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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.45 Belo Horizonte jul. 2016

 

 

Mudança de estilo de vida em situações de risco cardiovascular

 

Changing lifestyle in cardiovascular risk situations

 

 

Rachel Barreto Sotero de Menezes GoisI; José Augusto Soares Barreto FilhoI, II; Ricardo Azevedo BarretoII, III, IV

I Universidade Federal de Sergipe
II Hospital São Lucas - SE
III Círculo Brasileiro de Psicanálise
IV Universidade Tiradentes

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Fruto de um trabalho de mestrado, a presente pesquisa investigou as motivações de pacientes com fatores de risco cardiovascular que mudaram o estilo de vida. Consultaram-se prontuários médicos e realizaram-se entrevistas. Através de análise temática, predominaram temas relacionados ao sujeito. Destacaram-se o impulso para a vida e o funcionamento pelo princípio da realidade.

Palavras-chave: Estilo de vida, Tratamento, Risco cardiovascular, Motivação, Subjetividade.


ABSTRACT

As the result of a master´s work, the present research investigated motivations of patients with cardiovascular risk factors that changed their lifestyle. Medical records were consulted and interviews were conducted. Through thematic analysis, issues related to the subject dominated. The impulse for life and the operation by the principle of reality were prevalent.

Keywords: Lifestyle, Treatment, Cardiovascular risk, Motivation, Subjectivity.


 

Introdução

As doenças cardiovasculares estão declinando em países desenvolvidos, mas continuam sendo a maior causa de morbimortalidade em todo o globo (WHO, 2014). Foram responsáveis por 31,9% das mortes nos Estados Unidos em 2010 (GO et al. 2014). No Brasil a doença coronariana aguda é a principal causa de morte, e o colesterol é o principal fator de risco modificável (SIMÃO et al., 2013; XAVIER et al., 2013).

Além do componente genético, o estilo de vida do indivíduo é fator preponderante no surgimento e na manutenção das doenças cardiovasculares (RIPPE; ANGELOPOULOS, 2014). Dieta predominantemente composta por gorduras e carboidratos, hábitos sedentários, tabagismo, uso abusivo de álcool e o estresse do mundo moderno são nocivos à saúde cardiovascular global do homem (GO et al., 2014).

Mudar o estilo de vida, portanto, tem se apresentado como uma intervenção cardinal no combate às doenças cardiovasculares. Para o tratamento dos fatores de risco principais, tais como hipertensão, dislipidemia e obesidade, a mudança de estilo de vida entra como medida adjunta fundamental e aditiva ao tratamento farmacológico (XAVIER et al., 2013).

O interesse em desenvolver o presente estudo surgiu do reconhecimento de que a escuta dos pacientes pode trazer contribuições profícuas para a compreensão do percurso de construção de um estilo de vida saudável.

Informações podem ser úteis para aprimorar o tratamento em saúde, principalmente, no que se refere à prevenção e ao contato relacional médico-paciente (MARSH et al., 2004).

Para a psicanálise, o ser humano é movido por impulsos ou pulsões de vida e de morte (FREUD, [1920] 2006). Por outro lado, o estilo de vida de um sujeito pode ser pensado não apenas pelo que é manifesto em seus comportamentos, seus hábitos e suas atitudes. Numa leitura psicanalítica, pode-se compreender o estilo de vida como um modo de relação. Nessa visão, são importantes as dinâmicas inconscientes e as considerações sobre o sujeito e seu desejo (BARRETO, 2010).

O presente estudo buscou investigar as motivações para a mudança do estilo de vida de pessoas portadoras de risco cardiovascular em acompanhamento médico ambulatorial sob a ótica do paciente.

 

Metodologia

Realizado no estado de Sergipe, este estudo se caracteriza por ser qualitativo, exploratório e transversal. A mudança de estilo de vida foi caracterizada se fossem adotados pelo menos três dos hábitos preconizados pela V Diretriz Brasileira sobre Dislipidemias e Prevenção da Aterosclerose.

