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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.45 Belo Horizonte July 2016

 

 

A clínica psicanalítica contemporânea e as novas abordagens para o desvalimento

 

The contemporary psychoanalytic clinic and the new approaches of helplessness

 

 

Maria Helena Nemitz Alcaraz GomesI, II; Liliana Haydee AlvarezIII

I Universidad de Ciencias Empresariales y Sociales
II Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul
III Instituto de Altos Estudios en Psicologia y Ciencias Sociales da UCES

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Na clínica contemporânea, existe a tendência à predominância de pacientes carentes de uma vida com funcionamento simbólico, não registrado nos primórdios das etapas evolutivas. São pacientes com fixações traumáticas da época em que o aparelho psíquico é ainda incapaz de atender as demandas das vicissitudes endógenas e exógenas. Este trabalho propõe uma reflexão sobre novas formas de prática psicanalítica, que, repensadas a partir dos estudos de Freud, buscam, em fases pré-edipianas, estudar as vicissitudes de um ambiente não empático e não acolhedor, as quais provocam estados de desvalimento expressos por sintomas psicossomáticos ou adições. Esse ambiente não provedor nos primeiros tempos de vida pode propiciar patologias tóxicas, como transtorno alimentar, anorexia, psoríase, asma, entre tantos outros. Abordamos um caso clínico de desvalimento psíquico com sintomas psicossomáticos, em que a comunicação virtual foi empregada como forma de falar sobre seu sofrimento.

Palavras-chave: Clínica psicanalítica contemporânea, Desvalimento, Metapsicologia freudiana, Libido intrassomática, Comunicação virtual.


ABSTRACT

In contemporary practice, there is a tendency to the predominance of patients in need of a life with symbolic function, not registered in the early evolutionary steps. These are patients with traumatic fixations of a time when the psychic apparatus is still unable to meet the demands of the endogenous and exogenous vicissitudes. This work proposes a reflection on new forms of psychoanalytic practice rethought from Freud's studies through pre-Oedipal phases, to study the vicissitudes of a non-empathic and non-welcoming environment, in states of helplessness expressed by psychosomatic symptoms or additions. This environment, which was non-provider in early life, may be propitious to toxic neuroses, or eating disorder, among many other pathologies. In this paper, we will discuss a case of psychic helplessness with psychosomatic symptoms and the use of virtual communication as a way to express suffering.

Keywords: Contemporary psychoanalytic clinic, Helplessness, Freudian metapsychology, Sexual drive, Virtual communication.


 

Desvalimento psíquico: abordagens contemporâneas

Em vivências cotidianas, deparamo-nos com sintomas que são próprios do mundo contemporâneo, sintomas considerados os mais inusitados para ser incluídos em um tratamento psicanalítico. Acolhendo pacientes portadores dos traços mencionados a seguir, o terapeuta costuma ser impulsionado a verificar a origem da patologia que se manifesta, quando as queixas podem indicar a forma de produção dessa manifestação. Com escuta apurada, é possível observar, no discurso do paciente, seu tipo de vida, as dificuldades que enfrenta, sua gestualidade e a forma de produção dessas manifestações.

Ao constatar a forma de produção que deu luz à manifestação de desvitalização relatada pelo sujeito, pode-se pensar em uma estratégia clínica capaz de definir uma direção para o trabalho. Estudando Sigmund Freud ([1923] 1969), observa-se que esse foi o esquema seguido em suas pesquisas. Freud articulava a reconstrução da forma à medida que os sintomas neuróticos se definiam. Para ele, estes eram gerados a partir das formações substitutivas, resultantes do trabalho do pré-consciente, articulando-se com os conteúdos inconscientes, com as maneiras de defesas, com o conflito de Édipo e com a castração.

Tanto os grupos de pacientes neuróticos quanto o de narcisistas têm algo em comum: de alguma maneira, seus sintomas respondem a um mundo simbólico. Há simbolismo de menor ou maior grau, de maior ou menor complexidade. Há simbolismo. Mesmo nas alucinações dos pacientes mais regressivos, que são os esquizofrênicos, há um quantum de representações.

