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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.43 Belo Horizonte jul. 2015

 

 

Desamparo e pulsão de morte: em busca do perfume ideal

 

Helplessness and Death Instict: in search of the ideal Perfume

 

 

Natalia Gonçalves Galucio Sedeu

I Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora analisa o perfil psicanalítico de Jean-Baptiste Grenouille, personagem principal do filme Perfume: a história de um assassino, ressaltando o significado psíquico de sua busca pelo perfume ideal.

Palavras-chave: Desamparo, Privação, Voracidade, Posição esquizoparanoide, Refúgio psíquico.


ABSTRACT

The author analyzes the psychoanalytic profile of Jean-Baptiste Grenouille, the main character of the film Perfume: the Story of a Murderer, emphasizing the psychological meaning of his search for the ideal scent.

Keywords: Helplessness, Deprivation, Voracity, Paranoid-schizoid position, Psychic refuge.


 

 

O filme Perfume: a história de um assassino (2006), do diretor Tom Tykwer, é uma adaptação do livro O perfume, de Patrick Süskind. Neste artigo, iremos analisar o personagem Jean-Baptiste Grenouille, usando como fontes tanto o filme quanto, principalmente, o livro.

Jean-Baptiste foi abandonado por sua mãe logo após nascer, numa rua suja e fedorenta de Paris no século XVIII. Em péssimas condições de vida, sua mãe vendia peixe para sobreviver. Ela já estivera várias vezes grávida, dava à luz a seus filhos de qualquer modo na rua, em condições sub-humanas, jogando-os fora junto com os restos de peixe. Dos seus filhos, apenas Jean-Baptiste sobreviveu.

Considerando Jean-Baptiste como uma criança que surgisse em nosso consultório, podemos, a partir dos dados fornecidos pelo livro, fazer uma anamnese do caso. Sua mãe é descrita no livro como

[...] uma mulher ainda jovem, nos meados dos vinte anos, ainda bonita, quase todos os dentes na boca, um resto de cabelo e que, além de gota e de sífilis e de uma leve tísica, não tinha nenhuma doença grave; esperava ainda viver muito tempo, talvez uns cinco ou dez anos, e até talvez um dia casar e ter de verdade filhos, como a honrada esposa de um artesão enviuvado ou coisa parecida (SÜSKIND, 1995, p. 7).

Jean-Baptiste era o seu quinto filho. O parto ocorreu do seguinte modo: “[...] cortou com a faca de peixe o cordão umbilical dessa coisa recém-nascida” (SÜSKIND, 1995, p. 7). Sua mãe o tratava como uma “coisa”, não como alguém que merecesse receber algum valor e carinho. No entanto, ele não tem o mesmo destino dos recém-nascidos anteriores: ele chora e é achado por outras pessoas, sendo entregue a uma ama de leite. A mãe é presa, condenada e decapitada. A cena descrita demonstra que Jean-Baptiste sofreu, no início de sua vida, um total desamparo biológico e psíquico.

No texto O futuro de uma ilusão (1927), Freud escreve que

[...] como já sabemos, a impressão terrificante de desamparo na infância despertou a necessidade de proteção – de proteção através do amor [...]; o reconhecimento de que esse desamparo perdura através de toda a vida [...] (FREUD, [1927] 1974, p. 43).

Essa ausência de proteção também é percebida em outro momento: a criança já havia trocado de ama de leite por três vezes, nenhuma queria ficar com ele, pois

[...] dizia-se que era faminta demais, mamava por duas, tirava o leite das outras crianças amamentadas e, com isso, o ganha-pão das amas de leite (SÜSKIND, 1995, p. 8).

Jean-Baptiste era muito voraz, e isso devia assustar as amas de leite. Nessa época, ele não era batizado e também não tinha nome – entendemos que ele era, para essas amas de leite, uma “coisa”, que aparentemente não existia, mas ansiava vorazmente por poder existir.

