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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.43 Belo Horizonte jul. 2015

 

 

O carnaval e seus semblantes: os clóvis

 

Carnival and its faces: the clovis

 

 

Maria Antônia Marques Brasil; Maria Nestrovsky FolbergI

I Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste trabalho fazemos um paralelo entre o carnaval e um dos estudos realizados por Jacques Lacan, em O seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante (1971). Podemos entender o conceito da lógica do significante ao propor o carnaval e suas máscaras como tema. É possível compor a diferença e as afinidades com os semblantes, fazendo com que entendamos o Real do gozo desses semblantes que ficam encobertos, dentro da cultura do carnaval. Através da análise da cultura e da arte, os textos nos fazem refletir e entender o mundo, o ser humano, sua evolução e a própria identidade de cada um frente à possibilidade de poder se conhecer como sujeito de possibilidades. Como o bloco dos clóvis procura demonstrar.

Palavras-chave: Carnaval, Máscaras, Clóvis, Lacan, Semblante.


ABSTRACT

This paper aims to establish a parallel between the Carnival and the content of the Seminar of Jacques Lacan in 1971, book n. 18, called (in French in the original) “D’un discours que ne serait pas du semblant”. When we propose Carnival and its masks as the subject, we can understand the logical concept of signifier. It is possible to compose differences and likenesses of the masks and the faces, to what is actually the Real in the joy of the covered faces, in the Brazilian culture of Carnival. Through the text analysis of Culture and Art involved, these texts make us consider the world where it happens, the human being and his evolution, the peculiar identity of each and everyone facing the chance to get naked so to say, and in this way getting to know himself as the subject, in the case of the groups of Clovis.

Keywords: Carnival, Masks, Clovis, Lacan, Faces.


 

 

O carnaval no Brasil e sua evolução

Trazido pelos portugueses no século XVIII, com a migração vinda das ilhas da Madeira, dos Açores e de Cabo Verde, o carnaval foi chamado inicialmente de entrudo. Em Recife, nos dias de hoje, existe uma brincadeira sobrevivente do entrudo, conhecida como mela-mela. Mas a grande transformação do carnaval vem acontecendo desde os séculos XVI e XVII (Renascimento), nas fantasias e nas alegorias carnavalescas, que passam a ter muito valor e são bastante usadas na Região Mediterrânea. “O luxo das roupas demonstrava um culto à vaidade”, explica Hiram Araújo (2003).

Certos historiadores, quando se referem ao início do carnaval brasileiro, baseiam-se nas festas feitas pelo povo para receber a família real em 1808. No decorrer da segunda metade do século XIX, os primeiros cordões negros e mestiços das camadas populares desfilaram fantasiados, muitas vezes vestidos de índios, tocando instrumentos primitivos, como pandeiros, chocalhos e tambores, e cada folião dançava de maneira livre.

Outros estudiosos consideram que nos anos 1920 surgiram os primeiros cordões. Cordões de rapazes, cordões só de moças ou cordões de homens e mulheres começaram a se organizar e a desfilar pelas ruas do Rio de Janeiro. Esse modelo se aproxima do carnaval de hoje.

Na opinião de outro grupo de estudiosos, foi a partir da Guerra do Paraguai que se introduziu o atual modelo de carnaval no Brasil. O carnaval brasileiro é mundialmente conhecido pela beleza, empolgação e grandiosidade.

 

O carnaval no Rio de Janeiro

Por muitos anos foi uma festa de sujeira e molhação. Os escravos sujavam uns aos outros, o que fez com que as familias refugiadas em casa brincassem com pequenas bolas de cera, que atiravam pelas janelas. Por esse motivo, surgiram os bailes de máscaras realizados pela elite imperial, a partir de 1840, no Hotel Itália, onde hoje é a Praça Tiradentes.

Nesses bailes, que eram pagos e feitos em teatros e hotéis do Rio de Janeiro, não se dançava o samba, mas sim o schottische, as mazurcas, as polcas, as valsas e o maxixe, que era o único ritmo genuinamente nacional. Somente em 1869, quando o ator Correia Vásquez adaptou a música de uma peça francesa e deu para essa adaptação o nome de Zé Pereira – mesma música que é cantada até os dias de hoje –, apareceu a primeira música de carnaval. Até então, todas as músicas eram instrumentais ou em outro idioma. O carnaval de rua, entretanto, quase não existia. Jornalistas da época começaram a estimular a criação de carnavais que imitassem os de Roma e de Veneza, onde as pessoas saiam às ruas fantasiadas para tomar parte no corso ou para realizarem batalhas de flores ou de confete (ROSCHEL, 2014).

Um dos jornalistas que defendia com ardor a festa de carnaval foi o escritor José de Alencar, que escreveu na sua coluna do Jornal Mercantil, do Rio de Janeiro, às vésperas do carnaval de 1855, a seguinte frase:

Confesso que esta ideia me sorri. Uma espécie de baile mascarado, às últimas horas do dia, à fresca da tarde, num belo e vasto terraço, com todo o desafogo, deve ser encantador.

Foi assim que, após uma campanha dos jornalistas contra o violento entrudo e a favor do elegante carnaval veneziano, os desfiles de rua começaram a acontecer mais pacificamente.

