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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.46 Belo Horizonte dez. 2016

 

 

Uma formação psicanalítica no CPP: possível repercussão da pluralidade paradigmática da instituição

 

CPP’s Psychoanalytic Education: A possible impact of paradigmatic plurality of the institution

 

 

Ivo de Andrade Lima Filho

I Círculo Psicanalítico de Pernambuco
II Universidade Federal de Pernambuco

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A experiência na formação psicanalítica no contexto do Círculo Psicanalítico de Pernambuco, instituição reconhecida por conceber a pluralidade teórica e paradigmática do campo psicanalítico, contribuiu nas reflexões sobre a pluralidade paradigmática na formação psicanalítica. Nosso objetivo é realçar o campo sobredeterminado da psicanálise e seus possíveis efeitos na formação e na prática da clínica psicanalítica.

Palavras-chave: Formação psicanalítica, Paradigmas em psicanálise, Pluralidade teórica.


ABSTRACT

Experience in psychoanalytic education in the context of the Pernambucos’s Psychoanalytic Circle, a Brazilian institution with reputation to conceive the theoretical paradigmatic plurality of the psychoanalytic field, has provide with essential reflections about paradigmatic diversity. Our goal is to highlight the overdetermined psychoanalysis field and its possible effects on training and practice of clinical psychoanalysis.

Keywords: Psychoanalytic education, Psychoanalysis paradigms, Theoretical plurality.


 

Introdução

O desejo em participar e pertencer ao Círculo Psicanalítico de Pernambuco (CPP) se justifica por algumas questões essenciais, entre as quais destaco:

• Primeiro, realizar a formação psicanalítica num contexto institucional que possibilite o encontro com a alteridade, representada pelos diferentes sócios, com suas idiossincrasias e suas singularidades;

• Segundo, pelo fato de o CPP não priorizar ou determinar um autor pós-freudiano ou modelo psicanalítico como diretriz teórica e técnica na condução da formação; o CPP não é reconhecido e nomeado como uma instituição lacaniana, winnicottiana, etc.;

• Terceiro, pela particularidade como está constituída regimentalmente a Instituição.

O projeto de formação do CPP, de março de 2001, leva em consideração o tempo próprio de cada membro no percurso da formação. Há um enquadramento institucional que possibilita que cada sócio possa fazer sua passagem pelos quatro tempos ordenadores do processo de formação psicanalítica, a saber: o tempo da entrada na formação, o tempo da aprendizagem do ofício, o tempo do reconhecimento e o tempo do a posteriori.

Segundo o Projeto Institucional do CPP (2001, p. 12):

Destas quatro modalidades, duas definem uma temporalidade, que se poderia chamar de tempo de passagem (tempo da entrada na formação e tempo do reconhecimento) e duas, uma temporalidade de assimilação e de integração do processo formativo (tempo da aprendizagem do ofício e tempo do a posteriori).

A passagem pelos tempos institucionais contribui para que o sócio se confronte e se responsabilize pelo desejo de se tornar analista. No quarto tempo, o “a posteriori”, espera-se do analista tornar-se autor e responsável pela transmissão da teoria e da experiência psicanalítica. É também o momento em que o sócio reafirma sua pertinência e seu compromisso institucional.

No meu ponto de vista, a experiência na formação psicanalítica engendrada pelas características institucionais, destacadas acima, pode contribuir numa formação plural que leve em consideração diferentes posições epistemológicas e paradigmáticas do campo da psicanálise.

Porém, para que algum efeito desse enquadramento institucional, que preza pela singularidade de cada sócio e pela pluralidade de perspectivas e de escolas de psicanálise, tenha repercussão em cada membro do CPP, é necessária a disposição de cada um em se deixar afetar pela própria pluralidade paradigmática da psicanálise, a saber, manter-se aberto à complexidade do campo psicanalítico constituído por suas diferentes orientações paradigmáticas.

Tal disposição do analista em formação em se abrir a essa heterogeneidade de perspectivas pode contribuir para uma experiência de formação psicanalítica cuja característica principal é manter a tensão permanente entre suas diferentes orientações.