Apesar das situações adversas por que passou, ele tinha muita pulsão de vida e queria sobreviver. Ele foi entregue a um convento, que o batizou com o nome de Jean-Baptiste. Foi criado à custa do convento, que o entregou a outra ama de leite. Essa ama procura o padre depois e devolve a criança, queixando-se:

Porque encheu a pança à minha custa. Porque me sugou toda, me esvaziou até os ossos. Mas agora acabou (SÜSKIND, 1995, p. 10). [...] Eu só sei uma coisa: que fico arrepiada de horror desse bebê, porque ele não cheira como crianças devem cheirar (SÜSKIND, 1995, p. 13).

O bebê acaba sendo entregue a uma senhora que “[...] desde que lhe pagassem, [...] aceitava crianças de qualquer idade e de qualquer espécie” (SÜSKIND, 1995, p. 20). No filme, os outros garotos tentam matá-lo ainda bebê, mas a senhora que toma conta deles acaba por salvá-lo.

Seguindo a linha de fazer uma anamnese, o livro ainda fornece outros dados: Jean-Baptiste começou a andar aos três anos; sua primeira palavra, com quatro anos, foi “peixe” e, depois de ter uma intensa vivência de cheiro, falou “madeira” – assim aprendeu a falar e descobriu um “alfabeto dos odores”. Jean-Baptiste é descrito no livro como

[...] um carrapato, encapsulado em si mesmo, à espera de melhores tempos. Ao mundo não dava senão as suas fezes; nenhum sorriso, nenhum grito, nenhum brilho dos olhos, nem sequer um cheiro próprio (SÜSKIND, 1995, p. 24).

Era como se sua alma não precisasse de nada:

Calor humano, dedicação, delicadeza, amor – ou seja lá como se chamam todas as coisas que dizem que uma criança precisa – eram completamente dispensáveis para o menino Grenouille. Ou então, assim nos parece, ele as tinha tornado dispensáveis simplesmente para poder sobreviver (SÜSKIND, 1995, p. 22-23).

A partir do exposto acima, poderíamos estabelecer a seguinte hipótese diagnóstica: Jean-Baptiste se mostra resistente, destemido, autossuficiente, isolado e fechado, provocando horror nos garotos com quem morava, que não queriam tocá-lo, fugiam dele e evitavam todo e qualquer contato. A única fonte de contato que Jean-Baptiste queria com o mundo era através do neriz e do olfato: queria conhecer o mundo todo através dos odores, agradáveis ou não. Ao perceber que ele mesmo não tinha cheiro, queria ter um cheiro para se sentir vivo e amado. Ele se apresenta persistente, autossuficiente, sem emotividade, mas essa emotividade surgirá posteriormente na busca pelo cheiro da moça que o impressionara e que tocou sua alma profundamente.

Imaginando que somos o analista de Jean-Baptiste, poderíamos pensar em trabalhar com ele as seguintes questões: desamparo, privação, voracidade, posição esquizoparanoide, refúgio psíquico.

No momento em que Jean-Baptiste está para ser executado diante de uma multidão faminta por sua morte, ele exala um pouco do perfume que criou para poder se sentir amado. No livro, nesse momento, ele faz a seguinte reflexão:

Ele, Jean-Baptiste Grenouille – nascido inodoro no lugar mais fedorento do mundo, achado no lixo, na merda e na podridão, criado sem amor, vivendo sem calor da alma humana, vivendo tão-somente da teimosia e da força do nojo, pequeno, corcunda, coxo, feio, rejeitado, um monstrengo tanto por dentro quanto por fora –, conseguira tornar-se amado pelo mundo. Amado! Venerado! Adorado! (SÜSKIND, 1995, p. 242).

É claramente perceptível o tamanho do desamparo que ele sentiu e que continuava sentindo.

No texto Inibições, sintomas e ansiedade (1926), Freud afirma que “[...] o perigo do desamparo psíquico é apropriado ao perigo quando o ego do indivíduo é imaturo” (FREUD, [1926] 1976, p. 166). Em outro trecho, diz que “a ansiedade é um produto do desamparo mental da criança, o qual é um símile natural de seu desamparo biológico” (FREUD, [1926] 1976, p. 162).