O que se entende por representações? Essa é a peculiaridade fundamental das patologias de desvalimento, nas quais não foram instaurados nem o simbolismo, nem as representações. Para Green (1988), representar ou reapresentar é o objetivo do trabalho analítico. O sujeito em terapia manifesta vicissitudes da vida pregressa, pois todo indivíduo é resultado de uma estrutura que combina fragmentos de representações passadas. Ninguém é somente depressivo ou tampouco só psicossomático, ou ainda adicto, ou somente autista. Pode haver um fragmento dominante. Contudo, subjacente a este estarão outros, que, se trabalhados em análise, poderão aflorar e, pouco a pouco, auxiliar na reconstrução da psique. Constituem traços, resíduos, construtos inconscientes.

Quando chegam ao consultório pacientes manifestando sintomas, sendo possível detectar desvalimento dominante, há o questionamento: será que o paciente está em crise de identidade ou de despersonalização temporárias? Ou será que houve falhas no contexto do sujeito em seus tempos primordiais de construção da subjetividade?

Nessas crises vitais, existe um descompasso nas energias psíquicas, por serem elas uma reprodução da energia física. No caso em que a libido estanca na psique do bebê, pode instalar-se, a partir daí, a desvitalização física, em decorrência de fixações importantes.

Como registrou Freud ([1915] 1969, p. 13), “As pulsões estão entre a psique e o soma, exigindo trabalho para chegar à meta”. Ocorre que a patologia como efeito do trauma surge devido à desvitalização do aparelho psíquico, pois este absorverá todas as energias, em função da elaboração e do processo dos estímulos internos e externos.

O desvalimento e as patologias que o acompanham, de acordo com Maldavsky (1992), costumam ser resultantes de vicissitudes negativas na fase da libido intrassomática (40 primeiros dias do bebê). A diferença fundamental entre o vazio existencial e o eu constituído está na questão do mundo representacional simbólico, em que funciona a qualidade do pensar e do significar, sendo o aspecto qualitativo o diferencial. São pacientes que não falam dos próprios sentimentos. Por exemplo, os pacientes psicossomáticos não vão dizer: “Estou com raiva, estou triste, estou invejoso”. Na melhor das hipóteses dirão: “Estou cansado, me dói o braço, me dói a nuca”, o que, laconicamente, expressará o que se passa.

Pacientes com quadros neuróticos revelam-se mais conectados com o exógeno, com a realidade externa. As patologias do vazio estão associadas ao corpo, com fixações no aparelho psíquico, o qual é extremamente vinculado ao psicossomático.

O desvalimento, profundamente estudado e pesquisado por Maldavsky (1992), inclui o psicossomático entre os componentes dessa temática. Seus estudos foram elaborados a partir da teoria de Freud e de alguns pós-freudianos. Para Maldavsky e colaboradores (2007), essa temática do desvalimento coincide com o ponto de fixação do ego e o ponto de fixação libidinal (devido ao ambiente contextual não empático), com defesas denotando desestimação dos estados afetivos.

O afeto é uma forma de qualificar, de tornar conscientes os processos pulsionais, e, ao mesmo tempo, na medida em que é consequência da empatia dos progenitores, também é uma forma de estabelecer um nexo com a vitalidade dos processos pulsionais destes, mas existem indivíduos nos quais essa conquista psíquica precoce não se desenvolveu ou se arruinou de maneira transitória ou duradoura: nessas situações, a subjetividade fica comprometida, ao menos parcialmente, e em seu lugar costumam aparecer alterações somáticas (MALDAVSKY et al., 2007, p. 17-18, tradução nossa).

Freud ([1923] 1969) afirma que, nesses tempos primordiais, em que os registros são eminentemente internos no bebê, em que há tão somente o Id, o Ego estará em fase de construção e organização. Há corpo e energia neuronal circulante tão somente. O bebê estará envolvido com as funções cardíacas, pulmonares e digestivas.

Os pacientes em desvalimento permanecerão com fixações importantes na primeira fase do Ego primitivo, fase essa em que serão registrados os afetos expressos em desprendimentos libidinais nas fases mais avançadas do sujeito. Por isso, essa é a primeira forma de memória que tem o ser humano que não depende de representações; depende somente de estados afetivos, dos cuidados e do holding propiciado ao bebê (WINNICOTT, 2013).

De acordo com Maldavsky (1996, p. 176):

[...] as relações de um indivíduo com seu ambiente serão a base para o surgimento da consciência, tanto afetiva quanto sensorial. Temos afirmado que a percepção só adquire significado e é acompanhada por consciência quando envolvida com a qualificação afetiva. Então, essa percepção-consciência pode culminar em falha mnêmica. O surgimento da qualificação implica o desenvolvimento da consciência ligada ao afeto, ponto no qual fica evidente o valor do outro, do semelhante (Tradução nossa).