Machado de Assis, nas crônicas publicadas em A Semana, em 12 de fevereiro de 1894, nos fala sobre o carnaval carioca com o seguinte texto:

Quando eu li que este ano não pode haver carnaval na rua, fiquei mortalmente triste. É crença minha que no dia em que Deus Momo for de todo exilado deste mundo, o mundo acaba. Rir não é só “le propre de 1’homme”, é ainda uma necessidade dele. E só há riso, e grande riso, quando é público, universal, inextinguível, à maneira de deuses de Homero, ao ver o pobre coxo Vulcano. Não veremos Vulcano estes dias, cambaio ou não, não ouviremos chocalhos, nem guizos, nem vozes tortas e finas. Não sairão as sociedades, com os seus carros cobertos de flores e mulheres, e as roupas de veludo e cetim. A única veste que poderá aparecer, é cinta espanhola, ou não sei de que raça, que dispensa agora os coletes e dá mais graça ao corpo (MACHADO DE ASSIS, 1997, p. 598).

Com o passar do tempo começaram a aparecer os grupos de ritmistas, que ficaram conhecidos como Zé-Pereira, foliões que percorriam as ruas batendo forte em bumbos ou tambores (depois foram substituídos por tamborins, cuícas, pandeiros, etc.). Havia ainda os cordões carnavalescos onde desfilavam em cortejo pessoas fantasiadas que brincavam com ritmo e dança. No começo do século XX o carnaval ganha força e formas mais originais, tornando-se uma grande festa popular onde se visualiza a permeabilidade entre as classes sociais.

 

O carnaval em Pernambuco

Seu símbolo é o frevo (que significa ferver), que expressa exatamente o modo de agitar essa festa. O frevo é composto por passos acrobáticos vindos dos golpes de capoeira, utilizando-se de sombrinhas coloridas. Há vários estilos de frevo: o frevo-canção, o frevo-rua e o frevo-bloco, todos muito alegres ao som de instrumentos metálicos e uma orquestra de pau e corda. Os blocos devem ter no mínimo cem componentes, e o enredo deve ser baseado em motivos exclusivamente nacionais.

No carnaval de Recife e de Olinda (PE) desfilam clubes de frevo, como o Vassourinhas e o Lenhadores, e blocos, como o Flor da Lira e o Flor da Magnólia. Paralelamente, existe o maracatu, cortejo de origem africana, altamente expressivo. Os maracatus surgiram nas senzalas, e eram a forma como os negros prestavam homenagem aos seus antigos reis africanos. Os maracatus passaram a acontecer nas ruas, tornando-se indispensáveis ao carnaval de Pernambuco, com fantasias riquíssimas, com belos bordados e brilho, apesar da pobreza do povo.

 

O carnaval em Salvador

Em Salvador o carnaval inicia em dezembro, com a festa da Conceição da Praia. São celebrações que remetem umas às outras, adquirindo sempre, ao final, um jeito carnavalesco. A grande atração são os trios elétricos: músicos que percorrem as ruas em cima de caminhões com alto-falantes executando marchas carnavalescas. O primeiro trio elétrico, o de Dodô e Osmar, surgiu em 1950.

Os afoxés, exclusivos do carnaval baiano, são ranchos negros cuja característica inicial era o lançamento de efu – pó considerado mágico tirado do chifre do carneiro – sobre os bandos rivais que cruzavam a rua. Os mais famosos são Filhos de Gandhi e Badauê. Os cordões eram organizados pela população mais pobre, que não tinha acesso aos clubes. Muitos deles ficaram famosos, como o Cordão da Bola Preta.

 

O carnaval em Porto Alegre

Acontece há muitos anos e foi inicialmente a festa realizada pela elite. Em torno do ano 1874, na Praça da Alfândega, entre coretos e bandas, surgiu o início dos desfiles do carnaval de rua, com os corsos que iam em direção à Rua da Praia, passando pela Duque de Caxias, Marechal Floriano (antiga Rua de Bragança), terminando nos salões de festa e ostentando luxo e riqueza.

Com o crescimento da cidade, o carnaval de Porto Alegre, que aqui chegara através do entrudo trazido pelo povo açoriano em meados do século XVIII, passa no século XX a ser utilizado pelas camadas menos favorecidas. E a elite, como uma forma de se diferenciar, funda duas grandes sociedades carnavalescas: Venezianos e Esmeralda.

As sociedades organizavam os bailes e mantinham os desfiles, que aconteciam dentro dos padrões ditados pelas normas sociais, de forma tranquila e bem elaborados, demonstrando superioridade aos movimentos nos guetos, vielas, bares e becos, realizados pelos negros.

Próximo a 1912, o governo passa a dar apoio aos desfiles, que já estavam sendo realizados nos bairros, sendo o da Santana um dos mais importantes. Além disso, havia o da Cidade Baixa, na Praça Garibaldi, onde acontecia o entrudo, com seringas, bisnagas, limões de cheiro (feitos de cera e cheios de água perfumada e colorida). No mesmo período acontecia na sociedade a batalha das flores, o jogo de confete, serpentina e lança-perfumes.

No início do século XX, cresce o carnaval do negro, com a saída dos negros recém-libertos dos campos, para tentar vida nova na cidade grande, se estabelecendo nos territórios negros Areal da Baronesa, Colônia Africana, Ilhota e Cabo Rocha.

A partir de 1930, no carnaval de rua os desfiles, realizados por blocos, cordões ou grupos, passam a ser associados aos territórios negros. Ainda nesse período acontecem no Parque Farroupilha os bailes infantis, e para participar, as crianças precisavam estar fantasiadas ou pagar a entrada.

