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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.43 Belo Horizonte jul. 2015

 

 

Do trauma à passagem ao ato1

 

From trauma to passage to the act

 

 

Maria Carolina Bellico Fonseca

I Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora se propõe a discutir a relação entre passagem ao ato e trauma, e a possibilidade de o primeiro ser uma resposta ao segundo. Para isso, ela esboça uma breve evolução do conceito de trauma em psicanálise, desde sua definição como “um incremento de excitação no sistema nervoso” ligado ao factual, até sua formulação como vivências de um real implacável, impossível de ser antecipado, que exclui o sujeito e nas quais está implicado o Outro e seu desejo. Além disso, ela parte das contribuições de Lacan ao conceito de passagem ao ato marcando sua diferença do acting out e, aprofunda a discussão através de um caso clínico de fenômeno psicossomático.

Palavras-chave: Trauma, Passagem ao ato, Acting out, Fenômeno psicossomático, Gozo.


ABSTRACT

The author discusses the relationship between passage to the act and trauma within the possibility of the first being a response to the second. She outlines a brief evolution of the concept of trauma in psychoanalysis, from its definition as “a thrilling increase in the nervous system” connected to the facts until its formulation as an experience of a ruthless real, impossible to be anticipated, which excludes the subject and in which the Other and his desire are implicated. In addition, she speaks about lacanian’s acontributions to the concept of passage to the act, marking the difference between it and acting out and deepens the discussion through a case of psychosomatic phenomenon.

Keywords: Trauma, Passage to the act, Acting Out, Psychosomatic phenomenon, Enjoyment.


 

 

Se existe um conceito que ganhou popularidade entre o público em geral, esse é o trauma. Ele se tornou um tipo de chave mestra para justificar, ou melhor, explicar um ato incompreendido, um nonsense:

– Fulano está estranho.
– Coitado ele ficou traumatizado com a morte da mãe e nunca mais foi o mesmo.

Dessa forma, todos falam de ocorrências ditas traumáticas, querendo dizer com isso que algo marcou profundamente um sujeito levando-o a sentimentos e comportamentos inusitados; algo que lhe é sempre externo e que, por isso mesmo, o desresponsabiliza tornando-o vítima do infortúnio. Grandes mudanças operaram na sociedade, nos costumes, mas o ser humano, ou melhor, o ser falante segue traumatizado.

O trauma se liga aos horrores intoleráveis, rebeldes e absurdos portanto difíceis de ser subjetivados, tais como as vivências de castração, do não ser, do ser dividido. Vivências de um real implacável, impossível de ser antecipado ou modificado, nas quais está implicado certamente o Outro e seu desejo indecifrável, que exclui o sujeito; quer seja por eventos psíquicos, quer seja por catástrofes naturais, são sempre ‘desgraças’ que lhe caem na cabeça, como nos lembra Soler (2004).

Excluído, cabe ao sujeito carregar as impressões deixadas por um trauma ao qual não pôde reagir, contra o qual não teve como lutar. Impressões sem significantes que não se remetem à lembrança e que, não sendo rememoráveis, exigem um trabalho de construção que possibilitaria a amarração do afeto desgarrado.

Por outro lado, em Psicanálise, também dizemos que o trauma é o sexual. Isso nos remete ao despreparo do sujeito em sua falta de significantes para abordar simbolicamente o real já que ele traz em si um excesso inabordável pela linguagem. Isso é ainda mais marcante nos primeiros encontros do Infans com um sujeito de linguagem. Desses encontros com o excesso ninguém sai incólume – os sintomas, os fenômenos de corpo e até mesmo a fantasia são algumas consequências e saídas para o ser falante.

Em Freud o conceito de trauma perpassa todo o seu percurso teórico. Nos primeiros textos essa concepção é abordada como “[...] um incremento da excitação no sistema nervoso” (FREUD, [1892] 1975, p. 197), mediante o qual não se tem ação nem palavras que permitam sua dissipação. Ele é a princípio ligado ao factual. Mas logo esse autor se dá conta de que, por trás das histórias contadas por seus pacientes, há muito de fantasia, e passa a se interessar mais pelo texto que lhe é trazido do que pelo contexto real pretendido. Cedo ele também descobre que a temporalidade do trauma é a do só depois, ou do a posteriori, na qual ocorre a validação de uma impressão que não pôde ser significada no momento de sua percepção, mas que foi fixada, retornando posteriormente em outros eventos.

