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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.45 Belo Horizonte jul. 2016

 

 

Violência e sexualidade: uma reflexão a partir da teoria psicanalítica

 

Violence and sexuality: a reflection derived from the psychoanalytic theory

 

 

Larissa BaceleteI; Paulo de Carvalho RibeiroI

I Universidade Federal de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo trata da ideia de que os comportamentos violentos são sempre atravessados pela pulsão, plenamente comprometidos com a sexualidade perversa e disruptiva da qual Freud (1905) fala em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Questionando a noção de que a violência é algo natural e inerente ao ser humano, examinamos os textos freudianos sobre a guerra e seus escritos sociológicos que abordam a questão do mal-estar e da agressividade. A noção de poder, de Hanna Arendt, também será essencial para desenvolver essa visão crítica sobre a violência, reconhecendo aí uma forma de determinados grupos manterem a opressão social, política e econômica sobre outros. Assim, acreditamos que as manifestações de ódio e discriminação que aparecem atualmente no cenário virtual, nas redes sociais, se apoiam em algo do sexual e do traumático daqueles que as praticam. Acreditamos que esses pontos podem demonstrar as implicações do inconsciente nas relações sociais, no engajamento de sujeitos em determinados grupos que se identificam com a segregação e com a prática violenta.

Palavras-chave: Violência, Sexualidade, Poder, Mídia.


ABSTRACT

This paper aims to address the idea that violent behaviors are always crossed by the drive, fully committed to the perverse and disruptive sexuality, which Freud (1905) deals with in his work “Three Contributions to the Sexual Theory”. Questioning the notion that violence is something natural and inherent to human beings, we will examine the freudian texts about war, and his sociological writings that address the issues of malaise and aggressiveness. The notion of power, by Hannah Arendt, will also be essential to develop this critical view on violence, recognizing in this a form of certain groups to maintain social, political, and economic oppression over others. Thus, we believe that the manifestations of hatred and discrimination which currently occur the virtual scenario, on social networks rely on something related to the sexual and traumatic elements of those who practice them. We believe that these points can demonstrate the implications of the unconscious in social relations, in the engagement of individuals in certain groups who identify with the segregation and violent practices.

Keywords: Violence, Sexuality, Power, Media.


 

A tarefa de analisar fenômenos sociais a partir de uma teoria cujo referencial é a clínica inevitavelmente nos conduz a algumas dificuldades. A principal delas talvez seja a questão da legitimidade: é possível extrapolar conceitos que surgiram num contexto específico para situações tão complexas e dinâmicas como as relações sociais?

Mas lembrando o que afirma o próprio fundador da psicanálise, podemos considerar que “[...] a psicologia individual é, ao mesmo tempo, também psicologia social” (FREUD, [1920] 1996, p. 81).

Primeiramente, é preciso dizer que Freud usou pouquíssimas vezes a palavra “violência”. Ele trabalha, na maioria das vezes, com o termo “agressividade”, o que já nos permite vislumbrar algo da abordagem teórica que tem sobre o tema. Fazendo, então, um apanhado sobre a agressividade em sua obra, podemos começar pelos escritos que trazem todo o seu incômodo e sua indignação em relação às guerras.

No artigo Reflexões para os tempos de guerra e morte, Freud ([1915] 1996) demonstra sua decepção com as nações “civilizadas”, das quais esperava mais solidariedade nos confrontos de guerra, ou “um embate de armas cavalheiresco”. Para o autor, o berço das artes e da ciência deveria encontrar formas mais pacíficas de resolver as diferenças políticas; no entanto, o que aconteceu foi um combate extremamente violento, no qual não houve preocupações com o socorro das vítimas ou a proteção dos mais frágeis.

Nesse texto, Freud diz acreditar que mesmo os indivíduos mais bem educados, cujos comportamentos são os mais nobres possíveis, conservam em si os conteúdos e os impulsos mais primitivos e egoístas, que podem emergir na ocasião de uma regressão moral e ética.

Freud aborda também a violência do estado: constata que este cerceia os indivíduos de exercer a agressividade uns com os outros não por considerá-la intolerável, mas por desejar o monopólio sobre tal prática. Dessa forma, a própria civilização na qual estamos inseridos não abre mão da violência, mas procura controlá-la para, assim, deter o poder entre seus membros. Entretanto, nota-se que numa situação de guerra as regras se revertem: a pressão social não é mais para que o homem renuncie à violência, e sim para que a cometa no campo de batalha. A violência entre os homens é tomada pelo estado como melhor lhe aprouver.

Em seguida, Freud especula sobre a origem do comportamento violento no ser humano. Para isso, lança mão de teorias sobre a vida em sociedades primitivas, nas quais não haveria os pudores que a civilização impõe em relação à morte, fazendo com que os homens não só desejassem o extermínio de seus inimigos, como também por vezes o exaltassem.

Apenas quando um indivíduo experimentava a morte de um ente querido (o que produziria culpa, pelo caráter ambivalente de seus afetos) a prática da violência era interrompida. Sentir a dor da perda de um membro de seu pequeno grupo faria com que o homem primitivo refletisse, cunhando, então, uma regra ética: “Não matarás!”. Freud nos lembra que

[...] uma proibição tão poderosa só pode ser dirigida contra um impulso igualmente poderoso. O que nenhuma alma humana deseja, não precisa de proibição; é excluído automaticamente. A própria ênfase dada ao mandamento “não matarás” nos assegura que brotamos de uma série interminável de uma geração de assassinos, que tinham a sede de matar em seu sangue, como talvez, nós próprios tenhamos hoje (FREUD, [1915] 1996, p. 306).

