

 

 

SOBRE O AUTOR

Anchyses Jobim Lopes
Médico e bacharel em filosofia pela UFRJ. Mestre em medicina (psiquiatria) e em filosofia pela UFRJ. Doutor em filosofia pela UFRJ. Psicanalista e membro efetivo do Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro (CBP-RJ). Professor do curso de formação psicanalítica do Centro de Estudos Antonio Franco Ribeiro da Silva do CBP-RJ. Supervisor clínico do Centro de Atendimento Psicanalítico do CBP-RJ. Presidente do CBP-RJ 2000-2004, 2008-2012 e 2014-2016. Presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP), 2004-2006. Ex-professor assistente do quadro principal do Departamento de Psicologia da PUC-RJ e adjunto da Faculdade de Educação da UCP. Professor titular III dos cursos de graduação em psicologia e de especialização em teoria e clínica psicanalítica da UNESA.

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