São preconizadas a prática regular de atividade física, a cessação do hábito de fumar, a redução ou cessação do hábito de beber, a adoção de dieta balanceada e a permanência nela há pelo menos seis meses (XAVIER et al., 2013).

Obteve-se um quantitativo de doze participantes de ambos os sexos, entre eles, sete homens e cinco mulheres, com faixa etária que variou de 34 a 64 anos de idade. A amostra foi intencional e selecionada pelos médicos que os atenderam. Os critérios de exclusão foram os pacientes portadores de doença coronariana ou acidente vascular cerebral submetidos a cirurgias bariátricas e usuários de medicamentos para redução de peso corporal.

Foram adotados dois tipos de instrumentos. O primeiro correspondeu ao prontuário dos pacientes com informações sobre eles e os indicadores de saúde. O segundo foi a entrevista semiestruturada, com perguntas abertas e composta por uma indagação principal (Como foi seu processo de mudança de estilo de vida?) e outras auxiliares.

Através de contato por telefone e e-mail, foram solicitadas a médicos clínicos que atendem em consultório particular indicações de pacientes que mudaram o estilo de vida há pelo menos seis meses. Os profissionais de saúde foram solicitados a realizar uma seleção prévia de pacientes que estivessem no perfil da pesquisa. Num segundo contato, a pesquisadora recebeu as indicações com os nomes e os telefones dos pacientes. O número de participantes foi definido pelo método da saturação dos conteúdos.

As entrevistas foram realizadas individualmente pela pesquisadora num ambiente reservado. As falas foram gravadas, transcritas e submetidas à análise temática.

Analisar é “[...] descobrir os núcleos de sentido que compõem uma comunicação cuja presença ou frequência signifique alguma coisa para o objetivo analítico visado” (MINAYO, 2007, p. 209).

Na análise temática, é possível fazer o levantamento de atitudes, qualidades e aptidões nas unidades de codificação que, na presente pesquisa, foram as falas dos sujeitos. Cada unidade de codificação apresenta o objetivo buscado pela pesquisa que, reagrupado, forma os diferentes elementos em cada categoria (BARDIN, 2009).

Para a realização do trabalho, buscaram-se conhecimentos da literatura especializada, da psicanálise e da psicologia.

O presente estudo passou por uma pesquisa piloto e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa envolvendo Seres Humanos, da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Dele foi produzida e defendida a dissertação de mestrado Mudança de estilo de vida em situações de risco cardiovascular: um olhar do paciente (GOIS, 2014).

 

Sobre uma possível compreensão da motivação na psicanálise

A psicanálise considera a inconsciência nos processos que constituem a atividade psíquica. O aspecto central é que o ser humano é movido por impulsos ou pulsões. Existem os ligados à sobrevivência e à autoconservação, além dos associados ao desejo e à sexualidade. Além das pulsões de vida, o ser humano tem impulsos destrutivos ou de morte (FREUD, [1920/1923] 2006, LAPLANCHE; PONTALIS, 1988).

Freud considera a pulsão como um conceito limite entre o psíquico e o somático, já que ela é o representante psíquico das excitações provenientes do interior do corpo (GARCIA-ROZA, 1986).

Outra maneira de definir tal conceito é como um processo dinâmico que consiste numa pressão ou força que faz tender um organismo para um alvo (LAPLANCHE; PONTALIS, 1988).

De acordo com o pensamento psicanalítico, existem quatro componentes da pulsão: o impulso, o alvo, o objeto e a fonte. O impulso seria uma força constante no sentido de uma energia potencial; a satisfação, a capacidade de completar um caminho ou percurso, seu alvo; o objeto, a causa do desejo, e a fonte, de onde provém a pulsão (LAPLANCHE; PONTALIS, 1988).

Com base em Freud ([1950] 2006), o funcionamento psíquico pode ser compreendido para além da atividade consciente, oferecendo a base para entender as contradições do ser humano.

