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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.43 Belo Horizonte jul. 2015

 

 

Caruso. Sobre sua vida, obra e linguagem: um breve relato

 

Caruso. About his life, work and language: a brief report

 

 

Marlene Gonçalves Mattes

I Universidade de Caxias do Sul

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir da tradução do alemão do texto: Wiederholen, erinnern, durcharbeiten (Repetir, relembrar, revisitar), de Michael Kolnberger (Salzburg, Áustria, 2008), por mim realizada, trato neste artigo primeiramente da apresentação de alguns dados biográficos de Igor Alexander Caruso (1914-1981), mencionando algumas obras de sua autoria; após, evidencio alguns fatos de linguagem, os quais podem se configurar como auxiliares no processo de interpretação do texto psicanalítico. O objetivo é tanto revisitar en passant a trajetória pessoal e profissional do psicanalista Caruso, quanto indicar brevemente recursos de linguagem específicos como instrumentos através dos quais os psicanalistas procedem às análises dos relatos de seus pacientes.

Palavras-chave: Caruso, Biografia, Recursos de linguagem, Narrativa psicanalítica, Interpretação psicanalítica.


ABSTRACT

Having translated the German text “Wiederholen, erinnern, durcharbeiten” (Repeating, remembering, revisiting), by Michael Kolnberger (Salzburg, Austria, 2008), into Portuguese, in the present article I first present some biographical data about Igor Alexander Caruso (1914-1981), listing some of his most important works. After that, I point out a number of linguistic facts which may assist in the process of interpreting the psychoanalytic text. The aim is both shortly revisiting the personal and professional trajectory of the psychoanalyst Caruso and briefly pointing out specific language resources which may be decisive as instruments for the analyses of patients’ reports.

Keywords: Caruso, Biography, Language resources, Psychoanalytic narrative, Psychoanalytic interpretation.


 

 

Introdução

Em 2008 Michael Kolnberger produziu o filme/documentário em língua alemã sobre Igor A. Caruso Wiederholen, erinnern, durcharbeiten (Repetir, relembrar, revisitar), a partir do qual elaboramos a primeira parte deste estudo, apresentando algumas das informações tratadas no filme. Os depoimentos de profissionais psicanalistas contemporâneos de Caruso e testemunhas de sua trajetória de vida pessoal e profissional são aqui brevemente destacados, mencionando também sua relação com os Círculos Psicanalíticos (Viena, Salzburg), bem como citando algumas das obras do psicanalista. Na segunda parte, tratamos a linguagem em psicanálise na perspectiva interdisciplinar linguística e filosófica, a qual pode colaborar para a análise interpretativa do texto psicanalítico.

Participaram do filme, entre psicólogos, psicanalistas e estudantes, segundo a ordem de apresentação dos depoimentos no filme: Eduard Grünewald, Sepp Schlinder, Raoul Schlinder, Lore Watzka, Rosa Tanco-Duque, Wilhelm Revers, Alfons Reiter, Ernst Falzder, Axel Krefting, Günter Scheberan, Susanne Gastager, Bernhard Handlbauer, Ernst Falzeder, Josef Aigner, Gert Wolkerstorfer-Falzeder, Gerhild Trübswasser, Edith Frank-Rieser, Joachim Sauer, Eric Stöller, Karl Mätzler, Angelika Hubner, Ulrike Hutter.

Em contato recente com a psicanalista Edith Frank-Rieser, de Salzburg, em 04/04/2015, recebi a informação de que o título do filme em alemão, na verdade, deve ser corrigido para Erinnern, Wiederholen, Durcharbeiten, logo Relembrar, repetir, revisitar, o qual é uma alusão ao conceito desenvolvido por Freud, uma técnica psicanalítica. Edith Frank-Rieser é psicóloga e psicanalista, em Innsbruck, atual diretora da Wissenschaftliche Gesellschaft der Arbeitskreise für Psychoanalyse in Österreich (Áustria).

 

Sobre a vida e obra de Caruso

Igor Alexander Caruso nasceu na Rússia, em Tiraspol, no dia 04 de fevereiro de 1914. Faleceu em 1981, em Salzburg, Áustria. Seu pai era militar, descendente de italianos, pertencente à classe nobre. Sua língua materna foi o russo e falava francês coloquial.

