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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.45 Belo Horizonte July 2016

 

RESENHA

 

Passagens

 

 

LOLLO, Paolo. Passagens: transmissão da psicanálise e direitos do homem.
Tradução de Antônia Ivo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2015.

 

 

Cibele Prado Barbieri

I Círculo Psicanalítico da Bahia

Endereço para correspondência

 

 


Palavras-chave: Psicanálise, Arte, Política, Educação, Transmissão, Direitos Humanos.


 

Articulando duas obras, a de David Malkin1 e a da palavra na transmissão e abertura dos sentidos, o autor, desde o início de seu texto, nos captura e nos guia por passagens, às vezes incógnitas e até misteriosas, que descobrimos ao nos introduzirmos nesse universo de fala e linguagem criado por Freud e recriado por Lacan: a psicanálise.

Passagens que se fazem no processo de análise, mas não só. Passagens que nos atravessam, mais do que atravessamos, ao longo das trajetórias de vida, e que nem sempre acontecem de forma lúcida e óbvia, mas certamente podem ser inferidas e percebidas nas produções dos sujeitos.

É que Lollo demonstra uma habilidade especial em conjugar seus muitos conhecimentos das línguas antigas, mortas, e revelar o saber que nelas habita, embutido e condensado em sua origem e história, que pode ser lido nas transformações e no engendramento das palavras que constituem nossos discursos, nossas línguas atuais, vivas.

Ele nos desperta para esses saberes que vêm das línguas, através das palavras em sua origem, revelando verdades ocultas na significação. Como diz em nota a tradutora, a intensão do autor é “indicar que uma palavra se compõe de diferentes sílabas significantes que podem ser reconhecidas pelo inconsciente” [nota 1, p. 104]. Ler a evolução das palavras nos conduz a um saber que não se sabe e a produzir um novo saber.

Assim, a trajetória desse texto nos convida a fazer o percurso da palavra, que pode ser lido sublinhando as partes que nos marcam em tudo que vai e volta, fazendo novas conexões. Da erudição à clareza, faz-se a passagem do obscuro ao legível, trazendo luz e delineando o que permanecia oculto. “A luz precisa de sombra para se revelar, assim como a música requer o silêncio”, diz ele logo na introdução.

São nove passagens que articulam a psicanálise com outros fazeres e saberes, cobrindo o campo que vai do sujeito à cultura. O texto interessa não apenas aos psicanalistas, mas também àqueles que se perguntam sobre criação, seja na arte, seja na política, seja na psicanálise: em intensão e em extensão.

Começa trabalhando as questões do mal-estar e do desejo humano, a esperança de alcançar a felicidade e, em seguida, a sua possibilidade. Lembramos que Freud propôs que se passe do sofrimento neurótico ao sofrimento comum. Lollo nos traz a questão de uma espera “messiânica”, “esperançosa”, que se exibe numa análise como tela de fundo do quadro produzido com as cores da fala, eleitas por uma analisante por ele mencionada, como faz o artista.

Não se trata apenas de falar do mal-estar individual, particular, desse sujeito enquanto autor de sua história, mas também da escuta e da leitura que se desenvolve entre analista e analisante; dessa produção que advém da espera e da tensão que se cria entre esses dois polos.

Lollo associa a indeterminação sobre o destino de uma análise ao princípio de indeterminação, de Heisenberg, para marcar a impossibilidade de determinar a priori se o sujeito poderá “tornar-se” aqui ou acolá, enlaçar e tramar o sinthoma, assim como não se pode saber antecipadamente se o artista produzirá sua obra-prima, a cada nova criação.

É interessante notar como, nesse primeiro momento, o autor convoca o Angelus Novus – pintura feita por Paul Klee em 1920 – e a leitura que dele faz Walter Benjamin para representar o movimento do analisante que caminha, na análise, olhando para seu passado, observando-o e reeditando-o, de costas para o futuro, mas empurrado para ele pela ventania do desejo de se desprender dos horrores que do passado advêm e pela esperança de transformá-lo no presente e num futuro que sempre é imprevisível. “As asas da interpretação produzem esse sopro que impulsiona para o futuro e se pode chamar de esperança” [p. 22]. A esperança de que se trata é prerrogativa não apenas do analisante, mas também do analista em sua “espera flutuante”, em sua aposta no surgimento de um novo nome.

A questão da felicidade e da infelicidade na cultura é, então, o segundo passo. O autor esclarece que a pretensão original de Freud – que nem todos conhecem – era falar da felicidade e da cultura (Das Glück und die Kultur, esboço iniciado em 1929).

