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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.45 Belo Horizonte jul. 2016

 

 

Por que fazer psicanálise? Carta a um amigo

 

Why psychoanalysis? Letter to a friend

 

 

Anna Bárbara de Freitas Carneiro

I Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente trabalho chama a atenção para a importância de algum movimento do sujeito em relação à repetição de escolhas e comportamentos que trazem sofrimento. Na forma de uma carta dirigida a um amigo, possível analisante, fala um pouco da trajetória da psicanálise, algumas peculiaridades, seus potenciais benefícios e desafios.

Palavras-chave: Psicanálise, Transferência, Resistência, Trauma, Desejo, Imaginário.


ABSTRACT

The present paper calls the attention to the importance of some movement of the individual to meet the repetition of choices and behaviors that bring suffering with them. In the format of a letter directed to a friend and potential patient, it describes briefly the path of psychoanalysis, some peculiarities, benefits and challenges.

Keywords: Psychoanalysis, Transference, Resistance, Trauma, Desire, Imaginary.


 

Meu caro amigo,

Escrevo-te para retomarmos aquele velho assunto: você está sofrendo de amor e se queixa disso. E eu te respondo quando você aparece com seus “novos” problemas, sempre os mesmos, ainda que te pareçam diferentes, pois afinal a parceira mudou, eu te digo para fazer análise, invariavelmente. Por que eu retomo esse assunto do qual você aparentemente não gosta? Fazer análise?

Porque vejo que você não tem andado bem, aquelas antigas queixas voltaram, e se você está se queixando, é porque algo está incomodando. Você se angustia, e na angústia há algo. Há uma inquietação que diz da falta. Falta algo, e isso pode ser sentido, vivido como carência de amor. Tudo o que você me diz remete a um mal antigo, com o qual Freud se deparou: o mal de amor.

É que, quase sempre, no seu mal-estar estão as mulheres, a relação com as sucessivas mulheres de sua vida. As mulheres, aqueles seres complicados para você, que te atormentam tanto. E agora você achou novamente uma que te acendeu o desejo, que tem o brilho do “objeto a”, como dizia Lacan, aquela “Coisa”, o que falta para a sua plenitude.

Aquela “Coisa” que é na verdade o impossível. E aí você me diz com a habitual franqueza (para não dizer falta de verniz civilizatório): “Que asneira é essa, de objeto a e que Coisa é essa, do que é que você está falando?”.

Vou esclarecer: estou falando daquela coisa, de algo ou alguém que desejamos, aquilo ao qual se referia Buñuel, nosso surrealista favorito, o “obscuro objeto do desejo”, aquilo que vai nos deixar para sempre felizes, a outra parte de nossa moeda partida, a cara-metade.

Você agora, depois de muito tempo lutando para encontrar alguém pela internet, achou por acaso numa festa essa mulher bacana, com a qual você gosta de conversar, de ter sexo, de estar junto. Tudo ótimo. Mas de repente aquele velho conhecido, o ciúme, começa a roer. Aí você se queixa da atenção que ela dá ao ex-marido, ao ex-namorado, às amigas e até aos filhos! E que você suspeita que ela não gosta de você como você gosta dela, que ela te quer só para ter um homem ao lado... Embora seja esse homem, você não serve!

Parece que você quer o amor pelo amor, o amor arrebatado de tudo e de todos, como se vocês estivessem em uma ilha deserta! Será assim? Você diz que ela não te quer como você a quer, que ela valoriza demais as amigas, a família, os outros. Percebe que você quer tudo? O corpo, a alma, todos os desejos da criatura? E que se não for assim, não serve?

Mas, meu caro amigo, nunca vai ser assim. Isso só é assim no mundo imaginário, idealizado, dos contos de fadas: “e foram felizes para sempre”. Para sempre! E a história acaba aqui. Não se fala das mazelas do dia a dia, dos atritos, dos conflitos pequenos e dos grandes, das micro e das macrodecisões a dois, desgastantes, e finalmente do envelhecer, dos cabelos brancos, das rugas, das traições, da infidelidade. Enfim, não se toca no mundo como ele é. O real.

Tudo bem. Amigos e amigas são para isto: para nos queixarmos, para nos dar conselhos, para nos ouvir desse jeito que nos apoia, com o qual nos identificamos, que sabemos que vai nos “entender”. Já explico essas aspas, logo a seguir, pois preciso aqui fazer um parênteses. Parar a escrita um pouco para refletir sobre esta questão deste ombro amigo aqui.