Preocupado com a grande concentração de massa (mais de trinta mil pessoas), o poder público organiza concursos carnavalescos, contribuindo com a infraestrutura, normatiza e censura, passando a registrar blocos e cordões, seus desfiles e suas fantasias e o local da festa. A própria imprensa realiza concursos e premiações.

No final da década se percebe a inserção de elementos próprios do carnaval carioca nos jornais comentando sobre o novo estilo. Em 1939, pela primeira vez, aparece o nome “escola de samba” em Porto Alegre, com a Escola de Samba Loucos de Alegria, ideia dos irmãos Nelson Lucena (violinista gaúcho), Joaquim Lucena Filho e João Pena de Oliveira, Maestro Pena (Sargento da Brigada Militar), inspirados nas escolas do Rio de Janeiro. No carnaval, o Maestro Pena deu sua contribuição, por amor à música, ao ensaiar grupos como os Vampiros, Céu Azul, Imbrutus.

Ganhou concursos carnavalescos e criou inovações como a famosa alegoria em forma de fruta que se abria no meio do desfile e da qual saía um integrante, ou quando nos Loucos de Alegria, fez um desfile com 21 carros alegóricos, emprestados pela empresa Tom Mix, cada um representando um estado brasileiro. Tocava vários instrumentos, inclusive piano, andava sempre bem arrumado usando de preferência seu terno de Tussor e fumava um cigarro feminino chamado Friné.

Em 1940, após uma dissidência, a familia Lucena funda a Escola do Morro. Essas duas escolas passam a ser as grandes rivais na disputa do carnaval em Porto Alegre. Na Rua Cabo Rocha, atual Freitas de Castro, local boêmio e marginalizado, surge a Escola da Melodia. Com o crescimento da população, crescem os carnavais de bairros formados por carnavalesco, carro oficial da comissão julgadora e o rei Momo, que chegava pelo Cais do Porto. Os grupos se apresentavam na frente de coretos com conjuntos musicais, e a população assistia.

 

Análise

Falamos sobre o carnaval e sua evolução, dando a conhecer aspectos que podem ajudar a compreender o assunto que abordaremos a seguir. Optamos por esta forma de estrutura, para que pudéssemos passear pelas várias eras e nelas reconhecer elementos constitutivos para a realização do trabalho que estamos desenvolvendo. Vamos analisar a utilização de máscaras, semblantes que ocultam o real do indivíduo e ao mesmo tempo nos demonstram esse individuo, desde a formação da humanidade, nos vários momentos com múltiplos significados. Um desses significados é o social, onde nos deteremos junto com a articulação à sua leitura psicanalítica.

Para a sociologia, máscaras são as atitudes sociais que precisamos assumir nos mais diferentes tempos e espaços da sociedade contemporânea bem como extemporânea. Para nossa análise essa máscara social não precisa ser efetivamente um objeto concreto para colocar no rosto, mas pode ser uma canção, uma palavra, uma atitude, um acessório cênico, etc. Hoje a máscara ainda é acessório importante em nossa sociedade: é utilizada em festas folclóricas, rituais sagrados e outras situações que expressam uma tradição cultural.

Particularizando a cultura nacional, Paulino (2008, p. 1) diz:

Outro tipo de máscaras utilizadas nas festas religiosas da cultura popular brasileira, conhecidas como máscaras dos palhaços da Folia de Reis.1 Neste tipo de festas as máscaras são utilizadas com várias finalidades, desde o louvor a uma entidade superior, como para divertimento popular. Mas na maioria das vezes, os mascarados são dotados de performances cheias de ações imprevistas, desordeiras e provocadoras do riso que contrastam com o lado sério das celebrações, como é o caso dos palhaços.

Através das máscaras, centenas de seres animalescos, divinos e diabólicos surgem como numa espécie de manifestação profana. O riso e a máscara são conflituosos desde os primórdios do cristianismo, por isso foram feitas várias tentativas para eliminá-los. Uma das formas de fazê-lo foi atribuindo-lhes filiação diabólica, tornando-os agentes do mal, portanto indesejáveis e perigosos.

No decorrer da Idade Média e do Renascimento tanto as máscaras quanto outros recursos cênicos, como danças e cantos, transitaram por diversos rituais e espaços da igreja, ora integrados aos ritos litúrgicos, ora renegados para o adro dos templos católicos. Algumas práticas e costumes completamente banidos, enquanto outros eram tolerados, de acordo com a conveniência.

Apesar de usadas dentro da igreja, as máscaras eram consideradas odiosas, utilizadas como disfarce, para mudar de identidade, para renegar o corpo que o Criador nos deu e assumir outro, para esconder más ações.

Na atualidade não é diferente: existem grupos ou pessoas que se utilizam de máscaras para ocultar suas intenções, sejam boas, sejam más.

Inicialmente, pensamos em escrever sobre as máscaras venezianas, conhecidas no mundo todo por sua beleza e pelo seu significado mitológico. Entretanto, no momento atual, devido à grande violência que cerca o nosso país, optamos por falar sobre os grupos dos clóvis ou bate-bolas, que fizeram parte tanto de carnavais distantes, como dos atuais.

