SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 issue45Ice age art - cave art: and humanity’s first totem (or, isn’t it that Totem and taboo could be right?) author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.45 Belo Horizonte July 2016

 

EDITORIAL

 

É verdade, eu vivo num tempo sombrio!
Uma palavra sem malícia é sinal de tolice.
Uma testa sem rugas é sinal de indiferença.
Aquele que ri
Ainda não recebeu a terrível notícia.
Que tempos são esses, quando
Falar sobre flores é quase um crime
Pois significa silenciar sobre tanta injustiça?
Aquele que atravessa a rua tranquilo
Já está inacessível aos amigos
Que passam necessidades?
BRECHT, B. Aos que virão depois de nós.

 

Gostaria em primeiro lugar de parabenizar a todos os colegas do Círculo Brasileiro de Psicanálise pela aquisição da nota B2 (CAPES/ANPPPEP) pela nossa revista Estudos de Psicanálise, nota excelente para uma revista da área de ciências humanas não ligada à universidade e reconhecimento de um trabalho em equipe de todas as federadas, mostrando a qualidade de nossa produção.

Mas não poderia deixar de trazer alguns pontos de reflexão sobre o momento atual de crise brasileira, crise política, jurídica, cultural, econômica, institucional e popular. Independentemente da posição individual política, o psicanalista não pode se calar e deixar de trazer contribuições à sociedade onde vive, nem que seja pela possibilidade de circulação da palavra e das ideias. Sublinho que tratar do tema “política” implica não atuar de maneira partidária, mas apenas abordá-lo, discuti-lo para não fazer dele tabu.

Christian I. L. Dunker (2016) em seu excelente artigo A crise brasileira como retorno do recalcado, afirma que “[...] desde o golpe militar de 1964, a reflexão sobre si mesmo feita pelo Brasil foi abolida”. Até o golpe havia pensadores como Gilberto Freire na sociologia, Sérgio Buarque de Holanda na história, Caio Prado Junior na economia, Antônio Cândido na Teoria da literatura, além do trabalho revolucionário dos modernistas dos anos 1930 e da neovanguarda dos anos 1960 nas artes e na arquitetura.

Desde o golpe de 1964, houve segundo ele um “[...] hiato sobre a reflexão da brasilidade, que foi substituída por uma narrativa de estado definindo a ordem e o ritmo de um projeto nacional de desenvolvimento”. A discussão anterior, para o autor, jamais foi retomada, a não ser de forma esporádica e assimétrica.

Após anos de ditadura, chega ao poder uma esquerda que não conseguiu fazer a tão necessária reforma política e que, em suas próprias palavras “[...] não promoveu reforma agrária maciça, não estatizou bancos, nem muito menos promoveu controle direto da economia”. Vimos, no entanto, alguns progressos sociais segundo o autor: aumentou nesse período “[...] a defesa das minorias, das pautas sobre desigualdade real na educação, na produção cultural e nos direitos humanos”. Programas de renda mínima e de habitação retiraram milhões da miséria absoluta, mas segundo o autor, estão presentes em governos liberais em várias partes do mundo. Mesmo assim, e paradoxalmente, o mal-estar na sociedade brasileira parece aumentar: em vez de os avanços sociais e civilizatórios trazerem satisfação, pacificação, unificação, o que se revela são os fenômenos de estranhamento, a exacerbação do narcisismo e da intolerância em relação às mínimas diferenças, como Freud descreveu mais de uma vez em seus textos sobre a civilização e as multidões. Como poderíamos entender o que se opera na sociedade brasileira de nossos dias?

A psicanálise nos ensina que, quando algo é negado, não aceito ou mal-elaborado, isso volta. O que é negado no simbólico volta no simbólico enquanto sintoma, no caso um sintoma social.

Dunker (2015) em seu livro Mal-estar, sofrimento e sintoma, propõe um nome para o sintoma social em questão: “vida em forma de condomínio”.

[...] em vez de espaço público, incorporação imobiliária; em vez de representantes orientados para fins coletivos, síndicos e gestores interessados apenas na eficácia dos meios; em vez de leis, regulamentos feitos às pressas conforme as contingências; em vez de diferença e negociação social, muros de segregação; em vez de afetos sociais como a culpa e a vergonha, a soberania política baseada no medo [...] (DUNKER, 2016).

Trata-se, para o autor, de uma forma de vida que é sintoma social desse hiato histórico sobre a reflexão da brasilidade. Seguindo o autor, [...] esta forma de vida explica a favela, os shoppings centers, os condomínios habitacionais, além dos condomínios da saúde, da educação, da cultura e da [segurança pessoal] (DUNKER, 2016).