Se o bebê é atendido de maneira amorosa, se está satisfeito, se está sustentado de maneira acolhedora e equilibrada, sem agitação, com a temperatura correta, poderá descontrair-se, terá uma expressão de paz e conforto com a experiência de plenitude e harmonia. Trata-se de um estado afetivo chamado de estado de base. Constitui o fundamento do sentimento de si, do sentir que se está vivo e bem.

Para Maldavsky e colaboradores (2007), nesses primeiros 40 dias do bebê, esses processos vão se organizando, e é na fase da libido intrassomática que se formarão as primeiríssimas folhas, com um primeiro estrato, organizando memórias, até culminar, finalmente na lógica, que corresponde ao pré-consciente verbal, à linguagem, permitindo, assim, o acesso à consciência. O processo será contínuo até chegar à consciência secundária, vinculada à linguagem verbal.

A qualificação implica uma modificação das quantidades em uma unidade de tempo (ritmo). O prazer é pura qualidade. Para Freud ([1915] 1969), somente será registrada qualidade se houver prazer. Caso a vivência seja desprazerosa, irá se registrando e se formando um vazio na psique do bebê, não haverá registro do sentir de si, prejudicando a instauração da primeira fase, base para a formação da consciência secundária, na qual estariam instalados o simbolismo e a representação (1895 [1950] 1988).

 

Uma abordagem do desvalimento

David Maldavsky , psicanalista argentino, desenvolve há mais de 30 anos, a partir de estudos das teorias de Freud, uma pesquisa sobre problemas e patologias do desvalimento. Para ele, as patologias referidas nos sintomas de desvalimento advêm de uma relação muito arcaica, não empática e não acolhedora, especialmente nos primeiros 40 dias do bebê.

De acordo com o autor, os registros mnêmicos serão possibilitados quando o bebê recebe, percebe, sente e registra afetos. Na falta de um outro empático com o bebê, o afeto processado poderá transformar o processo do afeto. Nesse caso, na idade adulta os efeitos dos transtornos dos afetos, um deles pode ser a abulia, que aparece no lugar do sentir, com uma dor carente de representação no sujeito, originando um vazio existencial em lugar dos afetos, propiciando possíveis falhas nas bases da subjetivação. Com base nessa perspectiva, entende-se alterações na origem da consciência e da subjetividade. Em muitos dos casos de desvitalização e apatia do sujeito, os motivos e as raízes são pesquisados nas vicissitudes desse período arcaico vital.

Para Maldavsky e seu grupo de pesquisadores (2000), incluem-se nessa abordagem pacientes com traços autistas, neuroses tóxicas e traumáticas, doenças psicossomáticas, adições, transtornos alimentares, perturbações do sono, violência vincular, promiscuidade e outras patologias, que, do ponto de vista psicopatológico, diferem das neuroses, das psicoses e das perversões.

 

Sintomas psicossomáticos: correntes teóricas

Surgiram, na psicanálise, duas correntes para compreender a somatização. Uma delas tenta explicar a psicossomática com o modelo da conversão histérica descrita por Freud. Faz da histeria o modelo de toda somatização, estendendo ao pré-genital o processo de conversão simbólica. Muitos dos autores que defendem essa ideia estão próximos da teoria das relações objetais e da teoria kleiniana.

Uma segunda corrente busca opor as psiconeuroses de defesa (obsessões, fobias e histeria, em particular) às neuroses atuais. Em outras palavras, opõe o sintoma conversivo histérico ao sintoma psicossomático. Atualmente, contudo, entende-se que as interpretações de fenômenos de somatização derivam das duas posições anteriores, ambas relacionadas com sintomas que têm expressão no corpo, determinadas pelo sistema freudiano (conversão histérica e neuroses de angústia).

De acordo com Marty (1963), isso seria produto de um desamparo inicial, propiciado por demandas do bebê não atendidas, vinculado a uma mãe narcísica, que promove um vazio psicológico, em desacordo com seus ritmos pulsionais e com suas necessidades básicas, de modo a não contribuir para o desenvolvimento ou o desdobramento do espaço simbólico, da fantasia, abrindo-se caminho para a ação direta corporal.