Freud correlaciona desamparo biológico e psicológico, pois para ele a mãe originalmente satisfaz

[...] todas as necessidades do feto através do aparelho do próprio corpo dela, assim agora, após o nascimento daquele, ela continua a fazê-lo, embora parcialmente por outros meios (FREUD, [1926] 1976, p. 162).

No Vocabulário da psicanálise, de Laplanche e Pontalis, o estado de desamparo é definido como

[...] estado do lactente que, dependendo inteiramente do outrem para a satisfação das suas necessidades (sede, fome), se revela impotente para realizar a ação específica adequada para pôr fim à tensão interna (LAPLANCHE; PONTALIS, 1988, p. 156).

Freud marca a perda do objeto como a condição que determina a situação de desamparo, a situação traumática.

No livro, quando Jean-Baptiste sente pela primeira vez o cheiro que dava sossego ao seu coração, fica tentando descobrir de onde vem o aroma e “[...] sobrevinha-lhe um horrível medo de que o teria perdido para sempre” (SÜSKIND, 1995, p. 41) – da mesma forma que ele deve ter sentido que perdeu seu primeiro objeto de amor, sua mãe, que o abandonara.

Ele sentia seu coração pulando e

[...] sabia que não era o esforço da correria que o fazia pular, mas o seu excitado desamparo diante da presença desse aroma (SÜSKIND, 1995, p. 42).

Como foi descrito anteriormente, ele foi criado sem amor, sem valor da alma humana, foi criado sem um mínimo cuidado, atenção e proteção, vivendo em um estado de privação.

Segundo o Dicionário crítico de psicanálise, de Charles Rycroft, privação é a “[...] experiência que consiste em receber uma quantidade insuficiente de um bem necessário”. Teorias como a de Winnicott “[...] podem definir a privação em função do amor recebido e não recebido” (RYCROFT, 1975, p. 186).

Segundo Bowlby (1995), a privação materna é a situação na qual uma criança não encontra uma relação calorosa, íntima e contínua com a mãe natural ou substituta. Essa privação materna pode ser percebida quando Jean-Baptiste, após ter assassinado a primeira moça, fica “sugando” todo o seu cheiro. Esse momento é descrito no livro da seguinte maneira:

Até então, ele não havia experimentado em sua vida o que era felicidade. No máximo conhecera estados extremamente raros de reprimido contentamento. Mas agora tremia de felicidade [...]. Era como se nascesse pela segunda vez, não, não pela segunda, pela primeira vez, pois até então tinha existido como um animal, num conhecimento muitíssimo nebuloso de si mesmo (SÜSKIND, 1995, p. 46).

A apresentação desse momento de felicidade nos mostra que ele não possuía nenhum registro de situação em que se sentisse feliz, cuidado e acolhido. Podemos dizer que ele não possuía nenhum objeto bom introjetado, que lhe tivesse proporcionado situações prazerosas e agradáveis.

No livro, ele foi cuidado por várias amas, mães substitutas – mas como ele as sugava ferozmente, elas o rejeitaram completamente. Essa sua voracidade seria outro ponto a ser trabalhado com ele numa análise.

Melanie Klein define a voracidade como

[...] uma ânsia impetuosa e insaciável, que excede aquilo que o sujeito necessita e o que o objeto é capaz e está disposto a dar (KLEIN, [1957] 1985, p. 212).

Surgida na primeira infância, quando o bebê busca uma gratificação ilimitada dos seus desejos, ela persiste, em graus diversos, no desenvolvimento posterior da criança, aparecendo como característica marcante – normalmente vinculada à agressividade – em muitos casos atendidos na clínica infantil.

O objetivo da voracidade é a introjeção destrutiva: sugar, devorar o que o seio ou a mãe tem de bom, buscando “[...] esvaziar o corpo da mãe de todas as coisas boas e desejáveis” (KLEIN, [1952] 1985, p. 93) que ele imagina que a mãe possua e não tenha desejado dar a ele. O bebê se sente privado de algo.

