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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.43 Belo Horizonte July 2015

 

 

Homem contemporâneo: cavaleiro medieval, enigmático ou toxicômano?

 

Contemporary man: medieval knight, fey or junkie?

 

 

Lucas Magalhães CruzI; Maria Eugenia NuñezII; Rui Maia DiamantinoI

I Universidade Salvador
II Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O texto aborda as questões da imagem da masculinidade viril na contemporaneidade a partir dos referenciais sociológicos sobre gênero e da psicanálise sobre os aspectos da sexualidade masculina. É demonstrado que o imaginário da virilidade masculina está em transformação embora persista a representação do homem que não se mostra “fraco”, desde que a “fraqueza”, no homem, seja sinônimo de sua feminilidade ou de sua homossexualidade. Com base num fragmento de terapia realizada em uma instituição especializada no acolhimento e tratamento de usuários abusivos de drogas, articula-se o uso de drogas com a atuação homossexual como uma forma de suplência perante a angústia ocasionada pela falta e pela vacilação da identidade masculina, ambas vividas pelo usuário retratado no fragmento clínico. Gerando mais questões em torno do tema, na conclusão do texto aponta-se a dicotomia entre o discurso oficial acerca da atenção aos usuários abusivos de drogas e os imperativos do desejo reprimidos ante os preconceitos presentes na cultura, que reforçam um modelo ultramontano de masculinidade, levando o sujeito a muitas modalidades de atuação psicossocialmente prejudiciais. Então, a escuta terapêutica de orientação psicanalítica pode ser um caminho de integrar o sujeito ao seu desejo indizível e amenizar a angústia que o leva à adição.

Palavras-chave: Substâncias psicoativas, Identidade masculina, Homossexualidade, Atenção psicossocial.


ABSTRACT

This paper addresses issues about the image of virile masculinity in contemporary society, from a sociological framework on gender and a psychoanalysis one on aspects of male sexuality. It shows that the imagery of male virility is in transformation, although still persists a representation of a man who must not appear “weak”, since the “weakness” in a man is synonymous with femininity and his or her homosexuality. Grounded over a therapy fragment carried out at a specialized institution for welcome and treatment of drug abusers, it connects drug use with homosexual activity as some kind of supply, to the distress caused by the lack and hesitancy of masculine identity, both experienced by the user depicted in the clinical case. Producing more questions over the subject, the text concludes appointing to the dichotomy between the official discourse about the attention to drug abusers and the imperatives of desire versus repressed prejudices in culture, which reinforce one old fashioned model of masculinity, which carries the subject to many forms of psychosocial harmful actions. A therapeutic listening psychotherapy can be a way to integrate the subject to his unspoken desire and ease the anguish that leads to addiction.

Keywords: Psychoactive substances, Male identity, Homosexuality, Psychosocial care.


 

Ah! Bruta flor do querer
Ah! Bruta flor, bruta flor
Onde queres o ato, eu sou o espírito
E onde queres ternura, eu sou tesão
Onde queres o livre, decassílabo
E onde buscas o anjo, sou mulher
Onde queres prazer, sou o que dói
E onde queres tortura, mansidão
Onde queres um lar, revolução
E onde queres bandido, sou herói.

CAETANO VELOSO. O quereres.

 

Introdução

Neste texto são discutidas as atuais crises apresentadas pelos homens sobre a sua posição masculina e a relação delas com a toxicomania a partir de um atendimento realizado em uma clínica especializada em tratamento a usuários abusivos de drogas. O conceito de masculinidade será abordado em duas perspectivas que se articulam: a de caráter mais sociológico, relacionada à identidade de gênero, e a de caráter psicanalítico, relacionada à sexualidade masculina. A opção pela dupla abordagem ao versar sobre um mesmo fenômeno se lastreia na concepção de que elas se imbricam e, ao ser articuladas podem ampliar a visão do tema aqui discutido.