Nesse ponto, nota-se que Freud atrela a violência à ambivalência afetiva e à culpa. Existiria, então, uma tendência hostil em todo sentimento amoroso que temos por aqueles a quem queremos bem, e mais ainda, por aqueles a quem queremos mal.

Desse modo, situações extremas como a guerra só retirariam o verniz civilizatório que a educação imprime nos sujeitos, deixando transparecer as tendências agressivas e animais que os habitam. Nesse texto já é possível reconhecer uma nuance instintiva e biológica da violência no pensamento freudiano.

Em Por que a guerra?, carta a Einstein, na qual pretende responder aos questionamentos do cientista sobre os impulsos destrutivos do homem, Freud ([1933] 1996) corrobora essa visão filogenética, recorrendo novamente ao mito da horda primeva para explicar a origem das leis e da civilização. Na horda o pai tirânico é assassinado pelos filhos, que resolvem enfrentá-lo unindo suas forças.

Após o parricídio, eles se arrependem do crime, pois percebem que o pai representava não apenas um rival mas também uma figura amada. Decidem, a partir de então, se colocar como iguais e estabelecem leis que impedem o incesto e o assassinato. A culpa é o que instaura a capacidade de refrear o impulso destrutivo. Esse mito é lembrado na correspondência com Einstein para dizer que, a partir de uma situação de violência, surge a lei, e que a lei é que mantém a violência.

Provavelmente por isso, Freud diz que uma guerra em si não pode ser considerada boa ou ruim, mas precisa ser analisada em seu contexto, pois pode servir para questionar um poder injusto, estabelecendo uma nova ordem social. Ele conclui sua carta afirmando que a humanidade não pode se livrar do “instinto destrutivo”, mas é possível desviá-lo para outros objetivos além da guerra, fortalecendo os laços amorosos e a identificação entre os sujeitos.

Em Psicologia de grupo e análise do ego ([1921] 1996), a identificação aparece como o fenômeno que une um grupo e o mantém em funcionamento. A libido investida na figura do líder, assim como a que circula entre seus membros, alimenta o sentimento de pertencer a uma estrutura que os faz muito mais poderosos do que seriam individualmente. Essa sensação de onipotência terá um papel fundamental no comportamento violento e arcaico dos grupos.

Freud ([1921] 1996) se baseia nas ideias de Le Bon (1855) para comparar a dinâmica dos grupos ao psiquismo infantil ou aos povos primitivos, pois ela dissolveria todo o refinamento cultural imposto às pulsões nos indivíduos, fazendo com que seus conteúdos recalcados viessem à tona facilmente. O resultado dessa interação seria a formação de uma massa acrítica, impulsiva e sempre propensa a exercer a agressividade com aqueles que não pertencem ao núcleo grupal

No entanto, mais adiante Freud afirma que essas características devem ser atribuídas apenas a grupos desorganizados ou efêmeros, pois acredita que grupos organizados, que possuem um senso de identidade, costumes, hábitos e funcionamento próprio, podem atingir interessantes conquistas sociais através da busca por ideais coletivos.

Pensamos que não é necessário optar entre uma dessas hipóteses freudianas, que nos parecem extremistas: julgar, a priori, os grupos como irracionais e impulsivos ou como nobres e idealistas. O importante é considerar as influências das fantasias inconscientes de seus membros. E o efeito desse conteúdo em sua estrutura de funcionamento, em especial no caráter violento, pode adquirir as regras e as leis neles instituídas.

Em Além do princípio do prazer, vemos Freud ([1920] 1996) sintetizar o pensamento biologicista sobre a violência no conceito de ‘pulsão de morte’, um instinto existente no ser humano, que o impele a repetir condutas e comportamentos que geram desprazer, visando sempre que o sujeito atinja um estado anterior, inanimado: a morte propriamente dita.

Se, por um lado, podemos facilmente reconhecer e aceitar a presença de um impulso destrutivo no ser humano, por outro, notamos algumas contradições no novo panorama pulsional que essa ideia estabelece na teoria freudiana. Nessa nova antítese, tudo o que é da ordem do sexual fica vinculado à pulsão de vida. E a pulsão de morte se apresenta como os conteúdos destrutivos e compulsivos.

No entanto, como explicar comportamentos sexuais que conservam traços de agressividade e compulsividade, como o sadismo e o masoquismo? Estariam fora do campo da pulsão de morte? E em contrapartida, é possível entender situações extremamente violentas e traumáticas, a exemplo das cruéis experiências do Dr. Mengele no regime nazista, ou as sessões de tortura ocorridas no regime militar brasileiro como isentas de qualquer traço de sexualidade?

A justificativa freudiana para tais questionamentos é que sadismo e o masoquismo demonstram que a pulsão de morte e a pulsão de vida raramente podem ser encontradas isoladas; estão quase sempre combinadas nas manifestações sintomáticas. Mas não podemos deixar de notar que Freud frequentemente atribui à destrutividade inerente ao homem o profundo mal-estar social que se apresenta na forma de conflitos violentos, guerras, segregação. Portanto, concluímos que há um certo ‘descaso’ de Freud para com o sexual no cenário social.

No entanto, é importante lembrar que as contradições da obra freudiana são interessantes porque nos possibilitam diversas interpretações e teorizações sobre um mesmo aspecto.