Sua infância em Bessarábia deixou-lhe poucas lembranças do período dos 5 aos 12 anos, e dos 4 aos 5 anos viveu muita intranquilidade, “talvez depressão, talvez desarraigamento” – em suas palavras. Mas considerou positiva a sua decorrente abertura para a cultura, para o mundo. Em Bruxelas, em 1926, foi mandado para um internato de padres católicos St. Nikolaus Colledge Bruxelles, tendo sido o único não católico, ortodoxo. Em Louvain, em 1931, tendo ganho uma bolsa de estudos para a Universidade (com status de “Oxford”, em sua opinião), começou seu gosto por Psicologia, tendo sido Piaget o tema da sua dissertação em 1936, cujo título é “Der Begriff der Verantwortung und der imannenten Gerechtigkeit beim Kinde” (O conceito de responsabilidade e de justiça imanente na criança). Em 1938 casou-se com Irina Grauen, com quem teve sua primeira filha Kyra, a qual viveu de 27 de maio de 1941 a 7 de julho do mesmo ano.

Por ocasião da guerra, esteve durante alguns meses em um campo de transferência (centro para traslado) na fronteira com a Bélgica, até provar sua inocência. Em 1942 foi para Viena, onde conheceu Maria Mayer-Gunthof, tendo vindo a casar-se pela segunda vez. Com a segunda filha Alexandra, esteve no México e no Brasil, em 1956 e 1968/1969.1 Caruso apreciava teatro, e a concertos não costumava comparecer, exceto à representação da Paixão segundo Mateus, antes da Páscoa.

Trabalhou em uma clínica infantil em Baumgartnerhöhe, em Steinhof, Viena. Também trabalhou na clínica Maria-Theresien-Schlössel, em Dödling na mesma cidade. Depois, em Innsbruck, onde dirigiu uma estação psiquiátrica. Caruso fez sua formação analítica com Gebsattel. Cultivou contato com a Suíça, com C. G. Jung. Sua formação deu-se em Filosofia crítica e psicologia do desenvolvimento. O foco de seu interesse sofre mais tarde uma mudança

[...] para uma visão filosófico-antropológica sobre o desenvolvimento psicossocial do homem durante a sua formação em psicoterapia e psicanálise durante a Segunda Guerra Mundial 1944/1945 no Instituto Göring, em Viena (FRANK-RIESER, 2010, s. 3).

Embora tivesse gostado das montanhas de Innsbruck, voltou para Viena, ao Círculo Vienense para Psicologia Analítica, o qual havia fundado. Em Viena, dirigiu reuniões com psicanalistas e veio a formar oficialmente o Círculo. Em 1946 obteve a cidadania austríaca (Staatsbürgerschaft).

Caruso sempre rejeitara a versão científica da psicanálise, não queria simplesmente uma ciência livreira, e naturalmente sempre trouxera sua concreta experiência pessoal das análises. Em sua estada na América do Sul, fora confrontado massivamente com problemas sociais – também no nível sociológico. Em Bogotá, ganhou de presente uma foto emoldurada, simples, a qual guardou consigo até o fim da vida. Os encontros com Caruso deixavam transparecer o seu lado humano, uma característica que ele também valorizava nos outros e que talvez por essa razão tenha se criado o seu carisma.

Em Innsbruck, desenvolveram-se jornadas, das quais surgiu o conceito do Instituto para Psicologia em Salzburg. Assim, Caruso introduziu a análise em seu espaço no Instituto, na Universidade de Salzburg. Da programação das aulas, constatou-se que Caruso teria se definido separado de Freud após a guerra. Também havia feito contato com a Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung. Contudo, bem mais tarde, Caruso voltou-se a Freud, às raízes.

O modo como a psicanálise e a psiquiatria eram consideradas na sociedade, na Universidade tanto em Salzburg, quanto em Viena, passou por muitas fases boas e más, seja por princípios, convicções, seja por questões políticas, no sentido de serem ou não efetivamente reconhecidas. Nos seminários de Caruso predominava uma atmosfera produtiva e engajada – Caruso soube exigi-la. Ele não fez sugestões, que se tenham introduzido por ele, mas promoveu as ideias que predominavam. A partir do seminário, surgiu um grande número de projetos sociais.