Mais tarde, em 1920, ao utilizar em sua concepção do aparelho psíquico, a metáfora extraída da embriologia “vesícula viva”, cuja camada mais externa se transforma em um escudo protetor, Freud dirá que são traumáticos aqueles estímulos que atravessam essa camada, esse escudo, o que ocorreria devido à falta de preparo do eu e aos fatores de surpresa e susto. Posteriormente, em 1925, ele associará o trauma ao conceito da angústia como um sinal e como reação a esta, que traria ao eu uma experiência de desamparo.

Contudo, a associação do trauma com algo da realidade sexual do sujeito é descoberta no início e mantida até o fim da obra freudiana, quer seja como impressões de natureza sexual e agressiva, quer seja como cicatrizes no eu havendo sempre uma referência ao período da introdução da linguagem, ou seja, a primeira infância. Vemos nisso uma menção à importância das primeiras relações da criança com seus pais ou com aqueles que exercem para ela essas funções.

Birman, no livro Cadernos sobre o mal (2009), chega traçar a partir de Freud uma correlação entre “[...] a falibilidade da figura do pai e a conseqüente vulnerabilidade do sujeito ao trauma” (BIRMAN, 2009, p. 96). Isto é, na medida em que a figura paterna não pode mais proteger o sujeito com antecipações para evitar o perigo, este estaria exposto ao inesperado e ao traumático.

Isso porque seria a figura do pai o que fundaria as operações de temporalização e de simbolização que estariam na base da antecipação (BIRMAN, 2009, p. 96).

Assim, quando a figura paterna não pode mais oferecer um suporte simbólico, o sujeito é lançado no desamparo.

Excesso pulsional, despreparo, exclusão do sujeito, desamparo e falibilidade da figura do pai são, dessa forma, colocados em destaque na teorização do trauma. É o que vemos no caso Marina, filha caçula de um casal, entregue exclusivamente aos cuidados maternos por um pai distante e frio, que pouco se envolvia com a menina. Sua irmã mais velha, “certinha”, era elogiada por seu sucesso nos estudos e, mais tarde, na profissão. Marina, por sua vez, mais inibida, ficava sempre à sombra da irmã. Cresceu muito apegada à mãe e atenta aos seus desejos, demandas e exigências, num eterno Que queres?, com pouco espaço para o seu próprio querer.

Essa mãe narcisista, apegada a uma perfeição impossível, acabou por provocar na filha um sentimento de inadequação mediante a injunção de um “fazer certo”, cujo sentido era incompreendido e inapreensível para a criança. Isso se constituiu para ela como algo devastador, e o que lhe ficava era o amargo gosto na boca de nunca conseguir deixar a mãe feliz, orgulhosa de si como a irmã o fazia. Paralelamente, a menina tinha um eczema no rosto, chamado por ela de “minha alergia”, causa de uma peregrinação a vários consultórios médicos sem possibilidade de cura. Mediante as situações de cobrança, ela se angustiava frente ao não saber o que fazer e acabava se coçando “de nervoso”.

Essa relação com a mãe sofre algumas reedições em sua história. Primeiro, no período escolar, quando, vendo a irmã brilhar, se descobre com dificuldades de alfabetização demandando de sua mãe uma ajuda extra que lhe era dada com pouca paciência e muitas recriminações. Foi esse o clímax da cobrança, da devastação e do impossível para Marina.

Como consequência, “sua alergia” lhe trouxe placas “horrorosas” pelo corpo, principalmente no rosto, que “melavam e enojavam”. Contudo, colada à sua mãe, ela vence o primeiro período escolar. Mais tarde, usa a mesma fórmula e “se cola” em colegas, já que não lhe era possível estudar sozinha. Quando isso não era suficiente, havia as colas em provas e nos trabalhos.

Dessa forma, ela consegue ser razoavelmente bem-sucedida até a faculdade, quando, mediante a exigência de uma professora, que de certa forma, para ela, repetia a exigência materna, sucumbe e tem que repetir a disciplina, ficando para trás enquanto sua amiga ‘colada’ passa e se separa dela.

Paralelamente, em seu emprego, estava subordinada a uma chefe perfeccionista, que não admitia erros. Frente às exigências da professora e da chefe, Marina responde do mesmo lugar. E, angustiada e desamparada, cai, despreparada que estava para tantas repetições de cobranças impossíveis de atender. Com isso, ela busca análise.

Freud, no texto Moisés e o monoteísmo ([1939] 1969) afirma que os traumas acontecem antes dos cinco anos de idade:

Impressões da época em que uma criança está começando a falar ressaltam como sendo de particular interesse [...] não se pode determinar com certeza quanto tempo após o nascimento esse período de receptividade começa. As experiências [...] são totalmente esquecidas [...] e incidem dentro do período de amnésia infantil [...]. Elas relacionam-se a impressões de natureza sexual e agressiva, e, indubitavelmente, também a danos precoces ao ego (mortificações narcísicas). [...] os traumas são ou experiências sobre o próprio corpo do indivíduo, ou percepções sensórias, principalmente de algo visto e ouvido, isto é, experiências ou impressões (FREUD, [1939] 1969, p. 92-93).

