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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.44 Belo Horizonte Dec. 2015

 

 

Uma objeção à autonomia do eu: o estádio do espelho

 

An objection to the autonomous “I”: the mirror stage

 

 

Martín Mezza

I Círculo Psicanalítico da Bahia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Na doxa psicanalítica o estádio do espelho é tratado e transmitido aos novos analistas como um conceito simbólico-imaginário, mais imaginário que simbólico, e associado exclusivamente à formação do eu, que dá continuidade às elaborações freudianas sobre o narcisismo. Dessa maneira, não só se invisibilizam as diferenças entre as elaborações freudianas e lacanianas, mas também se perdem as referências mais inovadoras trazidas pelo conceito mencionado. Este artigo se propõe voltar à letra de Lacan para encontrar as condições estruturais de tal desvio e salientar o lugar estratégico que o estádio do espelho ocupa na teoria e na técnica psicanalítica.

Palavras-chave: Estádio do espelho, Eu, Identificação, Autonomia, Narcisismo.


ABSTRACT

In psychoanalytic doxa the mirror stage is treated and transmitted to new analysts, as a symbolic – imaginary construct, more imaginary than symbolic, that is linked exclusively to the formation of the self, and continues Freud’s elaborations on narcissism. Thus, not only became invisible the differences between the Freudian and Lacanian elaborations, but also lost the most innovative references brought by the conceptual construct of the mirror stage. This article aims to return the letter of Lacan to find the structural conditions of such deviation, and highlight the strategic role of the mirror stage plays in psychoanalytic theory and technique.

Keywords: Mirror Stage, I, Identification, Autonomy, Narcissism.


 

 

O fracasso da revolução

Lacan destaca que os postulados introduzidos por Freud, no que diz respeito à noção do eu, estavam destinados a produzir tamanha ruptura com os saberes e as elaborações precedentes, que chegou a rubricá-la como uma revolução copernicana. Porém, essa novidade – a produção dos postulados freudianos – foi absorvida pelo saber pré-analítico, filosófico e do senso comum; reaparecendo, assim, “uma noção do eu absolutamente diferente da que implica o equilíbrio do conjunto da obra de Freud”1 (LACAN, [1954-1955] 1995, p. 12).

Nós, psicanalistas, estamos acostumados a pensar que essa absorção no marco do saber psicológico se deu só por consequência da inaptidão da primeira e da segunda geração de analistas posteriores a Freud – Lacan não deixou de marcar essa questão – e, assim, como somos pós-lacanianos, nos sentimos salvos de cometer o mesmo desvio. Trata-se somente da inaptidão de um grupo de indivíduos? Será que nós, realmente, continuamos o gesto revolucionário? Freud não tem participação alguma nessa história? Qual é a relação da própria psicanálise com essa realidade?

O homem contemporâneo cultiva certa ideia de si mesmo, ideia que se localiza em um nível semi-ingênuo [...] Pode esse homem imaginar que ela surgiu de uma inclinação natural, quando, de fato, no estado atual da civilização, lhe é ensinado em todo lugar. Minha tese é que a técnica de Freud, em sua origem, transcende esta ilusão, ilusão que exerce uma influência decisiva na subjetividade dos indivíduos (LACAN, [1954-1955] 1995, p. 13).

Há nessa frase uma alusão um tanto mais séria e articulada que a mera crítica a pessoas. Temos aqui um diagnóstico social, de época. Há condições estruturais, verdadeiros determinantes de época, para a produção da subjetividade do homem contemporâneo: é a ilusão de mesmidade, a crença do sujeito em que ele é ele mesmo, que o ser está centrado no ego. Mas essa ilusão não existiu sempre. Lacan localiza a aparição do ego como posterior à subjetividade inaugurada por Sócrates. Essa nova forma de ‘ser-no-mundo’, no tocante a determinadas regras de coerência para o saber, já nasceu com o descentramento: no que respeita à areté – a virtude do ser humano – a ciência não tem como atingi-la (LACAN, [1954-1955] 1995, p. 14).