De modo geral, podem ser citadas iniciativas tanto do círculo de Caruso, quanto de seu trabalho em equipe com outros colegas: Neustart (Recomeço) uma organização para ajuda financeira, ajuda oficial a ex-presidiários; Übergangsheim (Casa de passagem), Serviço de Orientação aos Estudantes – fundado a partir de inquietações de Caruso; Serviço de Orientação Sexual – parece ter sofrido objeção da política definida por rumos conservadores, assim como de determinadas instituições como a Igreja, e ainda de agremiações masculinas.

Na época, iniciativas sociais e culturais estavam separadas, influenciando o conceito de cultura vigente. O trabalho cultural dos psicanalistas não era transmissão de cultura, o que teria sido o espírito da época. Talvez Caruso não tivesse tido influência direta nesse fato, contudo se criara o clima na cidade. Na época, em torno de 1975, surgia a Bioenergia. Novos rumos, portanto, também surgiam na psicologia. No Instituto de Psicologia havia muitos interessados em análise transacional, terapia comportamental, dinâmica de grupo e psicodrama. Caruso, no entanto, dizia que “éramos um Círculo Psicanalítico” e que “deveríamos lecionar psicanálise”.

Quando Caruso morreu, já se encontravam no ápice do desenvolvimento da psicanálise em seus avanços: a própria reforma, o desenvolvimento, a crítica aceitação ao debate ortodoxo e o trilhar por áreas que o próprio Freud nunca mais trabalhara, por exemplo, os problemas do Eu infantil prematuro (datado do complexo de Édipo).

Algumas de suas obras: Bios, Psyque, Person: eine Einführung in die allgemeine Tiefenpsychologie (Vida, psiquê, pessoa: uma introdução à psicologia profunda geral); Theorie des Symbols und der Symbolisierung (Teoria do símbolo e da simbolização); Psychoanalyse und Dialektik (Psicanálise e dialética); Die Trennung der Liebenden: eine Phänomenologie des Todes (A separação dos amantes: uma fenomenologia da morte), Psychoanalyse und Synthese der Existenz (Psicanálise e síntese da existência).

Na obra Die Trennung der Liebenden: eine Phänomenologie des Todes (A separação dos amantes: uma fenomenologia da morte), Caruso denomina os mecanismos da morte: a catástrofe do eu – da individualidade, a agressividade, a indiferença, a fuga para o porvir e a ideologização. Denomina os diversos mecanismos, dos quais o homem lança mão, para poder vencer uma separação. Para Anna Freud são os mecanismos de defesa, para Caruso trata-se de “mecanismo de troca” – precisamente como responsabilização do mundo. Caruso modifica os mecanismos descobertos por Anna Freud em relação à especial separação dos amantes.

Hoje dois movimentos são determinantes: um vem da América do Norte, onde se dá a mais bem-sucedida comercialização da psicanálise – na contramão do conceito tido por Caruso. A outra tendência são os aspectos culturais, as obras crítico-culturais de Freud, as quais hoje são citadas progressivamente em uma direção como Freud as entendeu e por caminhos diversos igualmente infiltrados em nossa cultura. Com o texto Mal-estar na cultura (Das unbehagen in der Kultur), Freud não ficou feliz. Hoje poderíamos entendê-lo conforme as relações atuais. Se considerarmos hoje as três fontes da infelicidade segundo o texto de Freud: o superpoder da natureza, a debilidade do corpo e as inúmeras instituições sociais, temos então uma realidade permanente cultural, que hoje podemos ver exatamente do mesmo modo.

No filme, afirma Frank-Rieser que o que era tão essencial nos anos 1960 e 1970, na verdade, a libertação do lado instintivo do homem, no sentido de uma aceitação em contraposição a esse lado instintivo, o qual se estabeleceu em uma instância cultural foi, em uma determinada escala, uma reabilitação do inconsciente e da libido do homem. Na atualidade predomina uma mudança temática. No entanto, é o que hoje se ocupa com vergonha ou o que hoje é mais denominado como problemas da alma; são outras imposições, outras dificuldades de fato, aquelas que afirmam ideais, ideais consumistas, da comunidade, ideais sociais – todas as forças que influenciam mais no âmbito do narcisismo individual. Considera ainda que o fato de hoje normas ideais predominarem tire do homem, bastante rápido, algo como a própria competência sobre a evolução. Não faz diferença o momento do início, seja já no jardim de infância, seja na escola: tudo deve acontecer mais rápido, melhor, de modo superior e, acima de tudo, deve dar prazer. Desse modo, não há mais curriculum individual algum. Há um curriculum ideal, e, se nós mesmos não damos conta de um ideal, devemos vendê-lo como ideal de alguma maneira, a fim de que possamos permanecer como um concorrente.