Apesar de epistemologicamente haver uma separação para fins didáticos, as questões que ocorrem na clínica são constituídas pelo que se observa nos estudos da sociedade. A psicanálise freudiana, inclusive, trouxe um passo importante para a articulação entre o social e o individual. Freud ([1921] 1996, p. 81), rejeitava a oposição entre os dois:

O contraste entre a psicologia individual e a psicologia social ou de grupo [...] perde grande parte de sua nitidez quando examinado mais de perto. [...] Algo mais está invariavelmente envolvido na vida psíquica do indivíduo [...] de maneira que, desde o começo, a psicologia individual neste sentido ampliado, mas inteiramente justificado das palavras, é, ao mesmo tempo, também psicologia social.

Assim sendo, para o presente texto, considerar o sujeito como efeito do discurso (LACAN, 1966) é elemento-chave para a compreensão do que ocorre na clínica. Principalmente na clínica das toxicomanias, onde fatores sociais, culturais e políticos não podem de maneira alguma ser colocados de lado.

Do ponto de vista sociológico, a construção do masculino e do feminino pode ser definida a partir da “percepção social das diferenças biológicas entre os sexos” (ANJOS, 2000, p. 274). Essa construção é chamada de gênero e é atravessada por sistemas que constituem a forma de perceber, pensar e agir (BORDIEU, 1999).

Segundo Freud ([1905] 1996), em uma nota acrescentada em 1915, os conceitos de masculino e feminino podem ser abordados por pelo menos três vieses: da atividade e passividade, do social e do biológico.

Para Sinatra (2010), a masculinidade pode ser vista a partir do modelo de sexuação, ou seja, de um complexo processo de identificações sexuais que trazem um valor de gozo para o sujeito. Esse processo de identificações segue a lógica do que Freud chama de “caracteres sexuais mentais” (FREUD, [1920] 1996), que se mostram independentes do sexo biológico.

Esses processos de identificações, que têm determinada independência do aparato biológico, influenciam a economia psíquica dos sujeitos

[...] a não identidade sexual, que introduz a falta no centro do ser, se remedia com tais identificações que humanizam no plano das imagens o impossível que está inscrito no coração do humano: a falta de proporção sexual [...] (SINATRA, 2010, p. 129).

Podemos considerar que o jogo de identificações sexuais faz parte do modo como o sujeito se organiza em seu processo psíquico para dar conta da angústia originada pela falta. O ser humano, como um ser faltante, irá procurar em sua vida reviver um estado de gozo absoluto que apenas vivenciou na completude do processo gestatório. Sendo assim, cada sujeito busca diversas modalidades de suplência para a falta. Entre essas modalidades, a toxicomania pode se encaixar.

A questão da toxicomania, neste texto, é contextualizada com o padecimento do sujeito masculino contemporâneo. Para isso, se faz importante discutir sobre algumas produções teóricas atuais que versam sobre essas temáticas.

 

1 A crise do masculino e a toxicomania

Na literatura atual, o tema da masculinidade está sendo cada vez mais estudado. Segundo Arilha, Ridenti e Medrado (1998, p. 17),

[...] o interesse pela masculinidade como objeto de estudo tem origem particularmente na década de 60, mais precisamente a partir da instituição do movimento feminista, que promoveu um exame crítico e tomada de posição diante das assimetrias sociais baseadas na diferenciação sexual; também os movimentos gay e lésbico, ao lutar por sua visibilidade, exigiram novas reflexões sobre as identidades sexuais.

Ao se questionar o lugar da mulher nas relações sociais, começou-se a repensar sobre o papel dos homens na dinâmica familiar, no campo da vida sexual e reprodutiva, na paternidade, etc. Isto se refletiu na subjetividade dos sujeitos, trazendo novos papéis nas relações sociais.

Marazina (2005) trata da questão da mudança da relação homem-mulher, numa época em que importa cada vez mais o saber intelectual e não a força braçal. Considera que “[...] é possível pensar em uma torção da posição masculina desde a neurose obsessiva para a histeria”. Nesse mesmo artigo, comenta:

[...] parece claro que a nossa velha conhecida histeria está deixando de ser patrimônio evidente do sexo feminino para virar sintoma deste momento da cultura também entre os sujeitos sexuados do lado masculino (MARAZINA, 2005, p. 17).

