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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.46 Belo Horizonte dez. 2016

 

 

Escopofilia: De que se alimenta o mundo virtual?

 

Scopophilia: on what does the virtual world feeds?

 

 

Cleo José Mallmann

I Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O texto apresenta, inicialmente, um apanhado teórico da pulsão escopofílica, a pulsão do prazer de olhar. Fundamenta-se principalmente em Freud, além de Fenichel e estudiosos atuais do tema, como Bergeret e Marli Piva Monteiro. A seguir, mostra como a internet em especial, mas também outras formas de comunicação visual como cinema, fotografia e televisão utilizam e exploram essa pulsão, a pulsão do prazer de olhar, quer seja de forma criativa, quer seja de forma a potencializar aspectos perversos. A exploração do prazer de olhar para fins comerciais e lucrativos é outro fato evidente em nossa realidade. Por último, uma menção à sublimação dessa pulsão, que abre portas para a curiosidade, a aprendizagem e a pesquisa.

Palavras-chave: Pulsão, Escopofilia, Voyeurismo, Prazer de olhar, Zona erógena.


ABSTRACT

This text initially presents a theoretical review of the scopophilic drive. It is based mainly on Freud, supported by Fenichel and other contemporary experts on the subject, such as Bergeret and Marli Piva Monteiro. Following, it shows how the internet particularly, but also other forms of visual communication such as cinema, photography and television, use and explore this drive, the drive to obtain pleasure in watching, be it in an imaginative way, be it in a way to potentiate perverse aspects. The exploitation of the pleasure in watching, for commercial and lucrative ends, is also another evident fact in our reality. At last, a mention to the sublimation of this drive, which makes way for curiosity, learning and researching.

Keywords: Drive, Scopophilia, Voyeurism, Pleasure on watching, Erogenous Zone.


 

Pulsão escopofílica

Uma das parafilias, anteriormente chamadas perversões, é o voyeurismo ou escopofilia. O voyeur é o sujeito que obtém prazer em observar os atos sexuais ou a intimidade sexual das pessoas. Sua ação é apenas visual; não participa ativamente da cena. O objetivo é obter prazer sexual olhando, sem envolvimento com a pessoa observada. Destaca-se, portanto, essencialmente a pulsão de olhar. O prazer advém do olhar. A única fonte de excitação e produção de prazer é, predominantemente, o olhar.

Freud usa o termo escopofilia. O sujeito é levado pela pulsão escopofílica a tomar o outro como objeto, capturando-o através do olhar à distância. Não se estabelece uma relação sujeito-objeto. E tanto pode ser a visão de uma cena sexual real, acontecendo presentemente, quanto cenas virtuais diretas via Skype ou fotos e filmes.

A pulsão escopofílica é uma pulsão particular, diferenciada, que consiste na necessidade de olhar. Não é uma das pulsões primárias fundamentais, como oral ou anal, mas é a manifestação de uma das formas de expressão da pulsão sexual.

Entende-se como pulsão a expressão psíquica de uma excitação provinda de uma zona do corpo. A pulsão humana está formada por vários componentes, as chamadas pulsões parciais, ligadas a diferentes partes do corpo, às zonas erógenas, e essas pulsões sexuais parciais se expressam nessas zonas erógenas, nas quais diferentes partes do corpo podem suscitar prazer.

Essas pulsões parciais, no entanto, se expressam de forma anárquica, desorganizada, caracterizando a fase do autoerotismo, que antecede a fase edípica. A pulsão sexual é uma só, mas difusa. “Como cada zona corporal, de forma independente, fornece prazer, falamos de ‘prazer de órgão’” (BERGERET, 2006, p. 68).

Somente quando as pulsões se unificam é que acontecerá a primazia da pulsão fálica. Essa realidade leva Freud a denominar a sexualidade infantil de perverso-polimorfa.

Ao falar da noção de apoio, em que as pulsões sexuais emprestam das pulsões de autoconservação a fonte da excitação, não podemos pensar somente na função de alimentação ou evacuação.