Na sequência dos depoimentos, segundo Joachim Sauer, ainda se devem questionar as causas do fato de o homem tornar-se depressivo; questionar o porquê de ser a depressão uma “doença da civilização” ou ainda questionar o fato de se propagarem fenômenos como Burn-out (esgotar-se) ou também Mobbing (assédio moral), ambos conceitos fortemente redutores. Os fenômenos também têm a ver com as novas demandas e com a pressão impostas ao homem e possivelmente tenham a ver também com a falta de capacidade para desenvolver as respectivas estratégias e de interagir com elas.

Finalmente, a sugestão é que se pense sobre que iniciativas devem ser empreendidas, a fim de que se elucide o que de fato se deu com a realidade de Caruso, o psicanalista a quem se deveu a fundação do Círculo Vienense de Psicologia Profunda, em 1947. Seus trabalhos incluíram grandes contribuições à ampliação do diálogo entre diversas tendências de pensamento dentro e fora da psicanálise. Parece que ainda há muito a se pensar, analisar, concluir com base em fatos e evidências. “Um documento é mudo. Pode-se interpretá-lo de várias maneiras”.

 

Sobre a linguagem

Sobre linguagem e psicanálise muito já se escreveu. E se escreve. Por essa razão, procuraremos explorar aqui somente uma possibilidade de manifestação da linguagem/língua: a narrativa, pois é através dela, produto do dito pelo paciente, que o analista deve pautar sua interpretação da(s) vivência(s) de quem se submete à análise do seu próprio eu.

Sob o ponto de vista da linguística, especificamente das teorias do texto de modo geral, bem como a partir de ideias específicas do filósofo Paul Ricoeur é que consideraremos o ato de narrar, os recursos de que dispõe o seu autor (o paciente) para ato criativo do texto construído, as possibilidades de sua recepção e necessária interpretação (pelo analista).

Sempre estamos expressando algo, seja através de gestos, olhares, movimentos; seja pela intensidade com que os manifestamos, seja pela falta de intensidade – estamos assim nos dando a conhecer pela linguagem em seu sentido amplo. Em sentido estrito, a linguagem falada é a expressão da mensagem pela linguagem articulada, a linguagem verbal. Ao falarmos, produzimos uma sequência de sons, decodificáveis pelo nosso interlocutor, concretizados em uma língua particular, específica. Pode ser a língua materna de ambos, pode ser uma língua estrangeira para um ou para outro, até mesmo para ambos. Essa riqueza de possibilidades de expressão é que permite ao falante manifestar o que se passa no seu consciente, e é o que o psicanalista poderá perscrutar no/do mundo subjetivo inconsciente do seu interlocutor, do seu paciente em análise. A forma que se transforma em instrumento de análise é aqui a linguagem verbal, articulada, constituída em um relato, em uma narrativa. As possibilidades de entendimento do eu narrativo centram-se não somente na Linguística, mas também – por exemplo, na Filosofia.

Lemos sobre a narrativa em Ricoeur:

Sabemos de maneira intuitiva que a vida de uma pessoa torna-se compreensível quando nos inteiramos das histórias contadas a seu respeito. E espontaneamente também, aplicamos configurações narrativas a elas (drama, romance, comedia, etc.) (RICOEUR apud LEVY, s.d., p. 54).

As histórias contadas, acima referidas, enfatizam o poder da narrativa para o conhecimento do outro, principalmente sendo o próprio outro o autor do seu texto. Ainda no estudo em questão, quanto à noção de identidade narrativa:

[...] reconhecimento da capacidade que uma pessoa tem de alcançar uma compreensão de si mais autêntica e verdadeira, uma identidade que não se reduz à ideia de ego como autodesconhecimento imaginário e ilusão narcisística. Essa convicção só encontra uma determinação mais completa quando, na conclusão de sua última obra de fôlego, Ricoeur vincula a possível realização desse self (sic) mais verdadeiro à necessidade da passagem pela mediação da função narrativa (LEVY, s.d., p. 52).

Levy segue afirmando que a narração de si representa para Ricoeur

[...] a via privilegiada para o exame reflexivo da vida e, nessa medida, seu exercício abre caminho para uma identidade que é superação da ilusão e do autoengano (RICOEUR apud LEVY, s.d., p. 52).