Sabe por quê? Porque parece que já ouvi essa mesma história muitas vezes antes, vinda de você. Outras mulheres, mas as mesmas queixas. Igualzinho... O que me fez pensar que talvez o problema não sejam elas, mas você. Você já pensou nisso? Sim, sei que você está revoltado ao ler isto. Não fica não. Eu vou tentar te explicar.

Aliás, é bem por isso que te escrevo, para que você me deixe “falar”. Senão você já teria ido embora, batido a porta, berrando que eu não te entendo ou mudado de assunto, falando mal do governo, como tudo está errado, como são revoltantes a corrupção e as bandalheiras do governo. Concordo. Isso dá “pano para manga”.

Mas voltemos ao seu caso. Eu já tinha te falado antes que eu julgava que seria bom você fazer análise. Você nunca levou isso a sério, portanto agora eu resolvi escrever esta carta para você e tentar te explicar por que acho que uma psicanálise seria interessante. De novo, por que escrever? Porque você poderá ler, reler, rabiscar, pregar no espelho e até rasgar, não importa. Pensando bem, importa sim.

Não rasgue. Leia várias vezes. Discuta comigo. Troque ideias. Mas de todo jeito, acho que vou fazer uma cópia, para te mandar de novo, quando acabar esse relacionamento atual e aparecer a próxima mulher perfeita. E a choradeira seis meses depois!

Bom, acho que você já achou complicada essa história de “objeto a”. Mas já deu para entender que é alguma coisa importante, um objeto que a gente está sempre prioritariamente procurando? E sabe por quê? Está tudo na infância. É lá que fazemos certas escolhas, que aprendemos a preferir certas coisas em vez de outras.

Então esse tal de “objeto a” é “a Coisa”, E corremos atrás dela a vida toda. É aquilo que nos completaria, que nos atrai, que nos enfeitiça, sempre mais adiante, nunca alcançável. Alienados no Outro, escapulimos em parte do desamparo, nos amarramos em alguma significação.

Mas como a existência humana é muito complexa, resta sempre um ponto em que o sentido vacila. Um furo, uma brecha. E é através dessa falha, dessa falta que constituímos o nosso desejo, desejo que nos funda como sujeitos na acepção psicanalítica.

Sei que você vai achar complicadas essas e outras coisas que eu vou falar, mas depois te explico, está bem? Uma boa desculpa para nos sentarmos, quem sabe abrir um bom vinho e conversar. Talvez até muitos vinhos, pois a coisa é complexa, mas vai depender do seu desejo de saber...

Mas voltando ao desejo, esse é o que nos faz aferrar à Coisa, que supostamente nos faria plenos, sem faltas.

“Coisa” que se traduz por um objeto que de fato nunca existiu, que foi perdido na inscrição mesma de nossa humanidade, mas que funciona para nós como a preciosidade escondida que perseguimos, dado que na fantasia ele nos retiraria da condição de carentes ou devedores em relação ao Outro salvador. [...] É como se a esperança fosse de que, ao obter esse objeto, eu pagasse a dívida que tenho para com o Outro e me libertasse de suas exigências (MAURANO, 2003, p. 50).

Você concorda comigo que, se repetimos as mesmas atitudes e dá errado, temos que mudar se queremos que o resultado seja diferente? Mas repetir a mesma coisa e querer resultados diferentes é sinal de que a metodologia não está boa (Einstein disse que seria sinal de estupidez, mas eu não diria tanto).

A verdade é que o inconsciente insiste. Ele é o que é e persevera. Insiste até que possamos ter algum acesso a ele para então poder talvez fazer algumas ‘edições’ nos registros. Poder entender, aceitar, poder mudar a relação com o objeto, fazer até mesmo um luto desse objeto da fantasia, pelo menos uma relativização.

Então, talvez escolher se reposicionar na relação com o Outro, e poder (enfim!) eleger outra coisa além da repetição das mesmas fantasias, que respondem ao enigmático desejo do Outro, com a mesma ladainha de queixumes e frustrações.

Poder ver mais claro nesse emaranhado de pulsões, desejos, libido... E às vezes até continuar com os mesmos comportamentos, mas sabendo. E esse saber faz toda a diferença. Sabendo o quê? Bem, vamos por partes, vamos falar do início.