Bergeret (2006, p. 68) acentua que

[...] não são somente as funções orgânicas, mas também as funções de vida de relação que apoiam as primeiras satisfações sexuais. É assim com a visão, o tato e até mesmo a atividade intelectual.

É interessante a noção de que as funções de vida apoiam as primeiras satisfações sexuais, pois ampliam enormemente o leque das pulsões parciais. E certamente continuam a fazê-lo, especialmente a visão, desde que não exclusiva e predominantemente, quando passaria ao nível patológico.

O objetivo ou alvo de toda pulsão sexual é descarregar a excitação, ver-se livre da pressão para alcançar novamente a homeostase. E é justamente essa descarga da tensão que é prazerosa.

Assim definem Laplanche e Pontalis (1970, p. 506):

Segundo Freud, uma pulsão tem sua fonte numa excitação corporal (estado de tensão); o seu alvo é suprimir o estado de tensão que reina na fonte pulsional; é no objeto ou graças a ele que a pulsão pode atingir o seu alvo.

Ao falar de zonas erógenas em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud ([1905] 1969, p. 172) afirma: “[...] na escopofilia e no exibicionismo o olhar corresponde a uma zona erógena [...]”. No sadomasoquismo, em que o aspecto dor é fundamental, é a pele a zona erógena, no corpo todo.

A pulsão escópica tem uma fonte: o aparelho visual; tem um objeto: a cena sexual ou a intimidade de alguém; e tem um objetivo ou alvo: olhar, extraindo prazer dessa visão. Portanto, a pulsão se realiza pela visão.

O olhar alcança o objeto à distância. Alcança-o quase sempre sem que o objeto o perceba. Em última análise, o objeto é “tocado” pelo olhar sem que se sinta tocado e sem que o objeto tome conhecimento.

Fenichel (1966, p. 92) lembra que “a escopofilia, a sexualização das sensações de olhar, é análoga ao erotismo do contato”.

Freud ([1905a] 1969, p. 118) já o dissera: “Como se dá com tanta frequência, o olhar substitui o tocar”. Em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade já afirmara a mesma coisa, lembrando que a visão é derivada do tato:

As impressões visuais continuam a ser o caminho mais frequente ao longo do qual a excitação libidinosa é despertada [...] O esconder progressivo do corpo que acompanha a civilização mantém desperta a curiosidade sexual. Esta curiosidade sexual busca completar o objeto sexual revelando suas partes ocultas (FREUD, [1905] 1969, p. 158).

Não é sem razão que há tantas expressões populares relacionadas com os olhos, sempre cheias de verdade psicológica, sublimando a verdade da equivalência do olhar com o tocar. Na verdade um toque invasivo:

• penetrar alguém com os olhos;
• fulminar com um olhar;
• perscrutar com os olhos;
• despir com os olhos;
• comer com os olhos (no duplo sentido).

A propósito, Fenichel (1966, p. 92) lembra:

Em muitas fantasias escopofílicas, aparece com especial claridade a fantasia de incorporar através do olho o objeto que se vê.

E a expressão mais forte parece ser “os olhos são o espelho da alma”, ou “os olhos são a janela da alma”. Os olhos podem falar de inocência, de bondade, de consolo, mas podem falar também de desejos ocultos que não podem ser falados.

A pulsão escopofílica faz par com o exibicionismo. Em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud escreve:

Toda perversão ativa se acompanha, portanto, de seu equivalente passivo: quem quer que seja um exibicionista, em seu inconsciente, é ao mesmo tempo um voyeur [...] embora nos sintomas presentes, uma ou outra das tendências opostas desempenhe o papel predominante (FREUD, [1905] 1969, p. 170).

Nos meninos, o exibicionismo se reveste dessa pulsão parcial de forma mais intensa. Sentem prazer em se exibir. E o exibicionista regride a essa fase infantil numa tentativa de aplacar a ansiedade da castração. Superinvestir nessa pulsão parcial é a maneira que o sujeito regredido encontra para negar a castração.