Apesar de existirem há tanto tempo ao contrário das escolas de samba, não despertam o interesse por parte das agências de turismo: não existem pacotes para vê-los nem para fazer parte dos desfiles. A apresentação dos blocos hoje é completamente diferente de outros tempos, pois na atualidade os grupos se reúnem por identidade. Nada sabemos deles, por isso buscamos informações sobre seus hábitos e costumes, sua forma de agir, para só então analisá-los de uma forma mais concreta.

 

Os clóvis e seus semblantes

A palavra “clóvis” vem de clown (palhaço) e surgiu no século XVI, na Inglaterra. Etimologicamente também vem de clod, que em inglês significa “carequinha”, “torresmo”, “palhaço”, “croquete”. Os clóvis são semblantes do carnaval, de um carnaval especial, que propõe um discurso onde se mostram verdades que se desejam esconder, e se esconde o que se pensa mostrar.

Sabemos com Lacan que o discurso determina o sujeito, um sujeito representado pelo seu significante na medida em que as cadeias discursivas se amarram e se ordenam na periferia de um contexto social nem sempre (ou quase nunca) percebido em sua realidade, que é condicionada por interferências múltiplas e diversamente acessíveis.

Assim, o sujeito em questão faz seu discurso, achando ser independente, mas sem se dar conta de que está realmente respondendo a imposições de um Outro inconsciente, marcado pela história de um passado, sujeitado ao desejo de um presente indecifrável.

A atuação dos blocos dos clóvis (ou bate-bolas), que saem pelas ruas do Rio de Janeiro nessa época, propõe ao observador uma reflexão original: O que desejam esses blocos mascarados comunicar quando se organizam separadamente, discriminatoriamente, dos demais blocos carnavalescos e buscam se caracterizar pelas brincadeiras belicosas que demonstram ao longo de suas andanças? E vem uma dúvida: onde estará a verdade?.

Lacan em seu de um discurso que não fosse semblante afirmava que “[...] só há discurso de semblante” reforçando mais ainda nessa mesma página, “[...] o semblante só se enuncia a partir da verdade” (LACAN, [1971] 2009, p. 136) para levantar mais indagações a respeito desses grupos estranhos, barulhentos, que assombram as ruas do Rio de Janeiro na semana de carnaval, completamente mascarados e irreconhecíveis (que tal é sua intenção).

O semblante não se opõe à verdade. Mostra uma face do sujeito, talvez aquela que o sujeito deseja desconhecer, ou desconhece sem saber de seu desejo. O sujeito é representado pelo significante diante de outro, ou de outros significantes, pois ele mesmo é inatingível como Real. Daí a eterna pergunta: até onde se pode saber quem está sob a máscara?

A verdade diz ao eu, mas os clóvis respondem ao nós. As repercussões das presenças desses mascarados implicam metáforas de gozo; assim, o segredo parece alimentar um discurso cujo emissor lança uma mensagem que não espera resposta, solilóquio que se espraia na contramão de uma festa tão popular.

Poderíamos falar de um semblante clóvis? Aproveitando as palavras de Lacan em seu ensino, semblante não é “querer se passar por” ou “fazer-se de” por exemplo, quando dizemos “me fazer de louco” ou ainda “me fazer de analista”. Essa construção pode nos conduzir a estabelecer uma falsa oposição entre a verdade e o semblante, qual seja, de que o semblante é o contrário da verdade, invalidando a relação que existe entre verdade e semblante. A verdade, para Lacan, é aquilo que sustenta o semblante e é, portanto, indissociável dele. Entretanto, aquilo que o semblante encobre mais que a verdade é o Real. Aquele inatingível que só se integra ao Outro do nosso inconsciente.

Oliveira (2014, p. 114-115) dizia que “Lacan, formulou o conceito do Outro para representar o lugar designado por uma autoridade subjetiva na vida do sujeito”. Dessa forma conceituado, o inconsciente seria o discurso do Outro, semelhante ao desejo do sujeito ser o desejo do Outro. Isto é, em se procurando reconhecimento, o sujeito é alienado ao desejo do Outro e, sendo assim, ele adota uma máscara, um semblante por assim dizer.

Para Freud, em O mal-estar na civilização ([1930] 2010, p. 30-31), essas reações estariam desenvolvendo

[...] aspectos da teoria do sublime, como o sentimento de felicidade originado da satisfação de um impulso selvagem, não dominado pelo eu, que é incomparavelmente mais intenso do que aquele que resulta da saciação de um impulso domesticado. O caráter irresistível dos impulsos perversos, talvez atração do proibido em geral, encontre aqui uma explicação econômica. A ambiguidade desse sentimento de felicidade é total. Nele misturam-se prazer, terror, gozo e aniquilação.

Assim, na teoria do sublime de Freud, compreendemos ser a quebra de tabus por parte dos componentes dos blocos ligada ao gozo de destruição do outro e do Outro, quando o impulso de agressão está ligado diretamente à pulsão de morte e de destruição. Freud diz que a nossa cultura é marcada pela violência confirmando um impulso incontrolável de agressão, que o homem carrega consigo como característica da natureza e nunca conseguirá dominá-la totalmente.

O mal-estar provocado por nossas inibições ou pelas limitações que a cultura impõe aos impulsos (principalmente aos sexuais) ocasionou esse desejo de morte. Para Freud é o desejo da morte do pai totêmico, da memória transgeracional primeva, tentando ser resgatado pelo complexo de Édipo; um pai severo e castrador, que se apresenta ao filho como a lei personificada.