Rosa (2008, p. 442) traz um questionamento relacionado, “[...] diríamos, a partir de Lacan, que o mal-estar masculino no mundo contemporâneo não é nada mais que uma histericização do discurso?” Ao buscar responder à essa questão ela a deixa em aberto ao propor que

[...] em um certo sentido, a resposta seria ‘sim’, inclusive na medida em que fica implícito aí que homem, mulher, masculino, feminino são ‘fatos do discurso’; mas, em um outro sentido, a resposta seria ‘não’, ou seja, não é interessante concluir tão depressa e fechar a questão (ROSA, 2008, p. 442).

Silva e Macedo (2012), analisando as especificidades do padecimento do masculino na contemporaneidade, realizaram diversas entrevistas com analistas para aprofundar essa temática, e como resultado evidencia-se que é recorrente a observação de conflitos e sofrimentos de homens em relação à sua identidade masculina.

A identidade masculina, portanto, pode ser vista hoje como uma identidade em crise, entendendo crise como uma

[...] não coincidência do sujeito consigo mesmo e com as representações com as quais a sua identidade masculina foi construída [...] A crise da identidade masculina é, ao mesmo tempo, uma crise das representações através das quais o imaginário social define o que é ser homem [...] algumas representações que o imaginário social definia como sendo masculinas tornaram-se anacrônicas, mas também na medida em que faltam novas representações (ROSA, 2008, p. 438).

O masculino torna-se cada vez mais um enigma. Contudo, apesar de haver transformações nas relações entre os gêneros, ainda é cobrado do homem, por exemplo, não demonstrar “fraquezas” (SILVA; MACEDO, 2012). Frente a esse mal-estar, o sujeito masculino reage:

[...] o sujeito pode padecer psiquicamente, mas como não lhe é permitido sentir sua dor, ele acaba agindo a sua dor, seja na ausência de ação (depressão) ou na ação total (adições, impulsividades, compulsões). [...] na adição, busca-se narcisicamente lidar com a dor, alcançando um estado de plenitude primitivamente encontrado (SILVA; MACEDO, 2012, p. 212).

Sinatra (2010) afirma que tanto a sexuação, que se baseia nos processos de identificação sexual, quanto os semblantes, que são imagens identificatórias influenciadas pelo social (hoje há uma proliferação do semblante fálico pelo discurso tecnológico), estão relacionados com os impasses sexuais atuais. Com esses impasses, surgem novos sintomas, como a toxicomania. Nesse caso, a droga cumpre uma função na forma de gozar dos homens. Sinatra (2010, p. 132) ainda traz o questionamento:

Se no final do século passado, a epistemologia da classificação freudiana localizava nos homens uma tendência à obsessão e nas mulheres a histeria, no final deste século lacaniano, não se trata acaso da polarização de homens toxicômanos e mulheres anoréxicas, cara e coroa do imposto ao Ideal pelo gozo que parasita o mercado social?

De acordo com o ponto de vista psicanalítico a toxicomania difere da definição psiquiátrica do século XIX, que originou esse termo. No viés psiquiátrico clássico, o sujeito quase não aparece, e a toxicomania é considerada praticamente como uma interação entre um organismo impulsivo e uma droga com poder de causar dependência (GIANESI, 2005).

A psicanálise discorre sobre a toxicomania considerando que o sujeito “faz” a droga, portanto, nesse viés não importam tanto as características químicas da substância droga. Além disso, não é pelo fato de um sujeito ter usado drogas que ele será toxicômano (FREDA, 1987). Dessa forma, a toxicomania será considerada fruto muito mais de uma relação com a droga atravessada pelos discursos contemporâneos e os seus gadgets, com promessas de gozo absoluto, do que pelo uso da droga em si:

Os objetos produzidos pelo discurso da ciência e do capitalista, ao assumirem o lugar de ideal, funcionam como uma forma de nomeação através da identificação que o toxicômano faz ao objeto-droga. Dessa forma, o ‘eu sou toxicômano’ – frase frequentemente mencionada pelo usuário para fins de nomeação – surge como expressão de um novo sintoma. Na verdade, expressa um gozo autoerótico que busca liberar o toxicômano de ter que lidar com impasses da castração e com o que envolve a contingência de seu ato (SILVA, 2010, p. 11).