Em Totem e tabu ([1913] 1996), por exemplo, encontramos uma ligação entre a violência que os filhos dirigem ao pai da horda primeva com o complexo de Édipo e a ambivalência afetiva presente nas relações familiares. A refeição totêmica simbolizaria a introjeção do pai (comer sua carne e beber seu sangue) pelos filhos, adquirindo seu poder sobre o grupo. Isso demonstra que, nesse texto, Freud está convencido de que o ato violento não é imune ao amor, à libido investida no objeto odiado.

Já em O mal-estar na civilização, o autor diz que as renúncias exigidas pela sociedade são muito maiores do que as recompensas que ela oferece gerando, assim, um permanente sentimento de infelicidade em seus membros. Para Freud ([1930] 1996), o homem precisa abrir mão de boa parte de seus impulsos sexuais para se dedicar ao trabalho, às realizações científicas, artísticas e políticas. Desse modo, renuncia tanto à convivência familiar, quanto à satisfação de suas inclinações agressivas, já que o contexto social exige que ele as controle.

Como o objetivo da civilização é que a comunidade seja mais importante do que os desejos individuais ou a célula familiar, ela propicia o fortalecimento dos laços fraternos entre os membros do grupo, através da identificação e, assim, procura reprimir a violência entre eles. Além disso, a cultura faz com que a agressividade inata e a insatisfação com os sacrifícios que a sociedade impõe sejam reintrojetadas através do sentimento de culpa.

Criando dispositivos como a religião, a sociedade desvia a revolta que lhe seria direcionada para o próprio ego dos sujeitos. Eis, então, outro destino para a agressividade “natural” do homem. Nesse texto, Freud ([1930] 1996) apresenta a importância do dualismo pulsional, que divide a pulsão entre Eros e pulsão de morte. Atribui a esta última a dificuldade da civilização de prosperar, pois agiria contrariamente aos esforços de Eros para unir os seres humanos.

É interessante notar que, apesar de defender a existência de um impulso destrutivo totalmente desvinculado da sexualidade, o exemplo que fornece como mais característico da pulsão de morte é justamente o sadismo, ou seja, quando ela se encontra mesclada com a erotização.

Retomamos estas teorizações freudianas para salientar nelas que a violência geralmente aparece como um instinto agressivo constitutivo do ser humano e como algo necessário para o estabelecimento da ordem numa sociedade.

Porém, acreditamos que é preciso questionar o significado dessa ideia de violência. Será que ela não legitima, de alguma forma, as relações violentas, como se desejar superá-las fosse uma ilusão? Será que não abrimos mão da hipótese de que os homens são ‘violentos por natureza’, por não desejarmos renunciar à nossa própria violência? Será que a violência não evoca em nós também um ‘prazer’ ao qual resistimos a abdicar?

Em um lúcido ensaio, Jurandir Freire Costa (1984) critica as interpretações que a psicanálise tem lançado sobre a questão da violência. Para ele as concepções de violência como um instinto que faz parte do ser humano ou como um processo inerente à própria constituição do psiquismo contribuem para banalizá-la, além de desprezar o aspecto voluntário dessa propensão a destruir o outro.

O autor afirma que associar a violência à desrazão é também dessubjetivá-la, retirar-lhe o contexto histórico. Costa adverte que, ao tratar do tema, não devemos nos deixar levar pelas explicações biologizantes sobre a pulsão de morte nem pelas suposições apresentadas em Totem e tabu ([1913] 1996) de que a transmissão da cultura e a instalação da ordem social só se dão através do assassinato do pai e da ameaça de destruição da horda.

Para o autor, a noção de que a violência funda o direito e a lei, bastante solidificada no pensamento filosófico e sociológico – que influenciou autores como Hobbes (“O homem é o lobo do homem”), Weber (“O estado é o domínio do homem pelo homem, baseado nos meios da violência legítima”) e Benjamim citado por Costa (1984) –, é apenas uma projeção do tipo de poder exercido no contexto cultural europeu, no qual tais teorias foram elaboradas.

Hannah Arendt (1969) também foi uma pensadora que se debruçou sobre a questão da violência para tentar compreendê-la. Em sua obra Sobre a violência, faz uma crítica tratamento do tema como um fator periférico quanto à política e às relações sociais, quando na verdade é necessário reconhecer que ela frequentemente está vinculada aos modos da sociedade se articular formal e informalmente.

Arendt diz, inclusive, que muitas vezes a guerra é uma força estruturadora da sociedade, aquilo que organiza o Estado. Cita, por exemplo, como a crise de 1929 dos Estados Unidos foi contornada apenas com a participação do país na produção e na venda de armas para a Segunda Guerra Mundial. Com isso, a autora pretende mostrar que o conflito não é algo imprevisto e indesejável, mas uma situação para a qual os estados se preparam e que faz parte da construção de sua identidade.

Arendt fala também sobre o caráter imprevisível da violência: ela pode gerar consequências inimagináveis no plano das relações políticas. Lembra que o desenvolvimento científico e tecnológico propiciou a existência de armas químicas, biológicas e nucleares, com enorme potencial destrutivo, que ameaçam toda a humanidade.

Para ela, então, a ideia de progresso, de aperfeiçoamento constante – da ciência, da tecnologia – acaba desvinculando tais inovações da evolução e do bem-estar da humanidade.

Não apenas o progresso da ciência deixou de coincidir com o progresso da humanidade, mas também até poderia disseminar o fim da humanidade, tanto quanto o progresso ulterior da especialização bem pode levar à destruição de tudo o que antes a tornara válida (ARENDT, 1969, p. 47).

