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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.43 Belo Horizonte jul. 2015

 

 

A escrita do desejo: enunciados inconscientes

 

The writing of desire: unconscious statements

 

 

Maria Beatriz Jacques Ramos

I Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Apresento uma passagem da vida de Alba e das lembranças que ficaram espalhadas no tempo. Leitora de muitos livros aprendeu a conhecer as pessoas e os lugares viajando pela literatura. Nas sessões muitas histórias foram referidas; outras, esquecidas. Possuidora de inteligência aguçada, sensibilidade que atravessava a pele e olhar por vezes assustador, Alba revelou uma forma de viver no mundo e os alcances da psicanálise.

Palavras-chave: Melancolia, Repetição, Trauma.


ABSTRACT

In the text, I present a passage Alba’s life and memories that were scattered in time. Alba read many books. She learned to know the people and places traveling through of the literature. In the sessions were cited many stories, others forgotten. She had a keen intelligence, a sensitivity that crossed the skin. Sometimes had a scary look. Alba revealed a way of living in the world and the scope of psychoanalysis.

Keywords: Melancholy, Repetition, Trauma.


 

 

Como e quando começa?

O psicanalista sabe algumas coisas, estuda, tem um conhecimento teórico, aprende a lidar com a empatia e a suportar as dissociações. Mas sem tenacidade e capacidade de esperar a demanda do outro, não pode se colocar num cenário que o submete e castra, num cenário de sujeições e frustrações.

Para exemplificar essas ideias, descrevo trechos das sessões analíticas com Alba (nome fictício). Ela me escolheu para ser filha, irmã, mãe, cunhada, aliada e inimiga, aprendiz da costureira.

Depois de alguns encontros, Alba me ofereceu o livro Os irmãos Karamázovi, de Dostoiévski, e deixou um breve escrito, uma indicação dos caminhos que teríamos que percorrer:

Por toda parte, o homem adquire a consciência da sua transitoriedade e luta desesperadamente para conseguir o que de melhor o mundo lhe possa dar no certo prazo de tempo em que nele tem de viver. E, em busca de algo que o identifique com a vida, todo homem seguirá e ouvirá aquele que lhe promete essa identificação (Alba).

Ainda guardo muitas lembranças de Alba. Nas sessões, trazia histórias de ressentimento e dor; parecia esfolada, por vezes atolada no pesar, na intenção de agredir e ser agredida. Aos poucos o passado voltou, uma tela se abriu, a análise começou.

Nesse período tinha sessenta anos, era solitária, tinha poucos amigos, morava com a mãe e duas irmãs. Não suportava a pressão dos outros irmãos pedindo auxílio. Ela socorria, aceitava os pedidos da mãe, não tinha saída. Deixava-se explorar ou era explorada? Suas narrativas reverberavam ansiedade, defesas primitivas e desconfiança.

Nos primeiros encontros contou os dissabores e as brigas com os parentes. Não queria ajudá-los, mas era pressionada, dava o que pediam, senão “morreriam de fome” - usava essa expressão para se referir a eles. Todo o tempo questionava a si mesma e sua vida comprometida com os outros. Alba não se sentia aceita nem valorizada. Não podia usar o próprio dinheiro porque tinha uma casa para manter, uma aliança com a mãe e as irmãs. Os dias eram intermináveis, sem diversão, sem alegria, com contas a pagar, sempre a mesma situação, os mesmos compromissos, sem recursos para passear e viajar; convivia tristemente com a rotina, de domingo a domingo.

O pai faleceu quando ela tinha cinco anos e dele só sabia o que contaram, pois “nem o conheceu”. Aprendeu desde cedo que devia ganhar dinheiro e ajudar. Ficou no lugar de provedora, ainda que fosse a penúltima filha entre dez irmãos. Na adolescência trabalhou em lojas e quando adulta em fábricas de móveis. Em 1997, aposentou-se e passou a cuidar dos netos da irmã mais velha, que morava com ela.

Assim, inicio a composição, a ‘alfaiataria’ dos panos teóricos e clínicos com cuidado, para não esgaçar o tecido e expor em demasia o sofrimento dessa mulher: uma história densa e tensa, com uma costura desleixada e malfeita - não por acaso.