Freud ([1911] 2006) fala sobre dois funcionamentos psíquicos do ser humano. Quando o bebê nasce, é regido pelo princípio do prazer. Ele se afasta de qualquer evento que possa gerar desprazer. No decorrer da vida, seu amadurecimento exige um funcionamento psíquico baseado no princípio da realidade, ou seja, suas escolhas são voltadas para o mundo real, mesmo que seja desagradável. Sair de um funcionamento mental baseado em recompensas imediatas requer uma capacidade de pensar nas consequências dos seus atos e adiar o prazer.

O princípio de realidade ganha predominância por força do ego. Para que haja superação da repetição de comportamentos do passado, é necessário que a pessoa tolere o desprazer momentâneo, ou seja, que haja predomínio do princípio da realidade. O abandono de uma série de possibilidades de obter prazer e a tolerância temporária do desprazer são etapas para o caminho indireto do prazer de outra ordem (FREUD, [1920] 2006).

Sabe-se, de acordo com a literatura especializada, que a psicanálise contemporânea buscou expandir o trabalho de Freud, oferecendo subsídios para uma discussão da motivação dentro da psicologia geral da mente. As motivações humanas foram pensadas com base na prática clínica, entre outros aspectos. Destaca-se, por conseguinte, que a mudança de estilo de vida tem influência das motivações de cada sujeito.

 

Resultados e discussão

Por meio da análise temática, surgiram sete categorias relacionadas ao sujeito: (1) concepções sobre a vida; (2) medo das perdas e da morte; (3) pensamento religioso; (4) relações interpessoais; (5) preocupação com a genética; (6) ganhos; e (7) mudanças.

Apareceu apenas uma categoria referente ao profissional de saúde: encontro médico-paciente. Alguns participantes citaram mudanças iniciadas há anos, demonstrando que o desenvolvimento de um novo estilo de vida foi um processo gradual, e não um momento pontual na história do sujeito.

 

Categorias relacionadas ao sujeito

As categorias relacionadas ao sujeito surgiram com maior frequência, sugerindo a importância do amadurecimento psicológico para esse processo de mudança do estilo de vida. Mostraram as possibilidades que surgem quando um sujeito se torna autor das próprias decisões.

Na categoria concepção sobre a vida, encontraram-se aspectos da individualidade relacionados a valores e preferências pessoais. Ressaltou-se a importância de escolher um caminho construtivo para si, mesmo quando se está passando por um momento difícil na vida.

[...] Eu vou procurar assistência médica [...]. Fui procurar o SUS, o sistema de saúde é pra todos nós. Procurar, tomar aqueles remédios, todos fortes, ou seja, de má qualidade [...]. Pra poder ir aguentando [...] até entrar numa coisa melhor (E02).

Freud ([1911] 2006) fala sobre ser regido pelo princípio da realidade, saindo do funcionamento infantil, baseado predominantemente no princípio do prazer.

A concepção da maioria dos entrevistados sobre a vida correspondeu ao desejo de fazer escolhas duradouras e saudáveis. Houve a percepção de que uma vida voltada predominantemente para prazeres sensoriais ou momentâneos não lhes traria boas consequências. O predomínio do funcionamento pelo princípio da realidade, conceituado por Freud ([1911] 2006), foi depreendido através da tomada de consciência da própria finitude e da possibilidade de prolongamento da vida com a conquista de mudanças.

Aspectos subjetivos da escolha surgiram mobilizando mudanças internas. Percebeu-se também nos sujeitos a importância da pulsão de vida para se tornarem capazes de abrir mão do prazer momentâneo. Além disso, relataram que a vida e o convívio familiar são mais importantes para eles do que os prazeres instantâneos.

Na categoria medo das perdas e da morte, houve referência ao adoecimento e ao envelhecimento. A mudança dos sujeitos foi originada pela percepção de sintomas físicos, pela consciência dos limites gerados pelo envelhecimento e da própria finitude, bem como pela possibilidade de vivenciar perdas das conquistas realizadas ao longo da vida. Tornar-se consciente dos medos traz a possibilidade de mudança.