O enquadramento institucional articulado com o desejo do analista em formação, tais como descritos acima, parece-me um antídoto interessante às possíveis identificações imaginárias do analista vivido transferencialmente por meio da relação com uma determinada escola e/ou autor da psicanálise. Dito de outra forma, haverá sempre as identificações e as inclinações do analista a uma determinada perspectiva paradigmática psicanalítica. Porém, realço que a manutenção da complexidade do campo psicanalítico pode favorecer a passagem entre as identificações imaginárias para as simbólicas.

Nas identificações imaginárias, sobressaem a relação especular, a dimensão da paixão vivenciada entre o analista e/ou autor e sua escola, enquanto as identificações simbólicas são mais permeáveis aos diferentes discursos, a alteridade do próprio campo.

Minha hipótese é que, isso ocorrendo, poderíamos finalmente avançar em torno de uma prática psicanalítica que leve em consideração os discursos, os fundamentos e as contribuições das diferentes escolas/paradigmas psicanalíticos sem, necessariamente, haver uma vinculação restrita e reduzida a qualquer uma delas.

Conceber o discurso psicanalítico engendrado e constituído pelas orientações das escolas e paradigmas psicanalíticos não é o mesmo que conceber a psicanálise pelo olhar de um determinado eixo paradigmático no qual se localizam as escolas.

Com o objetivo de refletir tais questões, tomaremos especialmente as contribuições teóricas desenvolvidas por Mezan (2014).

 

O campo sobredeterminado da psicanálise

A contribuição de Mezan (2014, p. 41-42) é fundamental para nossa reflexão.

O autor afirma que

[...] parece haver um isomorfismo entre a versão histórica da psicanálise embutida em cada escola (que, se não quisermos falar em romance familiar, poderíamos denominar seu ‘mito de origem’) e a ideia por ela elaborada da finalidade do processo analítico.

Tal processo analítico deve considerar três vertentes indispensáveis: a metapsicologia, a teoria do desenvolvimento e a teoria do funcionamento normal e patológico da psique.

Ainda segundo Mezan (2014), é possível estabelecer uma classificação preliminar dos mitos de origem da psicanálise, conforme o critério que leve em consideração o respeito ou não à complexidade da sobredeterminação.

O autor descreve quatro modelos que trazem suas concepções e tendências da história da psicanálise contribuindo e, muitas vezes, circunscrevendo a prática psicanalítica a uma determinada perspectiva teórica e clínica. Esses modelos são: modelos redutores, modelos lineares, modelos interpretativos e modelos sobredeterminantes.

Destacarei brevemente cada um desses modelos com o objetivo de esclarecer como eles orientam diferentes tendências no fazer psicanalítico.

Modelos redutores. Caracterizam-se pela redução da história da psicanálise ao pensamento de Freud, ou seja, observa-se nessa tendência a redução da história da psicanálise à evolução interna da obra do seu autor e inventor. Aqui os fatos descobertos pela psicanálise podem ser incorporados por outras disciplinas, inclusive, dando sentido a eles, os fatos.

Modelos lineares. Reconhecem a existência de uma história da psicanálise, mas dela têm uma visão pobre. Destaca-se o modelo cronológico-geográfico em que se presume que a expansão da psicanálise seja um fato natural e não precisa de muitas explicações. Nesse modelo se destacam também as perspectivas kleiniana e egopsicologista. Querem provar a existência de uma continuidade ininterrupta entre Freud e Klein de um lado, e de Freud e Hartmann/Anna Freud, de outro lado.

Modelos interpretativos. Para dar conta do passado e da história da psicanálise, os autores desses modelos procuram usar conceitos produzidos no interior da própria psicanálise. Como exemplos destacam-se o modelo de Lacan utilizando sobremaneira o conceito de ‘resistência’; François Roustang, com as categorias de ‘repetição’ e ‘transferência’; por último, Jean Laplanche com as categorias do après-coup e os mecanismos de processo primário.