No dizer de Fenichel (1966, p. 93), o voyeur, ao se exibir, usa o olhar do outro como testemunha de que possui o pênis, de que (ele) não lhe foi cortado. A reação de choque e medo que provoca e percebe no outro, quando se exibe, são uma projeção de seu próprio medo. E, finalmente, mostra para a mulher o que gostaria que ela lhe mostrasse, confirmando, dessa forma, que ela não é castrada. Assim, aplaca sua angústia.

E acrescenta:

Uma vez que o homem pode acalmar sua angústia de castração exibindo seus genitais, o exibicionismo masculino permanece fixado nos genitais, o que resulta que desempenhe um papel no prazer sexual preliminar. E na mulher, uma vez que a ideia de estar castrada inibe o exibicionismo genital, há um deslocamento do exibicionismo genital para o corpo em sua totalidade. Não existe uma perversão feminina do exibicionismo, mas o exibicionismo extragenital desempenha um importante papel tanto dentro quanto fora da esfera sexual (FENICHEL, 1966, p. 93).

A histérica exibe seu corpo como um todo, e não a zona genital. O temor de que fique visível sua condição de castrada ocupa com frequência a fantasia inconsciente das histéricas de angústia. A roupa, extensão de seu corpo, serve com frequência para potencializar a exibição de seu corpo como um todo.

Na cena em que o voyeur olha um casal na sua intimidade, identifica-se na sua fantasia com um dos parceiros e, às vezes, com os dois. Esse olhar do voyeur pode conter um desejo sádico de destruir o objeto olhado e, ao mesmo tempo, a negação desse desejo, ou seja, “só olhei, não destruí”. Assim também o olhar obsessivo da mulher para os genitais masculinos pode esconder a ideia de destruí-los.

Tanto a escopofilia quanto o exibicionismo têm como finalidade o olhar-se a si mesmo. O exibicionismo tem um componente narcisista mais marcante e sempre se assegura contra o temor da castração.

Freud assim descreve na Conferência XX: A vida sexual dos seres humanos o que, em essência, caracteriza a perversão:

O segundo grupo é formado por pervertidos que transformaram em finalidade de seus desejos sexuais aquilo que normalmente constitui apenas um ato inicial ou preparatório. São pessoas cujo desejo consiste em olhar outras pessoas, ou apalpá-las, ou espiá-las durante execução de atos íntimos, ou por pessoas que exponham partes do corpo que deveriam estar encobertas, na obscura expectativa de poderem ser recompensadas em troca de uma ação correspondente (FREUD, [1917] 1969, p. 358).

Em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud já estabelecera a distinção entre o normal e o patológico:

Na maioria dos casos, a natureza patológica de uma perversão situa-se não no conteúdo do novo objeto sexual e sim em sua relação com o normal. Se uma perversão, ao invés de aparecer simplesmente ao lado do objetivo sexual normal e somente quando as circunstâncias são desfavoráveis a eles e favoráveis a ela - se ao invés disto, ela os expulsa completamente e toma o lugar deles em todas as circunstâncias - se, em suma, uma perversão tem as características de exclusividade e fixação - então estaremos, via de regra, justificados em considerá-la um sintoma patológico! (FREUD, [1905] 1969, p. 163).

Na Conferência XX repete: “O ser pervertido não é senão uma sexualidade infantil cindida em seus impulsos separados” (FREUD, [1917] 1969, p. 363). Não aconteceu, por alguma razão, a unificação das pulsões parciais em favor da pulsão fálica. O sujeito ficou preso em uma das etapas de seu desenvolvimento, fixado em uma das pulsões parciais, demasiadamente investida. É a ela que regride.

 

Perversão e sexualidade normal

A conhecida afirmação de que os perversos atuam em sua vida sexual aquilo que é apenas fantasia nos neuróticos evidencia a presença de elementos sexuais perversos em todas as pessoas.