De acordo com Freud ([1915] 2016), o ser humano revela uma tendência de colocar a morte de lado, eliminá-la ou silenciá-la. O autor explica ainda que um impulso afetivo pode ser mal sentido e mal interpretado, caso a ideia a ele ligada seja inconsciente. Os participantes da presente pesquisa puderam trazer à consciência ideias sobre a finitude da vida, na tentativa de prolongá-la.

As falas mostraram sujeitos que buscaram, através de recursos variados, uma maneira de melhorar a própria saúde. Após o conhecimento sobre o diagnóstico de hipertensão arterial, de diabetes ou do risco de adoecimento grave, percebeu-se nos entrevistados uma ligação com impulsos de vida através da escolha de hábitos saudáveis.

Destacou-se a responsabilização dos sujeitos por sua saúde, característica presente no processo de amadurecimento psicológico. Foram adotados mecanismos para modificar o que estava se tornando obstáculo para uma vida saudável. Foi necessário conviver com a ansiedade de postergar o prazer momentâneo pela ideia da conquista de um resultado positivo futuro.

Comentaram a respeito de como sua maneira de gerir a vida estava provocando doenças e trazendo consequências negativas e limitações. A identificação precoce dos fatores de risco cardiovascular, associada à consciência do próprio adoecimento, mostrou-se fundamental para o processo de mudança.

Farkouh et al. (2013) falam sobre resultados desanimadores na tentativa de prevenção das doenças cardiovasculares. Numa via oposta, percebeu-se que os sujeitos buscaram, através de recursos variados, uma maneira de melhorar a própria saúde.

Jurkiewicz e Romano (2009) salientam a importância da maneira como se vivenciam as perdas durante a vida para o surgimento de doenças cardíacas, já que na vida adulta avançada há redução da vitalidade, da vida produtiva e da vivência da sexualidade.

Embora a amostra não tenha sido composta por idosos, o adoecimento os levou a pensar sobre o envelhecimento, a finitude e os limites da vida. As falas de quatro entrevistados foram permeadas por crenças religiosas reconhecidas por eles como primordiais, das quais se depreendeu a categoria pensamento religioso.

A fé em Deus. O principal. Se eu não tivesse fé em Deus eu não procuraria o meu médico, nem nenhum médico, não. Entraria em depressão, deixaria a depressão tomar conta e ia na autodestruição [...] (E02).

Na categoria relações interpessoais as situações citadas tratavam de questões de incentivo, cobrança, desestímulo ou, até mesmo, influência favorável às mudanças para toda a família. Surgiu também o desejo de cuidar de si próprio para poder conviver mais com os entes queridos. Destaque-se que a superação de influências negativas de pessoas afetivamente próximas foi fundamental para mudanças favoráveis.

Com base em Freud ([1920] 2006), pode-se compreender tal objeção como uma luta do ego que funciona sob a influência do princípio da realidade. Além disso, os pacientes agiram como multiplicadores, favorecendo mudanças em prol da saúde na família.

[...] Meu marido mesmo gostava muito de carne vermelha. Hoje em dia [...] quando come é um pedacinho assim porque ele comia à vontade [...]. Ele adorava doce. Ele aprendeu a comer frutas. Aqui todo mundo se adaptou ao meu estilo (E06).

Barreto (2010), numa perspectiva psicanalítica, pensa no estilo de vida não apenas como hábitos ou comportamentos, mas também como uma modalidade de relação na qual considera o sujeito e seu desejo.

O reconhecimento e o envolvimento dos familiares foram vistos positivamente e como fonte de afetividade. A união da família também foi citada como aspecto facilitador para o desenvolvimento de um novo estilo de vida. O desejo de estar presente com a família foi fundamental para o processo de mudança.