Analisando os movimentos sociais da década de 1960 tanto nos Estados Unidos quanto na Europa, Arendt critica o que chama de “nova esquerda” (organizações cujo objetivo seria combater poderes hegemônicos, como o movimento negro nos EUA, o movimento estudantil na Europa e os movimentos comunistas inspirados no pensamento marxista na Ásia) por utilizar a violência como estratégia de enfrentamento à violência do poder institucionalizado.

Segundo ela, tais movimentos demonstram profunda divergência em relação ao pensamento marxista, pois jamais propôs o uso da violência para romper determinada ordem social. Arendt afirma que para Marx o estado social deveria chegar ao fim em decorrência de suas próprias inconsistências.

A forte retórica marxista da nova esquerda coincide com o firme crescimento da convicção totalmente não marxista de Mao Tsé-tung, de que o poder brota do cano de uma arma (ARENDT, 1969, p. 26).

Compreendemos, então, através de seu pensamento, que o enfrentamento da violência através de atos também violentos perde seu caráter de questionamento e de reflexão. Esse é o ponto de partida para que Arendt (1969) estabeleça algumas distinções entre ‘política’, ‘poder’ e ‘violência’.

Para ela existe no imaginário social, e até mesmo na teorização política, a ideia de que a violência é a forma de exercer o poder por excelência. Essa noção se apoia nos governos absolutistas, ou mesmo na concepção de obediência às “leis divinas”: ambas pressupõem um poder que é exercido à força. E como vimos, reconhecemos também no pensamento freudiano muito dessa noção, quando o autor supõe um instinto de dominação e uma agressividade inata no homem.

Se déssemos crédito às nossas próprias experiências nesses assuntos, deveríamos saber que o instinto de submissão, um ardente desejo de obedecer e de ser dominado por alguns homens fortes, é ao menos tão proeminente na psicologia humana quanto a vontade de poder, e politicamente, talvez mais relevante. O velho adágio ‘como está apto ao poder aquele que sabe obedecer’ [...] bem pode apontar para uma verdade psicológica: isto é, que a vontade de poder e a vontade de obedecer estão interligadas (ARENDT, 1969, p. 56, grifo nosso).

A autora define o poder como a habilidade humana para agir em conjunto. É o investimento de um grupo de pessoas em outro grupo ou figura que as representam em determinada situação. Portanto, para que o poder se mantenha, é necessário que haja legitimidade, ele requer a anuência de um grande número de pessoas, ou pelo menos sua omissão.

A partir dessa lógica, não seria correto dizer que alguém ou um grupo exerce poder sobre outros de forma ilegítima, mas que estes últimos não exercem seu poder de destituir as figuras indesejadas de seus lugares.

Arendt fala aqui de um movimento recíproco de imposição e de conivência. Isso significa que

[...] o poder nunca é propriedade de um indivíduo; pertence a um grupo e permanece em existência apenas enquanto o grupo se conserva unido. Quando dizemos que alguém está no poder, na realidade nos referimos ao fato de que ele foi empossado por um certo número de pessoas para agir em seu nome (ARENDT, 1969, p. 60)

Quanto à violência, só é possível entendê-la em seu caráter ‘instrumental’, pois ela é usada para tentar manter o poder quando ele já se encontra fragilizado. Portanto, poder e violência são opostos: onde existe um, o outro está em decadência.

No entanto, é preciso notar a complexidade da teoria de Arendt: mesmo num governo frágil em legitimidade, que recorre ao exercício da violência, existe uma base mínima de poder que se sustenta. Ou seja, para que as pessoas sejam privadas de sua liberdade, torturadas e assassinadas por discordarem de um tipo de política, é necessário que haja um rede de sujeitos que concordem com ela – torturadores, polícia, políticos, etc. – ainda que não sejam maioria na sociedade.

Contudo, Arendt acredita que o uso da violência de modo frequente ou maciço tem o efeito de destruir o poder, já que ele vai sendo minado, perdendo sua legitimidade, até que não se sustente mais.

Como exemplo disso podemos citar a derrocada do governo dos jacobinos, na Revolução Francesa. Através do exercício constante da violência, do assassinato de qualquer um que fosse suspeito de trair a revolução, o partido acabou ‘devorando os próprios filhos’, exterminando aqueles que implantaram a República. Em pouco tempo, o governo fracassou por não ter mais apoio social suficiente, já que o medo atingira a todos, impedindo-os de acreditar naquele partido.

Outro ponto interessante que a autora aborda é a visão da violência como algo biológico, instintivo. Ela menciona estudos de biólogos, zoólogos e outros cientistas que pretendem classificar nossos conflitos como comportamentos agressivos animais, como ‘instinto territorialista ou agressão natural’, totalmente dissociados de estímulos externos.

De acordo com essa teoria, quando perdeu sua função autopreservativa – pois não precisamos mais de nos valer do instinto agressivo para continuar vivos no mundo atual, já que ele é totalmente adaptado a nós – a agressão natural se tornou reprimida e, assim, pode sujeitar o homem a explosões totalmente irracionais de cólera.

É como se a mediação da razão (através da tecnologia, que torna a vida mais fácil) transformasse os sujeitos em seres perigosamente irracionais, por estarem se desviando de sua natureza. Ora, esse argumento, por mais insustentável que nos pareça, não nos é totalmente estranho. A noção de uma violência instintiva, que precisa ser projetada em algo, é familiar ao discurso freudiano.

