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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.44 Belo Horizonte dez. 2015

 

 

Me dá um like? Fotografo, logo existo: histeria e redes virtuais1

 

Give me a like? I shoot, therefore I am: hysteria and virtual networks

 

 

Gisele da Silva BandeiraI; Vanuza Monteiro Campos PostigoII

I Núcleo de Apoio à Saúde da Família - CF Rinaldo de Lamare - Rocinha
II Universidade Federal do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir de um caso clínico vamos abordar um modo de relação que expressa uma das facetas do sofrimento psíquico no contemporâneo: a relação com o outro nas redes sociais. Como psicanalistas à escuta dos sujeitos do contemporâneo, observamos algumas transformações nas demandas clínicas e na forma como se apresentam no setting analítico. Vamos destacar nesse caso clínico como o atravessamento do sujeito por novas formas de comunicação e interação – advindas da tecnologia e da Internet – ensejam, nesse caso, novos e atualizados modos de ‘pantomina’, característica importante dos quadros clássicos da histeria. À escuta também das particularidades dos sofrimentos atuais, contextualizando nossa reflexão em um cenário cultural caracterizado pela estetização da existência e publicização do sujeito hodierno, temos como pano de fundo para o drama de A* uma cultura imagética e da exterioridade favoráveis a uma economia libidinal dedicada à sedução, ao fascínio e à exibição.

Palavras-chave: Histeria, Redes virtuais, Compartilhamento.


ABSTRACT

In this paper we present a clinical case study in order to discuss how individuals relate to others in social networks, as we consider this relationships to express one of the facets of psychological distress in contemporary times. Listening to contemporary individuals, as psychoanalysts, has lead us to observe changes in clinical demands and in the way they get enacted in the analytical setting. We shall highlight how the new possibilities of communication and interaction provided by technology and the internet runs through the subject and cause new – updated – forms of “pantomime”, important feature of classical cases of hysteria. By listening to details of present day suffering and contextualizing our reflection about it in a cultural scenario marked by the aestheticization of existence and publicity of present day subject, we unveil an imagetic and outside oriented cultural background – that favors a libidinal economy dedicated to the seduction, fascination and exhibition – for the patient’s drama.

Keywords: Hysteria, Social Networks, Share.


 

 

I. Preâmbulo

Nosso desejo é apresentar aqui um caso clínico que para nós expressa uma das facetas do sofrimento psíquico no contemporâneo: a relação com o outro nas redes sociais. Mais especificamente, uma histérica e seu sofrimento em rede, seu desejo do desejo, curtidas, likes e aplausos. Se no “um a um” a relação “analógica” sempre obrigou o sujeito a um exercício da alteridade, no universo digital essa relação com o(s) outro(s) – multifacetados, imediatos e plurais – parece assumir contornos bem mais exigentes e angustiantes na cultura conectada.

A inserção do sujeito nas redes de relacionamento enseja novas formas de subjetivação, e queremos pensar de que maneira essas novas ferramentas e tecnologias passam a fazer parte das construções identitárias bem como do sofrimento psíquico espelhado e publicizado nas redes virtuais e trazido para o setting analítico. Como clínicos, entendemos que esse exercício exige que – ainda que sustentados no rigor nos princípios norteadores da psicanálise – possamos escutar as particularidades do sofrimento dos sujeitos do contemporâneo, bem como as transformações nas demandas dos sujeitos, na apresentação e no endereçamento de seus sintomas.

Conforme atenta Joel Birman (2000), vivemos um campo social no qual constatamos que o autocentramento do sujeito alcança limiares impressionantes e espetaculares, em tempos onde se observa a “estetização da existência” e a “exaltação gloriosa do próprio eu” (BIRMAN, 2000, p. 186), para a exibição e mise-en-scène, que remetem para a exterioridade e para a economia libidinal aí envolvida:

A imagem é, pois, condição sine qua non para o espetáculo da cena social e para a captação narcísica do outro. A imagem é a condição de possibilidade da sedução e o do fascínio, sem o qual o ideal de captura do outro não pode jamais se realizar nesse festim diabólico de exibicionismo (BIRMAN, 2000, p. 187).