Evidentemente aquela noção de ego não é idêntica à nossa. Mas tem em comum o lugar que ocupa, sua função; já naquela época algo funcionava como centro. Desde aí até chegar à modernidade, e mesmo dentro dela, temos um longo caminho e vários acontecimentos relevantes. No século XVI o cogito cartesiano estabeleceu a formalização do eu e a transparência da consciência, resumido no juízo de existência: penso, logo sou. Rapidamente vieram as mais variadas ideias do eu como substância; inclusive, com Locke, Kant e os psicofísicos, através de um substancialismo implícito na imortalidade da alma.

A tese de Lacan é que, depois de muitos anos, essa “[...] ilusão fundamental do homem moderno” (LACAN, [1954-1955] 1995, p. 13), essa forma de estar no mundo – centrado no ego – foi transcendida, ao menos por um tempo, pela teoria e técnica freudiana. Mas não foi por um grupo de inaptos que isso fracassou, senão pela ação mesma dessa subjetividade. De que forma?

Por mil flancos algo [a ilusão do homem contemporâneo] se produz no manejo dos termos teóricos, e reapareceu uma noção do eu absolutamente distinta do que implica o conjunto da teoria de Freud e que tende à reabsorção [...] do saber analítico na psicologia geral (LACAN, [1954-1955] 1995, p. 12).

A segunda tópica freudiana vai na direção da ilusão fundamental do homem contemporâneo. Das três instâncias psíquicas, a que adquiriu mais importância foi a noção do eu, priorizando-se a sua relação de mediação com a realidade. Da mesma maneira acontece com os conceitos lacanianos. O estádio do espelho, diz Lacan ([1954-1955] 1995, p. 159), “[...] após vinte anos de ser elaborado, precisa de renovação; é mal utilizado”.

Hoje também continua sendo mal utilizado. Na atualidade, longe de se entender como o primeiro ponto estratégico para a autonomia do eu, é visto como uma noção desenhada para explicar – exclusivamente – a formação do eu. Realmente, algo parece acontecer com o manejo dos conceitos, inclusive com os lacanianos, que não consegue manter o caráter revolucionário que os inspirou.

[...] trata-se de um fenômeno, para ser exatos, sociológico, que implica a análise como técnica ou, se o preferem, como cerimonial, como sacerdócio determinado num certo contexto social (LACAN, [1954-1955] 1995, p. 24).

Então, a revolução freudiana, que por um tempo consegue alterar essa subjetividade, essa relação do homem com a sua imagem, vai perdendo sua força. Isso não se deve somente a uma questão externa (sociológica), tem a ver também com propriedades específicas do saber: a relação ambígua com a verdade, assim como a relação existente entre a própria psicanálise e a subjetividade.

Lacan tomará as fórmulas menonianas da função da verdade, para mostrar como o saber que articula a verdade evidencia uma tendência a desconhecer seu próprio sentido. E destacará que isso é ainda mais nítido na psicanálise; por isso, seu lugar de encruzilhada no progresso da subjetividade humana (LACAN, [1954-1955] 1995, 13-14).

 

A crítica de Lacan à concepção bipolar do eu freudiano

Quando reapareceu essa noção do eu totalmente distinta do que implica o conjunto da obra de Freud? Foi com os pós-freudianos? Evidentemente, não. Senão, Lacan não precisaria dizer o equilíbrio da obra freudiana (ver citação no primeiro parágrafo). Já existe algo, na própria elaboração de Freud, que desequilibra a novidade introduzida por ele mesmo. Segundo Lacan, isso se produziu entre 1910 e 1920, época de uma profunda crise na eficácia da técnica analítica.

Na experiência iniciada após seu descobrimento se produz uma viragem, uma crise concreta. Numa palavra, o novo eu (je), com o qual se tinha que dialogar, depois de certo tempo negou-se a responder [...] Na época das primeiras revelações analíticas, os sujeitos se curavam, mais ou menos, de forma milagrosa [...] com suas interpretações fulgurantes, e as explicações de nunca acabar. É um fato que isto funcionou cada vez menos, que se foi debilitando com o passar do tempo (LACAN, [1954-1955] 1995, p. 22).