Modelos sobredeterminantes. Reconhecem a existência de diferentes fatores inter-relacionados, inclusive os destacados acima, que constituem um complexo de determinações originárias da clínica, da teoria e de diferentes disciplinas em que a psicanálise deve manter interlocução. Conceber essa rede complexa de fatores na origem da psicanálise nos ajuda a pensar em escolas de psicanálise também formadas a partir dessa complexidade, ficando desprezível qualquer tentativa em reduzir a escola a uma fórmula esquemática.

Segundo Mezan (2014), o período de 1940 a 1970-1975 foi propriamente o período da era das escolas, na qual a psicanálise estava dividida por diferentes tendências.

Destaca-se nesse período a formação de núcleos de teorizações divergentes com práticas psicanalíticas estandartizadas, em que sobressaem as grandes correntes: a psicologia do ego, a tendência kleiniana, a escola das relações de objeto e o lacanismo. É interessante como essas tendências criaram campos que resistiam à permeabilidade entre elas. Era uma heresia qualquer possibilidade de aproximação e contato entre essas escolas.

Dessa forma, Mezan (2014, p. 52) constata que “cada grupo de psicanalistas, cultivando seu jardim de modo relativamente isolado e sem se preocupar muito com o que se passava com os demais”, além de produzir e fortalecer sua escola, produzia as barreiras entre elas.

Porém, a partir de 1970, observam-se dois fatos:

• O início do contato e da comunicação entre os autores de escolas diferentes; e

• A maturidade de um grupo de analistas que, pela especificidade de suas produções no campo da teoria e da clínica, não se enquadravam nas divisões estabelecidas pela era das escolas.

Também é interessante destacar a morte de alguns líderes da psicanálise. Essa contingência contribuiu para certa distância entre os grandes autores, permitindo adentrar o novo período que vai de 1975-1980 e continua até hoje. Segundo Mezan (2014), esse período se caracteriza pela impossibilidade de defini-lo de modo simples e direto.

O autor afirma que, na atualidade, se defrontam duas grandes tendências na psicanálise: a primeira parece prolongar a era das escolas em que se encontram os ortodoxos de todas as matrizes.

Para essa vertente, tudo se passa como se com Lacan, Klein ou quem quer que seja seu líder espiritual a psicanálise tivesse atingido um cume intransponível, restando aos pósteros apenas a tarefa de manter intacta a herança que cada qual reputa verdadeira (MEZAN, 2014, p. 53).

A segunda vertente é constituída por autores que transitam por diversos campos e constroem uma obra coerente com os seus postulados teóricos e clínicos sem se deixar institucionalizar pelo discurso de uma escola. Nessa vertente, destacam-se André Green, Joyce McDougall, Piera Aulagnier, W. Bion, etc.

A tendência inaugurada nessa segunda vertente tem possibilitado, na atualidade, encontrar em um mesmo texto psicanalítico referências a autores que antes eram considerados incompatíveis.

Inaugurou-se, assim, certa dispersão teórica entre os estudos e as pesquisas psicanalíticas que, segundo penso, antes de ser consideradas uma heresia, são sinal de vitalidade, sinal de que a psicanálise continua viva se deixando afetar pelos fenômenos e pelos fatos da clínica, do social e da cultura.

Parece plausível que continuar apostando e reinventando a própria psicanálise seja necessário orientar-se pelo espírito criativo do seu fundador.

Freud, incansavelmente, retomava seus escritos e suas pesquisas para avançar nas problemáticas nas quais se confrontava. Seu trabalho incansável não só possibilitou produzir uma obra aberta a novas interpretações realizadas por seus diferentes discípulos, como também possibilitou ao Homem Freud se tornar o Freud-Psicanalista-Autor.

O processo de autoria e de se autorizar psicanalista, no meu ponto de vista, constitui-se mais pela marca deixada pelo Freud escritural do que pela fixidez e total assujeitamento à letra freudiana, a saber, ao comportamento muitas vezes obsessivo compulsivo entre alguns em repetir o texto do pai da psicanálise e/ou dos seus discípulos mais eminentes que, com sua pena, criaram as escolas psicanalíticas.