Saí terça-feira do consultório, liguei pras minhas filhas e disse: daqui a dois meses talvez eu saia da insulina; a vibração delas (E11).

Na categoria preocupação com a genética, surgiram questões referentes aos antecedentes familiares. Quatro entrevistados se referiram ao modo como tal aspecto fortaleceu o desejo de melhorar o estilo de vida. A preocupação com o adoecimento familiar pregresso agiu como impulsionador para a mudança. A hipertensão de um familiar, a morte de um ente querido por doença cardiovascular e a experiência de ter um irmão diagnosticado anteriormente com a mesma doença favoreceram esse processo de mudança.

Todos os entrevistados identificaram resultados favoráveis por terem mudado o estilo de vida. Esse tema deu origem à categoria ganhos. Foram citados, entre outros aspectos, perda de peso; redução de glicemia, colesterol e estresse; melhora no sono e na autoestima e aumento na disposição.

Esses resultados são previstos por dados da World Health Organization (2014), que atestam que três quartos de todas as mortes por doenças cardiovasculares poderiam ter sido prevenidas por mudanças no estilo de vida.

Eu consegui em menos de dois meses reverter bastante os índices que estavam altíssimos [...]. Eu perdi na faixa de 15 a 17 quilos. Isso faz seis meses. Os índices todos de glicose foram derrubados mesmo. Os demais índices cardiovasculares, que também eram problemáticos, triglicérides e colesterol, foi tudo, tudo pra baixo, ficou ótimo (E03).

Freud ([1920] 2006) afirma que a capacidade de tolerar o desprazer na conquista de objetivos coloca o ser humano sob a égide do princípio da realidade.

A melhora do estado emocional foi um dos resultados identificados. Citou-se, entre outros aspectos, aumento da autoestima e do bem-estar:

Minha autoestima melhorou. Comecei a ver as roupas folgando [...] eu estava me sentindo bem, meu intestino funcionando melhor (E04).

Na categoria mudanças, foram percebidas as falas referentes a aspectos relacionados ao novo estilo de vida dos entrevistados. Mencionaram a transformação na rotina diária, desde as atividades que começaram a praticar até assuntos como o interesse por informações de saúde. Em todos os participantes, foram encontradas falas dessa categoria.

As mudanças podem ser compreendidas à luz da psicanálise como uma superação da compulsão à repetição. As questões pulsionais infantis podem ser parcialmente solucionadas, quando abrem espaço para o amadurecimento das escolhas dos seres humanos (FREUD, [1920] 2006).

As mudanças realizadas pelos entrevistados coincidem com aquelas sugeridas pelas pesquisas. Rocha et al. (2010), Mozaffarian et al. (2011) e Perk et al. (2012) recomendam para uma vida saudável: prática regular de atividade física, adoção de dieta balanceada, ausência de tabagismo e de estresse, tempo adequado de sono. Percebe-se congruência, portanto, com os resultados encontrados.

 

Categoria relacionada ao profissional de saúde

Surgiram aspectos relacionados aos atendimentos oferecidos pelos cardiologistas e endocrinologistas, nomeados como categoria encontro médico-paciente.

Foram reconhecidas nuances do relacionamento estabelecido com o profissional de saúde, que diziam respeito às orientações oferecidas por ele, assim como a maneira como eles as forneceram. Os pacientes entrevistados atribuíram aos médicos ações que facilitaram o processo de compreensão e o desenvolvimento das medidas de mudança de estilo de vida.

Martin et al. (2005) pontuam que o relacionamento com o profissional de saúde é preponderante na adesão ao tratamento. A capacidade para criar empatia com o paciente, percebendo aspectos da subjetividade, foi uma atitude citada pelos participantes como fundamental na postura dos médicos.

Barreto (2010), com base no referencial teórico psicanalítico, enfatiza o papel do profissional de saúde na mobilização do estilo de vida de seu paciente. O equívoco, para o autor, é o profissional orientar e seguir uma cenografia da educação, desconsiderando o sujeito.