O fato de Freud articular o trauma com a época em que a criança está começando a falar é de especial interesse, pois acreditamos que, como a linguagem ainda não fez sua entrada, não ficam lembranças no inconsciente, mas impressões, traços. Também nos chama a atenção a definição do trauma como “experiências no corpo do indivíduo” ? claro, nesse momento o que a criança tem é um “ego corporal”, como já nos ensinou o próprio Freud. Então, é o corpo que tomará nota, que registrará o que aconteceu. É o corpo que ficará marcado pelo afeto.

No caso de Marina, tais marcas se fazem na carne, e a angústia que era vivida na pele quando tinha barrada a via da palavra, era de certa forma, o seu modo de manifestar o “não saber o que fazer”, mediante o apelo insistente, repetitivo e traumático do Outro.

Tudo se passaria de certo modo como se o sujeito sentisse a imposição sobre si das significações confusas do discurso do Outro que, à força de se repetir, causaria trauma (VALAS, 1990, p. 83).

E onde estava o sujeito desse corpo que, ‘a-coçado’, pagava por não saber? Ele não estava lá, não sabia de si, não sabia de nada. Angustiado, passava ao ato no corpo, ou passava ao corpo (FONSECA, 2006).

Mas seria viável pensarmos a passagem ao ato nesse caso? Do que se trata na passagem ao ato?

De acordo com Laplanche (1970) esse termo é retirado da clínica psiquiátrica e subordinado em psicanálise ao acting-out. Ele é impulsivo e imotivado aos olhos do sujeito, que rompe com seu comportamento habitual.

Freud em Recordar, repetir e elaborar assinala que há casos nos quais o paciente

[...] não recorda coisa alguma do que esqueceu e reprimiu, mas expressa-o pela atuação (acts it out). Ele o reproduz não como lembrança, mas como ação; repete-o, sem, naturalmente, saber que o está repetindo (FREUD, [1914] 1996, p. 165; itálico do autor, negrito nosso).

Todavia é Lacan quem, no Seminário 10 (1962-1963), vai estabelecer uma diferenciação entre acting out e passagem ao ato, chegando mesmo a colocar esses conceitos como opostos. Para ele o acting out é alguma coisa que se mostra na conduta do sujeito e que tem orientação para o Outro. Já na passagem ao ato o sujeito se apaga e se despenca para fora da cena. Lacan exemplifica isso com o caso da jovem homossexual:

Acting out: é toda a aventura com a dama de reputação duvidosa, que é elevada à função de objeto supremo;

• Passagem ao ato: é a tentativa de suicídio.

Para Teixeira (2004), Lacan vai dizer é que, se existe uma diferenciação nítida entre acting out e passagem ao ato é que, na passagem ao ato, nós vamos encontrar essa relação do deixar cair, essa relação daquilo que sobra, daquilo que é resto; o acting out, contrariamente ao que passa pelo deixar cair, passa pelo sustentar, ele é muito semelhante àquela sedução da histérica que coloca o obsessivo numa cena constante de sedução e, na hora em que ele vai lá, ela diz: ‘não era nada daquilo que eu estava pensando’. Ou seja, o acting out é a sustentação da cena, enquanto a passagem ao ato é a sua evasão.

Birman (2009) assinala que, desde as décadas de 1960 e 1970, o conceito de passagem ao ato passa a ser utilizado em outros campos, entre eles, o das “[...] perturbações psicossomáticas, caracterizadas pelo pensamento operatório e pelo baixo nível de simbolização” no qual o mecanismo da passagem ao ato ocorre no registro corpóreo (BIRMAN, 2009, p. 102).

Outros autores (MIJOLLA, 2005) vão relacioná-lo à ausência de mentalização e também o aproximam da psicossomática pela carência de elaboração psíquica.

Essa pobreza simbólica e inibição intelectual é o que vemos em Marina. Como disse anteriormente, mediante a repetição traumática, faltava-lhe palavras, a moça se embaraçava, se apagava em relação a si mesma, caía da cena traumática e num ato, passava ao corpo. Lacan afirma:

O momento da passagem ao ato é o do embaraço maior do sujeito, com o acréscimo comportamental da emoção como distúrbio do movimento. É então que, do lugar em que se encontra – ou seja, do lugar da cena em que, como sujeito fundamentalmente historizado, só ele pode manter-se em seu status de sujeito –, ele se precipita e despenca fora da cena (LACAN, [1963-1964], 2005, p. 129).