Essas coisas todas vêm da infância, dos traumas. E o que são os traumas? O trauma é o elemento mesmo que constitui o psiquismo, as vicissitudes na história do sujeito, esse ser imerso na linguagem, que, em vez de instintos, tem as pulsões, essas que o movem sempre à busca da satisfação.

Nossas vicissitudes começam ao nascer, nós que nascemos antes da hora, isto é, somos prematuros, totalmente desamparados por um longo tempo. Sem cuidados iniciais e contínuos, nenhum de nós sobreviveria. Esses cuidados são ministrados por alguém, geralmente a mãe ou a mãe e o pai, ou quem faz às vezes deles. E chamamos essas criaturas iniciais de o “grande outro”, o “Outro”, com maiúscula.

[...] o trauma é uma noção extremamente ambígua, porque parece, segundo toda evidência clínica, que sua face fantasmática é infinitamente mais importante que sua face do evento (LACAN, [1953-1954] 2009, p. 46).

Isso um dia eu te explico melhor. Não, já sei o que você está pensando. Eu não estou me queixando de ter que ouvir sempre as mesmas coisas. O que acontece é que eu quero ajudá-lo e não consigo. Fico vendo você preso a uma repetição sem fim, como um disco quebrado, sempre repetindo os mesmos “tristes velhos fatos”, que se renovam em novos objetos de desejo, e sempre com o mesmo fim, sem fim. Concorda comigo? Claro que não.

Mas se você se desse essa oportunidade... De passar um pente fino na sua história e poder entender o que está por trás disso, qual é afinal o seu fantasma, que te deixa angustiado, que te deixa sempre insatisfeito, inquieto, infeliz.

Não que a análise seja uma promessa de felicidade eterna. Ela é um trabalho duro, foi chamada do “osso duro de roer”... Mas garanto que a maioria não quebra os dentes e até encontra um pouco de paz e felicidade. Poder amar e trabalhar, como dizia Freud. Ou ser um pouquinho feliz, segundo Lacan. Deixar a miséria da infelicidade neurótica para uma infelicidade comum já pode ser um bom começo.

E por que a psicanálise? Claro, a análise não é um caminho para todos. Se a pessoa já tem um pouquinho de felicidade, quem sabe não precisa passar pela dura viagem. Outros conseguem contornar os duros problemas da existência humana através da religião, da arte, da ciência. Existem outros caminhos. A psicanálise é um deles. Talvez não seja o seu. Mas mesmo assim, que custa tentar?

Muitas vezes só se recorre à psicanálise depois de inúmeras tentativas fracassadas de suprimir o mal-estar, como consumo, drogas, medicamentos, conhecimento, religião, informação, tecnologia, terapias mais diversas, dinheiro. Uma longa lista. No seu caso, sou sabedora de seu ateísmo, de que você não tem veia artística nem paixões maiores pela militância política ou pela ciência.

Bem, enfim, como lidar com essas questões? A análise me parece uma boa saída nesse seu caso, na sua busca. Claro, se você assim o desejar. Porque o desejo é a mola mestra do tortuoso caminho para se chegar à análise, caminho onde muitos se perdem. Sem o desejo, não há análise. Aí se encontra mesmo a ética da psicanálise. A utilidade da psicanálise não pode ser abordada nem apreendida se não se explicita qual é a sua direção ética.

Se refletirmos sobre o sentido da ação, realizamos uma reflexão ética. E a ética da psicanálise está no desejo. Como já disse em outras palavras, sem desejo não existe análise. Como fazer alguém desejar enfrentar os seus fantasmas?

Aí forçosamente entra o sofrimento, entram os sintomas, as repetições. E o saber da possibilidade de um caminho. Antes de Freud inventar a psicanálise, de começar a atender suas histéricas, esse caminho não existia. Ele passou a existir, passou a ser uma possibilidade, e veio se aperfeiçoando ao longo do tempo. Um sistema em construção constante, com importantes contribuições de diversos psicanalistas e outros campos do conhecimento, para enfrentar as novidades, as mudanças na vida da humanidade.

No tempo de Freud não havia internet, redes sociais eletrônicas, celulares, comunicação instantânea, consumo desenfreado. E os sintomas e a maneira como o sujeito lida com seu sofrimento mudaram também. Mas estão aí... De outras formas.