Foi Jung que, no texto Metamorfose e símbolos da libido (1912), leva ao extremo essa crítica e anuncia a ineficácia da teoria da libido para explicar a perda da realidade na psicose, bem como para as manifestações das neuroses. É nesse contexto, de crise da técnica e de disputa conceitual, que Freud ([1914] 1996) introduz o conceito de narcisismo. Faz isso para defender a teoria da libido e o mecanismo causal das neuroses, aclarando que ainda devia ser provado que essa oposição libidinal também fosse válida para os casos das psicoses. Assim, Freud não aceita a ideia de Jung sobre a energia geral e defende - de forma tenaz - a separação e a oposição entre pulsões sexuais e de autoconservação, entre libido de objeto e libido do eu.

O narcisismo fica definido como uma etapa intermediária entre o estado autoerótico – pulsões que se satisfazem no próprio corpo – e a eleição de objeto. Uma vez que o eu se agrega ao autoerotismo mediante o novo ato psíquico da identificação, constitui-se como primeiro objeto unificado das pulsões autoeróticas. A partir daqui, o eu investirá os objetos do “mundo” e mediante o resto de libido intransferível, possibilitará a reversibilidade da libido (FREUD, [1914] 1996).

 

 

Essa concepção bipolar estabelecerá um aumento de investidura de objeto em virtude de uma diminuição de investidura do eu e uma diminuição de investidura de objeto em função de um aumento de libido do eu. Temos, assim, um narcisismo primário, efeito do investimento autoerótico do eu, e um narcisismo secundário, efeito do retorno das investiduras de objeto.

 

 

Dessa forma, vemos como o eu volta a ser introduzido como primeiro e autônomo em relação aos objetos do mundo, produzindo uma distribuição espacial bipolar, que delimita um interior e um exterior. O eu vai se configurando como interno e primeiro (a relação espacial dos esquemas o evidenciam) em relação aos objetos do mundo e, dessa maneira, arroga-se a função de estruturar e investir o mundo exterior mediante a sua própria libido interna.

 

 

O progresso instintual do sujeito e sua elaboração do mundo, em função da sua própria estrutura instintual, não apresenta dificuldades teóricas se deixa por fora a libido e o desejo. Não pode ser uma relação do ser com o ambiente. Essa é uma concepção bipolar. Por um lado, o sujeito libidinal, por outro, o mundo. Isto falha. Se a libido se generaliza, se neutraliza (LACAN, [1953-1954] 1995, p. 176).

Essa é a crítica de Lacan. A Introdução do narcisismo (FREUD [1914] 1996), ao mesmo tempo que é uma tentativa de resgatar o revolucionário do descobrimento inicial e a eficácia da técnica psicanalítica, consegue criar um desequilíbrio tal que se encaminha na direção de um desvio. A elaboração dos textos posteriores (Luto e melancolia, 1917; Além do princípio do prazer 1920; Análise do eu e análise das massas 1921; O eu e o isso, 1923) vai na mesma direção, até colocar o eu como central e mediador entre o mundo interno (isso) e o mundo externo.

 

O estádio do espelho como ponto estratégico contra a autonomia do eu

Foi o próprio Freud que se deu conta de que esta concepção do narcisismo trazia muitas dificuldades teóricas. “O narcisismo foi um parto difícil e por isso apresenta todas as deformações concomitantes” (FREUD, [1914] 1966, p. 69).

O estádio do espelho é uma tentativa teórica de lidar com essas deformações, é o

[...] ponto estratégico primeiro trazido por nós como objeção ao favor concedido na teoria ao pretendido eu autônomo (LACAN, [1960] 1998, p. 823).

Mediante o estádio do espelho, Lacan tentará manter o caráter revolucionário dos postulados freudianos, isto é, o descentramento do sujeito em relação ao eu. O eu não como agente e estruturante das relações com a realidade, senão como objeto. Lacan repara no essencial do pensamento freudiano, o valor de objeto do eu (o eu se constitui num momento do desenvolvimento libidinal, como primeiro objeto unificado das pulsões) e, assim, destaca a impossibilidade de pensá-lo no lugar de agente. Não será o eu quem estrutura o mundo e seus objetos, senão que é o eu, quem é estruturado junto aos objetos do mundo.