Marina cai da cena, aporta no corpo trazendo, através do FPS, uma reentrada de gozo naquele deveria ser um deserto com os oásis erógenos. Essa reentrada não é veiculada por uma relação erógena com o Outro que, ao cuidar do corpo do bebê, promove a evacuação de gozo, mas por um Outro vociferador de desejo enigmático para o qual o sujeito não tem respostas.

Já se discutiu muito quais são as afecções somáticas que podem ser consideradas FPS, uma manifestação do real no corpo, e quais seriam somatizações, algo da ordem do simbólico. Nessa discussão entram o câncer e as alergias. E alguns autores alertam para se considerar FPS somente as afecções que trazem lesões causadas por indução significante. Como pensar, então, o caso de Marina? Seria um sintoma ou um fenômeno que não segue o percurso de constituição de um sintoma psíquico? Seria tentador e muito mais simples pensar numa somatização – nela há um sujeito, que, através de seu corpo, se dirige a um Outro. Mas aos olhos de Marina, ela era portadora de um corpo estranho em seu corpo, sob a forma de lesões de uma alergia, ou seja, como no FPS, ela não se via implicada com essas manifestações no corpo.

O trauma estaria na gênese dessas afecções (FPS). Ele não chega a ser simbolizado (não sofre negação, recusa ou recalque) e é lançado para fora do psiquismo sem sinais de angústia. O organismo reage a ele como se estivesse exposto à substância tóxica.

c Dougall (2000, p. 68-69) afirma:

Fenômenos somáticos desse tipo são mensagens enviadas pelo psiquismo quando este se sente ameaçado pelo reaparecimento de acontecimentos dolorosos, culpabilizantes ou ameaçadores, cuja representação, porém, é logo lançada para fora do consciente. É como se estivessem assimilados a substâncias tóxicas contra as quais o corpo deve reagir [...] esses fenômenos, ainda que dotados de um sentido psicológico, pertencem a uma ordem pré-simbólica e constituem uma resposta somatopsíquica emitida pelo psiquismo em seu esforço para conjurar as angústias que seriam talvez psicóticas caso chegassem à consciência.

O que vemos em Marina é que suas lesões iam e vinham. Ela se coçava quando não tinha como se livrar da angústia pela via da palavra – seu modo de manifestar o “não saber o que fazer” mediante o apelo do Outro. Onde está o sujeito desse corpo que pagava pelo não saber? Qual era seu desejo? Ele não estava lá.

Assujeitada, desde pequena, Marina submeteu-se anos e anos à manipulação médica e ao desejo do Outro que sempre tinham regras do tipo como “fazer certo”, significante esse que pode ser pensado como indutor de suas lesões. Aliás, podemos dizer que o “fazer errado” e, por isso, ser diferente, desvalorizada e não amada, foi um fantasma que a perseguiu durante anos na produção escolar e marcou sua análise. O contato com a professora reeditou um trauma, numa repetição infinita de angústia e gozo no corpo real e não subjetivado. Marina não era dona de si, vivia “colada no outro”. Quando sozinha, não sabia o que fazer, precisava ser mandada.

Obviamente a afecção somática lhe trazia um sofrimento muito intenso, principalmente depois da entrada na adolescência, na qual a cobrança estética era grande e deixava-a dividida entre o gozo infantil e a mulher vaidosa. Sim, porque, de certa forma, sua “alergia”, da qual ela não tinha muito o que dizer a não ser repetir o que ouvia dos médicos, a mantinha aprisionada num fazer certo (“Você tem tomado os remédios direitinho? Tem usado as pomadas corretamente?”), que não impedia o retorno da doença.

Sabe-se que faz parte das funções da pele ser receptora e tela de projeção de estímulos internos e externos, o que nos faz pensar que não é à toa que esse órgão seja tão propício a funcionar como um tipo de tela de inscrição do psiquismo. Além disso, é impressionante como esta essa proposta da pele, como receptora de estímulos internos e externos, se aproxima daquela de Freud para o aparelho psíquico a partir do modelo da “vesícula viva”.

Com Marina, poderíamos pensar que nesse processo de realização do imaginário, a injunção do Outro, “saber fazer certo”, foi fixada na pele já que o sujeito embaraçado, aturdido, “não sabia o que fazer”? Diríamos que essa pele, tão bombardeada por estímulos, teve no FPS um ponto de basta, como uma tela protetora contra a angústia que invadia o sujeito, mediante o apagamento de seu ser, sempre que era acionada a operação de alienação no Outro. Operação que fascinava pelo brilho do Outro e horrorizava fazendo lembrar a rã “sendo atraída” pela cobra.