Minhas visitas à doutora me ajudaram muito [...] com o trabalho feito com ela [...] eu fui me sentindo mais forte, aí eu fui me vendo com outros olhos. Eu fui me vendo como pessoa que realmente tinha algo. E que esse algo também tinha muita importância e que isso eu teria que me reerguer (E07).

Os entrevistados falaram sobre os médicos de maneira afetiva e próxima, demonstrando uma relação profissional duradoura. A constância no contato interpessoal foi capaz de trazer soluções criativas para a díade médico-paciente.

De acordo com Magnezi, Bergman e Urowitz (2014), os pacientes cujo médico considera a subjetividade e a afetividade, entre outros aspectos, adotam com maior frequência as recomendações por ele sugeridas.

As falas mostraram que a confiança no tratamento aumentou nas relações em que os médicos se colocavam de maneira próxima e afetiva para o sujeito. Falou-se sobre a importância da escuta e do acolhimento oferecidos pelo médico.

Os meus médicos que souberam [...] me colocar numa posição de reagir quanto a essa doença. Hoje em dia eu posso falar que como a própria endocrinologista falou, eu nunca vi uma mudança tão rápida de alguém [...]. Em termos de reagir aos índices que estavam (E03).

A psicoterapia foi vista como fundamental para o processo de mudança. O acompanhamento ‘psi’ contribuiu para persistir nos propósitos que haviam sido definidos.

Com base em Freud ([1912] 2006), toda ação humana possui motivações inconscientes que podem ser contrárias a decisões conscientes. Percebeu-se que, através da psicoterapia, foi possível conhecer, por exemplo, aspectos para superação de resistências à mudança.

Aspectos da personalidade do médico foram citados como importantes para as mudanças. Os pacientes indicaram a importância da postura do profissional de saúde. A comunicação satisfatória pôde ser estabelecida quando um sujeito se aproximou do outro e pôde encontrar nele suas singularidades e subjetividade.

Todas as determinações do médico e do nutricionista e atividade física que era uma coisa que escolhia [...] passei a fazer regularmente. A atividade física passou a ser um tratamento (E12).

A escuta e o cuidado de cada um foram fatores descritos pelos sujeitos como favoráveis nesse complexo processo de mudança. Alguns chegaram a comparar o papel do médico com o do profissional ‘psi’.

 

Considerações finais

A realização do presente estudo permitiu desvelar aspectos do desejo de alguns pacientes para atingir as metas preconizadas pela ciência médica para prevenção de risco cardiovascular.

Foi possível perceber que, apesar dos obstáculos, os pacientes buscaram tornar cada situação cotidiana catalisadora de mudança de estilo de vida. Diante do encontrado, chama-se atenção para a importância dada às questões da subjetividade. Nas oito categorias que surgiram das falas dos entrevistados, sete se referiram ao sujeito, e apenas uma se referiu ao profissional de saúde.

A escolha de um estilo de vida saudável passou pela esfera da mudança interna, fazendo-se necessário refletir sobre os tratamentos médicos oferecidos. Pode-se pensar na inclusão de um profissional ‘psi’ que atua nessa compreensão de aspectos subjetivos para facilitação do processo de mudança.

A escuta desses pacientes permitiu observar que as metas foram atingidas pela junção de uma série de fatores. Cada participante trouxe a peculiaridade do desejo individual para a mudança.

O impulso para a vida foi fator comum em todos os sujeitos. O desejo de mudar o estilo de vida parece ter sido preponderante. Essa pulsão de vida permeou as escolhas dos sujeitos, permitindo que a mudança ocorresse gradualmente.

Percebeu-se que o desejo de mudar foi ganhando forma e aos poucos se tornou suficientemente forte para que se tornasse uma ação. Pode-se dizer que a mudança ocorreu num processo contínuo.