O Dicionário do pensamento kleiniano, de Hinshelwood, descreve a voracidade da seguinte forma:

A voracidade baseia-se em uma forma de introjeção executada com raiva. A violência da incorporação oral, envolvendo o morder, conduz, na fantasia, à destruição do objeto. O estado final fica sendo de que não houve satisfação oral, de vez que o objeto introjetado não tem valor, ou, pior que isso, transformou-se em um perseguidor retaliatório, em reação ao ataque sádico oral efetuado no processo de incorporação (HINSHELWOOD, 1992, p. 484).

Para Melanie Klein uma alteração no equilíbrio entre pulsão de vida e pulsão de morte, devida à privação proveniente de fontes internas ou externas, reforça os impulsos agressivos e dá origem à voracidade:

“[...] qualquer intensificação da voracidade reforça sentimentos de frustração, os quais por sua vez reforçam os impulsos agressivos” (KLEIN, [1952] 1985, p. 87).

Segundo Klein, o bebê demonstra ter uma grande voracidade por amor e atenção, uma insegurança na sua capacidade de amar e uma ansiedade por ter sido roubado e privado. E principalmente sente não ser bom o bastante para ser amado. Esse bebê descrito por Melanie Klein nos faz lembrar do personagem Jean-Baptiste, que queria apenas ser amado e adorado, mas só recebia do ambiente rejeição e nojo, sentindo-se um “monstrengo” por dentro e por fora. Quando ele recebia algo do ambiente, queria sugar e devorar tudo, a ponto de, na sua busca pelo aroma que lhe inspirasse amor, “devorar” e destruir pessoas sem sentir o menor remorso.

Todas essas características, aliadas à ansiedade persecutória sentida por Jean-Baptiste, nos levam a uma discussão sobre a posição esquizoparanoide definida por Melanie Klein. De acordo com o Dicionário do pensamento kleiniano, de Hinshelwood, “[...] uma posição é uma constelação de ansiedades, defesas, relações objetais e impulsos” (HINSHELWOOD, 1992, p. 421).

Para Klein,

[...] esses agrupamentos de ansiedades e defesas, embora surjam primeiramente durante os estágios mais iniciais, não se restringem a eles mas ocorrem e recorrem durante os primeiros anos de infância e, em certas circunstâncias, posteriormente na vida (KLEIN, [1952] 1985, p. 118, nota 4).

Segundo a autora, a posição esquizoparanoide se inicia no nascimento e vai até o 4º mês de vida do bebê. A mãe existe para ele como um objeto parcial, cindido em “seio bom” gratificador (idealizado) e “seio mau” frustrador (persecutório).

O impulso destrutivo do bebê (fundado na pulsão de morte) é projetado no “seio mau”, expressando-se em fantasias de ataques sádico-orais ao seio materno, o que cria o protótipo de uma relação hostil de objeto. Esses impulsos sádico-orais geram ansiedades persecutórias (medo de aniquilamento por uma força interna destrutiva): o bebê odeia e teme o ódio do objeto “mau”. O bebê se identifica e internaliza o objeto “mau”, que se torna objeto interno “mau”, cindido do objeto interno “bom”; assim, a cisão do objeto é acompanhada de cisão do ego (em “bom” e “mau”).

Com o fortalecimento dos objetos internos “bons” (a partir de boas experiências que permitem uma maior confiança no ambiente), o bebê consegue integrar o ego e sintetizar os objetos, que passam a ser vistos como objetos totais – o bebê passa, então, à posição depressiva.

A percepção da sua ambivalência (amor e ódio pelo mesmo objeto) gera sentimentos de culpa e a busca de reparação dos objetos (tanto interiorizados, como externos) pelos ataques sádicos que sofreram anteriormente.

No caso de Jean-Baptiste, ele apresentava uma cisão em objetos parciais “bons” e “maus”, não desejando necessariamente matar as moças, mas tão somente capturar os seus cheiros. Seu olfato muito apurado sente o cheiro de todas as coisas – ele usa esse dom como uma forma de ser e estar no mundo.

No entanto, esse excesso de aromas faz com que qualquer cheiro novo seja percebido como algo inesperado e hostil. Jean-Baptiste mantém um instinto reserva atento a tudo o que viesse de fora e pudesse penetrá-lo.