 

 

Este esquema, por simples que seja, tem a virtude de apresentar, claramente, a relação espacial que o eu tem em relação aos objetos do mundo; uma relação bem diferente da representada nos esquemas anteriores. Aqui não há bipolaridade nem possibilidade de pensar o eu como interior e os objetos como exteriores. Para Lacan, o eu se articula com os objetos na dimensão imaginária e por fora de si, no campo do Outro. O estádio do espelho, mais que sistematizar a constituição do eu, é um conceito teórico que articula a identificação alienante2 pela qual o sujeito ($) se relaciona com a imagem.

A concepção do estádio do espelho que introduzi em nosso último congresso, há três anos […] não me pareceu indigna de ser novamente trazida à atenção de vocês: hoje, em especial, no que atinge aos esclarecimentos que ela fornece sobre a função do eu (je) na experiência que dele nos dá a psicanálise. Experiência sobre a qual convém dizer que nos opõe a qualquer filosofia diretamente oriunda do Cogito (LACAN, [1949] 1998, p. 96).

Para Descartes não há nada mais claro e evidente que, ao pensar, ele existe, e que existe como identidade, como idêntico a si mesmo. A experiência psicanalítica se opõe a isso. O eu é outro. O eu não pensa, quem pensa é o isso. No início não há uma unidade comparável ao eu. O que há é o sujeito do inconsciente, o sujeito dividido pela articulação de ao menos dois significantes do Outro.

 

 

Para explicar isso, Lacan parte de um fato de psicologia comparada, onde o chimpanzé reconhece a sua imagem no espelho antes do que o homem.

Esse ato, com efeito, longe de se esgotar, como no caso do macaco, logo repercute, na criança, uma série de gestos em que ela experimenta ludicamente a relação dos movimentos assumidos pela imagem com seu meio refletido, e desse complexo virtual com a realidade que ele reduplica, isto é, com seu próprio corpo e com as pessoas, ou seja, os objetos que estejam em suas imediações (LACAN, [1949] 1998, p. 96-97).

Por um lado, temos o aspeto formativo da imagem.3 O reconhecimento da imagem no espelho ou a visão da imagem total de outra figura humana dá ao sujeito um domínio – imaginário – antecipado do seu corpo. Antes que a maturação fisiológica permita a integração das funções motoras e o domínio do corpo, é a assunção da totalidade da imagem do corpo quem dá o controle imaginário do corpo, determinando o posterior domínio motor.

Por outro lado, há nessa frase alguns aspetos a serem destacados. Em primeiro lugar, temos a diferença entre o ser humano e o animal. No animal, o efeito da imagem se limita ao ato instrumental; na criança, ao contrário, o acento está posto na experimentação lúdica e jubilosa da imagem. O ser humano não vive a inanidade da imagem; pelo contrário, esta se encontra cheia de valor, de sentido, devido à presença do tesouro dos significantes. Também vemos como Lacan sublinha que essa imagem do eu é um complexo virtual composto pelo próprio corpo, as pessoas e os objetos que estão nas suas imediações, situação que coloca o eu humano do lado dos objetos do mundo, tal como o mostra o esquema número 4. E, finalmente, temos que reparar na palavra assunção. Como entendemos essa assunção? Que quer dizer a frase: “[...] a relação dos movimentos assumidos pela imagem”?

Geralmente tendemos a pensar que o bebê que fica frente ao espelho assume, incorpora ou introjeta a sua própria imagem refletida no espelho. Mas, se pensamos assim, estamos reanimando a bipolaridade (interior/exterior) criticada por Lacan, assim como caindo na noção do eu da psicologia geral. Isso não é o que a frase de Lacan disse. Pelo contrário, o sujeito que é capturado pela imagem não é o indivíduo, senão o sujeito dividido (), e o faz mediante uma identificação, que é alienante, cuja característica – tal como o indica a palavra “alienante” – é ficar no outro, por fora de si mesmo; então, mal poderia incorporar algo.

Temos que entender essa assunção pela imagem de modo contrário ao senso comum: é a imagem que assume os movimentos. É a imagem que cobra vida e, animada pelo Outro, captura o sujeito dividido. Fica mais claro se entendemos assunção não como a tendência à interiorização ou à responsabilização, mas como o movimento de elevação pelo qual o sujeito dividido ganha uma imagem unificada. Assim, a identificação imaginária é a transformação produzida no sujeito dividido ao se alienar numa imagem.