Mas se viu obrigado a mudar seu título: “Ao longo de sua pesquisa, Freud muda seu ponto de vista e se vê obrigado a mudar o título de seu ensaio, que passa a ser Das Unglück in der Kultur, ‘A infelicidade na cultura’” [p. 25].

Neste capítulo, o autor introduz a ideia de que a civilização desconfia da felicidade e questiona se a psicanálise poderia trazer para a cultura “um saber (Wissen) que não apenas esteja o mais próximo possível da vida, mas também possa servi-la [...]” [p. 26], e propõe:

O próprio da cultura me parece, assim, residir nesse ímpeto que faz vir ao mundo, que desabrocha o pensamento e o saber. Ela se situa no lugar de uma fonte de onde tudo jorra [...] A felicidade, Glück, surge de um jorro de água que gorgoleja e parece engendrar uma invocação. [...] A felicidade (Glück) seria, então, a representação sonora de um renascimento do ser que se ergue, ao brotar da superfície (p. 28) [...] só há pulsão se há passagem (da energia) de um espaço para outro [p. 29].

Retomando Freud sobre as pulsões de vida e de morte para pensar se “Não haveria na cultura e em sua origem pulsional, jorrante, uma ambivalência que reclama ser entendida?” (LOLLO, 2015, p. 37), recorre a Heráclito, segundo o qual, “vida e morte são, na verdade, um único movimento”. E conclui dizendo:

A cultura da felicidade plana acima da superfície das águas do logos; ela se destina, como diz Nietzsche, “a homens que veem e escutam infinitamente mais, pois eles veem escutam pensando” [p. 41].

O terceiro passo nos leva a pensar sobre o papel da psicanálise na Polis, a articulação do saber psicanalítico em relação aos direitos do homem, não está dissociada do que foi elaborado no ponto anterior e poderia ser tomada como continuação do que foi desenvolvido até aqui. Este capítulo originou-se da participação no Colóquio realizado em 2008 na sede central da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), organizado pela associação Insistance, por ocasião dos 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Para falar dos direitos humanos, o autor retoma a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, como ato revolucionário que continua em marcha e torna-se “patrimônio cultural partilhado pela humanidade e em operação no âmbito político” [p. 43]. Desse ato, podemos depreender uma passagem do “ao pé da letra” à metáfora, do signo ao significante polissêmico, do “matar o significado e casar-se com o significante” [p. 47].

Para melhor entendermos, ele retoma a questão posta no mito de Édipo, em que a palavra do oráculo é tomada ao pé da letra, como signo, mostrando que o caminho a percorrer em direção ao sentido pode ser tortuoso e, por isso, enigmático; então, tomar a palavra ao pé da letra pode conduzir à tragédia, como aconteceu com Édipo.

Tirésias questionará Édipo: “Tu sabes quem são teus pais?” [nota 1, p. 45].

O mito de Édipo quer nos significar (fazer signo) que todo gesto criador é igualmente um gesto destrutivo [p. 46].

[...] o saber de Édipo consegue se aplicar ao destino do homem em geral, mas fracassa no que respeita à sua própria história.

A tragédia grega e a psicanálise se interessam pelo mito de Édipo porque ele permite interrogar a origem, inclusive a do saber, lá onde surge a fala oracular que faz vibrar o significante primordial [p. 47].

Lollo chama a atenção para o fato de que, ao assassinar Laio, Édipo não apenas mata seu pai, sem o saber, mas incorre num crime contra o direito humano: “vai contra o direito natural que proíbe todo e qualquer assassinato”. “Édipo poderia ter-se perguntado também que direito tem um homem, mesmo quando é príncipe, de matar outro homem que barra seu caminho” [p. 45].

Além disso, Lollo trabalha a questão da inversão da ordem da progenitura e seus efeitos. Ao procriar com a mãe, Édipo ocupa o lugar do pai, do primeiro (o 1, o começo) da série, que implica uma subversão da ordem de filiações. Como consequência, seus filhos são, ao mesmo tempo, seus irmãos, subvertendo a ordem, a lei das gerações. “Quão terrível é o saber, quando se torna inútil!” – diz Tirésias a Édipo [p. 48].

Daí parte a reflexão sobre o saber que se transmite e de um saber que

[...] não é transferível, já que ainda não existe numa forma que possa ser acolhida e recebida. Chamo de ‘transcriação’ essa parte que pode ser transferida e recebida somente após ter sido criada [p. 50].

A questão da transmissão do saber será desenvolvida na próxima passagem, mas aqui se dirige ao papel político da UNESCO na criação de estratégias culturais, já que não basta declamar ou registrar por escrito, solenemente, os direitos naturais para que eles sejam aprendidos e apreendidos por todos.