Acredito que os caminhos do inconsciente se assemelham a uma encruzilhada que nos obriga a observar, a enxergar as intersecções, o recalcado expresso na repetição, nas memórias e nos sintomas.

Alba escrevia longas cartas numa máquina de escrever. Escrevia e lia, lia e escrevia. Nas sessões expunha o conteúdo das cartas para os parentes, cartas que retratavam decepções e expectativas.

Ela vivia submetida ao medo e ao preconceito. Vivia de maneira errante, identificada ora com uma pessoa, ora com outra. Reagia à exclusão e ao abandono, mas estava presa na raiva e na inveja. Agredia e deixava-se agredir, odiava e incitava a rejeição do outro.

Tinha fiapos de maternidade ao cuidar dos netos da irmã, as crianças que se tornaram objetos do seu amor. Com elas se divertia, sentia-se disponível e satisfeita. Suas preferências eram pontuais, bem como as definições sobre a família, com marcas de desolação e nostalgia.

Aos poucos as fibras do tecido se desfiavam na transferência permeada de avanços, recuos e incertezas. Em vários momentos predominava o desespero, a indignação: grito e choro alternados por riso irônico.

As sessões eram delimitadas por inconstância, sadismo e masoquismo; por um superego excessivamente crítico e um ego melancólico assolado pelos objetos perdidos, idealizados e perseguidores.

Freud, em O eu e o id, comenta:

Na melancolia é ainda mais forte a impressão de que o superego arrebatou a consciência. Mas aqui o ego não ousa reclamar, ele se reconhece culpado e submete-se ao castigo. Na melancolia, o objeto a que toca a ira do superego foi acolhido no ego por identificação. O histérico defende-se da percepção dolorosa com que o ameaça a crítica do seu superego, da mesma forma como costuma se defender de um investimento objetal intolerável através da repressão (FREUD, [1923] 2011, p. 64).

 

O romance: do parricídio à exclusão


Alba, ao se deparar com o livro de Dostoiévski, revelou as forças do mundo interno, das fantasias inconscientes amalgamadas nas experiências e comunicações intersubjetivas, constitutivas da vida psíquica e das identificações.

Essa obra expõe a saga de um homem e seus filhos num momento de degeneração familiar que culminou no parricídio, na morte de Fiódor Pávlovitch Karamázovi (o pai), conhecido como “fazendeiro” apesar de mal frequentar a propriedade. Um homem mau, devasso, casado duas vezes e com três filhos: Dmítri Fiódorovich Karamázovi, da primeira esposa; Ivan Karamázovi e Alieksiéi Karamázovi, da segunda esposa. Além da suspeita de um quarto filho, Smierdiákov, um criado com aparência de retardo ocasionada pela epilepsia, que conhecia os esconderijos da casa onde o velho Karamázovi guardava o dinheiro. Dmitri Fiódorovich Karamázovi, ou apenas Mítia, era o meio-irmão instável e confuso, que pendia ora para a bondade, ora para a maldade. Ele era o principal suspeito da morte do pai, justamente por disputar o amor de uma mulher, além de passar por problemas financeiros. Foi acusado, preso e julgado por um júri popular, culpabilizado pelo crime de morte premeditada para roubar. No entanto, o assassino era Ivan, que tivera a ideia e instigara Smierdiákov a pô-la em prática.

Tudo conspirou contra Mítia – a deslealdade e a mentira, temas do romance de forte carga psicológica, que retratou uma época conflitante na Rússia, mas que é atemporal, com atos de maldade sobrepujando a bondade.

Alba expôs a representação do ódio persistente de quem não conquistou a estima do outro. Ela comparava o carinho da mãe pelo irmão, único homem da família, e o descaso em relação a ela. Do irmão, a mãe aceitava as imperfeições, até o alcoolismo; para ela restava a exigência. Amar e ser amada, expressão intrigante para uma mulher que não gostava de si mesma, que estudou o suficiente para trabalhar no comércio. Ela concluiu o curso ginasial e desde cedo abriu mão do futuro para ajudar na subsistência da família. O mesmo aconteceu com suas irmãs. O irmão se alistou no exército, cumpriu o tempo exigido, saiu e se casou.