Outro ponto da subjetividade que se destacou foi a capacidade dos sujeitos de utilizar os dados da realidade, ora transmitidos pelos médicos, ora percebidos pelos sintomas físicos e psíquicos, como fomentadores das mudanças.

O funcionamento ligado ao princípio da realidade foi predominante. Os sujeitos se mostraram capazes de abrir mão do antigo, muitas vezes prazeroso, pelo desejo de que tal atitude gerasse efeitos favoráveis.

Apesar de ter surgido em menor quantidade, o tema relacionado ao profissional de saúde também teve relevância. Desvelaram-se questões relacionadas à comunicação no atendimento médico e à afetividade do profissional de saúde. Os pacientes ressaltaram as atitudes dos médicos que atuaram considerando a individualidade para facilitar a comunicação com o paciente.

O atendimento clínico se revelou uma esfera criativa e dinâmica na qual os resultados dependem de aspectos não só objetivos mas também subjetivos. Foi possível perceber que a mudança do estilo de vida exige do sujeito um posicionamento sobre os objetivos que pretende atingir superando resistências.

Enfim, o processo de transformação de cada sujeito se apresentou de forma singular. A mudança de estilo de vida trouxe sentimentos vivenciados como agradáveis. Através do presente estudo, pode-se perceber a importância de pensar nos pacientes como sujeitos e escutá-los em relação àquilo que vivenciam, para facilitar a transposição de obstáculos na adesão ao tratamento médico.

Sugere-se que outros estudos sejam realizados, incluindo pacientes da rede pública, buscando ampliar a população investigada. Abre-se espaço, portanto, para pensar em novas pesquisas que visem conhecer experiências nos tratamentos em saúde. Essa compreensão pode facilitar o aprimoramento dos tratamentos médicos oferecidos, favorecendo a adesão dos pacientes e o contato relacional com o profissional.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: rachelbsm@ig.com.br

Recebido em: 26/05/2016
Aprovado em: 06/06/2016

 

 

SOBRE OS AUTORES

Rachel Barreto Sotero de Menezes Gois
Psicóloga clínica.
Mestre em Ciências da Saúde pela Universidade Federal de Sergipe (UFS).
Especialista em Psicoterapia Breve e em Psicologia da Infância e da Adolescência pela Faculdade Bahiana de Medicina e Saúde Pública.
Obteve o título de mestre com a apresentação e defesa da dissertação intitulada Mudança de estilo de vida em situações de risco cardiovascular: um olhar do paciente, da qual deriva o presente artigo.

José Augusto Soares Barreto Filho
Médico cardiologista.
Residência em Cardiologia pelo Instituto do Coração (INCOR) - FMUSP.
Tem doutorado em Cardiologia pelo Instituto do Coração (INCOR) - FMUSP.
Pós-doutorado na Yale University (Connecticut, Estados Unidos).
Coordenador do serviço de Cardiologia da Clínica e Hospital São Lucas (SE).
Membro do Conselho Administrativo do Hospital São Lucas em Sergipe.
Professor de graduação e pós-graduação da Universidade Federal de Sergipe (UFS).
Orientador do trabalho de mestrado do qual deriva o presente artigo.

Ricardo Azevedo Barreto
Presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise (Biênio 2014-2016).
Psicólogo graduado pela Universidade de São Paulo (USP).
Tem mestrado e doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela USP.
Especialista em Psicologia Hospitalar pelo CEPSIC da Divisão de Psicologia do Instituto Central do Hospital das Clínicas da FMUSP.
Teve experiência de treinamento no Butler Hospital (RI-USA).
Psicanalista. Um dos editores da revista Estudos de Psicanálise do Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP).
Coordenador do programa de humanização da assistência e membro do Conselho Administrativo do Hospital São Lucas em Sergipe.
Professor titular da Universidade Tiradentes (UNIT), onde ensina nos cursos de Psicologia e Medicina. Professor de Psicologia em cursos de especialização na área de Odontologia.
Coorientador do trabalho de mestrado do qual deriva o presente artigo.

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