Arendt, no entanto, é categórica quando afirma que “a violência não é nem bestial, nem irracional”.

Recorrer à violência em face de eventos ou condições ultrajantes é sempre extremamente tentador em função de sua inerente imediação e prontidão. [...] Tanto na vida privada quanto na vida pública, há situações em que apenas a própria prontidão de um ato violento pode ser um remédio apropriado. [...] A ausência de emoções nem causa, nem promove a racionalidade. ‘Desapego e serenidade’ em vista de uma ‘tragédia insuportável’ podem realmente ser ‘aterrorizadores’, isto é, quando não são o resultado de controle, mas de uma evidente incapacidade de incompreensão (ARENDT, 1968, p. 82-83, grifo nosso).

Com isso, Arendt quer dizer que a capacidade de se indignar com alguma situação, sentir raiva e agir de modo violento não deve ser imediatamente traduzida como um comportamento-reflexo animal, não racional.

O que ela parece apontar é que essa cólera, esse ódio transformado em ato se localiza num contexto social, político, econômico, histórico, que deve ser levado em conta se realmente quisermos fazer uma análise séria dese fenômeno.

Em determinadas circunstâncias, afirma Arendt, a violência é a única forma de lidar com a injustiça (É interessante notar, entretanto, que essa passagem contradiz sua análise desfavorável aos movimentos sociais na Europa e nos EUA, que buscam mudanças através da violência, citada anteriormente).

A compreensão da complexidade do tema nos leva a perceber que nas ações violentas mais organizadas (militares ou revolucionárias), o individualismo costuma declinar, dando lugar a um sentimento de coerência grupal que pode se tornar mais forte do que outros vínculos existentes no contexto social – ideia já presente em Freud.

Arendt acrescenta que, desse modo, a morte, que geralmente é fonte de angústia e medo, pode parecer aceitável e até um modo de contribuir para a causa do grupo. Assim, podemos entender a adesão voluntária e entusiasta a forças armadas em uma situação de guerra ou de conflito cujas possibilidades de vitória sejam ínfimas.

Em Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal, Arendt (1963) problematiza a questão da adesão aos grupos em sua análise do julgamento de um dos principais oficiais do governo nazista. Contrariando a opinião de todos que acompanhavam o processo – sobretudo os judeus, que desejavam vingança –, e da mídia, que avidamente propagava uma imagem sensacionalista do evento, ela afirma que Eichmann não parecia ser o monstro sádico que imaginavam. Ao contrário, a autora o vê como um homem extremamente comum, quase medíocre em sua obsessão por ser “um cidadão respeitador das leis”.

E justamente por querer obedecer cegamente às leis do Terceiro Reich, que se resumiam às ordens de Hitler, esse sujeito teria se engajado de maneira integral em sua função: cuidar de todo o transporte dos judeus para os campos de extermínio nazistas.

Apesar da ironia de ter dito durante o julgamento que vivera toda a sua vida de acordo com os princípios morais de Kant, ao longo de seu depoimento à corte, Eichmann demonstrou que procurava não pensar nas tarefas que lhe eram confiadas e tinha por objetivo somente resolvê-las com eficiência.

Essa eficiência, observa Arendt, contribuiu para o extermínio de um terço da população judaica europeia, já que era frequente que ele buscasse judeus em outros países e negociasse com líderes dos governos condições para levá-los a Auschwitz.

O que nos soa estranho nessa teoria de Arendt de que os grandes oficiais alemães estavam apenas “cumprindo ordens” – como se estivessem em um estado de alienação ao partido que os impedisse de fazer qualquer reflexão ética sobre seus atos – é que desde o tribunal de Nuremberg, e nessa época dos julgamentos realizados em Jerusalém, sabia-se, através de testemunhos, que os membros da SS estavam totalmente implicados em esquemas de corrupção, desvio de dinheiro, venda de passes para judeus abastados, etc.

Portanto, não se tratava de um fanatismo militar que tornasse tais sujeitos incapazes de decidir seus próprios atos, já que, quando lhes convinha, eram capazes de desrespeitar as regras e sair dos protocolos. O próprio Eichmann tentou entrar nessas negociações quando elas pareciam a única forma de lidar com os problemas que as forças alemãs enfrentavam no final da guerra.

Arendt parece não admitir que esse sujeito mediano, subordinado, pouco criativo e sem muitas iniciativas em seu trabalho como militar poderia, ao mesmo tempo, manifestar suas fantasias mais sádicas e mortíferas através da execução de suas tarefas rotineiras. O fato de a execução em massa ter se tornado uma política organizada sob a tutela de Hitler não transforma todos que para ela contribuíram como meros burocratas, retirando de suas tarefas – capturar pessoas inocentes, espancá-las, vê-las morrer de fome, de frio, e doenças, conduzí-las a câmaras de gás – seu componente perverso.

Certamente a grande contribuição de Arendt em relação à violência é o conceito de ‘banalidade do mal’, segundo o qual, o perigo, no que concerne às relações sociais, provém da incapacidade ou indisponibilidade das pessoas de refletir sobre seus atos. Assim, elas se engajam em causas de forma acrítica e se contentam em obedecer às ordens daqueles que são eleitos como líderes, nos quais se projeta um ideal e uma figura de salvador.