Alba era autodidata, autoritária e geralmente acertava as qualidades e os defeitos das pessoas: parecia uma sonda, um radar, sabia quem era bom e quem era mau. Inteligência, insight e sensibilidade eram peculiaridades nessa mulher. Porém, suas escolhas amorosas foram penosas: um casamento infeliz, três abortos (o marido não queria filhos), brigas, surras, separação. Uma segunda união, um segundo fracasso. Envolveu-se com um homem voltado para si mesmo, que não assumia o relacionamento com uma mulher divorciada. Ele prometeu apoio financeiro, mas devolveu traições e mentiras. Outra escolha, novas perdas, decepção e fracasso. Num encontro contou que uma irmã se suicidou porque não suportou os “horrores” vividos no casamento. “Ela sucumbiu na dor”.

Alba aceitava a morte e se preparava para esse encontro. Ela não tinha motivos para viver. Com raiva e hostilidade, carregava-me para alinhavar e interpretar suas mágoas. Aos poucos compreendi as falas, as perdas e as humilhações. Os outros serviam para abastecer a infindável queixa, demonstrar os efeitos traumáticos da repetição.

Ela se entregou e esperou recompensa dos que não podiam retribuir. Ela se envolveu com a escassez dos que não lidavam com os próprios problemas. Infeliz e sozinha, espelhava o desapontamento e o luto.

Vivia dilemas, zombava do próprio sofrimento e do sofrimento que impunha aos demais. Construiu a imagem de mulher temida e agressiva, mal-amada e sem amor próprio. As falhas da função materna e paterna eram evidentes. Não sentia acolhimento nem garantia. À medida que se tornou provedora, manteve as irmãs e a mãe, humilhando-as para que lhe servissem.

Alba, vítima ou vilã, estrangeira na própria casa. Não gostava de si mesma. Não se reconhecia bonita, apesar do rosto bem delineado, com traços marcantes e um olhar penetrante, um olhar que lembrava Clarice Lispector. Ela não tinha limites à destrutividade e não conseguia lidar com as ansiedades de separação e aproximação. Se fosse ofendida, devolvia com xingamentos e palavrões, com explosões de ódio, independentemente da circunstância. Ela não encontrou o caminho para aquietar os medos, insatisfações e, entre as compulsões, havia comida e cigarro. Vivia as agruras e intensidades do desamparo, da tentativa de preencher as falhas, os buracos.

 

Alba e Clarice: convergências e divergências

Alba também me aproximou de Clarice Lispector, escritora e jornalista brasileira de origem judaica, reconhecida como uma das mais importantes escritoras do século XX. Lispector nasceu na Ucrânia, no dia 10 de dezembro de 1920, filha de Pinkouss e Mania Lispector. Sua família chegou ao Brasil em 1922, em Maceió, onde morava Zaina, irmã de sua mãe. E, por iniciativa do pai, todos mudaram de nome, e Haia passou a se chamar Clarice.

Em 1925 foram para Recife. Nessa cidade passou a infância e aprendeu a ler e a escrever. Estudou inglês, francês e cresceu ouvindo o idioma dos pais: o iídiche. Com nove anos, ficou órfã de mãe. Em 1931, ingressou no Ginásio da Tijuca. Aos 19 anos, iniciou o curso de Direito e publicou o primeiro conto, Triunfo. Em 1943, formou-se e casou-se com um amigo de turma. Nesse mesmo ano estreou na literatura com o romance Perto do coração selvagem, que retratava a visão da adolescência, recebendo o Prêmio Graça Aranha.

O marido de Clarice seguiu a carreira diplomática. Ela o acompanhou nas viagens e residiram na Inglaterra, nos Estados Unidos e na Suíça. Quando se divorciou, voltou para o Brasil e ficou no Rio de Janeiro com os filhos. Percorreu o mundo, saiu de muitos lugares, entretanto não abandonou a escrita. Para ela, escrever era um ato de existência, uma fuga da morte, uma maneira de se conhecer, um meio de mostrar sua história.

Em 1966 sofreu um acidente ao dormir com um cigarro aceso. Teve queimaduras no corpo e na mão direita. Submeteu-se a várias cirurgias e passou o tempo dedicado à escrita.

