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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.45 Belo Horizonte jul. 2016

 

 

Prezado Dr. Freud

 

Dear Dr. Freud

 

 

Juliana Marques Caldeira Borges

I Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Refletindo sobre as questões da modernidade e do mundo virtual, a autora envia um e-mail a Freud fazendo um relato sobre a revolução tecnológica e os dias atuais.

Palavras-chave: Psicanálise, Modernidade, Web, Freud.


ABSTRACT

After reflecting over the modern life and the virtual world, the author emails Freud giving an account of the technological revolution and the present days.

Keywords: Psychoanalysis, Modernity, Web, Freud.


 

A XXXIII Jornada do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais,1 na qual apresentei o trabalho Navegar é preciso, viver não é preciso? - o sujeito nas ondas da Web, e o XXI Congresso do Círculo Brasileiro de Psicanálise2 trouxeram questões acerca da modernidade e do mundo virtual para pensarmos sobre esses novos tempos e a psicanálise.

Esse sujeito, mergulhado quase vinte e quatro horas nas ondas da Web, o que se tornou? Um descobridor dos sete mares, mas sem destino e sem desejo, uma vez que tem tudo ao seu alcance?... Já não se fazem mais tesouros como antigamente? No fundo desse mar ainda é possível descobrir algo que nos retire da nova ordem vigente?

“Tenha tudo, saiba de tudo, compre o que quiser, escreva o que quiser, faça a guerra que quiser, encontre o amor que quiser, o sexo... como quiser”, basta ter o aplicativo do dia, o clique do dia, o computador do dia, o iphone, o ipad.

E o que, então, teremos ainda para pedir, posto que a fantasia não mais espera um gênio aprisionado numa lâmpada perdida nas areias de uma praia, que outrora habitou os sonhos de nossa geração?Aliás, é possível fantasiar e desejar nos dias de hoje?

Com tantas dúvidas me cercando, resolvi enviar um e-mail ao Freud,3 na esperança de que a tecnologia tenha chegado também a ele:

“Prezado Dr. Freud, quem lhe escreve é uma analista um pouco perdida com os tempos modernos e necessitada de sua ajuda. Tudo aqui embaixo mudou muito. Inventaram uma maneira de estarmos ligados uns aos outros o tempo todo. O senhor não conseguiria jamais supor isso. Essa ligação foi nomeada de ‘conexão’. Ficamos, assim, conectados por aparelhos que nos fazem conversar vinte e quatro horas, às vezes sem tempo nem para comer.

A intensidade é tão grande que já existem sintomas: jovens que morrem de desidratação por não conseguirem sair da frente desses aparelhos chamados de computador, smartphones, tablets, ipads, iphones. Crianças que não conseguem mais escrever com letra cursiva, pois só sabem digitar no teclado desses aparelhos.

O senhor se lembra de como era a emoção dos toques de dedos ou mãos, no escuro de um cinema, entre pessoas apaixonadas em um primeiro encontro? Ih, isso não existe mais. Os dedos estão ocupados com alguns desses objetos, e os rostos só olham para baixo. Acho que quase ninguém mais nesses novos tempos olha para o céu ou para a lua, principalmente os jovens. Os poetas estão a ponto de fazer greve, pois acham que estão aqui para nada.

Os significantes? Ah, esses quase em extinção. Por quê? Quase ninguém usa uma linguagem singular. E agora só se escreve “kkkkkk”, “top top top”, #partiu e se usa emoticons para se expressar, uns desenhos de tudo quanto há para representar alguma coisa: comida, felicidade, tristeza, amor, viagem, filhos. E por aí vai. Pois é, veja aonde chegou a representação de coisa e de palavra (ARNAO, 2008).

O senhor iria estremecer com tudo isso. Os paranoicos? Não, eles não nos procuram mais. Por quê? Ficou impossível sair de casa. Se antes eles ‘desconfiavam’ que poderiam ser seguidos, agora eles têm certeza. Vários aplicativos nos localizam para qualquer pessoa e em qualquer lugar. Basta instalar no celular.