Nessa máscara para a exterioridade (BIRMAN, 2000, p. 188), que vestem algum sujeitos cooptados por essa gestão psíquica, vale que possamos nos indagar também, como sugere Michelle Csilagg (2011) como a ‘institucionalização’ do narcisismo e do exibicionismo atuais em nossa cultura não favorecem ainda mais modos histéricos e fálicos de lidar com a angústia. E tudo isso se desenrola em um cenário cultural midiático, que tem no culto ao corpo e na performance um projeto de existência e a oferta do bem-estar e da felicidade.

Antes, então, de conversar sobre Ana* (nome fictício), vamos mapear brevemente esse universo exteriorizado no qual ela se encontra imersa e capturada em seu sintoma: as redes sociais. Aliás, não somente as redes sociais, mas a comunicação mediada pelo computador (CMC) vem

[...] mudando profundamente as formas de organização, identidade, conversação e mobilidade social [pois] mais do que permitir aos indivíduos comunicar-se, amplificou a capacidade de conexão, permitindo que redes fossem criadas e expressas nesse espaço (RECUERO, 2009, p. 16).

Mas a rede que mobiliza Ana* é principalmente o Facebook, criado em 2004 por Mark Zuckenberg, Chris Hughes, Dustin Moskovitz e Eduardo Saverin em um circuito universitário e exclusivo a estudantes em Harvard, que ampliou o acesso a demais estudantes universitários, posteriormente para as escolas de ensino médio e, dois anos depois, abriu seus cadastros para os demais usuários.

Nessa rede os usuários criam seu perfil, com fotos, interesses e dados diversos. As mensagens trocadas entre os amigos podem ser públicas ou privadas, assim como as demais informações postadas. O acesso é gratuito, e sua receita vem de publicidade e de diversos negócios relacionados. Segundo Raquel Recuero (2009), entre as motivações enumeradas pelos usuários do Facebook, foram citados principalmente o desejo de: criar de um espaço pessoal, gerar interação social, compartilhar conhecimento, gerar autoridade e gerar popularidade.

A grande virada do sucesso do Facebook foi quando os criadores perceberam que o que as pessoas mais faziam era olhar as informações das outras pessoas e suas atualizações sobre o que haviam feito ou o que havia mudado na vida delas, investigando o perfil de sua rede de contato via os álbuns de foto e do Feed de notícias, exibidos no mural e no perfil alheio. Uma grande ‘sacação’ do Facebook foi perceber que seu valor central estava no conjunto de conexões entre amigos – o chamado “diagrama social” (KIRKPATRICK, 2011, p. 235).

Outro fator importante foram o cuidado e o fato de Mark Zuckenberg insistir que “existe apenas uma única identidade” (KIRKPATRICK, 2011, 215), preconizando a integridade e a transparência que almeja para os usuários do Facebook: o seu nome, suas informações, seu e-mail e o entrecruzamento de sua vida pessoal, profissional e social, que constroem o perfil do usuário. Nesse processo de construção de um perfil, está em jogo a construção de uma identidade, um mecanismo de individuação, a personalização e singularização que perpassa uma construção subjetiva.

Vamos apresentar Ana* lembrando Freud nos primórdios da psicanálise em seus estudos sobre a histeria, quando afirma que a fantasia histérica é mostrada como uma “pantomima”. É algo da ordem dessa mostração – em rede – que vamos acompanhar nesse caso clínico. É o corpo da histeria que toma a cena nesse caso, aquele que Freud nos apresentou, erógeno e recoberto de sentidos. Como clínicos sabemos como a histeria se apresenta como plástica e mutável, devendo, assim, ser pensada no contexto histórico, geográfico e cultural. Vale lembrar ainda que:

Embora novas imagens tenham surgido – reflexos das mudanças dos tempos –, elas continuam, no entanto, a guardar a mesma característica das imagens dos corpos retorcidos das histéricas de outrora, ou seja, a imagem do velamento do sofrimento psíquico, do tumulto, do conflito, da dor (FERNANDES, 2001, p. 62).

 

II. O caso clínico Ana*

Ana* procura atendimento psicológico, pois chegou à faixa dos 40 anos insatisfeita com sua vida profissional – é secretária, cargo que representa para si um lugar desvalorizado –, além de estar envelhecendo e não parecer tão bela quanto outras mulheres. Logo se evidencia em seu discurso a imensa preocupação com a imagem que de si é transmitida ao outro, bem como o que lhe retorna desse outro a partir dessa imagem projetada. A visibilidade, ou antes, a imagem toma lugar fundamental, em seu discurso, não somente pelos traços da histeria que necessita da plateia para sua pantomina, mas também em consonância com uma lógica exibcionista/voyeurista, que vem se estabelecendo como preponderante na cultura atual. Cenário convidativo para a “performance” do “corpo-teatro” de uma histérica (BOLLAS, 2000, p. 163).