Esse mundo novo, esse ambiente é percebido como hostil por não lhe ter dado amor e carinho – então, ele está impregnado de objetos “maus” que vêm desse mundo e dele próprio, de sua pulsão de morte. A mãe que o abandonou, bem como as amas de leite, foram percebidas como “seio mau” frustrador, objetos persecutórios. Ele internalizou o objeto “mau”, que se tornou objeto interno “mau”, cindido do objeto interno “bom”.

No caso dele, não sei se é possível falar de objeto interno ou externo “bom”: existiram pessoas que até cuidaram dele, como o padre (no livro) e o perfumista Baldini (no livro e no filme); este último, no entanto, queria apenas aproveitar-se do talento dele para ficar rico.

Devido a sua situação de desamparo e total privação, entendemos que Jean-Baptiste não pôde passar da posição esquizoparanoide para a depressiva, pois não conseguiu introjetar nenhum objeto “bom” – apenas objetos “maus”. Seu mundo interno está habitado: por ressentimento e ódio, resultado da privação e frustração que sofreu; por voracidade e inveja; e pela ansiedade persecutória.

Tudo isso dificulta o desenvolvimento da sua capacidade de encontrar um objeto “bom”, pois está repleto de objetos “maus” internos. Por detrás de tudo, está a pulsão de morte, mais forte que a pulsão de vida.

Quando Jean-Baptiste se refugia na gruta, ele quer penetrar no seu “império interior”, no seu mundo interno repleto de fantasias. Relembra cada situação desagradável que passou, sentindo nojo, ira, vingança e um ódio reprimido. Estando nesse mundo, ele sente que “[...] era, de fato, gostoso demais esse eruptivo ato de extinção de todos os cheiros detestáveis” (SÜSKIND, 1995, p. 127).

Ainda mais, no final do filme (e do livro), quando Jean-Baptiste sai andando em direção a Paris, ele percebeu que

[...] o que ele sempre havia desejado, ou seja, que as outras pessoas o amassem, tornava-se, no instante do seu êxito, insuportável, pois ele mesmo não as amava, mas as odiava. E de repente soube que jamais encontraria satisfação no amor, mas tão-somente no ódio, no odiar e no ser odiado (SÜSKIND, 1995, p. 243).

Ele percebeu que o seu único sentimento verdadeiro era o ódio: seu mundo interno estava repleto de pulsão de morte. Como é descrito no livro, “[...] o que ambicionava era a fragrância de certas pessoas: daquelas, extremamente raras, que inspiram amor. Essas eram as suas vítimas” (SÜSKIND, 1995, p. 191). Por estar na posição esquizoparanoide, Jean-Baptiste não sentia culpa por ter que matá-las, pois não as via como objetos totais, apenas como objetos parciais: eram somente fragrâncias e cheiros.

Esse mundo externo hostil, que o rejeitara, fez com que ele quisesse se distanciar dos seres humanos, ficar longe das pessoas, morando dentro de uma gruta, sozinho por um bom tempo.

Jean-Baptiste

[...] jamais se sentira tão seguro na vida – nem mesmo na barriga de sua mãe. Lá fora o mundo poderia pegar fogo, aqui ele não notaria nada. Silenciosamente, começou a chorar (SÜSKIND, 1995, p. 125).

Nesse momento ele conseguiu sentir alguma emoção. Só conseguiu chorar por sentir finalmente um lugar seguro, protegido das hostilidades e agressões do ambiente – situação que nos remete ao conceito de “refúgio psíquico” criado por John Steiner.

Steiner observou que alguns de seus pacientes apresentavam na terapia um retraimento temporário para uma área onde conseguiam alcançar uma relativa proteção. Observou também nesses pacientes uma falta de contato com o analista, porque o contato com o analista ou com qualquer pessoa era sentido por eles como uma ameaça.

Nesses casos, os pacientes “[...] se retraem por detrás de um poderoso sistema de defesas, que funciona como uma armadura protetora ou esconderijo” (STEINER, 1997, p. 17).