Não havendo sujeito para um ato, só lhe restava a ação de se coçar. O eczema, ao mesmo tempo que trazia sofrimento, circunscrevia a angústia que era invisível ao sujeito e permitia um ponto de basta nesse ter que “fazer certo” invasor. E só a partir do momento em que a angústia entrou no cenário da análise é que foi possível pinçar o sujeito, o que lhe permitiu se fortalecer e lutar para, paulatinamente, escapar das garras do Outro – do Outro da mãe, da irmã, da chefe, da professora, mas também do corpo como Outro. Mais senhora de si, ela pode alçar voos. A coceira pode voltar, mas já encontrará alguém com um certo “saber fazer”.

 

Conclusão

É sabido que todo ser vivo falante passa em sua vida pela experiência do trauma, isto é, pela vivência do confronto com a linguagem e com a lei que estrutura o psiquismo. Conceituado por Lacan no Seminário 11 como o inassimilável do real da experiência sexual, ele traz em si um ponto duro, impossível de incorporação significante, uma vez que nem tudo pode ser dito, que nem tudo tem representação psíquica. Por outro lado, esse não dito produz efeitos e afetos, pura angústia, que desorientam o sujeito arrancando-o da cena simbólica ao tirar-lhe as palavras da boca. O que lhe resta é criar, construir um saber possível que, ao mesmo tempo em que bordeje o horror dessa vivência, dando alguma vazão ao afeto aprisionado, aponte para ele.

A fantasia, tida por Lacan como “janela para o real”, por estar entre o real e o simbólico, é uma possibilidade de pôr fim à vivência de ‘não-ser’, de ‘não-ter’ desejo, trazida pelo trauma. Mas existem outras possibilidades menos saudáveis, e o FPS está entre elas. É importante reforçar que, por outro lado, o trauma é estrutural, quer dizer, é o que possibilita a estruturação do sujeito e o surgimento do desejo e que, por mais duro que possa ser para o Infans, só com o trauma da “expulsão do Paraíso” de ser uno com o corpo da mãe, ou seja, só com o corte traumático efetuado pela castração é possível seu nascimento enquanto sujeito do inconsciente. É necessário haver falta para que possa haver desejo. Em outras palavras, é necessário perder a mãe para se ter acesso à linguagem e ao discurso.

É dessa forma que entendo tanto a relação do trauma com a lesão orgânica causada pelo FPS quanto a formulação citada anteriormente de Valas (1990) sobre as significações confusas do discurso do Outro que à força de tanto se repetirem causam trauma. Miller (1999) teoriza nessa mesma linha ao se referir sobre o efeito traumático de acontecimentos não traduzidos pelo simbólico que engendram a lesão. Ou seja, a lesão é induzida por um significante que vem do Outro, por algo no discurso do Outro que é traumático por não ser assimilado pelo simbólico, como o “ter que fazer certo” que tanto atordoou Marina em sua relação com sua mãe. Furo que, ao ser bordejado por significantes em análise, possibilita aos poucos a construção de algum sentido para o sujeito. Na falta dessa construção, podemos pensar a lesão como uma construção não simbólica impressa no corpo, resposta do sujeito emudecido.

Considero que essas inscrições do trauma, que têm como um possível efeito o FPS, são anteriores ao registro inconsciente, como se, também aqui, fosse possível se falar de um “umbigo” da mesma forma como Freud o fez com relação ao sonho – de um ponto duro inassimilável, até mesmo pela ausência de um representante psíquico para ele e pela exclusão do sujeito do inconsciente implícita nessas inscrições. Algo que traz vivências da ordem do necessário, por trazer indícios de invasão de real; experiências cujas dimensões ultrapassam os limites do simbólico, apagando o sujeito, ou, numa linguagem mais freudiana, trazendo o desamparo e a angústia mortífera que tocam o corpo, ponto último de ancoragem antes da dissolução psíquica. Vivências nas quais faltam palavras, e em que, algumas vezes, sobram passagens ao ato ou, como no caso do FPS, passagens ao corpo.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Rua Santa Rita Durão, 321/511 - Funcionários
30140-110 - Belo Horizonte - MG
E-mail: carolinabellico@gmail.com

Recebido em: 20/04/2015
Aprovado em: 04/05/2015

 

 

SOBRE A AUTORA

Maria Carolina Bellico Fonseca
Psicanalista. Mestre em Estudos Psicanalíticos pela Universidade Federal de Minas Gerais. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.

 

 

1Trabalho apresentado na plenária da Jornada do CPMG de 2014.

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