Na condição de falante de uma língua específica, conhecedor das suas regras, o falante constrói o seu texto, fruto da sua intenção em dizer, fazendo uso dos inúmeros recursos linguísticos de que dispõe, conforme queira ou não, conforme tenha ou não a intenção de neles projetar a sua verdade. Logo, a sua intenção é que irá definir sua escolha. Caberá ao analista decifrar pelo código do paciente o que ele deseja (ou não) que dele se conheça. Os caminhos das teorias do texto, dos estudos em linguística de texto (COSERIU, 1981; MARCUSCHI, 2008; BEAUGRANDE; DRESSLER 1997); linguagem e discurso (CHARAUDEAU, 2009); pensamento e linguagem (VIGOTSKY, 2008) e outras correntes de estudos linguísticos (em PAVEAU; SARFATI, 2006) e interdisciplinares, por exemplo, podem auxiliar o analista do texto a se munir dos recursos para um conhecimento elucidativo das tramas da construção dos textos narrativos, envolvendo a realidade do falante/autor/paciente; as possíveis condições do receptor/analista; o código empregado (língua) e a mensagem subjacente ao texto concreto. Devido à exiguidade de espaço não poderemos aqui desenvolver cada um dos aspectos mencionados.

Apropriando-se da narrativa, o analista passa a desenvolver um processo interpretativo do dito. Será necessário “decifrar” o texto em um envolvimento tal com a trama, que lhe permita construir a compreensão da realidade viva na subjetividade de seu paciente. No entendimento de Ricoeur (apud LEVY, p. 55):

O conhecimento de si é uma interpretação, a interpretação de si, por sua vez, encontra na narrativa, dentre outros signos e símbolos, uma mediação privilegiada, essa mediação narrativa abarca em si tanto a história como a ficção, fazendo da história de uma vida, uma história ficcional, ou se preferirmos, uma ficção histórica, comparável àquelas biografias dos grandes homens nas quais encontramos uma mistura de história e ficção (grifo nosso).

Na perspectiva da linguagem literária:

O mundo da linguagem literária se refigura através de suas múltiplas interpretações em torno dos sujeitos ficcionais. Então, o que temos na fronteira entre ficção e realidade? Dirão os teóricos pós-estruturalistas: a mistura das múltiplas perspectivas de sujeitos: os deslizes dialógicos entre pessoa e personagem. Segundo Cândido (2007, 26) ‘as pessoas (históricas) ao se tornarem ponto zero de orientação, ou ao serem focalizadas pelo narrador onisciente, passam a ser personagens; deixam de ser objetos e transformam-se em sujeitos, seres que sabem dizer ‘eu’ (CARNEIRO, 2009, grifo nosso).

No relato, na narrativa do paciente, na qual ele é autor (e pode ser personagem, como na perspectiva acima) a relação ficção/realidade parece poder ser entendida como a relação com o mundo. Não bastaria então somente o critério conhecimento de mundo para se auferir o caráter de texto real? A relação com o mundo, então, sob o ponto de vista da psicanálise, é manifestada por Caruso, como se lê em (FRANK-RIESER, 2010):

Cada relação – com as coisas e objetos vivos – cria uma nova realidade, a qual é um símbolo rico em significado para ambas as partes relacionadas na sua realidade individual. Essa nova – terceira – realidade ganha plena eficácia para ambas as partes da interação como ‘realismo simbólico’ e inicia novo ciclo do desenvolvimento. [...] Caruso acentua o significado do símbolo e da simbolização como uma relação com o mundo e no mundo e entendia consequentemente também teorias psicanalíticas como uma simbolização de uma referência ao mundo em constante transformação.

Parece, portanto, que a importância de se re-conhecerem as etapas da construção do texto, as escolhas linguísticas do falante (tanto em relação a léxico, construções sintáticas, níveis de linguagem, entre tantos outros fatores), a clareza voluntária (ou involuntária) de exposição dos fatos/ideias, os posicionamentos claramente definidos (ou indefinidos), é que, em conjunto, oferecerá ao analista o poder de atingir (ou não) o grau de verdade do dito, a distinção entre o real e a fantasia, entre o querer (ou não querer) e o poder (ou não poder) dizer. A língua pode tanto se atualizar no emprego de regras estritas, quanto no uso em respeito a ela (ou não). A vontade do falante/paciente em se tornar fiel a sua intenção é que é determinante de uma ou outra possibilidade de configuração do texto.