O sujeito dividido padece de uma dupla alienação: imaginária e simbólica. Enquanto sujeito dividido entre dois significantes do campo do Outro, quer dizer, sem identidade em si e alienado aos significantes do Outro, encontra sua unidade mediante uma alienação imaginária que o faz ser outro, imagem do outro. Para Lacan, esse fenômeno constitui a estrutura ontológica do ser humano, e suas manifestações mais evidentes são vistas nos fenômenos do transitivismo infantil (o menino que vê cair, chora; e quem bate diz ter apanhado), assim como, na fase adulta, nas situações marcadas pela rivalidade ou nas condutas ambivalentes onde o escravo se identifica com o déspota ou a vítima com o vitimário.

Mas, como isto é possível? Porque o eu humano é o outro [...] No objeto está incluída uma alteridade primitiva, marcada pela rivalidade e a competência (LACAN, [1955-1956] 1985, p. 50).

Que sucede com essa estrutura ontológica? Continua como urbild do eu. Não desaparece, no máximo é normalizada. De que modo? Não como o pensamos; nada de uma tomada de consciência de que eu não sou outro, de uma interiorização da minha imagem especular. Nada disso é explicado assim por Lacan, essa é uma ideia kleiniana e bastante mal elaborada, segundo o próprio autor. A rivalidade especular, o desejo do desejo do outro, é pacificado pela intermediação cultural do complexo de Édipo (algumas experiências iniciáticas têm um valor similar), que se desenvolve pela mediação do campo do Outro, pela palavra como pacto: isto é para ti, isto para mim, isto do outro, etc. Uma palavra que faz possível um Outro, onde só havia outro.

O núcleo de nosso ser não coincide com o eu... Sem dúvida, o verdadeiro eu (je) não é eu (moi) […] O importante é o contrário, que em todo momento devemos ter presente: O eu (moi) não é o eu (je) [...] É um objeto particular no interior da experiência do sujeito. Literalmente, o eu é um objeto: um objeto com uma determinada função que denominamos função imaginária (LACAN, [1954-1955] 1995, p. 73).

Dessa maneira, apreciamos como o eu perde a ilusão de autonomia e imanência quando não se encontra causado por si mesmo. É transcendente na medida em que está determinado por fora de si, no registro imaginário pela imagem do outro (eu ideal) e no registro simbólico pela identificação ao significante do Outro (Ideal do A).

 

O eu como função de desconhecimento

Resgatemos essa interessante definição do eu.

O eu (moi) não é o eu (je) […] É um objeto particular no interior da experiência do sujeito. Literalmente, o eu é um objeto [...]

Aqui a experiência do sujeito é a experiência do sujeito dividido, e não do indivíduo; o eu é um objeto dentro dessa experiência significante, de ao menos dois significantes. Ali no interior, no intervalo significante, o eu tem uma função imaginária. Qual é? Por um acaso é ser uma ‘self-suficiência’ da consciência?

A essas proposições opõe-se toda a nossa experiência, na medida em que ela nos dissuade de conceber o eu como centrado no sistema percepção-consciência, como organizado pelo princípio de realidade, no qual se formula o preconceito cientificista mais contrário à dialética do conhecimento, e nos indica que partamos da função de desconhecimento que o caracteriza em todas as suas estruturas, tão vigorosamente articuladas pela Srta. Anna Freud; pois, a Verneinung representa sua forma patente [...] (LACAN, [1949] 1998, p. 102-103)

Isso é o eu: função de desconhecimento cuja expressão mais lograda é a negação. Mas a negação é só a expressão mais lograda, e mais evidente; não temos que chegar até lá para reconhecer a presença do eu. O eu é constituído pelo conjunto de preconceitos que cada um de nós apresenta quando consideramos saber algo. Esses são os momentos onde a função de desconhecimento do eu pode se identificar como uma resistência.

Desconhecimento não é ignorância. O desconhecimento representa certa organização de afirmações e negações, às quais o sujeito encontra-se apegado (LACAN, 1953-1954 1995, p. 12).