Freud, em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, diz:

Segundo minha experiência, qualquer pessoa que seja de qualquer forma, quer social, quer eticamente, psiquicamente normal, é invariavelmente anormal, também em sua vida sexual (FREUD, [1905] 1969, p. 150).

São traços perversos, entre outros, presentes na sexualidade normal: o beijo, a necessidade de ver o objeto sexual, de tocá-lo, apertar, morder.

Na Conferência XXI: O desenvolvimento da libido e as organizações sexuais, Freud esclarece:

Na medida em que as ações pervertidas se inserem na realização do ato sexual normal, como contribuições preparatórias ou intensificadoras, não constituem, na realidade, absolutamente perversões (FREUD, [1917] 1969, p. 377).

A patologia está na fixação, na exclusividade de uma dessas pulsões para alcançar o prazer, excluindo a relação genital ou colocando-a em segundo plano.

Os loucos impulsos perversos nos habitam a todos, dos mais normais e neuróticos aos perversos. Os perversos, na ausência de um superego bem estruturado, atuam o que os demais apenas fantasiam ou se permitem vivenciar nos sonhos.

Em situações especiais, quando o exercício da sexualidade não é possível, essas fantasias e desejos recrudescem de forma mais intensa e perceptível para o sujeito.

Diz Freud na Conferência XX:

Os impulsos pervertidos devem emergir com mais intensidade do que emergiriam se a satisfação sexual normal não tivesse encontrado obstáculo no mundo real (FREUD, [1917] 1969, p. 362).

Monteiro1 resume de forma clara a evolução da sexualidade humana:

Os complicados avatares da sexualidade humana, no cumprimento de seu trajeto desde os primórdios da fase oral, passando pelas atribulações da fase anal, quando o ser humano vai, pela primeira vez, defrontar-se com a negação e a repressão, irá, se tudo correr bem, culminar finalmente na primazia genital (MONTEIRO, 2007, p. 114).

A comprovação de que desejos e fantasias perversas nos povoam se dá nos sonhos, nos quais constatamos com frequência sua realização.

Freud, na Conferência XXI diz:

São arranjos da libido e das catexias objetais que datam do início da infância e que, desde então, foram abandonadas no que respeita à vida consciente, mas que provam estar ainda presentes no período noturno e ser capazes de funcionar em certo sentido [...]. No entanto, de vez que todos, e não apenas os neuróticos, experimentam estes sonhos pervertidos, incestuosos e assassinos, podemos concluir que as pessoas que são normais, atualmente, percorreram um caminho evolutivo que passou pelas perversões e catexias objetais do complexo de Édipo, que este é o caminho do desenvolvimento normal e que os neuróticos simplesmente nos mostram, de forma ampliada e grosseira, aquilo que a análise dos sonhos nos revela também em pessoas sadias (FREUD, [1917] 1969, p. 395).

Freud, no seu texto Fetichismo (1927), já colocava esta grande interrogação: Por que algumas pessoas fazem esse percurso sem maiores sequelas, e outras pegam desvios ou permanecem fixados em etapas mais infantis? Naquele momento, dizia ele, não era possível saber o porquê. Mas já era um grande passo saber como isso acontecia.

 

Escopofilia e mundo virtual

Com o desenvolvimento da tecnologia visual, capaz de captar imagens desde o mais banal ao mais íntimo, da macro e microrrealidade, visível ou invisível a olho nu, o acesso instantâneo de tudo a qualquer um transformou este mundo num Big Brother. Tornou-se terreno fértil ao crescimento da escopofilia. Até mesmo por motivo de monitoramento de segurança, estamos sendo observados o tempo todo. Sempre há alguém que olha, e alguém que é olhado.