Esses jovens, travestidos como outros, buscando em suas ações libertar-se deste mal-estar, percebem que estão vestidos de outros, porque eles próprios não conseguem a liberação desejada. Os elementos que fazem parte da indumentária de um grupo de clóvis são: macacão, capa, casaca, bolero, máscaras, calçados, bexiga, sombrinha, bandeira, o bicho, o emblema criado por eles que se pode associar ao totem, slogan, hino, fantasias iguais, camisetas com o nome do grupo, lemas, carteiras de identificação.

Assim, apesar de sabermos que máscaras sempre foram motivos de polêmicas no mundo em geral, a manifestação tem tido ênfase no Brasil nos últimos anos e nas mais recentes manifestações populares.

Segundo Valadão (2008, p. 12)

Considerando-se a diversidade de formato que a brincadeira dos bate-bolas assume na atualidade, torna-se pouco elucidativo abordá-los sob os mesmos pontos de vista dos estudos pregressos. Ainda que eles continuem sendo compreendidos como fantasiados tradicionais do carnaval de rua do Rio de Janeiro, é necessário repensar o conceito de tradição, entendendo-o como algo dinâmico.

Os clóvis são personagens com inúmeros semblantes resultantes das diversas leituras, onde cada elemento se define com sua própria interpretação, além do visto, do ouvido e do permitido.

Em 2014, novamente na época de pós-carnaval, os noticiários sobre os clóvis entristeceram o povo ao avançar na contramão de tudo aquilo que se gostaria que acontecesse: fazer o bem, principalmente o bem à população carente de momentos alegres, e àqueles que participaram pacificamente do evento, de quem apreciava de longe o vaivém dos bate-bolas, e poder permitir aos filhos participar sem a incerteza do seu retorno pela insegurança.

Grupos de mascarados são acusados de assaltos e arrastão. Tumultos e confrontos provocados por grupos que se vestem de bate-bola (ou clóvis) causaram a morte de dois jovens – um deles filho de um músico do grupo de pagode Pique Novo – e deixaram pelo menos sete pessoas feridas a tiros no Centro, Zona Norte do Rio e na Baixada Fluminense, na noite de segunda-feira. Os bate-bolas também são acusados de praticar dezenas de assaltos em diversos pontos e até um arrastão no metrô (ALVES, 2014).

Essa notícia do jornal confirma nossas piores temeridades. De fato, não há como separar as manifestações do seu cotidiano, do seu mundo cultural, pois é nesse contexto que as relações se constituem e com isso fazem parte dos seus conceitos e suas tradições. Temos que ter presente que, apesar de surgirem na periferia, os clóvis têm entre seus componentes estudantes de nível superior e pessoas já diplomadas a quem se atribui uma responsabilidade inegável.

Outro ponto a ser considerado é que se pela sua formação, os grupos podem ser vistos como homogêneos por vestirem fantasias iguais (algumas podem ter detalhes distintos, mas nada que descaracterize o padrão) no seu grupo, são classificados e reconhecidos pelo desempenho, pelo material utilizado e principalmente pelo espírito de coletividade que é determinante nessa situação.

No caso presente, o que constatamos? Pequenos semblantes, aqueles que deveriam fazer a alegria dos moradores de um determinado bairro da cidade, assustam e aterrorizam. nunca sabemos a mensagem que estão levando os componentes quando estão em atividade.

Valadão (2008, p. 23) faz a seguinte colocação:

Observei que a brincadeira de bate-bola é predominantemente aberta às influências e que mesmo as turmas de bate-bolas que se dizem tradicionais e conservadoras incorporam, em maior ou em menor escala, elementos do cotidiano.

O carnaval, uma festa que surgiu com a finalidade de comemorar e expressar a alegria do povo, onde pobres e ricos, brincassem juntos, onde máscaras seriam utilizadas para encantar e surpreender pela liberação dos costumes, se apresenta antecipando uma época de restrições (a Quaresma), em que os prazeres corporais deveriam ser reprimidos.

A sociologia pode dizer e a psicanálise tenta compreender e atingir os motivos mais profundos e ocultos dos grupos que insistem em se esconder por trás de máscaras, para poder dar vazão a instintos mais primitivos e que a cultura oficial condena.

Dizem que o carnaval mudou. Será que mudou? Para alguns grupos talvez, mas grande parte da população ainda busca encontrar o seu semblante, de preferência alegre, dos dias de folia, viver o “outro” do Real impossível, inatingível, o Outro. E em seu dia a dia? Quando não encontra espaço nem condições para surgir e conviver, com semblantes alegres? Ser monstro, ser rei, rainha ou princesa, cada ano ser outro, enquanto na realidade vivemos diariamente muitos “outros”, sob o olhar controlador de um grande Outro que queremos ignorar no carnaval?

Lacan (2009, p. 14) diz que o momento em que a verdade se decide, é unicamente de seu desencadeamento para uma lógica que tentará dar corpo a essa verdade e, muito precisamente, é o momento em que o discurso será uma representação dispensada, desqualificada. Mas, se pode sê-lo, é porque, em alguma parte, ele o é desde sempre. Está ai o valor do recalque. Já não é uma representação que ele representa, é essa série de discursos que se caracteriza como efeito de verdade.