O sujeito, então,

[...] se aliena ao significante “droga” produzido pelo discurso capitalista e se relaciona diretamente com o objeto, sem a mediação do significante privilegiado do Nome-do-Pai (SILVA, 2010, p. 11).

Esse tipo de falta da mediação do Nome-do-Pai pode estar relacionado com o atual fenômeno do declínio da metáfora paterna, que faz parte da regulação de gozo.

É importante refletir nessas discussões que, no fenômeno da queda da imago paterna, a própria definição do significante “homem” sofre alterações (SINATRA, 2010). Assim, novas maneiras de gozar são colocadas em jogo, e uma dessas formas, a toxicomania, pode estar relacionada diretamente com a (des)construção do sujeito masculino.

 

2 “Eu tenho um desejo dentro de mim que me leva à destruição”

A vinheta de caso clínico trazido aqui é de um paciente atendido em um centro especializado no tratamento de usuários abusivos de drogas. Por uma questão ética, o seu nome será preservado, tendo como nome fictício Carlos. O caso de Carlos traz vários elementos relacionados com o que é discutido na clínica das toxicomanias.

Ele chega pela primeira vez ao centro trazido pelo pai quando tinha 17 anos, sob a queixa de estar usando drogas e indo mal nos estudos. Essa maneira de ser levado, não por demanda própria mas por demanda do Outro, é uma forma de inserção frequente numa clínica específica de terapia voltada ao abuso de drogas. Carlos não continua o tratamento.

Mas volta por sua própria vontade dez anos depois, com 27 anos. Comenta que agora sente a necessidade de se tratar. Nesses dez anos, Carlos passou por algumas internações e diversas mudanças: morou fora do estado, se casou, teve filho, e há algo na sua situação atual de vida que faz com que ele se incomode ao usar crack. Por isso, busca a clínica se colocando em outro lugar, lugar de “suspeita”, que tem a ver com o seu sofrimento, levando-o a se implicar no tratamento.

Nota-se, porém, uma grande diferença no modo como ele se apresentou no acolhimento mais recente e o discurso dele na primeira sessão. No acolhimento, Carlos se apresenta de maneira típica ao que a literatura psicanalítica discute sobre o modo de nomeação do sujeito toxicômano, em substituição ao nome a ele atribuído pelo pai: “Sou dependente químico”.

A relação de Carlos com a droga se mostra bastante estreita, pois, além de se colocar como dependente químico, fala do crack, que usava de maneira abusiva na frequência de uma vez em dois meses, como a droga que satisfaz a vontade de se sentir “mais drogado”.

No transcurso do tratamento, outras questões além do uso das drogas foram aparecendo. Ele define que hoje é “homem, pai de família e trabalhador”. Expressa um grande incômodo relacionado não mais ao uso específico de drogas, mas às práticas homossexuais quando usa crack.

O fato de ter feito sexo oral em um homem quando usou crack trinta dias antes de ter procurado o tratamento estava lhe trazendo muitos conflitos e aparece nas sessões como o acontecimento importante para fazê-lo pedir ajuda. Essas práticas entram em choque com o significante “homem, pai de família e trabalhador”, que usa como sustentação na nova etapa de vida.

Carlos define sua vida sexual antes do casamento como “devassa”. Comenta que quer “esquecer de sua vida anterior” e não quer passar isso ao filho. Porém, não conseguia esquecer o último dia de uso. Estava com muito medo de “isso vir à tona”, e sua mulher e seu filho “descobrirem”. Ao longo das sessões, foi ficando claro que não era o fato de ter usado crack que ocasionava o conflito, mas o que ele define como “vida sexual devassa”.

Rosa (2008) afirma que na atual crise de identidade masculina, significantes como sexualidade, paternidade, vida conjugal e iniciativa são âncoras de segurança identitária. No caso de Carlos, a relação homossexual parece abalar o seu imaginário de masculinidade baseada no “ser homem, trabalhador e pai de família”. Ao começar a falar um pouco mais sobre seus ideais de “ser homem”, diz que antes de formar uma família não era homem e que sempre almejou ser homem.