McDougall (2001) defende que os fenômenos psicossomáticos podem ser evitados quando uma organização neurótica serve de “escudo” contra a somatização. Vale-se, para sua teoria, do conceito de Winnicott (2013) de falso self, agregando que o fracasso das defesas habituais frente ao desamparo psíquico poderá propiciar somatização da dor mental.

 

Desestimação do afeto (repúdio do afeto)

Os pacientes descritos acima, em suas manifestações pulsionais, apresentam uma tendência a deixar-se morrer – identificada como apatia –, sendo sua defesa mais incidente a desestimação do afeto, o que denota prejuízo no desenvolvimento da subjetividade. Tal fator resulta de qualidades inexistentes, ou muito pobres, registradas na psique a partir dos vínculos estabelecidos no ambiente familiar.

No que diz respeito à estratificação da primeira tópica de Freud (inconsciente, pré-consciente e consciente), nas patologias do desvalimento, a instância desinvestida é a consciência, mais precisamente a consciência originária, anterior às marcas mnêmicas e às representações, com registros sensoriais capturados do ambiente, que poderá ser empático ou hostil.

De acordo com a segunda tópica de Freud, cuja instauração do Ego permanece, em parte, no Id, pacientes da clínica do desvalimento evidenciam subjetivação do Ego frágil e insegura, sem clareza de si mesmos como sujeitos com independência psíquica.

Freud ([1850] 1988) distinguiu uma consciência oficial, que chamou de secundária, implicada na formulação “fazer consciente o inconsciente”, e uma consciência anterior, originária, a qual denominou de neuronal, que consiste na captação de vitalidade, força ou manifestação pulsional como fundamento da subjetividade. Para ele, os conteúdos iniciais da consciência são a percepção, da qual derivam as marcas mnêmicas, e os afetos, os primeiros a se desenvolver como algo novo e diferente dos processos mentais puramente quantitativos da época de recém-nascido.

Para Maldavsky e colaboradores (2007), em determinadas manifestações psicopatológicas, em situações de fixações traumáticas prevalentes, observa-se uma tendência a processar os conflitos mediante alterações internas. Caso a libido não tenha sido estimulada e deslocada para as zonas erógenas periféricas (como caminho para estabelecer uma circulação pulsional intersubjetiva), formar-se-á uma aderência ao próprio corpo, com um estado de estancamento, o que, em muitos casos, poderá manifestar-se como somatizações. Freud destaca:

[...] efetivamente no início da vida psíquica, a ação específica não esta descoberta e estabelecida como método de tramitar uma exigência pulsional. Agrega então que, enquanto isso não ocorrer, a pulsão e processada por alterações internas. Sendo, desse modo, esse o critério inicial de processamento da pulsão (FREUD, [1850] 1988 apud MALDAVSKY, 1996, p. 188).

 

Somatização: desvitalização ou apatia

Maldavsky (1995) denominou tais patologias somáticas como “depressão sem consciência”, ou seja, sujeitos sem registros sensoriais de qualificações, provenientes do afeto, em tempos primordiais. A etapa evolutiva em que se cria o cenário que dá origem à depressão sem afeto é aquela que surge da vida psíquica, a partir do encontro entre um substrato neuroquímico, o recém-nascido e um mundo extracorporal, conectado com sua mãe, em sua capacidade de entender e decodificar as demandas do bebê.

Para o autor, quando não registra empatia, a figura materna se inscreve na mente da criança como um interlocutor arbitrário que contraria a realidade, ao que ele denomina de “déspota louco”, a cujo domínio absoluto o paciente sucumbe, tornando-se um ser desvitalizado ou vivo inanimado:

Viver significa ser amado e, se isso não ocorrer, o eu ego resigna-se a si mesmo, causando uma baixa no investimento libidinal narcisista (MALDAVSKY, 1996, p. 195, tradução nossa).

Deve-se ainda destacar que a apatia que resulta da carência de qualificação do afeto pode ser substituída pelo pânico e, em outros momentos, pela fúria, a qual se oferece como um caminho para retornar à inércia letárgica.

Destacam Maldavsky e colaboradores (2007) que os estados de desvitalização parecem ser o efeito de uma defesa contra Eros pela ação da pulsão de morte, podendo impedir que se acumule energia de reserva na psique do sujeito.

Freud explicitou ([1923] 1969) que a ausência da energia de reserva impede o indivíduo de realizar ações específicas para tramitar as exigências pulsionais amorosas ou hostis, próprias ou do outro, despertando no ego uma angústia automática, a qual surge como corolário da desvitalização.