É inegável que essa noção torna a discussão muito mais elaborada no que tange à violência, pois simplesmente atribuir um caráter demoníaco, monstruoso aos oficiais nazistas, e ao próprio Hitler, não nos ajuda a compreender como esse estado pôde ser apoiado e tolerado por tantos cidadãos comuns. A ideia de um ‘mal generalizado’, se assim podemos dizer, nos parece muito mais interessante do que a de figuras altamente perigosas que, por uma espécie de ‘hipnose social’, provoca a destruição em larga escala através de seus atos.

Se estamos falando de uma perversão social, é preciso sustentar que, por mais perversa que seja a figura que encarna a tirania e a violência como modo de tratar o outro, ela só se sustenta numa sociedade que a aceita silenciosamente ou, no caso do nazismo, abertamente.

Entretanto, não podemos deixar de observar que em seu ensaio sobre o julgamento de Eichmann, Arendt se esforça para retratá-lo como um mero burocrata. Para a autora, seu pecado maior foi se conformar em sua mediocridade intelectual, evitando se questionar eticamente sobre o que fazia.

Arendt leva a sério a alegação de Eichmann: “[...] com o assassinato dos judeus não tive nada a ver. Nunca matei um judeu, nem um não judeu – nunca matei nenhum ser humano”, como se fosse possível retirar de suas ações toda a carga pulsional envolvida, como se “embarcar milhões de homens, mulheres e crianças para a morte, com grande aplicação e o mais meticuloso cuidado” não requeresse, de alguma maneira, um grande componente sádico, além, é claro, do sadismo contido na cínica declaração de não ter provocado nenhuma morte.

Sem dúvida, o conceito de banalidade do mal é importante para refletir sobre a responsabilização de todos os envolvidos (ou até mesmo o fato de não querer se envolver) direta ou indiretamente numa situação de violência radical.

Porém, nossa ressalva recai sobre o argumento de que se trata apenas de certa recusa em pensar, de uma propensão a transferir as próprias decisões civis por temer fazer escolhas. Acreditamos que o engajamento em situações tão extremas, cuja realidade é tão radicalmente oposta a tudo que ordena a convivência humana, não se apoia unicamente nessa alienação.

Essa concepção nos faz pensar que o desamparo original que experimentamos pode nos levar participar de práticas de crueldade, para termos a sensação de que fazemos parte de um todo. E sobretudo pensamos que essa atitude é atravessada pelo sexual.

As profícuas reflexões de Hannah Arendt nos levam a perceber que poder e violência não devem ser considerados aspectos naturalmente interligados na sociedade, mas que a violência é aplicada sempre que o poder está em decadência, seja pelo excesso de tirania, seja pela burocratização excessiva.

Pensamos que essas questões só reforçam a ideia de que, quando praticada sistematicamente contra alguém ou um grupo, a violência deve ser compreendida naquilo que tem de sexual, de traumático, naquilo que traz as marcas da subjetividade de quem a exerce. Podemos tomar a Teoria da sedução generalizada, de Jean Laplanche (1988) para compreender a dimensão perversa, demoníaca, destrutiva da sexualidade e sua relação com a agressão ao outro.

Retomando a Teoria da sedução abandonada por Freud em 1897, Laplanche tenta trazer à tona o sexual polimorfo apresentado nos Três ensaios ([1905] 1996), sem abrir mão da ideia de que o trauma psíquico é fruto de uma cena de sedução. Isso não quer dizer que Laplanche insista naquilo que Freud acreditou durante parte de sua investigação acerca da origem da histeria, ou seja, que tal patologia seja consequência de uma cena de abuso sexual.

Mas, então, de que sedução se trata? Ao expandir o conceito de sedução, Laplanche a torna cotidiana, presente nos cuidados maternos, no aleitamento do bebê, nas invasões frequentes e necessárias ao corpo da criança pelo adulto que dela se encarrega. Cuidar de uma criança, física e psicologicamente, implica necessariamente um movimento de invasão (no corpo e no psiquismo que está se formando). que é também um tipo de sedução, na medida em que erotiza esse pequeno ser. Esses momentos de cuidados básicos são momentos de implantação da pulsão no corpo infantil pelo cuidador que, por sua vez, é atravessado por fantasias inconscientes, pelo afeto em sua propriedade disruptiva.

Como podemos perceber, na concepção laplancheana a veiculação da sexualidade no corpo e psiquismo infantis é necessariamente traumática, pois compreende um encontro extremamente assimétrico entre um adulto – cujo aparelho psíquico já está organizado – e uma criança – que ainda se encontra em situação de extrema passividade em relação ao mundo externo. Desse modo, aqueles elementos que não podem ser simbolizados permanecem como restos não traduzidos e passam a ser fonte da pulsão: funcionam como um corpo estrangeiro interno a atacar o ego.

Nesse contexto, podemos interpretar a violência como um modo de lidar com esse ataque interno, de externalizar o excesso pulsional que não encontra destino no psiquismo do sujeito. Então, o sadismo e o masoquismo seriam modos de reproduzir o momento inaugural da pulsão, do encontro assimétrico entre adulto e criança. O sadismo pode ser visto como uma tradução dessa intrusão no corpo do outro, e seu caráter traumatizante. Da mesma forma, o masoquismo traduz em termos eróticos a experiência de ter o corpo penetrado, apassivado pelo outro.

Ambos os movimentos são resultantes do efeito da sexualidade do adulto sobre a criança, o que nos conduz à conclusão inevitável de que a violência da sedução originária está invariavelmente ligada à origem da sexualidade. Nesse sentido, a violência seria constitutiva do ser humano, mas não inata, pois ela emana dessa sedução originária inerente a uma situação antropológica fundamental, que é a exposição do infante à sexualidade inconsciente do adulto.