A próxima passagem recoloca e aprofunda a questão do saber e sua transmissão, como também a feliz eventualidade de uma “transcriação”, que seria a criação de um saber próprio a cada sujeito.

O autor considera quatro modalidades ou frações na transmissão do saber:

1. Uma parte de saber que é transferido e pode ser mensurado, que corresponde ao “que cessa de não se escrever”, que seria da ordem de um real que se representa, se escreve, se registra no campo do simbólico;

2. Uma parte que é transferida, mas não pode ser mensurada, que seria da ordem do “que não cessa de não se escrever” porque não se inscreve como representação e permanece inapreensível, inacessível impossível de ser quantificado;

3. Um saber que não pode ser transferido, pois se perde no trajeto e não chega ao seu destino e “cessa de se escrever”, que seria da ordem do “recalcado ou foracluído, que bloqueia a máquina de aprendizagem e de transferência. [...] Trata-se do trou-matisme, do vazio produzido por uma sideração (Verblüffung), uma suspensão do desejo” [p. 60].

4. “Um saber que não pode ser transmitido, mas surge do nada, produzido pelo aluno, por sua pulsão criadora. ‘O que não cessa de se escrever’” como disse Lacan (1972-1973, p. 86) [p. 61]. Esse seria um saber criado, “um furo criador que permite sair do trou-matisme e da sideração, levando o aluno (e o analisando) a produzir saber que não se encontra lá” [p. 61]; uma saída original e singular pela produção de novos significantes.

Essas modalidades tornam ainda mais justificadas as preocupações de Freud em relação ao ensino da psicanálise nas universidades, onde ela seria transmitida de forma dogmática. O autor esclarece, então, a especificidade do saber psicanalítico:

A psicanálise lê a natureza como um real em movimento que escapa à captura de categorias e à medida dos geômetras. Para Jacques Lacan, a physis, o real, é “o que não cessa de não se escrever”. Ela se recusa à captura conceitual do ser humano. Essa recusa não quer dizer que ela não aja no simbólico, e sim que devemos “nos acostumar” com essa presença ausente que não pode integrar, de maneira plena e aberta, nosso saber. Por essa razão, a transmissão do saber analítico é um empreendimento difícil que não pode ser realizado na universidade [p. 58],

Lollo chama de “transcriação” o saber que criamos quando aprendemos a aprender e que surge de uma experiência particular de cada um de nós com a aprendizagem; mas observa que, para que isso aconteça, é necessário que aquele que transmite ensine a produzir o que não se pode receber diretamente. Trata-se de um saber singular produzido por aquele que recebe a partir do que foi transmitido, uma criação que extrapola o nível da repetição.

Cada saber é sempre singular, pois é produzido, em grande parte, por aquele que o recebe, mesmo quando se trata de um saber científico, já que está em simbiose com um sujeito que, a um só tempo, o produz e o sustenta [p. 62].

A quinta passagem diz respeito à articulação do processo de análise com o universal que há no ser falante e, ao mesmo tempo, a diversidade e a especificidade que há em cada ser; tudo isso como fruto da relação com o Logos. As palavras, em seu poder de fazer vibrar o corpo, dele surgem e a ele retornam.

Elas fazem vibrar o corpo num jogo de ressonâncias que a ciência e a medicina ainda não exploraram verdadeiramente. A fala surge do corpo e retorna ao corpo, fazendo-o vibrar novamente. [...] tratamento pela fala (talking cure): a palavra age sobre o corpo e o transforma [p. 63].

Nessa passagem, é digna de nota a aproximação feita entre o trabalho do artista e o do psicanalista, que tornam possível o encontro entre quantidade e qualidade ao torná-las simbólicas, possibilitando a criação da singularidade como universal.

Essa articulação é retomada no sexto capítulo em que o autor acrescenta à relação entre arte e psicanálise a relação com a política. “Qual é a relação entre psicanálise, política e arte?” questiona Lollo [p. 81]. São três modalidades do ato que, segundo ele , fazem vibrar o real. Criar pode ser definido como juntar de modo novo elementos diferentes, cuja liberdade pode ser qualificada como leiga, ou seja, que não exige uma formação acadêmica ou saber previamente constituído e pode ser operado por qualquer um. Tanto a psicanálise quanto a arte e a política não necessitam de um diploma universitário para ser exercidas com propriedade. O que legitima esses atos é não o saber, mas apenas o desejo, sem o qual não há ação.

A passagem seguinte nos leva do mal-entendido à literatura, de analisante a analista, pelos caminhos do “não querer saber” e do mal-entendido. Entender mal nos leva a novas relações, novas associações, nos leva a ouvir mais além do sentido comum, novos sentidos. Pode, inclusive, nos levar a ouvir o não saber, também chamado real.