 

Grupos de estudos na Argentina tratando do desvalimento

Há grupos de estudos na Argentina, para os quais pacientes psicossomáticos são considerados dentro de um grupo mais extenso. Para esses grupos de trabalho, não se trata de patologias tóxicas, em que são incluídas adições, transtornos alimentares, neuroses traumáticas, consideradas dentro do estado de desvalimento psíquico.

De acordo com Maldavsky (1992), esse estado é o produto de um déficit de funcionamento egoico libidinal determinante da constituição de um fragmento anímico comandado por uma corrente psíquica, na qual a desestimação do afeto é usada como defesa, capaz de conduzir ao dano orgânico.

A corrente psíquica que sustenta os aspectos psicossomáticos em uma estrutura de personalidade (derivando daí, em grande proporção, algumas das características de pacientes psicossomáticos) está organizada em torno de um estancamento libidinal tóxico como resultado de fixações no erotismo intrassomático e no ego real primitivo.

Nesses pacientes, há uma articulação defensiva cuja defesa central e frequente é a desestimação dos afetos, sem condições de qualificar os sentimentos devido à existência do registro de quantidades tão somente, que se descarregam no soma via alterações orgânicas , fazendo com que a fonte coincida com o objeto da pulsão.

 

Fragmento de um atendimento psicanalítico

Otávio tem perto de 50 anos, é solteiro, mora com os pais e auxilia o pai no negócio. Veio ao consultório em busca de ajuda, por não suportar a irritação na pele e os pruridos resultantes de psoríase, conforme o diagnóstico médico. De acordo com os relatos do pai, que procurou tratamento para a coluna na clínica, o filho fora rejeitado pela mãe devido ao fato de ela estar, na época da gravidez desse filho, com um bebê de três meses. Outro motivo seria que a esposa gostaria de ter tido uma menina, uma vez que já havia gerado dois filhos homens. Ao nascer, Otávio estava asfixiado com o cordão umbilical, resultando em anoxia. Mais tarde, no colégio, foi constatado que o menino apresentava dificuldades de aprendizagem. Há quatro anos, tentou suicídio duas vezes.

Otávio chegou às sessões terapêuticas relatando fatos dos pais, dos vizinhos, dos irmãos; todos os relatos eram monótonos, como se ele próprio não existisse. No início, antes de frequentar a terapia, permanecia a maior parte do tempo no quarto, por vergonha das feridas que se estendiam pelas pernas, pelos braços e pelas costas. Havia nele um olhar vago e quase um desespero pelo incômodo das erupções e dos pruridos na pele.

Iniciaram-se as sessões com incertezas sobre a possibilidade de realmente ajudar o paciente, semelhante a um caminhar sob neblina; e ele, com grandes expectativas de melhora. Com todo o acolhimento terapêutico e uma escuta bem apurada, foi possível observar que Otávio tinha muita dificuldade em expressar sentimentos. Expressava-se em quantidades, por exemplo: quanto vendeu na loja do pai, quanto gastou com remédios, quanto tempo levava no trajeto até a clínica, etc. Em algumas sessões, chegou com o semblante cerrado porque alguma coisa dera errado. Conforme ia relatando os fatos, foi induzido a lembrar-se do que ocorreu durante o dia. Era possível perceber a existência de muita raiva, tristeza e ressentimento devido a sua situação física, mas ele não expressava, só dizia que estava cansado, sem energia; não havia nele subsídios para qualificar esse estado energético.

Pacientes assim não aprenderam a decodificar os sentimentos, a refletir sobre o porquê dos fatos, nem puderam desenvolver formas de pensar estratégias. Aparentam um vazio imenso, com uma vida nebulosa, sem iniciativa e sem muitas perspectivas. Enquanto terapeuta, a partir do sentimento empático, é necessário emprestar a própria subjetividade para que o paciente aprenda a refletir sobre seus sentimentos, por exemplo, nomeando o que se passou antes de sentir-se desvitalizado. Possivelmente, foi desacatado, pressionado, tratado com indiferença ou segregado.

Passados dois anos, as lesões do Otávio foram se debelando, por conta de sua dedicação ao tratamento. Estando o paciente enquadrado na clínica do desvalimento, nem a atenção flutuante, nem a tentativa de afrouxar a resistência, nem o processo de transferência funcionam.