Essa “armadura protetora” ou “esconderijo” constitui o que Steiner chama de “refúgio psíquico”, um estado mental particular que permite ao paciente proteger-se das ansiedades e do sofrimento, um “lugar” onde ele pode se esconder e de onde poderá, por vezes, emergir “[...] com grande cautela, feito um caramujo saindo da concha, retraindo-se novamente caso o contato provoque sofrimento ou ansiedade” (STEINER, 1997, p. 17).

O “refúgio psíquico”, visto como um lugar de alívio das ansiedades intoleráveis, pode ser representado nas descrições fornecidas pelo paciente (sonhos, recordações e relatos) como se fosse uma “[...] casa, caverna, fortaleza, ilha deserta ou local semelhante, vistos como área de relativa segurança” (STEINER, 1997, p. 18).

Segundo Steiner, o “refúgio psíquico” é tão atraente para o paciente por funcionar como

[...] uma área da mente onde a realidade não precisa ser encarada, onde a fantasia e a onipotência podem existir sem restrições e onde tudo é permitido (STEINER, 1997, p. 19).

Para o paciente,

[...] a proteção do refúgio é vista então como oferta de um alívio temporário da ansiedade, mas não como uma segurança autêntica ou oportunidade de desenvolvimento (STEINER, 1997, p. 28).

Para Steiner, o “refúgio psíquico” pode funcionar como uma terceira posição, situada entre as posições esquizoparanoide e depressiva, para onde o paciente pode escapar tanto das ansiedades persecutórias como das depressivas.

No caso de Jean-Baptiste, quando ele resolve ficar longe das pessoas e se afasta da cidade,

[...] o nariz conduzia-o para regiões cada vez mais remotas do país, afastando-o cada vez mais dos seres humanos e empurrando-o com ímpeto cada vez maior na direção do pólo magnético da maior solidão possível (SÜSKIND, 1995, p. 121).

Finalmente chega à “montanha da solidão e, ao encontrar uma parte de uma gruta onde nenhum ser humano jamais esteve, percebe que foi até lá “só para estar mais perto de si” (SÜSKIND, 1995, p. 126).

Quando às vezes saía da gruta, sentia o incômodo da luz e do ar; isso fazia com que o “carrapato” Jean-Baptiste ficasse “[...] sensível como um caranguejo que tivesse abandonado sua casca e andasse exposto e desnudo pelo mar” (SÜSKIND, 1995, p. 134). Em outras palavras, ao emergir do “refúgio”, ele se sentia sensível às ansiedades, que lhe pareciam insuportáveis.

Segundo o livro, após sete anos vivendo na gruta, Jean-Baptiste tem um sonho “claustrofóbico”, uma “catástrofe interior”, em que “[...] era capaz de se afogar em si mesmo, mas não conseguia cheirar a si próprio” (SÜSKIND, 1995, p. 136). Ele se dá conta de que não tem cheiro. Sai da gruta – e, ao nosso ver, do “refúgio psíquico” – e vai reencontrar o contato com as pessoas e seus odores – e, portanto, com o seu sofrimento de se sentir rejeitado.

Jean-Baptiste buscava encontrar um perfume único, que poderia “[...] transformar o mundo num aromático paraíso, no qual, para ele, a existência poderia ser olfatoriamente mais ou menos suportável” (SÜSKIND, 1995, p. 102). Entendemos que a questão que mais o aflige é a busca por algo que ele nunca teve: o amor incondicional e a devoção de sua mãe. No livro, é descrito como seria o aroma que ele gostaria de criar:

[...] um odor que fosse não só humano, mas sobre-humano, um odor angélico, tão indescritivelmente bom e com tanta energia vital que quem o cheirasse ficaria enfeitiçado, ficaria sob um encantamento, tendo de amar de todo o coração a Grenouille, o portador deste fantástico aroma. Sim, amá-lo é o que deveriam quando estivessem sob o fascínio do seu cheiro, não apenas aceitá-lo como igual, mas amá-lo até a loucura, até o sacrifício pessoal; deveriam tremer de encanto, uivar e gritar, chorar de prazer, sem saber por quê (SÜSKIND, 1995, p. 158).