Freud ([1930] 2010, p. 42) diz que essa fonte seria um sentimento peculiar, nunca abandonado a ele próprio, que seria confirmado por muitas outras pessoas, milhões de seres humanos. Um sentimento que cada um gostaria de chamar de “sensação de eternidade”, sentimento como o de algo, sem limites, sem barreiras, “oceânico”. Como Romain Rolland chamava em sua correspondência com o pai da psicanálise.

Em Totem e tabu (1913) o mito é inventado como uma forma para falar sobre as relações familiares iniciais. O totem, representante dos ensinamentos passados impostos de pai para filho, são as normas que o clã determina que devem ser obedecidas. A educação familiar é cheia de “posso” ou “não posso”, levando o indivíduo a temer os totens.

Freud ([1912] 2012, p. 10) afirma que “[...] em toda a parte que vigora o totem há também a lei para os membros do mesmo totem”. E acrescenta o tabu em seus dois significados: o tabu do sagrado e o tabu do sexo abrangendo o impuro.

Após os desfiles, os noticiários falam das brigas, de mortes, envolvendo grupos, de mascarados, vestidos com mortalhas coloridas, com uma bola amarrada em uma corda, nos subúrbios da cidade e da Baixada Fluminense, do Rio de Janeiro, que sob semblante da alegria instigam a pulsão de morte. Os componentes dos blocos se utilizam das máscaras para manter o anonimato, que é a sua verdade para se libertar de laços que os aprisionam ao social, ao respeitável, ao ponderável, imposto pela educação, pelos pais e pela sociedade.

Segundo o jornal O Dia, em 03 mar. 2014, uma triste tradição de confrontos acontece pela cidade do Rio de Janeiro: “Ontem, nas redes sociais, simpatizantes de bate-bolas pediam paz”. A violência que hoje permeia o nosso mundo, já vem dos tempos mais remotos. É a busca de poder, muito mais do que qualquer outra coisa, é o desejo de transgredir o proibido, enganar a lei que cotidianamente não pode ser transgredida. É no caos que os conflitos humanos se relacionam de uma forma mais livre. No caso dos clóvis, a violência entre os grupos acontece também em função das fantasias, e aí se desencadeia a crise: cada qual quer ter a sua fantasia considerada a mais bonita desde a palavra “a minha é mais bonita”.

Freud ([1913] 2012, p. 29) afirma:

É preciso admitir que, se o exemplo de alguém que violou uma proibição induz outro a fazer o mesmo, a desobediência à proibição propaga-se como um contágio, assim como o tabu transfere-se de uma pessoa para um objeto e deste para outro.

Caio Quero, da BBC Brasil no Rio de Janeiro, em 2013 constata a rebeldia dos bate-bolas que se espalham na cidade maravilhosa por ocasião do carnaval: “O imaginário do bate-bola está ligado a uma rebeldia juvenil”.

Lacan ([1957-1958] 1999, p. 337 e 343) destaca a ideia de máscara significando que o desejo se apresenta de uma forma ambígua. Há um interesse do sujeito na situação como tal, isto é, na relação desejante em si. É precisamente isso que é exprimido pelo sintoma que aparece, e é isso que chamamos de elemento de máscara, o que é inicialmente reconhecido como a armadura, a máscara com caráter de para-além que caracteriza essa presença como simbolizada.

Sua busca, com efeito, leva mais além dessa presença como mascarada, sintomatizada, simbolizada: há um caráter muito particular de reação como da criança diante da máscara quando ela dá risadas, mas, se sob a primeira máscara aparece outra máscara, ela não ri mais, chora, grita mostra-se particularmente ansiosa.

Quando pensamos sobre o carnaval do Rio de Janeiro, nos vêm à mente os desfiles da Sapucaí, que atraem turistas do mundo inteiro. Mas se pensarmos ao mesmo tempo nos movimentos populares que acontecem nos bairros e na periferia das cidades brasileiras durante o carnaval e nos períodos que o antecedem, encontramos o uso exclusivo da cidade maravilhosa que são os clóvis, ou bate-bolas, um grupo de foliões fantasiados que se divertem, segundo alguns autores e repórteres, de forma sinistra.

Já na década de 1980, os clóvis eram considerados uma das maiores manifestações carnavalescas dos locais por onde passavam alegremente, cantando em coro. Naquela época as pessoas costumavam acorrer e passar as mãos em suas fantasias e tocá-las. Assim, ao estudar os grupos dos Clóvis, entramos numa área reveladora quanto aos aspectos sociais dessa festa popular. Nesses grupos não existem lugares demarcados, qualquer um pode ir para o local de desfile do outro, e vice-versa, com isso motivando brigas, que muitas vezes terminam até em mortes.

A formação desse bloco é o resultado da mistura de várias festas populares europeias que se transportaram para cá: há influência dos palhaços da Folia de Reis, dos bailes de máscaras franceses, de elementos da manifestação popular da Península Ibérica. No Rio, sempre esteve ligada à cultura da periferia. Se pensarmos na forma como acontecem as suas brincadeiras, sempre sujeitas a essas influências, podemos considerá-las como algo dinâmico, quando agem como uma organização que se renova e adquire novos significados ao longo dos anos. Muito do que sabemos sobre os clóvis vem do povo, da experiência popular, do senso comum, e aí predomina uma imagem negativa.