Esse sintoma social se torna insuficiente; então, o que é negado no simbólico retorna no real enquanto trauma. A violência impede a circulação da palavra, anulando a possibilidade de diálogo. Amigos de longa data desfazem amizade nas redes sociais por questões políticas. Posts em redes sociais propõem dividir o Brasil. Para Dunker (2016), “[...] quando o outro não concorda com o nosso ponto de vista, imediatamente é tratado como petralha ou coxinha”, acentuando o mal-estar e o discurso do ódio, que justifica, entre outras coisas, a polícia armada para evitar o encontro entre passeatas de opositores, crianças espancadas simplesmente por estarem vestidas de vermelho e profissional médico se recusando a atender paciente por ser filho de pessoa pertencente a partido com o qual não se identifica respaldado (pasmem!) pelo conselho de ética. De onde questiono: que ética esperar de um conselho desses?

Freud (1933), em seu texto Por que a guerra?, nos traz a correspondência entre dois gênios: Freud e Einstein proposta pela Liga das Nações, com o objetivo de refletir sobre temas importantes para o futuro da humanidade. Freud não é otimista sobre a capacidade do homem de evitar a guerra. E nos lembra que o ser humano contém em si as pulsões de vida ou erótica e as pulsões de morte ou destruição intimamente intrincadas. Para Freud, não há como eliminar por isso os impulsos agressivos do homem, já que estão intimamente ligados à pulsão de vida, mas pode-se tentar desviá-los de modo que não necessitem encontrar expressão na guerra.

Se o desejo de aderir à guerra é efeito da pulsão de morte constituinte de cada ser humano, a recomendação mais evidente será contrapor-lhe seu antagonista: Eros. Então, para Freud, tudo o que favorece o estreitamento dos vínculos emocionais entre os homens pode evitar a guerra. Em primeiro lugar, um objeto amado que possa ser comum para ambos os lados e sem finalidade sexual. Por isso, a religião institui como lei: “ama a teu próximo como a ti mesmo”, extremamente difícil de exercitar, nos diz Freud. Em segundo, o vínculo emocional, que utiliza a identificação. O que leva os homens a compartilhar interesses importantes produz esta comunhão de sentimento, esta identificação.

Em que a psicanálise pode dizer ou fazer que possa ajudar o Brasil a sair da crise social em que se encontra? Em primeiro lugar, propagando a volta da circulação da palavra, suportando as diferenças, diferenças que podem surgir, inclusive, da leitura de um editorial como este; também o saber que de toda crise pode germinar algo produtivo, pensadores criativos que consigam recuperar o hiato perdido das reflexões sobre a brasilidade, que trará laços de união que são, segundo Freud, a saída possível para a crise de hostilidade e o mal-estar, próprios das relações humanas civilizadas, que hoje afloram como aspecto, antes pouco visível e agora vívido, das relações sociais no Brasil.

E finalizamos voltando a Brecht, em seu tão contemporâneo Aos que virão depois de nós:

Vocês, que vão emergir
Das ondas em que nos afogamos.
Pensem, quando falarem das nossas fraquezas,
Dos tempos sombrios de que tiveram a sorte de escapar.
Nós existíamos através das lutas de classes,
Mudando mais de país do que de sapatos,
Desesperados quando só havia injustiça
E não havia revolta.
Nós sabemos:
O ódio contra a baixeza
Também endurece o rosto;
A cólera contra a injustiça
Também faz a voz ficar rouca.
Infelizmente nós,
Que queríamos preparar o terreno para a amizade,
Não pudemos ser,
nós mesmos, bons amigos.
Mas vocês, quando chegar o tempo
Em que o Homem seja amigo do Homem,
Pensem em nós
Com simpatia.

Isabela Santoro Campanário
Psiquiatra.
Psicanalista.
Mestre e doutora em psicologia pela UFMG.
Professora dos cursos de formação em psicanálise do CPMG.
Coeditora da Revista Estudos de Psicanálise.

 

Referências
DUNKER, C. I. L. A crise brasileira como retorno do recalcado. Disponível em: http://brasileiros.com.br/2016/05/crise-brasileira-como-retorno-recalcado. Acesso em jun. 2016.

DUNKER, C. I. L. Mal-estar, sofrimento e sintoma. São Paulo: Boitempo, 2015.

Creative Commons License