Nesses casos, o terapeuta ajudará a decodificar os relatos e as queixas, auxiliando na formação de significados para que o paciente possa dar início ao processo de simbolização e qualificação dos seus sentimentos, como também dar maior valor a sua própria existência, que acompanha uma baixa autoestima, devido à falha na constituição do eu como sujeito, instaurada, muito precariamente, nos primórdios da sua existência.

Otávio sentia-se solitário muitas vezes em seu quarto, e o único refúgio e forma de sentir-se vivo era navegar na internet ou comunicar-se pelo Facebook. Dessa maneira, sem o contato físico, virtualmente, tinha a ilusão de que estava realmente interagindo com outras pessoas ou parentes. Para ele, essa era uma ferramenta que o retirava um pouco da letargia, da tristeza e do sentir-se só.

Alvaréz (2013), discorrendo em sua tese as características da vida infantil e de vínculos, menciona que os efeitos posteriores de desconexões iniciais podem resultar em um desconhecimento dos afetos e desejos infantis, que passam a ser substituídos pelas aspirações paternas.

De acordo com a autora, é comum ver pais que se impõem sobre a vida anímica dos filhos, com dificuldades enormes em considerar os desejos deles, ou perguntar por eles, impondo-lhes, em lugar disso, as próprias respostas. Essa era a forma de tratamento dos pais com relação a Otávio, pois o pai falava por ele, decidia por ele de modo despótico a vida do filho. Com esse procedimento, é gerado, pouco a pouco, um sentir de invalidez diante da vida.

Para esses pacientes, o outro não foi constituído como diferente, capaz de ser interlocutor, capaz de ser receptor de seus desejos e de seus projetos. Não há um outro em quem se possa confiar ou a quem se possa pedir ajuda. É como viver em um mundo onde é necessário se autoabastecer com a sensação de não poder confiar em ninguém.

Acreditam que não interessa o que tenham a dizer de si próprios. Então, quando falam, fazem-no a partir do que supõem que o outro quer escutar, devendo o terapeuta estar atento a esse detalhe. São pacientes que muitas vezes se apresentam com uma fachada não genuína, caracterizada por certa adulação e um comportamento sobreadaptado ao meio vivenciado em determinado momento.

 

Considerações finais

Esta pesquisa de referenciais nos propõe reflexões sobre novas práticas psicanalíticas, que, repensadas a partir dos estudos de Freud, buscam, em fases pré-edipianas, estudar as vicissitudes de um ambiente não empático e não acolhedor, propiciador de desvalimento, com sintomas psicossomáticos ou adições.

Pacientes com déficits patogênicos, cuja subjetivação se encontra fragilizada, apresentam, em seu lugar, um vazio existencial, com estado de estupor, sem conexão com a realidade. São pacientes que chegam ao consultório denotando uma construção incompleta do aparelho psíquico, sem noção de si mesmos enquanto sujeitos independentes.

De acordo com vários estudiosos, essas manifestações psíquicas na fase da adolescência ou na vida adulta são produto de vivências de desamparo inicial, nos primórdios da existência do bebê, denominada por Freud de fase do Ego real primitivo. Tal estado é propiciado por demandas não atendidas, seja de uma mãe narcísica, seja de uma cuidadora não disponível às demandas do bebê. Registra-se, assim, em lugar de qualidades decorrentes de afetos, um vazio psicológico, com o sentir de desamparo rítmico e afetivo, que contraria o registro narcísico na psique do bebê.

 

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Endereço para correspondência
Maria Helena Nemitz Alcaraz Gomes
E-mail: clinivida.rs@terra.com.br

Recebido em: 02/05/2016
Aprovado em: 03/05/2016

 

 

SOBRE AS AUTORAS

Maria Helena Nemitz Alcaraz Gomes
Psicanalista do Círculo Psicanalítica do RS.
Especialista em Medicina Chinesa.
Doutoranda em Psicologia na Universidad de Ciencias Empresariales y Sociales (UCES), Buenos Aires.
E-mail: <clinivida.rs@terra.com.br>

Liliana Haydee Alvarez
Doutora em Psicologia.
Master em Patologías do Desvalimiento.
Docente titular do Doutorado em Psicologia.
Coordenadora acadêmica do Instituto de Altos Estudios en Psicología y Ciencias Sociales da UCES (IAEPCIS), Buenos Aires.
Coordenadora acadêmica do Laboratório Universitário de Psicanálise de Casais e Família.

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