Ana vive mergulhada no mundo virtual: as redes sociais Facebook e Instagram tornaram-se um espaço privilegiado para a relação que trava com o mundo, visto sua oferta de visibilidade. Não pode se imaginar off line por muito tempo, dispensando inclusive programas que coloquem em risco a conexão com a internet em seu celular. O que mais lhe interessa nas redes sociais, e tema sobre o qual fala repetidamente sessão após sessão, são fotos: fotos suas, capturadas em momentos especialmente planejados e ensaiados mentalmente, e fotos de mulheres que lhe dão o referencial da imagem.

Elege algumas mulheres em especial, mulheres para ela portadoras de insígnias da beleza, do sucesso, da “boa imagem”, do roteiro de vida invejável. Torna-se, então, seguidora dessas referências de feminilidade: imita poses de fotos, frases escritas nas postagens, cenários das fotografias. Dessa forma, vai tomando a imagem dessa outra, imagem que lhe arrebata, como parâmetros fundamentais para construção de sua própria imagem a ser exibida e exaltada – freneticamente – na cena das vitrines da rede.

Através de cada registro fotográfico pessoal, Ana transmite ao outro fragmentos da imagem que pretende construir – virtualmente – sobre si; ficção sobre uma vida idealizada, que se passa em lugares requintados, com figurinos sempre bem escolhidos e baseados naquelas referências femininas que vai recolhendo. Assim, planeja comparecer a eventos e festas que ocorram em lugares refinados da cidade para, sobretudo, fotografar-se nessas ocasiões com poses antecipadamente estudadas e copiadas de outras mulheres “famosas”, que imita e segue nas redes sociais.

Cuidadosamente, programa inclusive o número de fotos que serão divulgadas, elegendo aquelas que poderão potencialmente render mais curtidas, e tornando-as públicas quase que imediatamente, não podendo esperar para fazê-lo a não ser com aflição. Cumprida essa etapa, não desfruta dos requintados serviços dos locais, nem usufrui do ambiente social. Algumas vezes vai embora logo depois das fotos. Nesses momentos sente-se como alguém que “cumpriu sua missão” e pode novamente planejar novas poses e cenários numa incessante busca dessa captação narcísica do outro. E assim, vai desenhando o script de sua vida.

Da forma como se dá esse atravessamento pela imagem, Ana situa-se de maneira que, não é senão sob o olhar do outro, onde é notada e apreciada através dos likes, que encontra satisfação narcísica e pode se firmar – no ambiente virtual – enquanto detentora de uma vida, e de uma imagem, que projeta como ideal. Aferra-se a isso, deixando ver a força de sua demanda de reconhecimento nesta máscara que vai construindo para a exterioridade.

A grande quantidade de curtidas – 70 a 100 – em seus registros lhe retorna como uma aprovação, fonte de grande satisfação, sobre a qual tenta se sustentar subjetivamente, ainda que de forma precária. Cria uma dezena de perfis fakes (falsos) para ampliar o número de curtidas de suas próprias fotos, tornando mais valorizada e atraente sua imagem diante dos olhos do outro e construindo sobre sua vida uma espécie de “fake book”.

Na outra realidade, a não virtual, queixa-se, e muito. Queixa-se justamente do que lhe falta: o dinheiro, o bom emprego, o prestígio, os anos a menos. Queixa-se do salário, queixa-se do namorado – um DJ que toca em festas de hip-hop em ambientes “pobres, de subúrbio, com gente feia e brega”, queixa-se do bairro pobre onde mora. É quando aparece magistralmente o “rancor da histérica” (KHAN, 1997, p. 56), realidade psíquica particular na qual sustenta sua desconfiança, sua desvalorização e sua intolerância com os objetos internos de seu entorno.

E assim, ancora-se em uma realidade construída virtualmente, sabedora do embuste que as fotos vão produzindo. Mantém nas roupas a etiqueta que ostenta nas fotos, pois vai trocá-la depois de se fotografar, para sustentar o desfile de modelos inéditos em seu book. Ela mesma diz em sessão, deixando ver sua insatisfação: “vivo de aparências”. E sobre copiar minuciosamente as mulheres com as quais se identifica na imagem, interroga: “será falta de personalidade?”; “que fixação é essa naquela mulher?”.