“O inconsciente não conhece a negação e tampouco a diferença entre o bem e o mal” [p. 86]. Só reconhece as associações por simultaneidade, similaridade, pela relação entre ideias. O autor vai desenvolver a passagem do “isso-ver” (ça-voir/savoir, saber), ou “ver o isso”, ao “isso-ouvir” (ça-entendre), fazendo menção ao passe do analisante a analista, quando ouvir outra coisa pode ser ouvir o deslocamento do sentido que desliza.

Em seguida, trata da passagem de um a outro discurso, do saber que não se sabe, do Inconsciente como outro, ao saber do Inconsciente como sujeito. No início da análise: não sei que sei; “O que é isso?”; Eu x ISSO. No final da análise: sei que não quero saber; “ISSO fala!”; Eu e ISSO.

Ao final deste capítulo, Lollo trata das questões que envolvem as instituições psicanalíticas. Da importância da insistência como estilo que advém das tentativas repetidas de capturar o real na rede da linguagem. Sabemos que os restos das análises dos analistas têm a instituição psicanalítica como lugar propício e privilegiado de elaboração da compulsão à repetição. Fala da formação, de-formação e trans-formação necessárias ao tornar-se analista, à constituição de um desejo de analista, mais enigmático do que seria o desejo do analista. Um desejo chamado por Lacan de o desejo x, pelo seu caráter enigmático, à medida que leva um sujeito a autorizar-se como analista, em seu nome, mesmo que se revele um desejo sem objeto, talvez a liberdade possa ser considerada seu único objeto, cogita Lollo.

A instituição seria, nessa concepção, um lugar possível de colaboração, pesquisa e invenção que abrigasse, ao mesmo tempo, psicanalistas, artistas e políticos em comunidade desprovida de regulamentação.

Não se trata, no entanto da criação de territórios sem lei, mas apenas de “prescindir do Nome-do-Pai à condição de saber usá-lo”, de engendrar um território de liberdade fundada na democracia, provida de regulação. “A psicanálise é uma atividade fora da norma que pode prescindir do Nome-do-Pai (do nomos do pai), assim como do controle do Estado, pois ela se interessa pela vida privada dos indivíduos [...]” [p. 121]. Em nota, ele nos lembra que nomos, em grego, significa lei.

É também da articulação entre psicanálise, arte e política que surge a reflexão de Lollo sobre a possibilidade de um governante que, tendo se endereçado à psicanálise, vindo de um território onde vigoram as leis da natureza, tenha apreendido, a partir dessas duas experiências, um saber sobre o real e, por isso, possa instituir uma nova forma de governar uma nação, ensinando ao mundo os deveres essenciais da lei e da preservação do real necessário à vida humana, que a floresta encarna.

Paolo Lollo se refere à experiência de infância vivida na floresta amazônica por Marina Silva, ex-candidata à presidência do Brasil, aproximando o saber escondido e invisível – pescado nas águas dos rios da complexa linguagem de signos da natureza – e o saber inconsciente – não menos escondido nos rios de desejos e pulsões onde nossa “coisa” vive.

Paolo nos fala ao longo do texto sobre o processo de análise, o processo de ensino e, finalmente, sobre governar. Será que, nessas condições, governar, educar e analisar se tornariam possíveis?

Para finalizar, poderia dizer que os temas que nos apresenta seguem um fio condutor sutil e inovador, que nos torna parceiros nessa viagem, e não apenas expectadores. Por isso, ao chegar ao ponto de destino, percebemos que Passagens torna-se uma daquelas leituras às quais se retorna, para dela extrair novas ideias. Uma obra necessária ao saber e ao prazer de todos que compartilham e exercitam a paixão pela psicanálise, a escrita e a política.

 

Referências

LACAN, J. Le séminaire, livre XX: encore (1972-1973). Paris: Seuil, 1975.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: barbieri.cibele@gmail.com

Recebido em: 02/05/2016
Aprovado em: 03/05/2016

 

 

SOBRE A AUTORA

Cibele Prado Barbieri
Psicanalista. Psicóloga.
Membro e atual presidente do Círculo Psicanalítico da Bahia - CPB. Presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP) 2006-2008.
Membro da Comissão Editorial da Revista Estudos de Psicanálise do CBP.
Editora da Revista Cógito, publicação anual do Círculo Psicanalítico da Bahia.

 

 

1 Imagem da capa: David Malkin. Passage [detalhe], c. 1990 - óleo sobre papel, 85 x 45 cm.

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