No passado, o samba era a base nessas localidades; hoje, entretanto, o funk predomina. Como é um momento de diversão entre amigos, parece-nos nada mais natural que eles escutem aquilo com o qual se identificam. Consideramos que esses clóvis estão adaptados ao Brasil, com uma característica mais moderna, contudo sem perder pontos importantes da sua ancestralidade histórica. Podemos sentir essa adaptação pela variação das fantasias, jamais repetidas de um ano para outro e normalmente vendidas ou trocadas por materiais que por sua vez serão utilizados na nova confecção.

Voltando ao caso dos clóvis, podemos perceber a busca do passado nas atitudes dos seus integrantes: se suas ações fossem filmadas e comparadas, seriam idênticas às dos seus ancestrais, pois sabemos que o conhecimento permanece escondido em algum lugar e ressurge quando desafiado.

A diversificação se dá quando algum bloco passa a agregar jovens, crianças e adultos do Rio de Janeiro. Os clóvis agem geralmente com muita violência, ocultos por uma fantasia de corpo inteiro não deixando nada à vista. Seus rostos cobertos por máscaras aterrorizantes causam medo e preocupação aos moradores dos bairros por onde passam, com sua batida funk, ritmo que identifica um seguimento característico de jovens, que saem no bloco: eles, jovens, são estudantes das escolas do Rio de Janeiro travestidos, mascarados, buscando cuidadosamente não ser identificados.

Isso nos faz pensar que o “ser violento”, ao buscar se esconder atrás de máscaras para não ser identificado, apresenta um comportamento a que Lacan ([1971] 2009, p. 24) daria a seguinte definição: “Um sujeito goza na vida por essa aparência, por esse semblante [...], pois ele sabe que o ser é só aparência de ser”.

No caso das fantasias dos clóvis

[...] as forças são, na maioria das vezes, de natureza afetiva, seus conflitos com nossa personalidade organizada nos leva a desaprová-las, qualquer que seja, por outro lado, seu valor real (LACAN, [1971] 2009, p. 24).

Isso nos permite justificar a busca de anonimato, de não reconhecimento. Não sendo formadas de saberes tradicionais, com limites e regras socialmente definidas, as brincadeiras dos clóvis, têm seu valor diminuído, enquanto cultura popular, mas o importante é que a turma de bate-bolas se constitui como identidade cultural coletiva, junto a outros grupos jovens. Na busca de esclarecimentos sobre os clóvis , encontramos poucos sites sobre eles.

Vinícius Lisboa, repórter da Agência Brasil, em 12/02/2013, escreve o seguinte:

[...] com o tempo, a indumentária foi incorporando novas características e, atualmente, os grupos de clóvis podem ser classificados em diversos tipos, tais como ‘bola-e-bandeira’, ‘leque-e-sombrinha’, ‘sombrinha-e-boneco’, entre outros. A maioria das turmas tem nomes ligados a sentimentos.

É interessante destacar que sua preparação se estende ao longo do ano, desde a quarta-feira de cinzas, como explica Caio Quero:

Com os chamados “cabeças de turma” se reunindo para escolher o tema e as fantasias do próximo ano. [...] Embora mantenham as máscaras e fantasias características dos grupos de clóvis, os membros do Enigma, por exemplo, resolveram substituir as barulhentas bolas de borracha por sombrinhas. “As bolas eram meio agressivas, assustadoras”, opina Esteves. Outros grupos, no entanto, mantêm a tradição e se orgulham do “barulho” causado por suas performances. [...] A bola é para fazer o “barulho,” “bater no chão”, diz Marcos Aurélio da Silva, “O negócio é fazer o máximo de barulho. Tem a queima de fogos na saída, tem a equipe de som, tem essas coisas todas” (QUERO, 2013).

Vários defensores dos grupos acreditam que a violência na ocasião dos desfiles é algo que faz parte do cotidiano da periferia e que surge no meio dos clóvis como em qualquer outro local.

‘O bate-bola é produto de grupos de rapazes que se organizam para disputar o espaço das ruas. Esse tipo de diversão está mais ligado a uma atividade mais rural. Nós vemos personagens similares ao bate-bola em outros carnavais, menos urbano e mais rural’, explica Luiz Felipe Ferreira, professor de Artes da UERJ. Segundo Ferreira, a tradição encontrou terreno fértil no subúrbio do Rio, onde no início do século 20 matadouros forneciam as bexigas de bois e porcos para produzir as primeiras bolas para a brincadeira. ‘De alguma forma eles representam certa desobediência e liberdade’, diz Bragança, que trabalhou com sete turmas de bate-bola em seu filme (QUERO, 2013).

Para eles, no senso comum o comentário é que os blocos representam perigo. A própria mídia está dividida, pois em determinados momentos os considera como grupos com brincadeiras alegres e divertidas; em outros momentos como assustadoras e perigosas. Já para os pesquisadores e estudiosos é mais um grupo folclórico do carnaval do Rio. Com isso podemos creditar aos clóvis visões e sentimentos, que os tornam mais fascinantes. Suas brincadeiras envolvem beleza e disputa, uma guerra de vaidades.

 

Observação final

Ao longo destes levantamentos, em que buscamos obter informações sobre esses grupos enigmáticos e irreverentes por sua natureza, justamente por se esconderem atrás de máscaras, não permitindo sua identificação, percebemos que ainda não há inclusão feminina: em momento algum foi citado que mulheres fossem componentes de alguns desses grupos, formados apenas por homens. Por esse motivo, acreditamos que a formação dos grupos tenha se espelhado num personagem da Turma da Luluzinha, criada em 1935 por Marjorie Henderson Buell, o Bolinha. Na história, Bolinha é o líder do grupo de meninos que têm como lema de seu clube a frase: “Menina não entra!” Apesar de ser contra as meninas, na hora do sufoco ele recorre a Lulu, que sempre o ajuda.