Todos os aparelhos que nos monitoram, em prédios, elevadores, lojas, e mesmo na rua, seja por imagens, seja outra forma eletrônica, todos são extensões do olhar de alguém. Como exemplo, temos o caso do rastreador veicular ou de um aplicativo usado no celular: ambos podem servir como extensão do olho do ciumento. E no caso de ciúme delirante, o monitoramento do outro ou da outra se torna algo obsessivo. O mesmo monitoramento pode ser obtido através do Facebook, do Skype. E tantos outros. Multiplicam-se as formas de saber algo do outro instantaneamente.

Da mesma forma que estamos sendo constantemente vistos e vigiados, também espiamos o mundo todo no que tem de mais belo e abjeto, humano ou cruel, banal ou espetacular, público ou privado. E nesse privado destaca-se a cena sexual. Nosso olho penetra o mundo com um simples toque de dedo. A tecnologia potencializa o olho humano, aproxima, amplia, clareia a imagem, possibilitando inclusive a visão noturna.

A captura das imagens começou com a fotografia impressa, num processo lento e complicado, com acesso a um público restrito. Hoje é instantânea, disponível para todos. Sua disseminação pela internet é assombrosa.

Em matéria de fotografias, a mais recente tendência são as selfies, usadas predominantemente pelos adolescentes e postadas nas redes sociais. Nelas as pessoas, em especial os adolescentes, retratam-se nas mais diferentes situações, desde as mais inocentes até as mais sedutoras, retratando o corpo com sensualidade. Expõem, por vezes com certa ingenuidade, esse momento tumultuado de sua vida.

Há tanto fotografias ou mesmo filmagens da intimidade de pessoas autopostadas, quanto fotos ou filmagens espalhadas pela internet como vingança, postadas por homens ou mulheres traídas ou abandonadas - esse o mais recente crime virtual. Todas ensejam farto material para o voyeur. Enquanto uns se mostram, outros espiam.

Os filmes são uma oportunidade em que todos nós vivenciamos de alguma forma a escopofilia. Embora tenhamos consciência de que é apenas uma projeção de imagens, o filme bem articulado consegue criar um clima tal que nossas emoções sejam fortemente mobilizadas: sofremos, alegramo-nos, identificamo-nos com um personagem, torcemos pelo sucesso ou pela morte de outro. Enfim, por alguns instantes, vivemos a ilusão de estar em uma cena real. Podemos identificar-nos tanto com cenas de acontecimentos quotidianos ‘normais’ quanto com cenas e personagens francamente perversos. Temos à disposição um leque que vai do normal ao patológico.

Ao assistir a um filme nos assemelhamos a um sujeito que, de sua janela, sem ser visto, olha de binóculo para a janela de algum edifício vizinho, esperando ver uma cena íntima da vida privada das pessoas.

Mas é a internet, por excelência, a janela através da qual o voyeur espia a intimidade do ser humano. Ali estão retratadas as mais torpes perversões. Há um retrato de todas as fantasias ou atuações de fantasias de que o ser humano é capaz: incesto simulando relações mãe-filho, pai-filha, irmãos entre si, cenas de voyeurismo e exibicionismo, sexo a três ou grupal, cenas sadomasoquistas de casais ou grupais, zoofilia tanto de homens quanto de mulheres, etc. Sem falar nas cenas de pedofilia. As fantasias perversas atuadas estão expostas de forma nua e crua.

Quanto ao incesto, Freud fala em sua Conferência XXI:

A escolha objetal de um ser humano é regularmente incestuosa, dirigida, no caso do homem, à sua mãe e à sua irmã; e necessita das mais severas proibições para impedir que esta tendência infantil se realize (FREUD, [1917] 1969, p. 391).

O incesto só é barrado pela lei, fruto da civilização. Ou seja, não existe um impedimento natural ao incesto. O privilégio do incesto só era reservado aos deuses e reis (faraós no Egito e soberanos incas no Peru). E na internet não há nenhum limite para a exibição de encenações incestuosas com as quais o sujeito possa se identificar.