Ana se mantém na busca incessante de ser o que parece ser ou o que deseja parecer ser, aperfeiçoando fotos, lugares, vestimentas em uma realidade virtual onde não há espaço para a falta. Lá onde ela aparece, e aparenta, a vivência real perde em importância para o reconhecimento que, vindo do outro, atesta seu valor. No cotidiano da vida sobra desânimo, insatisfação, sentimento de vazio de sentido, fazendo parecer que toda sua excitação circula na cena da conexão virtual.

 

III. Os espelhos na rede

Para debater nosso caso clínico, queremos sublinhar a importância da alteridade na construção psíquica e social do sujeito em articulação – particularmente do outro das redes sociais no caso de Ana*.

Sigmund Freud, desde seus textos teóricos iniciais, afirmava que um aparelho psíquico se constituiria somente na interação com um outro aparelho psíquico (FREUD, 1895): estava aí enunciada, para a psicanálise, a importância e ascendência de um outro humano no advento de um sujeito e na concepção da subjetividade humana.

O que queremos destacar aqui é como Freud aponta como no sujeito humano existe um despreparo e um desamparo ante as ameaças do mundo externo, que lhe confere uma total dependência aos cuidados de um outro ser humano. Surgimos e nos constituímos no reflexo e interação com este outro.

Durante toda a sua teorização, Freud apontou a importância dos cuidados primários para a formação psicológica do infante, bem como introduziu conceitos fundamentais como o narcisismo para a constituição psíquica e para a importância do outro na constituição da imagem de si. Destacamos como o mito de Narciso,2 escolhido por Freud para ilustrar esse conceito fundamental da psicanálise – já aponta para o reflexo de um outro e de seu poder sobre a subjetividade de cada um de nós.

Outro autor se debruça maciçamente sobre esse viés de compreensão do sujeito: Jacques Lacan, que concebe o “estádio do espelho”, um momento da evolução humana onde

[...] a criança antecipa o domínio sobre sua unidade corporal através de uma identificação com a imagem do semelhante e da percepção de sua própria imagem no espelho (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 194).

Lacan também utiliza o termo “outro ou Outro” como aquilo que vai designar uma alteridade especular, um outro imaginário, um lugar simbólico, a mãe, a cultura, enfim, um conceito que vai realizar um empoderamento do lugar da alteridade no advento e funcionamento do psiquismo humano. A nosso ver, esse “outro” da cultura e das redes sociais possui especial importância no mecanismo de funcionamento e disseminação das redes sociais cibernéticas da atualidade.

Conforme descrevemos, o surgimento e o sucesso do Facebook resultam do interesse suscitado a partir de um anuário de faculdade com fotos e informações sobre colegas de uma universidade, pelo desejo suscitado de saber da vida e das interações com seus pares em Harvard. Como isso, se expandiu para o social, para 1 bilhão de usuários acompanhando cotidianamente o feed de notícias de cada “amigo”: onde foi, o que fez, o que viu, o que comprou, os contatos em seu “mural”, etc. é que causa grande fascínio. E a indicação está nessa função especular e identitária.

A função especular do outro, a sustentação da própria identidade no outro semelhante, um espaço de acolhimento para o desamparo e o despreparo, a possibilidade de narrativas e as construções sobre si mesmo e sobre os outros semelhantes e identificados nos parecem elementos fundamentais para o lugar soberano na vida dos usuários da rede Facebook ou do Instagram.

Esse outro, esse novo espelho é instantâneo, atualizado e interage com o sujeito. Além disso, essas relações são públicas, espetacularizadas, pois a reciprocidade de estar na rede exige que o sujeito se oferte como espelho do outro, para ser visto, atualizar suas postagens, inserir novas fotos, ser “consumido”, apreciado – e instantaneamente descartado. É desse cenário virtual que A* se utiliza com primazia, em busca de capturar o olhar do outro.

 

IV. À guisa de conclusão

E assim, encontramos Ana* nesse espelho multifacetado, esperando os likes e os comentários sobre si – sua ‘aparência’ – que lhe ‘asseguram’ o falo, o acesso à feminilidade, o desejo dos outros. A particularidade da histeria reside no fato de que coloca o corpo em evidência, e é sobre esse corpo que se desenrola toda a cena virtualmente fantasiada. Corpo cenário da histeria e corpo cultuado e idealizado como projeto de existência do contemporâneo encarnam em A*.