E para fazer análise, é preciso falar. Na fala, no simbólico está o caminho analítico. As outras dimensões, o real e o imaginário, também estão sempre presentes. Mas na conjunção do simbólico e do imaginário, quem sabe, você encontra o amor? E note que

[...] o amor distingue-se do desejo, considerado como relação-limite que se estabelece de todo organismo ao objeto que o satisfaz. Porque seu ponto de mira não é a satisfação, mas o ser. [...] Aprendam a distinguir agora o amor, como paixão imaginária, do dom ativo que constitui no plano simbólico (LACAN, [1953-1954] 2009, p. 314).

“Miséria neurótica”. Sim, estou te chamando de neurótico, pelo que conheço de você. Você não é nem psicótico, nem perverso. Então possivelmente teria uma estrutura de neurótico, talvez obsessivo. Esse rótulo importa? Não muito, mas é bom saber que existe essa possibilidade. Quem sabe, assim você se anima a fazer análise? Mas pode ser que isso aumente sua resistência.

Então, melhor não falar disso. Quando for passar a carta a limpo, talvez vá ter que tirar esta parte. Talvez tire muitas partes, e a carta vire um bilhete, com uma ordem lacônica: “faça análise”. E com uma indicação de um ou uma analista, ou os dois. Esta parte é difícil: indicar um analista. Como saber qual seria adequado?

Isso importa? Não sei, deve importar. Eu mesma já tinha passado por vários, em diversas épocas e posso dizer que fiz duas análises: uma quando mais jovem, outra agora. E sei que, quando o analista “não bate”, não adianta, a coisa não vai. Não se faz a transferência. Vou falar disso depois. Vou falar da resistência primeiro.

A resistência é algo que todos temos em algum ponto, porque na análise vamos mexer em coisas que doem. E temos medo. O “eu”, nossa parte consciente, tem medo das coisas que estão lá no fundo, tem medo de acontecer uma mudança radical que desejamos, mas que não queremos. Por exemplo: “O filho da comadre Maria foi fazer análise e virou gay”. Ou da moça que entrou para uma análise e não obedecia mais aos pais. Ou da mulher que largou o marido depois da análise.

Claro que isso tudo pode acontecer. Mudanças que correspondem ao desejo do analisando descoberto no trabalho analítico, por baixo de muitas camadas de ilusões... E que certamente refletem escolhas feitas com mais clareza e menos conflito, menos raiva e seu corolário, a culpa.

Vistos de fora, esses resultados parecem estranhas produções, mas só o sujeito, o sujeito do inconsciente pode saber. Ele é inalcançável, até certo ponto, mesmo para ele próprio. Por exemplo, eu vejo você se debatendo com a relação com as suas mulheres e não tenho uma pista de como você chegou aí.

Só você pode saber. Se buscar e saber através da palavra falando com alguém treinado para guiá-lo nos meandros do seu inconsciente. Buscar os traumas, as marcações, os trilhamentos que fizeram suas experiências da infância. Mas a viagem é sua, o analista é um guia. Um trabalho a dois: você atualiza com o analista as suas questões passadas.

Desde o início da psicanálise, Freud observou manifestações de hostilidade e várias formas de rejeição a ela, constatando que a psicanálise desferiu contra o narcisismo humano um ataque comparável às feridas geradas por Copérnico e Darwin.

É que a psicanálise mostrou que nosso eu consciente não é senhor de sua casa, isto é, que nós agimos, sonhamos, fazemos sintomas e atos falhos sem saber o porquê, sem conseguir ter o controle de nossas pulsões, e às vezes nem contorná-las, sendo por elas escravizados. E quando achamos que estamos no controle, surge um sintoma, um sonho ou um ato falho e nos desmente.

A resistência na análise se manifesta pelas reações do analisando, que criam obstáculo ao desenvolvimento do trabalho analítico (ROUDINESCO, 1998, p. 659). Elas são interpretáveis e, portanto, passíveis de ser superadas. A resistência pode se originar de uma instância chamada “isso” (ou id) e leva à compulsão à repetição, isto é, repetir sempre as mesmas coisas que trazem sofrimento. Mas pode ser superada quando o sujeito integra uma interpretação, isto é, quando ele elabora o seu sintoma.

O que é fundamental no processo da análise é uma coisa chamada transferência. A transferência é feita do mesmo estofo do amor comum, mas é um artifício, uma vez que se refere inconscientemente a um objeto que reflete outro: o analisando julga amar o analista, mas na verdade está encenando, através da realidade analítica, a realidade do inconsciente.