Carlos comenta: “Eu tenho um desejo dentro de mim que me leva à destruição”. Diz querer se livrar desse desejo e que, se parar para pensar muito sobre a vida, entra em depressão. Nota-se que Carlos quer evitar a qualquer custo entrar em contato com um desejo para ele insuportável.

Porém, ele não pensa: Carlos atua, tanto no uso de crack quanto nas suas relações sexuais, o que se articula com a discussão de Silva e Macedo (2012, p. 212), sobre o sujeito masculino que, ao não poder “sentir sua dor, acaba agindo a sua dor”, seja por meio da depressão, seja por meio das adições, impulsividades ou compulsões.

Carlos relata que se apresentar à família após ter usado o crack “é terrível”. Pode-se interpretar que, para ele, o seu ideal de família exige a tríade “homem, pai de família e trabalhador”. Nesse sentido, ele relata a admiração por um amigo que considera um “homem íntegro e moral”. Falhar perante essa imagem do Outro é insuportável para Carlos.

Nessa situação, ele revela a dor vinculada à relação com a imagem que tem de família e das expectativas sociais preconceituosas baseadas na “virilidade do homem”. Ou seja, há uma ressonância advinda do discurso social, pois, apesar das transformações das relações de gêneros, espera-se que o homem não demonstre suas “fraquezas” (SILVA; MACEDO, 2012).

Pode-se pensar também que as expectativas de Carlos estão na constituição do seu ideal de eu, o qual, por sua vez, está vinculado aos ideais sociais que trazem uma insatisfação por não se conseguir atingi-los (FREUD, [1914] 1996).

Para resolver essas exigências, segundo Freud ([1914] 1996, p. 101), “[...] a sublimação é uma saída, uma maneira pela qual estas exigências podem ser atendidas sem envolver repressão”. Contudo, Carlos mantém a repressão e, quando o seu desejo supera a repressão, ele atua.

Em uma sessão, ele comenta “o crack é o meu sol”, “o eixo que eu giro em torno” e fala que gostaria que a família ocupasse esse lugar. Embora não cite de forma clara, há indícios de que a sua “vida sexual devassa” faz parte de outro eixo pouco suportável para ele. Carlos desloca esse eixo para o lado da repressão, que implica uma possível separação dos tipos de pulsões: as pulsões sexuais e as pulsões do eu (FREUD, [1914] 1996). Contra os instintos sexuais, Carlos segue o ideal imperativo de moralidade quanto ao desejo sexual. Esse imperativo, no entanto, é desmentido pelo uso das drogas.

Carlos declara que a sua mãe não teve tanta importância para ele, apesar de tê-lo ensinado a ser homem, cozinhando, cuidando da casa, lavando roupa, ou seja, ensinando tarefas tradicionalmente vinculadas às mulheres. A contradição no discurso de Carlos em ser “homem”, segundo os parâmetros machistas e ter se tornado homem sob a educação de aspecto feminil parece originar um enigma do que é “ser homem” (ROSA, 2008). Haveria, então, a negação de uma identificação com uma postura feminina transmitida pela mãe?

Carlos relata que, para confrontar o desejo trazido pelas lembranças de ter feito sexo oral com um homem, ele se utilizava de um pensamento repetitivo: “hoje eu sou homem”. Porém esse “ser homem” é um significante que, no seu imaginário coloca em contradição o seu desejo encoberto e o seu discurso sobre a masculinidade viril. Evidencia-se a antiga oposição entre “ser homem” e a orientação homossexual, ainda presente no imaginário social:

[...] ‘ser homem’ no século XIX significava ‘não ser mulher’, e sobre todas as hipóteses jamais ser homossexual. A identidade sexual e de gênero do homem vitoriano estava intrinsecamente ligada à representação do seu papel na sociedade (SILVA, 2000, p. 11).

Enquanto pai, Carlos vivenciava de maneira intensa os conflitos relacionados aos comportamentos homossexuais. Tinha muito medo de que seu filho soubesse sobre esses comportamentos. Ele almejava “apagar as coisas que desse para apagar” e, as que não desse, queria “não passar para o filho”. Para ele, um bom pai não pode ser homossexual.