Essa descrição nos remete ao ideal do amor materno incondicional, onde a mãe tem devoção e se identifica com o bebê a ponto de serem apenas um: uma fusão mãe-bebê, como diria Winnicott. A sua busca é pela possibilidade de se sentir amado e cuidado por alguém que serviria de protótipo de objeto “bom” e que, com isso, o ajudaria a suportar as frustrações do objeto “mau” externo.

Para ele, o aroma ideal iria para dentro das pessoas,

[...] diretamente para o coração, distinguindo lá categoricamente entre atração e menosprezo, nojo e prazer, amor e ódio. Quem dominasse os odores dominaria o coração das pessoas (SÜSKIND, 1995, p. 158-159).

Na fantasia de Jean-Baptiste, se ele dominasse o coração das pessoas, poderia controlar tudo, para que não sentisse mais desamparo e privação. Mas ao final, quando consegue a veneração de todos, percebe que isso não preenchia o vazio interior que sentia. Mais que isso: percebeu que não tinha capacidade de amar nem de receber amor, pois estava repleto de ódio. Mesmo assim, podemos supor que ele pôde introjetar um pouco o objeto externo “bom” que tanto buscava, conseguindo se aproximar da posição depressiva: sente culpa e deseja ser punido com a morte.

No filme, quando o pai de Laure se aproxima com a espada em punho, ele abre os braços à espera da punição. No livro, ele pensa:

Ele há de me matar [...]. Ele é o único que não se deixará enganar pela minha máscara. [...] Ele terá de me reconhecer e me matar. Terá de fazer isso (SÜSKIND, 1995, p. 244).

Mas o pai de Laure pede perdão a ele e o chama de “filho”. Nesse momento, Jean-Baptiste percebe que tudo o que fez foi em vão, pois ele não tinha capacidade de receber amor de outras pessoas. Só lhe resta ir embora em direção a Paris, para morrer no lugar onde nasceu.

Ao jogar em si mesmo todo o seu magnífico perfume, ele finalmente passa a ter um cheiro, o que seria equivalente a existir. Ciente do poder do perfume, ao jogá-lo em si mesmo, ele queria ter um cheiro próprio e morrer sentindo-se tocado e amado, a ponto de ser devorado, da mesma forma que uma mãe faz metaforicamente com o seu bebê. Em sua fantasia e na realidade, Jean-Baptiste devorou por completo o cheiro e a vida de várias moças, como se quisesse fazer primeiramente com sua mãe: mordendo-a, atacando o seio, esvaziando-o e devorando-o.

Ao perceber, num vislumbre da posição depressiva, que atacou um objeto total (talvez a última de suas vítimas, que no filme ele hesitou bastante antes de matar), merecia então ser devorado, assim como sugou e devorou todas as mulheres de sua vida.

Considerando Jean-Baptiste como um paciente, poderíamos fazer com que ele conseguisse mitigar sua pulsão de morte com mais pulsão de vida, obtendo mais confiança na possibilidade de receber e dar amor, e não somente ódio. E então Grenouille, o “carrapato solitário”, o “monstrengo”, o inumano, poderia inspirar e receber amor.

 

Referências

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PERFUME: a história de um assassino. Direção: Tom Tykwer. Produção: Bernd Eichinger. Roteiro: Andrew Birkin, Bernd Eichinger e Tom Tykwer. Manaus: Videolar, 2006. 1 DVD (147 min), NTSC, son., color. Tradução de: Das Parfum, die Geschichte eines Mörders.         [ Links ]

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Endereço para correspondência
Rua Almirante Tamandaré, 66/1021 - Catete
22210-060 - Rio de Janeiro - RJ
E-mail: sedeu@yahoo.com

Recebido em: 20/04/2015
Aprovado em: 10/05/2015

 

 

SOBRE A AUTORA

Natalia Gonçalves Galucio Sedeu
Psicóloga. Especialista em Psicoterapia Infantojuvenil pelo IFF/FIOCRUZ.
Psicanalista e membro efetivo do Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro (CBP-RJ).

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