É a materialização de uma operação que se relaciona com o engano e consiste em instalar o analista no lugar do “sujeito suposto saber”, isto é, atribuir a ele o saber absoluto (ROUDINESCO, 1998, p. 769).

Através da palavra, o meio fundador da relação intersubjetiva, há a modificação retroativa dos dois sujeitos: o analisando e o analista. (LACAN, [1953-1954] 2009, p. 313).

Todo progresso no mundo simbólico suscetível de constituir uma revelação implica, pelo menos por um momentinho, um esforço de pensamento. Ora, uma análise não é nada senão uma série de revelações particulares para cada sujeito (LACAN, [1953-1954] 2009, p. 304).

Revelações... Será que você quer ter revelações sobre você mesmo? Será que você quer se conhecer melhor, saber o porquê das suas coisas, por que seus relacionamentos nunca dão certo?

Em vez de atribuir a causa dos fracassos sempre aos outros, quem sabe você poderia passar pela chamada “retificação subjetiva”, ao ver a sua participação nas acontecências amorosas de sua vida?

Ajustar o seu olhar: constatar, descobrir que o que acontece decorre pelo menos em parte do que você “faz e acontece”? Qual é a sua participação nesse processo de amor/desamor? Nessa repetição de que passados os primeiros seis meses tempestuosos de paixão com alguém em quem você viu um brilho diferente, você comece a ver os defeitos dessa mulher e comece a pensar em outra(s)?

Tempestuosos sim, pois sempre há um ciúme, uma cobrança, desde o início, uma suspeita de que seu imenso amor não é retribuído, que há um vão, uma hiância, que não deveria haver, na sua opinião. Que a pessoa não te ama tanto quanto você a ama. Não é verdade? Não é esse um moto constante na sua vida amorosa?

Mesmo em relação a outras figuras femininas em sua vida, como aquelas “tias velhas” no interior, que não dão a você o devido carinho, a devida atenção, você já pensou quem são essas tias ingratas? O que elas representariam? E se a ingratidão revelar apenas o descompasso entre o seu desejo inconsciente e a realidade, que “é o que é”, à qual você deve se ajustar ou trabalhar para mudar... Tudo isso é analisável.

Finalmente, só posso te dizer que vale a pena, pois passei pelo processo, por essa viagem às vezes confusa, dolorosa, mas que sempre leva a uma maior compreensão, clareza e descobertas.

Se eu pudesse voltar, a única coisa que mudaria é que faria análise mais cedo. Para fazer melhores escolhas. Para aproveitar melhor a lucidez que acompanha o processo, a travessia do nosso fantasma, o fantasma da completude, de que um dia, de alguma forma vamos achar algo ou alguém que nos complete totalmente, em uma relação perfeita e redonda. A cara-metade, o yin-yang, a outra parte da moeda, aquilo ou alguém que obture a falta, este vazio que nos acompanha.

O vazio não some. Mas aprendemos a lidar com ele e com o desamparo inerente à condição humana, e a aceitá-los, ambos. E quem sabe, então, transformemos aquela pessoa que está ali ao lado, não na solução de todos os nossos problemas, mas na companhia agradável para uma viagem prazerosa?

Então, finalmente (e repetindo como você!), eu entendo que seria bom para você fazer psicanálise, para que esse seu sofrimento repetitivo, recorrente ou até mesmo circular, possa passar por uma reflexão.

E aí talvez você possa ter um pouco mais de alegria e serenidade, talvez enxergar que não são sempre os outros, que às vezes a coisa é em você mesmo e que, portanto, você pode ter escolhas. Quem sabe?

 

Referências

FREUD, S. Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise (1912). In: ______. O caso Schreber, artigos sobre técnica e outros trabalhos (1911-1913). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 125-133. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 12).         [ Links ]

LACAN, J. O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud (1953-1954). 2. ed. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Betty Milan. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. (Campo Freudiano no Brasil).         [ Links ]

MAURANO, D. Para que serve a psicanálise? Rio de Janeiro: Zahar, 2003. (Col. Passo a Passo, 21).         [ Links ]

ROUDINESCO, E.; PLON, M. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: annaproietti@gmail.com

Recebido em: 22/04/2016
Aprovado em: 03/05/2016

 

 

SOBRE A AUTORA

Anna Bárbara de Freitas Carneiro
Médica.
Pesquisadora e escritora.
Candidata em formação no Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.

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