Ao buscar o tratamento, Carlos procura uma saída, falando do seu desejo e do correspondente conflito. O caminho desse tratamento revelou o seu padecimento e a sua demanda: precisava não apenas de um tratamento químico em relação ao abuso de drogas, mas, além de tudo, precisava de escuta para simbolizar o indizível do seu desejo.

 

3 Conclusão

Atualmente se questiona o lugar do homem no posicionamento viril hegemônico, contudo pouco se pensa sobre as atuais formas de gozo masculinas e as suas implicações. Apesar desse questionamento, as cobranças em torno da virilidade, além do vínculo da imagem masculina com a heterossexualidade, ainda se mostram muito presentes na cultura.

O pensamento de que o homem tem que ser “forte e não adoecer” se reflete nas instituições. Um indicativo da prevalência dessa lógica se mostra, por exemplo, nas muitas ações em saúde da mulher e poucas ações em saúde do homem.

Há nas produções teóricas, reflexões sobre a história da identificação masculina, sobre a atual crise dessa identificação, sobre novas propostas identificatórias e até sobre críticas à “literatura masculinista” que fazem essas propostas (SILVA, 2006). O tema, dessa maneira, está sendo abordado de diversas perspectivas, porém é necessário ir além das produções teóricas e implantar ações que visem o cuidado com o sujeito masculino.

O homem da contemporaneidade ainda parece encontrar saídas para as suas angústias repetindo modelos antigos, por exemplo, apelando para a toxicomania. Ela surge como uma resposta à falta no sujeito e como uma forma de afirmação social de gênero, resgatando a identidade tradicional do “homem usuário de drogas” mesmo num tempo em que os modelos de identificação da masculinidade estão cada vez mais em questão.

Pode-se pensar, portanto, que o sujeito masculino contemporâneo, com o seu semblante de cavaleiro viril tornando-se cada vez mais ultrapassado, se depara com um enigma, tendo a toxicomania como resposta e como possibilidade de fazer suplência na estrutura subjetiva em dois pontos correlatos: a identidade social masculina e a angústia de “ser homem”, ambas requerendo a sustentação da posição fálica abalada pelo avanço do feminino na cultura contemporânea.

Uma instituição especializada no acolhimento aos usuários de drogas constrói um espaço clínico onde os “toxicômanos” são acolhidos e têm um espaço para falar da sua experiência como sujeito constituído pela falta.

O fragmento clínico aqui trazido se propôs a abordar uma das formas do mal-estar do sujeito masculino na contemporaneidade. Sem respostas a oferecer, o tema aqui discutido suscita muitas questões, como: Será o bar ou a “boca de fumo” o lugar oferecido ao abrigo do padecimento masculino contemporâneo em nossa sociedade? A clínica voltada para acolher o usuário de drogas pode se constituir em lugar de referência para abordar os dilemas da “masculinidade viril”? Como a droga se torna uma via para o sujeito masculino dar conta de sua sexualidade?

Essas questões trazem à baila a dicotomia entre o discurso oficial manifesto pela via das campanhas midiáticas, políticas públicas, discussões sociais sobre o homem e a emergência da perplexidade no indivíduo, do seu ato recheado de enigmas.

 

Referências

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Endereço para correspondência

Lucas Magalhães Cruz
lucasmcpsi@gmail.com

Maria Eugênia Nuñez
nunezeugenia@hotmail.com

Rui Maia Diamantino
rui.diamantino@pro.unifacs.br

Recebido em: 09/04/2015
Aprovado em: 18/04/2015

 

 

SOBRE OS AUTORES

Lucas Magalhães Cruz
Psicólogo pela Universidade Salvador.

Maria Eugenia Nuñez
Psicóloga. Psicanalista.
Coordenadora técnica e professora do curso de pós-graduação lato sensu do Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas - CETAD/UFBA.
Mestre em Saúde Mental - Universidad Nacional de Entre Rios - UNER/Argentina.

Rui Maia Diamantino
Psicólogo pela UFBA. Psicanalista.
Professor assistente da Universidade Salvador - UNIFACS.
Mestre e doutor em psicologia pela Universidade Federal da Bahia - UFBA.

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