Em 1977 publicou A hora da estrela. Protagonizada por Macabéa, narra a trajetória de uma moça nordestina em busca da sobrevivência na cidade grande. A hora da estrela foi o último romance publicado em vida. Macabéa expressava a precariedade, por vezes inexplicável, mas sempre presente, do destino de Lispector e, para descrevê-la, criou um narrador, um intérprete. Dessa maneira contou e anunciou a própria morte.

A personagem era uma jovem que migrou para o Rio de Janeiro quando perdeu a velha tia. Na nova vida morava sozinha num quarto alugado e trabalhava como datilógrafa. Depois de um tempo apaixonou-se por Olímpio de Jesus, que a traiu com uma colega. Ela vivia sem perguntas, sem perspectivas e palavras. A escuta vinha do rádio, um aliado e companheiro. Depois de um tempo, procurou uma cartomante para lhe indicar o futuro. Ela queria se casar com um homem amoroso, ser feliz. A cartomante viu seus sonhos e deu-lhe expectativas, porém o destino de Macabéa estava marcado por um acidente. Ela morreu atropelada ao sair da vidente. A vidente enxergou, mas não disse, deixou que a moça vivesse os últimos momentos cercados da utopia de um futuro feliz. Macabéa viveu alienada, silenciosamente, para contornar a solidão, para passar o tempo e não enxergar a si mesma, suas dores e seus medos.

As citações do livro (LISPECTOR, 1998) foram escolhidas para apresentar a autora e a personagem Macabéa, para conversar com estas mulheres: Alba e Clarice.

Pareço conhecer nos menores detalhes essa nordestina, pois se vivo com ela. E como muito adivinhei a seu respeito, ela se me grudou na pele qual melado pegajoso ou lama negra. Quando eu era menino li a história de um velho que estava com medo de atravessar um rio. E foi quando apareceu um homem jovem que também queria passar para a outra margem. O velho aproveitou e disse:
– Me leva também? Eu bem montado nos teus ombros?
O moço consentiu e passada a travessia avisou-lhe:
Já chegamos, agora pode descer. Mas aí o velho respondeu muito sonso e sabido:
– Ah, essa não! É tão bom estar aqui montado como estou que nunca mais vou sair de você! (p. 21-22)
[...]
Bem sei que é assustador sair de si mesmo, mas tudo o que é novo assusta (p.31).
Claro que era neurótica, não há sequer necessidade de dizer. Era uma neurose que a sustentava, meu Deus, pelo menos isso: muletas (p. 34).
[...]
Se a moça soubesse que minha alegria também vem de minha mais profunda tristeza e que tristeza era uma alegria falhada. Sim, ela era alegrezinha dentro de sua neurose. Neurose de guerra (p. 36).
[...]
Ninguém pode entrar no coração de ninguém (p. 65).
Sim, estou apaixonado por Macabéa, a minha querida Maca, apaixonado por seus pulmões frágeis, a magricela.
– Eu sou sozinha no mundo e não acredito em ninguém, todos mentem, às vezes até na hora do amor, eu não acho que um ser fale com o outro, a verdade só me vem quando estou sozinha (p. 68).

Clarice e Alba conviveram com apegos recobertos de desilusão e suspeita. Os traumas reapareceram, manifestaram-se no isolamento e na tristeza, na repetição das situações que criavam. Os atos latentes e temporariamente inconscientes mostravam o recalcado e o sintoma.

Nesse aspecto Lucia Barbero Fuks (2010) trata da insistência do trauma e do significado para o sujeito quando ocorre num determinado momento da vida, em que a figura materna, protetora falta ou falha. Para ela, corroborando as ideias de Freud, a singularidade do trauma se coloca no inesperado, na surpresa diante do perigo que não pode ser decifrado e incluído na consciência sendo arrastado ao inconsciente e reaparecendo a posteriori.

Os psicanalistas concordam que a prematuridade e o desvalimento biológico do lactente no seu encontro com o mundo – com o adulto que o cria, maduro biológica e psiquicamente – implica um impacto traumático. Esses acontecimentos transcorrem deixando traços no psiquismo sem que, necessariamente, cheguem a produzir efeitos traumáticos. Podem-se converter em traumas quando, a partir de novos acontecimentos e dentro de um nível de maturação maior, são significados a posteriori (FUKS, 2010, p. 112).