Analisando esse contexto, conseguimos perceber o preconceito existente por parte dos dirigentes dos grupos, não contestado nem comentado, justamente pela incógnita de que são revestidos e protegidos.

Percebemos que os textos sobre os bate-bolas estão firmados nas brincadeiras de maior impacto, deixando de lado detalhes que seriam importantes para o entendimento dessa nova formação contemporânea dos Clóvis. Portanto, descrevê-los através desse olhar pode nos levar a uma análise mais coerente com a realidade.

Para podermos entendê-los de uma forma mais completa, precisamos nos debruçar sobre as informações que obtivemos. Apesar das dúvidas que possam surgir sobre os clóvis é importante salientar que no momento, justamente por seu caráter enigmático, eles nos envolvem e atraem.

Acreditamos que toda opinião a respeito do caráter dos grupos tem o seu fundo de verdade; não descartamos nenhuma delas. Há os que os consideram tradicionais suas brincadeiras; outros, que elas estariam ligadas à marginalidade; há os que pensam que estariam ligados à agressividade e à violência, em compensação, para outro grupo essa seria uma expressão da cultura popular.

Na realidade, o que devemos levar em conta é que cada uma dessas opiniões faz parte de um grande e dinâmico quebra-cabeça, pela visão dos vários campos de estudos, antropologia, sociologia, etc., e para nós uma abordagem lacaniana privilegiando a busca de um Outro psicanaliticamente entendido.

Notamos que embora pareçam desencontradas, as informações vêm mostrar que os grupos têm personalidade própria. Vale lembrar sempre a afinidade de “personalidade” com “persona”, que se refere a “máscara” cada um é um, na medida em que colocamos o olhar em vários deles e nos assolam estes sentimentos confusos.

Faz-se mister um estudo mais aprofundado por regiões, o que auxiliará entender os seus movimentos, já que são agrupamentos comunitários, agentes de transformação nas suas comunidades, com leituras importantes para a formação de jovens e crianças.

A análise psicanalítica se propõe a subsidiar a compreensão dessas manifestações tais como se apresentam na atualidade e, assim, contribuir de alguma maneira para a desmistificação e o entendimento dessa forma tão importante da cultura popular não só do Rio de Janeiro mas de todo o Brasil.

Em nossa abordagem psicanalítica, o pensamento pode considerar a importância das disputas simbólicas entre os clóvis, pois se transformam em processos que os identificam e norteiam suas ações. Tentamos compreender as manifestações dos clóvis, como um segmento cultural complexo, tenso, mas que anualmente se modificam e buscam novos caminhos.

Isso nos leva a acreditar que essa busca está carregada de necessidades remotas da infância, a busca do Nome-do-Pai, a busca da lei.

Diz Lacan ([1957-1958] 1999, p. 166):

A metáfora paterna, pois, concerne à função do pai, em termos de relações inter-humanas. A função do pai tem um lugar bastante inegável, e, está no centro da questão do revelado, pelo inconsciente.

E provavelmente dos clóvis também.

Ó abre alas
Que eu quero passar
Ó abre alas
Que eu quero passar
Eu sou da Lira
Não posso negar
Eu sou da Lira
Não posso negar
Ó abre alas
Que eu quero passar
Ó abre alas
Que eu quero passar
Rosa de Ouro
É que vai ganhar
Rosa de Ouro
É que vai ganhar
Ó Abre Alas2.

 

Referências

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Endereço para correspondência

Maria Antônia Marques Brasil
Av. João Pessoa, 2301/202 - Bl 12 - Santana
90040-001 - Porto Alegre - RS
mab@smc.prefpoa.com.br

Maria Nestrovsky Folberg
Rua Cel. Corte Real, 121
90630-080 - Porto Alegre - RS
m.folberg @terra.com.br

Recebido em: 08/05/2015
Aprovado em: 11/05/2015

 

 

SOBRE AS AUTORAS

Maria Antônia Marques Brasil
Pedagoga. Coordenadora Adjunta do Carnaval Oficial de Porto Alegre.

Maria Nestrovsky Folberg
Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS.
Mestre em Aconselhamento Psicopedagógico pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS.
Professora da Pós-Graduação da UFRGS.
Orientadora de Mestrado e Doutorado da UFRGS.

 

 

1 Folia de Reis é um festejo de origem portuguesa ligado às comemorações do culto católico do Natal, trazido para o Brasil ainda nos primórdios da formação da identidade cultural brasileira, e que ainda hoje se mantém vivo nas manifestações folclóricas de muitas regiões do País. Ela apresenta um caráter profano-religioso, fazendo parte do ciclo natalino, anualmente realizado entre 24 de dezembro a 6 de janeiro, quando se comemora o nascimento de Jesus com várias festividades ou festejos populares: como Congado, Folia de Reis, Império do Divino, Reinado do Rosário e Pastorinhas
2 Primeira marcha carnavalesca, de 1899, autoria da pianista e regente Francisca Edwiges Neves Gonzaga, Chiquinha Gonzaga.

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