Como, no dizer de Freud, há pessoas que não necessitam de um objeto real para sua realização sexual, basta-lhes a fantasia. Certamente a internet pornô, oferecendo esse objeto virtual, facilita a satisfação da fantasia. E atualmente proliferam na internet os sites de sexo à distância. Geralmente mulheres, expondo-se via Skype elas mesmas ou filmadas pelos próprios companheiros, propiciam aos clientes sua satisfação sexual. Esses sites são uma nova e fácil fonte de renda.

A escopofilia movimenta milhões. As revistas estão repletas das intimidades dos artistas. O povo está ansioso para saber como vive seu artista predileto, o que faz, o que come e, principalmente, como é sua vida íntima. Os atores de novela, em sua vida real, são confundidos com seus personagens.

Da mesma forma a TV, quando em programa de entrevistas, explora a intimidade do entrevistado de forma às vezes quase constrangedora. E o exemplo mais escancarado é o Big Brother: só dá audiência se os brothers se expõem, se há insinuação de sexo ou sexo explícito. O prêmio dado ao ganhador é troco diante do volume que a emissora fatura, evidenciando a exploração comercial da escopofilia.

Todo o crescimento da “farra” escopofílica e exibicionista tem sua razão de ser. Marli Piva Monteiro diz que o homem de nosso tempo vive

[...] uma sexualidade desreprimida e solta, cuja permissividade e promiscuidade lhe permitem quase todos os possíveis prazeres e emoções das mais esdrúxulas [...] Casas noturnas para sexo grupal são anunciadas escancaradamente e as trocas de casais encaradas com naturalidade. As relações sexuais são realizadas alternadamente ou até concomitantemente com parceiros de sexos diferentes, alegando-se o direito inequívoco do gozo da bissexualidade, que nada mais é que a tentativa de não submeter-se à lei da sexuação, ou seja, de não ter de optar por nenhum dos sexos e valer-se do uso dos dois. (MONTEIRO, 2007, p. 116).

Aliás, nossas novelas estão repletas de cenas descritas por Marli, que conclui dizendo que tudo isso é

[...] consequência da figura paterna empalidecida na sociedade atual, falha em exercer sua função, favorecendo a transgressão da lei, ou melhor, permitindo que o sujeito se insurja à obediência às leis (MONTEIRO, 2007, p. 115).

No tempo de Freud, tempo de extrema repressão da sexualidade, sobretudo para as mulheres, os sintomas conversivos eram os mais expressivos. Nos tempos atuais caiu-se no outro extremo, suscitando novas patologias e sintomas sintonizados com o novo contexto do mundo atual.

 

Patologias da visão

Não raramente encontramos histéricas com perturbações de visão. Conscientemente afirmam, por exemplo, nada enxergar, embora inconscientemente elas estejam vendo. Recordo-me de uma paciente que veio à consulta depois de peregrinar por vários anos por diversos consultórios médicos, oftalmologistas e neurologistas, que lhe afirmavam nada haver de anormal em seu aparelho visual. Buscou recursos esotéricos e por fim um padre que, adequadamente, encaminhou-a para psicoterapia.

Seu sintoma: uma vez ao ano, sempre na mesma época, durante um mês, ficava completamente cega. E isso já se dava há vários anos seguidos. Nesse tempo, os familiares tinham que conduzi-la pela casa. Depois, espontaneamente, recobrava a visão. Na anamnese (2 horas com o casal), ficou evidente ter havido problemas quanto à sua sexualidade em sua vida pregressa. Mostro a ela que possivelmente a cegueira pudesse estar relacionada com esses problemas. Feitas as devidas combinações, de duas sessões semanais, nunca mais a vi.

Uma segunda paciente apresentava uma crise de intensa ansiedade sempre que via uma raiz de árvore exposta ou quando olhava para uma determinada flor que tinha coloração avermelhada por fora e escura por dentro. Ao lembra-la de que a flor é o órgão sexual das plantas, ficou surpresa, embora fosse pessoa culta. Nas duas sessões seguintes não veio. Sabendo de suas dificuldades de horário, fiz contato por telefone. Respondeu-me que tinha decidido não continuar a terapia comigo porque eu estava levando as coisas por demais para o lado da sexualidade.