Portanto, as opções para construção do texto pelo falante/paciente poderão facilmente demonstrar o seu estado clínico, quanto poderão facilmente exigir análise bem mais cuidada do analista, na medida em que o uso adequado (ou inadequado) dos conhecimentos de língua, suficientes (ou insuficientes) podem resultar em um texto coerente (ou incoerente) tanto no nível local, superficial do texto, quanto no nível global, no nível das conexões conceituais cognitivas. Este último nível, permitindo o reconhecimento dos pressupostos, somado a fatores pragmáticos é que poderá permitir ao interlocutor/analista fazer as inferências necessárias ao entendimento do status quo do seu paciente.

Sendo, pois, a Psicanálise uma “forma de terapia psicodinâmica e método de psicologia pessoal elaborada por Sigmund Freud, apelidada de “cura pela fala” por um de seus pacientes” (ROHMAN, 2000, p. 329), é ela indubitavelmente, a língua, o elo entre paciente e analista. Caberá ao analista considerar o fato na sua verdadeira dimensão, pois sendo a língua um organismo vivo, como dar conta de também abarcar em uma análise o uso que dela faz seu paciente também incluindo o novo na estrutura e funcionamento da língua? Esse caráter de atualidade traz várias implicações à análise do texto (no caso pelo canal oral), desde pronúncia, seleção de léxico até, por exemplo, novas construções sintáticas, mudanças de significado de palavras e expressões, neologismos na língua e ainda o nível de escolaridade do paciente e finalmente as influências de alguma(s) outra(s) língua(s) que um paciente em particular possa apresentar.

As possibilidades de recepção do texto e a necessária interpretação pelo analista exigem que o profissional dispenda um esforço para reconhecer o sentido inconsciente do dito, através da decifração da simbologia nele subjacente. Em relação à língua empregada, as marcas da subjetividade pela compreensão da escolha do léxico, a identificação de pressupostos e o estabelecimento de inferências serão decisivos para o sucesso da análise bem sucedida (ratificando: na perspectiva da língua), para a interpretação do que é dito, para somente então se proceder à análise.

Contudo, deve-se ainda considerar que, dependendo do diagnóstico do paciente, segundo a natureza de possíveis problemas ou doenças, ele poderá ter a sua linguagem afetada em função da fisiologia ou funcionamento de órgãos. Até aqui pautamos nossas considerações acerca do falante sem prejuízo parcial da capacidade de domínio da língua na qual se expressa, pois, de outro modo, a patologia no funcionamento da linguagem acarreta prejuízos nas práticas discursivas. Sabe-se, por exemplo, que pacientes afásicos têm prejuízo em construções linguísticas sob o ponto de vista da sintaxe; e nos processos de significação (verbal e não verbal) (MORATO et al., 2002, p. 59).

Pacientes com o mal de Alzheimer sofrem “perda de funções cognitivas (memória, orientação, atenção e linguagem), causada pela morte de células cerebrais”. Nem todas as áreas cerebrais, no entanto, são atingidas, sendo frequentemente afetadas “as áreas de ‘células nervosas (neurônios) responsáveis pela memória e pelas funções executivas que envolvem’”.

Pacientes com alto nível de instrução poderão, justamente pela linguagem, “disfarçar” problemas latentes; desequilíbrios emocionais permitirão, em certa medida, confundir o caráter objetividade/subjetividade – entre tantas outras situações ímpares.

Concluindo, pensar em interpretar considera que:

[...] a identidade em questão no conceito de identidade narrativa é conhecimento entendido como interpretação; Ricoeur expressa-se com muita clareza, a esse respeito, na seguinte passagem: ‘A afirmação de ser, o desejo e o esforço de existir que me constitui, encontra na interpretação dos signos o caminho longo da tomada de consciência’. Ou ainda: ‘Compreender o mundo dos signos é o meio de se compreender; o universo simbólico é o meio da autoexplicação; com efeito, não haveria mais problemas de sentido se os signos não fossem a mediação, o médium graças ao qual um existente humano busca se situar, se projetar e se compreender’. Essa é, pois, a via longa, ‘o cogito mediatizado por todo o universo dos signos (MORATO et al., 2002, p. 54, grifos nossos).