Por meio da escrita e da leitura, Alba e Clarice expuseram biografias incrustadas nas sombras do objeto permeadas de fantasias, ofuscadas pela compulsão, mascaradas pela indignação e aversão.

No texto O inconsciente ([1915] 2010), Freud afirma que nesse sítio não há negação nem incerteza. Os conteúdos refletidos são atemporais, não sofrem a passagem do tempo e da realidade. Metáforas e metonímias mostram desejos não realizados e desejos alucinados ancorados na pulsão, oscilando nos fios do prazer e do desprazer, no desligamento da realidade e da alteridade.

Para Clarice e Alba, a elasticidade do mundo externo atingia o inconsciente, exercia influência, infiltrava-se na interioridade por meio das identificações e mostrava a face oculta do estranho. Há coincidência entre elas: mulheres partidas à procura de alguém para suportar o temor e a solidão. Carregaram a orfandade da mãe morta e da mãe morta-viva, o amor escasso pela vida, a agressividade para atenuar a precariedade narcísica. A divergência entre elas se infere no modo como foram marcadas pela melancolia e pela culpa.

Mulheres neuróticas, deprimidas, embebidas nas fantasias inconscientes, lutaram e espelharam a magnitude da raiva, da culpa e desligamento da vida. Compulsivas e ousadas, lutaram com o insidioso e o temível. Falaram, escreveram e leram de forma incessante. Mulheres intrigantes à procura de deciframento.

Alba-alva-branca-alvorada, Clarice-clara-brilhante. Alba e Clarice percorreram o dia escrutinando a noite e o isolamento. O sentimento de estarem sozinhas entre os demais era parte da natureza melancólica, do anseio por uma compreensão e a inseparável insegurança sobre a verdade e a mentira. Mentiras contadas e recontadas, persistentes e avassaladoras, que impregnavam a existência e mantinham a culpa, uma culpa implacável na polaridade entre a vida e a morte, na dificuldade de reparar as decepções oriundas do sentimento de exclusão, de não pertencimento na existência do outro.

Seria possível compreenderem e serem compreendidas diante de tantos ressentimentos? Teriam capacidade de aceitar e de dar, de desfrutar a dependência quando tudo que restava era ânsia para superar a vulnerabilidade interna? Quanto mais se conheciam e viviam, mais penosas eram as críticas, as exigências e as brigas. Atormentadas pelo sadismo do superego, incursionaram em desencontros, fardos e trabalhos para o sustento de si mesmas e dos demais. Desamparadas, tiveram momentos escassos de alegria, pois logo retornavam para seus quartos, para suas noites sombrias.

Tiveram amores impossíveis, ilusões e frustrações, não sabiam ser amadas, reconhecidas, sempre foram estranhas na condição de dar e receber. Mas como receber? Como se livrar do sentimento de ser roubada, de ser uma entre tantos sem enlevo e gratificação?

Foram paradoxais e ambivalentes, vorazes de cuidado, repeliram o cuidador, inutilizando e desvalorizando o outro, defendendo-se das emoções insuportáveis: a raiva e a inveja, espectros dos falsos enlaces.

 

A psicanálise e a clínica

A viagem é demorada e difícil, dolorosa e dispendiosa. A viagem proposta no método psicanalítico supõe ir ao passado para encontrar o presente, cruzar o tempo do ontem para o tempo do agora e do amanhã, desvendar as ansiedades que movimentam defesas, capturam sentimentos reprimidos e lembranças enraizadas no corpo e na alma.

O que gruda no corpo e na psique são as identificações construídas desde as relações mais primitivas do bebê com a mãe, são os acontecimentos que influenciaram a percepção da realidade assim como foram influenciados por ela.

Klein, no texto Sobre a identificação, de 1955, comentou:

Com o prosseguimento do meu trabalho, vim a conhecer a grande importância, para a identificação, de certos mecanismos projetivos que são complementares aos introjetivos. O processo que está subjacente ao sentimento de identificação com outras pessoas, pelo fato de atribuirmos qualidades e atitudes a elas, já era amplamente aceito como certo antes mesmo que o conceito correspondente fosse incorporado à teoria psicanalítica (KLEIN, [1955] 1991, p. 171)

Para a integração do ego, os aspectos subjacentes ao amadurecimento são estar vivo, amar e ser amado pelo objeto bom interno e externo. E para não sucumbir na ansiedade de aniquilamento, é imprescindível o alimento-provisão, o cuidado, senão impera a mais profunda ansiedade – a morte.