A fantasia fundamental da histérica se refere aos pontos ternários do complexo edipiano: mãe, falo, criança, castração, como afirma Pommier (1991), que acrescenta que a relação entre a mulher e sua imagem é problemática e flutuante. Daí o recurso às insígnias que apontam para a feminilidade – a roupa, o cabelo, a pose, a maquiagem, o olhar, enfim, os adornos que tornem visível e atestem sua identidade de mulher. E é em um misto de enlevo e rancor característicos da histeria (DAVID-MÉNARD, 2000, p. 92) que encontramos o fascínio de A* na mimetização e na idolatria das mulheres que segue nas redes virtuais.

É nessas mulheres idealizadas que encontramos sua busca identificatória de um modelo ideal de mulher, “mais” do que ela: falicamente mais bela, mais rica, mais bem-sucedida, mais perfeita. E através delas procura os “[...] segredos de como ser mulher através de vínculos de cumplicidade com certas mulheres idealizadas” (MAYER, 1989, p. 63). Vínculos imaginários que A* estabelece vorazmente em rede.

Freud ensina que é na representação do corpo que a histérica faz a sua escritura, no corpo erógeno significado pelo conflito sexual, corpo da mostração das manifestações fantasmáticas do sujeito (CAMPOS, 2002, p. 33). De um lado, um corpo quase onipresente; de outro, um corpo incompleto, castrado, que busca na acumulação dos likes a visibilidade e o reconhecimento do feminino, de uma restauração narcísica, de um espelho que a forje toda.

Juan-David Nasio (1991) explica que o objeto perdido da histérica é o falo, que ela produz um investimento narcísico no corpo como um todo, erotizando-o e revivendo a primitiva ligação com a mãe quando era o falo dela. Falo que se atualiza a cada postagem das fotos e imagens cuidadosamente concebidas, editadas, recortadas e idealizadas.

Se, para todos, o advento da subjetividade se dá no encontro com o outro, no encontro com a alteridade, com os outros dos cuidados e como projeções do narcisismo parental, espelhos que nos permitem uma unidade corporal e uma identificação com uma imagem, para Ana*, essa busca se atualiza a cada clique e postagem, pois a histérica aponta para a impossibilidade de sair dessa relação em que era o objeto de desejo do outro, para buscar o falo e tê-lo.

Capturada nas redes e seus espelhos narcísicos, objeto de desejo do outro, A* não consegue – não pode – perder os anos, a beleza, a juventude. Não pode perder o falo que nunca teve. Luto que não pode fazer do próprio Retrato, como Cecília Meirelles (2001) elabora:

Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
– Em que espelho ficou perdida
a minha face?

Etienne Trillat (1991, p. 281) afirma que a histeria foi despojada e que “[...] perdeu seus trajes ridículos, estranhos, desconcertantes, aqueles que, aos olhos dos médicos, constituíam seu atrativo e charme”. Será? Trillat deveria navegar e dar uma espiadinha no perfil da A* no Facebook, no Instagram.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: vanuza.postigo@uol.com.br

Recebido em: 08/10/2015
Aprovado em: 12/10/2015

 

 

SOBRE AS AUTORAS

Gisele da Silva Bandeira
Psicóloga pela UFF.
Especialista em Psicologia Clínico-Institucional, modalidade Residência Hospitalar - HUPE/UERJ.
Especialista em Psicanálise e laço social /UFF.
Especializanda em Saúde da Família /UFF.
Psicóloga da equipe do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) da CF Rinaldo de Lamare - Rocinha.

Vanuza Monteiro Campos Postigo
Psicóloga pela PUC-RJ.
Especialista em Psicologia Clínica pela PUC-RJ.
Mestre em Psicologia pela UFRJ.
Doutora em Teoria Psicanalítica pela UFRJ.

 

 

1 Trabalho apresentado na XXXIII Jornada do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais - Psicanálise e Contemporaneidade: o Mundo Virtual em Questão, realizada em Belo Horizonte (MG), no Centro de Convenções do Hospital Mater Dei, nos dias 2 e 3 out. 2015.
2 O belo semideus Narciso, indiferente aos amores que inspirava, despertou a ira da ninfa Eco, que pediu à deusa Nêmesis que se vingasse do desprezo de Narciso. Esta fez com que Narciso se apaixonasse pela própria imagem refletida, até fenecer à beira do lago e se transformar numa flor.

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