Logo, somos o que somos e o projetamos na linguagem intencionalmente – ou não. Nossa subjetividade, nosso eu pode ser, propositadamente – ou não – denunciado pela própria linguagem. Vimos que, a partir das escolhas linguísticas do autor, a análise do texto pode evidenciar sua subjetividade, a qual se dá a conhecer no processo de leitura. As marcas linguísticas detectáveis no texto podem revelar a verdadeira intenção do autor no texto produzido. Logo, a língua/linguagem é decisiva.

 

Referências

CARNEIRO, J. V. Por uma redefinição da narrativa à luz da narratologia contemporânea. 2009. 237 f. Tese (Doutorado) - Departamento de Letras Vernáculas, Programa de Pós-Graduação em Linguística, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza (CE), 2009.         [ Links ]

FRANK-RIESER, E. Über ‘Symbolisierung’ als intersubjektive und intrapsychische Dynamik: Igor A. Caruso’s Historischer Ansatz einer Intersubjektivtät der Psychoanalyse. Symposium ‘Intersubjective Traditions and the History of the IFPS’ no Forum of Psychoanalysis, The Intrapsychic and the Intersubjective in Contemporary Psychoanalysis’ (Simpósio Tradições subjetivas e a história do IFPS). Atenas: 20-23 outubro, 2010. Cópia.         [ Links ]

LEVY, D. A identidade narrativa. Mente, cérebro & filosofia. Fundamentos para a compreensão humana da psique, São Paulo, n. 11, p. 50-57, s.d.         [ Links ]

MORATO, E. M. et al. (Org.). Sobre as afasias e os afásicos. Subsídios teóricos e práticos elaborados pelo Centro de Convivência de Afásicos. São Paulo: Universidade de Campinas, 2002.         [ Links ]

ROHMAN, C. O livro das ideias. Um dicionário de teorias, conceitos, crenças e pensadores, que formam nossa visão de mundo. Tradução de Jussara Simões. Rio de Janeiro: Campus, 2000.         [ Links ]

 

Bibliografia

BEAUGRANDE, R.; DRESSLER, W. U. Introducción a la linguística del texto. Tradução da editora. Barcelona: Ariel, 1997.

CHARAUDEAU, P. Linguagem e discurso. Modos de organização. Tradução coordenada por Correa & Machado. São Paulo: Contexto, 2009.

COSERIU, E. Textlinguistik. Eine Einführung. Tübingen: Narr, 1981.

MARCUSCHI, L. A. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola, 2008.

MENDES, E. R. P. A presença de Igor Caruso no Brasil. Estudos de Psicanálise. Belo Horizonte, n. 39, p. 47-51, jul. 2013. Publicação do Círculo Brasileiro de Psicanálise,

PAVEAU, M.; SARFARI, G. As grandes teorias da linguística. Da gramática comparada à pragmática. Tradução Gregolin et al. São Paulo: Claraluz, 2006.

VIGOTSKY, L. S. Pensamento e linguagem. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

 

 

Endereço para correspondência
Rua José do Patrocínio, 1100/506 - Cidade Baixa
90050-004 - Porto Alegre - RS
E-mail: marlenemattes@yahoo.de

Recebido em: 29/04/2015
Aprovado em: 10/05/2015

 

 

SOBRE A AUTORA

Marlene Gonçalves Mattes
Pós-doutora em linguística aplicada pela Ludwig-Maximilians-Universität München, Alemanha.
Doutora em Linguística Geral pela Eberhard-Karls-Universität Tübingen, Alemanha.
Mestre em linguística aplicada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Licenciada em português-alemão e bacharel em letras tradutor-intérprete alemão-francês (PUCRS).
Pesquisadora em linguística aplicada, linguística de texto, aquisição da linguagem, ensino de língua materna e estrangeira. Coordenadora do Grupo de Estudos em Linguística Aplicada (GESLA/UFC), cadastrado no CNPq. Integrante/membro do grupo de Estudos e de Pesquisas em Lexicografia e Metalexicografia (UFRGS/CNPq). Professora colaboradora no Programa Associado de Pós-Graduação Doutorado em Letras da Universidade de Caxias do Sul (UCS) e UniRitter (RS).
Orientadora do mestrado e doutorado.

 

 

1 Sobre a viagem ao Brasil leia-se MENDES, 2013.

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