Inversamente, o seio internalizado com ódio e, portanto, sentido como sendo destrutivo, torna-se o protótipo de todos os objetos internos maus, leva o ego a novas cisões e torna-se o representante interno da pulsão de morte.

Freud, em vários contextos, descreveu esse processo e algumas de suas implicações: por exemplo, referindo-se à idealização numa relação de amor, ele afirma que o objeto está sendo tratado da mesma forma que nosso próprio ego, de maneira que, quando estamos apaixonados, uma quantidade considerável de libido narcísica transborda sobre o objeto (KLEIN, 1991, p. 174).

Para Freud, o inconsciente era como um caldeirão no qual as pulsões irrompem. Para Klein, desde o nascimento, manifesta-se a pulsão de morte, a tendência de tirar do mundo externo e do outro tudo que for necessário à sobrevivência do ser. Mais uma vez o inconsciente é o cume do improvável, da verdade última.

No campo psicanalítico somos instigados a escutar as vozes, os rumores e os afetos, à medida que compreendemos que as fontes de informação estão no setting e no que fica alojado dentro do analista.

Alba e Clarice açodaram meus pensamentos. Percebi nessas mulheres o lugar da expiação, da ansiedade paranoide por meio da cisão, projeção e identificação projetiva. Em alguns momentos, fui espetada pela fina agulha que crava e fere quando não se tem dedal no dedo.

Ao reler essas histórias, dei voltas, reencontrei recordações para costurar pedaços de suas vidas. Procurei conteúdos e memórias para contar o que ficou dessas experiências. Busquei leituras para estear os efeitos do processo analítico, quando nos defrontamos com o princípio do prazer e o masoquismo mortífero. E passei a questionar as novas categorias diagnósticas, porque continuamos lidando com as infindáveis manifestações neuróticas e narcísicas, assinaladas nas adições, medos, repetições.

Essas questões transcendem os séculos, os tempos passados, uma vez que se relacionam com o campo social onde o dispositivo analítico impõe limites e fronteiras que não excluem o dentro e o fora, um espaço para algo ser reconstruído. A regra não muda: o paciente fala, e o analista escuta até que apareça a transferência e a atualização dos conflitos. A psicanálise é do sujeito na relação transferencial.

O saber da psicanálise se altera e se reveste de figurações quando se encontram pessoas enlaçadas nas armadilhas do narcisismo, da melancolia e do tédio.

A leitura continua. Os estudos revelam que a amargura não encontra alívio no verbo e na letra, pois o traumático persiste no indizível e no sadismo que desafiam a lógica.

Ao finalizar, espero que essas ilustrações grifem os efeitos traumáticos das ligações fracassadas, dos discursos mudos que depois de um tempo se manifestam nas repetições e ações. Entendo que Alba e Clarice não encontraram o caminho da elaboração psíquica, pois eram vulneráveis, reféns do recalcado e, de certo modo, condenadas a conservar acontecimentos passados sedimentados no luto e na carência.

 

Referências

DOSTOIÉVSKI, F. Os irmãos Karamázovi. São Paulo: Abril, 1971.         [ Links ]

FREUD, S. O eu e o id (1923). In: Freud (1923-1925). O eu e o id “autobiografia” e outros textos. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 13-74. (Obras completas, v. 16).         [ Links ]

FREUD, S. O inconsciente (1915). In: Freud (1914-1916). Ensaios de metapsicologia e outros textos. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 99-149. (Obras completas, v. 12).         [ Links ]

FUKS, L. B. Narcisismo e vínculos: ensaios reunidos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2010.         [ Links ]

KLEIN, M. Inveja e gratidão. Rio de Janeiro: Imago, 1991.         [ Links ]

LISPECTOR, C. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Av. Protásio Alves, 1981, conj. 309
90410-002 - Porto Alegre - RS
E-mail: mbjramos@terra.com.br

Recebido em: 29/04/2015
Aprovado em: 29/05/2015

 

 

SOBRE A AUTORA

Maria Beatriz Jacques Ramos
Psicanalista. Presidente do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul.
Doutora em Psicologia pela PUC-RS.

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