Não são apenas as negações. Nossas afirmações, ainda mais elas, também constituem a função de desconhecimento do eu. É por esse motivo que a análise não pode se confundir com a tendência moderna a conhecer-se melhor, a ter mais consciência de si mesmo, a ser mais autêntico, mais nós mesmos. Uma análise implica sempre a passagem pelo Outro, pela alteridade que somos ou não podemos ser.

Aqui se insere a ambiguidade de um desconhecer essencial ao conhecer-me. Pois, tudo de que o sujeito pode se assegurar, nessa retroversão, é de vir a seu encontro a imagem, esta, antecipada, que ele tem de si mesmo em seu espelho (LACAN, [1960] 1998, p. 823).

O conhecer-me é um desconhecer essencial. Se a análise avança na direção do autoconhecimento, o máximo que vai conseguir é que o sujeito se encontre com a sua imagem especular, que se organiza em torno de uma identificação ao significante ideal do Outro. Portanto, quanto mais avanço na linha do autoconhecimento, mais alienação encontro e mais desconheço a estrutura significante do Outro. Pela via do ideal e da identificação imaginária, o sujeito desconhece que é no campo do Outro que se encontra dividido entre dois significantes. Os sintomas não se resolvem pela via da experiência individual suportada na onipotência do ideal, na substituição do eu, ou no conhecimento de si mesmo; senão, pela via subjetiva em que a história do sujeito se acha implicada na palavra que se articula no campo do Outro.

Aquilo que vemos e nos é dado enquanto psicanalistas é de subverter de forma radical, fazer impossível este preconceito, o mais radical e o suporte de toda a filosofia que se encontra no limite superado pela nossa experiência. Além desse limite, encontra-se a possibilidade do inconsciente (LACAN, [1961-1962] inédito, p. 48).

A possibilidade do inconsciente encontra-se além do limite desse preconceito que constitui a subjetividade do homem moderno: a identidade. Subverter essa ilusão é o primeiro passo no caminho da dialética do inconsciente.

 

Conclusão

Os postulados freudianos foram reabsorvidos pela psicologia geral. O próprio estádio do espelho foi, e é mal utilizado. Considerá-lo como uma continuidade do narcisismo freudiano é insistir no desvio que, pela ação da subjetividade moderna, experimentaram os conceitos analíticos; é negar a tentativa lacaniana de reanimar a verdade aberta pela psicanálise. Marcar as diferenças entre as elaborações de Lacan e Freud é uma necessidade para manter o descentramento do sujeito e o caráter revolucionário que Lacan destaca na obra freudiana.

Há uma diferença fundamental ao entender o estádio do espelho como uma reprodução do narcisismo freudiano ou como o primeiro ponto estratégico da teoria lacaniana a funcionar como uma objeção à autonomia do eu. No primeiro caso, seguimos considerando o eu como idêntico à consciência - e ficamos presos à ilusão do homem contemporâneo e da psicologia geral. Se o entendemos como no segundo modo apresentado, não entificamos a noção do eu, e, dessa maneira, o consideramos como um sistema de ideias, cuja função dentro da cura analítica é de desconhecimento. O eu não se opõe, nem é intermediário, ao sujeito do inconsciente; pelo contrário, é um objeto, um sintoma no interior deste; faz parte da própria dialética do desejo inconsciente.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: mezzamartin@yahoo.com.ar martinmezza@hotmail.com

Recebido em: 31/07/2015
Aprovado em: 04/09/2015

 

 

SOBRE O AUTOR

Martin Mezza
Psicanalista argentino, atualmente residente em Salvador (BA).
Membro de Apertura (Buenos Aires)
Mestre em Saúde Mental Comunitária pela UNLa.
Trabalha com clínica de adolescentes e adultos desde 2001.
Vinculado aos movimentos de reforma psiquiátrica.
Foi professor da UBA.
Trabalhou na gestão de saúde.

 

 

1 As citações baseadas em textos de língua estrangeira são de tradução livre.
2 Alienante faz referência ao Outro, no Outro.
3 Lacan traz alguns exemplos da etologia.

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