Notamos aqui como as vertentes intra e extrapsíquica da violência podem se cruzar: se, por um lado, concordamos que a própria constituição do aparelho mental do sujeito é traumática e abarca certa violência, que por sua vez é erotizada, por outro lado, não nos faltam exemplos de práticas e comportamentos violentos que são claramente investidos libidinalmente.

Um exemplo disso é o fascínio que os casos de extrema violência (assassinatos, linchamentos, conflitos entre facções, crimes familiares) exercem nas pessoas, o que é muito bem explorado pela mídia, que costuma reproduzir dezenas de vezes as mesmas cenas nos noticiários, programas comentados na televisão, etc.

Gerard Bonnet (2008), em uma obra que trata da questão da perversão, fala do frisson que o fenômeno da pedofilia causa na opinião pública e na mídia, e que não devemos deixar de analisar o gozo que tais descrições provocam, atiçando fantasias recalcadas nos expectadores.

Ceccarelli (2002) também comenta o impacto da televisão na formação de crianças e adolescentes, que, muitas vezes carentes de referências simbólicas e familiares, tomam os conteúdos midiáticos como valores morais.

Sabemos da importância dos pais na construção do universo psíquico destas últimas. Porém, no caso de um ambiente familiar mal estruturado, a criança buscará modelos fora do âmbito familiar para construir seu sistema de valor ético-moral. Ou seja, na falta de referências no ambiente onde está inserida, a criança pode tomar aquilo que a televisão mostra como coordenadas de base na construção de seu sistema ético-moral. [...] Alguns movimentos antissociais dos adolescentes – delinquência, uso de drogas… – traduzem bem esta configuração. Em ambos os casos – crianças e adolescentes – quando o mundo interno se encontra mal estruturado e pobre em imagens identificatórias, a televisão pode oferecer “soluções” a conflitos internos (CECCARELLI, 2002, p. 1).

As demonstrações de ódio e discriminação que aparecem na mídia na ocasião de crimes bárbaros, e agora também nas redes sociais, demonstram que tais eventos evocam no público algo desse componente sexual mal traduzido, atrelado à violência, que muitas vezes visa combatê-la através de mais violência.

Podemos citar os vários linchamentos que vimos ocorrer pelo País nos últimos anos, por “cidadãos de bem”, que tinham como objetivo combater a criminalidade ou os atos violentos, bem como as posturas radicais incitadoras de violência que vêm se tornando comum nas discussões políticas atuais, seja qual for o ideal defendido.

Fenômenos como esses, que causam grande impacto na imprensa e têm o apoio de boa parte dos usuários de redes sociais, demonstram que o que entendemos por justiça muitas vezes pode estar contaminado com um componente pulsional, disruptivo, totalmente avesso à racionalização e à análise dos fatos. Essa postura atenta ao sexual da violência nos convida a reconhecer as fantasias que influenciam as formações de grupos, estruturas e até instituições sociais encarregadas de promover o bem-estar.

Em relação a essas incidências, Ribeiro (2012) traz uma contribuição que consideramos promissora para trabalhar a violência das e nas instituições. Em seu artigo A sexualidade ampliada no sentido freudiano: breves considerações sobre psicanálise e direito, o autor diz que é preciso perceber que a imposição da lei pode se transformar numa forma de satisfazer as pulsões sexuais mais violentas que habitam os homens.

Assim, a sexualidade que nos atravessa pode influenciar tanto a realização de atos criminosos, quanto as noções de responsabilização e punição impostas aos outros quando há infração às regras, ou seja, o exercício da lei pelos que a representam no cenário coletivo também pode ser sádico.

Em Responsabilité et réponse, Laplanche (1999) também expõe essa faceta pulsional da lei e identifica o desejo de punir com os restos da sexualidade intrusiva que interpela o sujeito.

Aquele que clama a morte quando se julga uma criança (que a punam!) ou aquele que brada para o sujeito da Bósnia (que o bombardeie!) [...] é aquele que desde a infância grita: “Não é justo!”. Resumindo, aquele que tem sede de justiça – cada um de nós – grita também contra o que o ataca internamente, contra o torturador nele mesmo (LAPLANCHE, 1999, p. 171, tradução nossa).

Para o autor, a violência humana não deve ser confundida com uma simples tendência à destruição, com um fator endógeno, como a pulsão de morte é descrita em 1920 – conforme também já nos recomendara Costa (1984). Assim, o adágio homo homini lupus [o homem é o lobo do homem], evocado por Freud em O mal-estar na civilização ([1930] 1996), não passa de uma tentativa de recorrer a um álibi biológico para explicar uma crueldade que não pode ser observada nos animais.

Segundo Laplanche, essa figura emblemática representa a crueldade humana, que se encontra em um registro diferente do instinto de autopreservação. Dessa maneira, ele prefere pensar numa “pulsão sexual de morte”, que seria o impulso destrutivo conservando a faceta perversa e polimorfa da sexualidade.

Em uma entrevista concedida a Marta Resende Cardoso, Laplanche (2000) aborda a questão da violência num panorama mais social. Ele afirma acreditar que todas as guerras têm um aspecto sádico e que a violência, mesmo em seu contexto coletivo, conserva uma ligação com o sexual, embora muitas vezes esses fenômenos adquiram uma vestimenta autoconservativa. O autor fala em vestimenta, pois são sempre justificativas que envolvem a autodefesa, a defesa da pátria ou de seus interesses, mas que não deixam de estar implicadas em questões individuais ou que ressoam questões individuais.