As duas pacientes, ao se darem conta de que a terapia poderia “abrir seus olhos” para ver o que não estavam conseguindo ou se permitindo ver, preferiram continuar cegas.

A propósito das perturbações da visão, Freud afirma A concepção psicanalítica da perturbação psicogênica da visão:

Quanto ao olho, estamos acostumados a interpretar os obscuros processos psíquicos implicados na repressão da escopofilia sexual e no desenvolvimento da perturbação psicogênica da visão, como se uma voz primitiva estivesse falando de dentro do indivíduo e dizendo: ’Como você tentou utilizar mal seu órgão de visão para prazeres sensuais perversos, é justo que você nunca mais veja nada’, e como se desta maneira estivesse aprovando o resultado do processo (FREUD, [1910] 1969, p. 202).

Nessa punição imposta pelo superego está evidente a lei de Talião, “olho por olho”. Na sequência, Freud ilustra com a lenda da bela Lady Godiva:

Como todos os habitantes da cidade se esconderam por trás de suas venezianas fechadas a fim de tornar mais fácil a tarefa da senhora de cavalgar nua pelas ruas, em pleno dia, e como um homem que espreitou pelas venezianas seus encantos descobertos foi punido com a cegueira. E este não é o único exemplo que sugere que a enfermidade neurótica também possui a chave secreta da mitologia (FREUD, [1910] 1969, p. 202).

Não podemos nos esquecer da sublimação da escopofilia. É dela que brota a energia que move o sujeito ao desenvolvimento da aprendizagem. A escopofilia é o principal componente da curiosidade sexual da criança. Essa curiosidade pode se converter num fim em si mesmo, que seria a perversão, ou deslocar-se para uma curiosidade sublimada, desejo de investigação, de conhecimento.

As cenas primárias, ou seja, a observação dos adultos em sua atividade sexual ou o nascimento de um irmão constituem a experiência mais comum e podem estimular ou bloquear a curiosidade (FENICHEL, 1966, p. 93).

Entre diferentes causas da dificuldade de aprendizagem, temos aí uma pista. A pulsão de saber se alimenta, portanto, da energia da pulsão sexual, de forma mais precisa, da sublimação da energia da pulsão escopofílica.

 

Considerações finais

Esta retomada teórica do tema da escopofilia, bem como a constatação de sua importância na leitura da realidade virtual, mostra-nos a atualidade deste tema. A pulsão escopofílica fornece a energia em toda a curiosidade de apreender o mundo que nos cerca.

Faz-se presente na aprendizagem, na pesquisa científica e na arte (fotografia, cinema, pintura) pela sublimação. Mas se faz presente também na exploração comercial da pulsão escopofílica e na possibilidade de identificar-se com as práticas sexuais perversas expostas nos sites pornôs. Por último, permite ao próprio sujeito o exibir-se ao olhar dos outros. O mundo virtual, por preservar o anonimato do sujeito, seja do que espia, seja do que se mostra, é terreno fértil para o aparecimento e mesmo recrudescimento da perversão.

 

Referências

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FENICHEL, O. Teoría psicoanalítica de las neurosis. Buenos Aires: Paidós, 1966.         [ Links ]

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MONTEIRO, M. P. O mal do século. Estudos de Psicanálise, Salvador, n. 30, p. 113-118, ago. 2007.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: cjmallmann@hotmail.com

Recebido em: 21/11/2016
Aprovado em: 01/12/2016

 

 

SOBRE O AUTOR

Cleo José Mallmann
Psicólogo. Psicanalista.
Sócio do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul.

 

 

1 Marli Piva Monteiro, médica, psicanalista, membro do Círculo Psicanalítico da Bahia e do Círculo Brasileiro de Psicanálise.

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