E o famoso falo? (LACAN, 1988). Lembra como causava inveja e era objeto de desejo? Inventaram por aqui um genérico que enlouqueceu todo mundo. Foi nomeado de pau de selfie,4 uma verdadeira mistura do falo com o narcisismo (FREUD, 1914).

Nem um gênio como o senhor teria sido capaz de prever tal instrumento, que agora vive registrando tudo e todos... Funciona da seguinte maneira: uma haste que estica e encolhe de acordo com a vontade de cada um de se fotografar, capturando o cenário ao redor. Dizem que já tem cliente usando até em consultório de analista. Estica o pau de selfie e se fotografa deitado no divã com o analista na foto, sentado atrás em sua tradicional poltrona, porque essa ainda continua existindo, por enquanto.

O tal pau virou um verdadeiro fetiche... Casal, então, não passa sem usar. E ainda por cima, em público! Uma verdadeira onda de exibicionismo. Lua de mel e férias sem pau de selfie pode inclusive brochar todos os envolvidos. É o que ando escutando. A foto selfie postada nas redes sociais anda causando mais furor ao casal do que uma boa noite de sexo... eu desconfio. Muita coisa esquisita anda acontecendo.

Estou com sérias dúvidas de como realizar meu trabalho. Os clientes mandam WhatsApp (mensagens pelo celular) o tempo todo e a qualquer hora. Outro dia uma cliente no divã conversava com uma amiga por esse meio enquanto estava na análise. interrompi a sessão três vezes, e ela não me ouviu.

Por fim, enviei um WhatsApp dizendo “seu tempo acabou”. Ela então se virou e disse para mim que, se fosse para fazer análise pelo WhatsApp, ela ficaria em casa. Recusou-se a pagar a sessão, inclusive.

E o Skype? Ah, esse então nem vou explicar. O senhor não entenderia. Peço-lhe que dê um jeito de se transformar em um holograma e vir o mais rápido possível colocar ordem na casa. Estamos, todos nós, que ainda apostamos na psicanálise, precisando. Mas venha logo, por favor, senão não vou aguentar muito.

Sinto que estou chegando ao fim. Minha bateria está acabando. Quase não me resta nada. Fui programada para não entrar em contato com o senhor. Caso o fizesse, minha bateria iria se autodestruir em trinta segundos. Estou pifando, Dr. Freud, pirando pifando, pirando pifando, pirr...piff... pirando pifando, piffff, pifffff, pifei...”

 

Referências

ARNAO, M. A distinção entre representação de palavra e representação de coisa na obra freudiana: mudanças teóricas e desdobramentos filosóficos. Ágora, Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia da UFRJ, v. 11, n. 2, p. 187-201, dez. 2008.         [ Links ]

FREUD, S. Sobre o narcisismo: uma introdução (1914). In: ______. A história do movimento psicanalítico, artigos sobre a metapsicologia e outros trabalhos (1914-1916). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 81-113. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 14).         [ Links ]

LACAN, J. A significação do falo (1958). In: ______. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Revisão técnica de Antonio Quinet e Angelina Harari. Preparação de texto de André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 692-703. (Campo Freudiano no Brasil).         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: jucborges@gmail.com

Recebido em: 13/10/2015
Aprovado em: 03/05/2016

 

 

SOBRE A AUTORA

Juliana Marques Caldeira Borges
Psicóloga. Psicanalista.
Presidente do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais - triênio 2014-2017.

 

 

1 Ocorrido em out. 2015, em Belo Horizonte.
2 Ocorrido em jul. 2015, em Porto Alegre.
3 Este e-mail fez parte do Discurso de Abertura da XXXIII Jornada do CPMG, apresentado em 2 out. 2015.
4 Selfie: nome dado atualmente à fotografia que o sujeito faz de si mesmo ou de um grupo através de um celular ou aparelho similar com o dispositivo para fotografar; a pessoa que fotografa está inserida nesse cenário.

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