Laplanche faz uma provocação à entrevistadora: diz que, se fosse convocado para a guerra, não se comportaria como todas as outras pessoas, pois teria sua própria forma de lidar com a necessidade de se proteger (dimensão autoconservativa) e, com a possibilidade de ferir, causar sofrimento (dimensão sexual).

Tomamos conhecimento dessas diferenças, por exemplo, nos crimes de guerra que às vezes são divulgados: os exageros cometidos em nome de um combate, as crueldades, aquilo que não estava dentro dos limites da disputa entre dois combatentes políticos.

Laplanche (2000) afirma que os conflitos sociais violentos não estão imunes a essas pulsões, mas são atravessados por elas, embora muitas vezes os fenômenos de grupo possam organizá-las, dando a impressão de que não se trata de algo da ordem do sexual. De todo modo, apesar de sugerir pontos profícuos de pesquisa acerca das perversões sociais, o autor não desenvolve essa questão. Por isso, consideramos importante tentar identificar como a sexualidade ecoa na violência coletiva.

Pensar a violência atrelada ao sexual significa, então, atentar para as implicações do inconsciente nas relações sociais, nas dimensões subjetivas do engajamento de cada sujeito a determinado grupo, bem como na carga pulsional existente tanto na conduta criminosa quanto no desejo acrítico de ser um “cidadão respeitador das leis”, que muitas vezes leva algumas pessoas a integrar uma engrenagem social sem de fato ponderar sobre seus aspectos éticos (ARENDT, 1963).

Das páginas de discriminação racial, social e regional que figuram nas redes sociais – como vimos na época das últimas eleições – aos movimentos e aos eventos políticos marcados para reafirmar essas posições de segregação e violência, notamos que a formação de vínculos muitas vezes pode ocorrer a partir do que Freud ([1915] 1996) considera os impulsos mais primitivos e egoístas, avessos à civilização.

Segundo Arendt (1961), a ética deveria perpassar pela nossa capacidade de pensar, querer e julgar. Ou seja, pela possibilidade de sair de uma posição generalista no que tange às leis e às ordens vindas de fora, e problematizar tais parâmetros com nossas experiências pessoais e nossos afetos, para obter respostas complexas aos impasses que vivenciamos na coletividade.

Entretanto, a autora identifica na sociedade contemporânea uma intensa dificuldade na construção de espaços públicos, ou mesmo de um imaginário público, de algo que vá além do interesse pessoal e da prática do consumo. Na contramão dessa corrente, a ética arendtiana aponta para a importância de espaços de convivência com o outro, pautados pela liberdade de expressão, desafiando regras normatizantes que visam simplesmente controlar comportamentos. Poderíamos dizer que, contra a violência, Hannah Arendt aposta no fortalecimento dos laços sociais, dos ideais coletivos, mas preserva a crítica e a reflexão, que devem ser subjetivas e advindas do trabalho psíquico de cada indivíduo.

Nas organizações virtuais que citamos anteriormente e que contam frequentemente com o benefício do anonimato, nota-se essa precariedade do espaço público da qual fala Arendt (1961), além de algo que Freud também já havia observado: a fragilidade do verniz” da educação e da sociabilidade; como as divergências em discursos políticos ou de qualquer outra ordem podem desencadear posturas que visam obter e manter o poder através da violência, subjugando, dominando e desconsiderando o outro em sua posição de sujeito.

Observa-se pouca aceitação de discursos moderados ou de posturas que não beiram o radicalismo. Os sujeitos são rapidamente classificados apenas por oposição de determinados grupos (simpatizantes de partido A ou B, moradores das regiões mais ou menos desenvolvidas do País, pertencentes a uma ou outra raça e classe social, etc.), como se não fossem possíveis inúmeras combinações e posturas políticas e sociais a partir de qualquer um desses fatores. Os discursos e a argumentação são ridicularizados, desvalorizados. E não há diálogo possível.

Além disso, percebemos que nesses espaços virtuais a apologia à violência vem acompanhada de uma fratura do poder enquanto arranjo legitimado pela convicção das pessoas em um bem comum (ARENDT, 1969). O enfraquecimento do poder simbólico, seja das instituições, seja do próprio tecido social, cede espaço aos apelos da violência como forma de lidar com os problemas na esfera social e apagar as diferenças. Enquanto ainda estão no plano da palavra, tais apelos da violência geram apenas danos psicológicos, provocam nos agredidos sentimentos de indignação e insegurança.

Mas não devemos nos esquecer de que a transmissão de tais palavras de ordem, de tais discursos de ódio muitas vezes ganha contornos inimagináveis, cujas consequências práticas podem ser trágicas, como já vimos acontecer em nossa história, com os fenômenos de massa.

É importante lembrar a advertência de Arendt (1969) de que a violência é um instrumento que, uma vez que começa a ser usado – em qualquer esfera, de qualquer forma – pode sair totalmente do controle de quem o pratica e atingir a todos.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: bacelete@hotmail.com

Recebido em: 22/04/2016
Aprovado em: 03/05/2016

 

 

SOBRE OS AUTORES

Larissa Bacelete
Psicóloga (UFMG). Psicanalista. Mestre em Estudos Psicanalíticos (UFMG).
Doutoranda em Estudos Psicanalíticos (UFMG).
Desenvolve pesquisas na área acadêmica sobre perversão e violência.

Paulo de Carvalho Ribeiro
Professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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