Afirmar isso não é, por hipótese alguma, negligenciar ou recuar diante da necessidade de adentrar o mais possível os ensinamentos dos grandes autores da psicanálise. Ao contrário, a experiência clínica na atualidade convoca os psicanalistas a aprofundar o que foi e é teorizado nos diferentes campos paradigmáticos da psicanálise.

O desafio está em conceber a psicanálise por seus modelos sobredeterminantes, caracterizados pela complexidade e pela pluralidade paradigmática, teórica e clínica.

Parece-nos importante realçar essa questão quando se discute o processo de formação psicanalítica, e mais quando nesse processo o analista em formação possa se questionar acerca de sua escolha e de suas identificações às teorias, às técnicas e aos modelos psicanalíticos.

Algumas perguntas devem orientar o analista:

• Por que sou lacaniano?
• Por que sou winnicotiano?
• Por que sou kleiniano? etc.
• O que significa se reconhecer ou ser reconhecido tomando como modelo um autor e/ou escola da psicanálise?
• É possível considerar a psicanálise para além dos seus autores sem, no entanto, negá-los?

Tais questões podem favorecer nas reflexões acerca da posição do analista e de sua transferência ao autor e à obra à qual se filia.

Para contribuir nessa reflexão, Mezan (2014) considera abrangente o termo “paradigma”, no qual poderia incluir diversos autores e escolas de psicanálise que estabeleceriam aproximações quanto à problemática investigada.

A psicanálise é a disciplina em que se constatam três paradigmas: o pulsional, o objetal e o subjetal.

Cada um deles está constituído por um quadro geral de referências prescrevendo opções quanto às orientações dos problemas concernentes à própria disciplina da psicanálise.

Cada paradigma desses não se reduz ou designa a concepção de um determinado autor, mas se confronta com certa problemática que pode ser discutida e refletida por meio de possibilidades teóricas orientadas por autores desse paradigma.

De acordo com o autor em questão, o paradigma pulsional designa a perspectiva freudiana na qual toda manifestação do psiquismo é compreendida como resultado da força e dos efeitos da pulsão.

Outra forma de conceber e compreender a manifestação do psiquismo e a experiência humana não é moldada pelo jogo das pulsões, mas como se organizam as primeiras relações do bebê com o outro que cuida e exerce as funções maternas e paternas. Os autores da psicanálise que se situam nessa perspectiva estão dentro de um paradigma objetal.

Nesse contexto, vale realçar o nome de Winnicott (1975) e sua enorme contribuição às noções de objetos e fenômenos transicionais vivenciados numa área intermediária de experiência criativa observada entre o bebê e sua mãe. Tal contribuição do autor concebe a experiência humana como continuidade entre os processos de ser e existir.

Por último, Mezan (2014, p. 71) considera um terceiro paradigma, o subjetal, instituído pelas concepções de Lacan e pelo “lugar eminente que nele ocupa o conceito de sujeito – que, aliás, não figura em nenhum dos outros dois”.

Cada paradigma, concebido por uma visão ampla, por um conjunto de autores e escolas que se debruçam em torno de uma problemática específica a ser investigada, produz seus efeitos na própria psicanálise.

Paradoxalmente, a psicanálise nessa perspectiva não se reduz a um paradigma; ao contrário, a pluralidade paradigmática psicanalítica engendra uma via de mão dupla com o campo sobredeterminado da psicanálise.

Conceber dessa forma a psicanálise convoca o psicanalista a um desafio ético, clínico e teórico. Uma ética já advertida por Figueiredo e Coelho Júnior (2000, p. 7)

[...] como posição e lugar (morada), como postura fundamental, como modo de escutar e falar ao e do outro na sua alteridade – a alteridade o inconsciente. Uma ética compreendida como abertura, respeito, resposta e propiciação ao outro.

Nesse sentido, por que não relacionar tal afirmativa do autor com a abertura, o respeito, a resposta e a propiciação dos analistas aos diferentes paradigmas psicanalíticos?

Essa possibilidade do analista em desejar se abrir à alteridade do próprio campo psicanalítico exige dele uma posição ética aos desafios do cotidiano da clínica psicanalítica.

A clínica na atualidade tem se confrontado com as chamadas “novas patologias” e as novas configurações do social e da cultura.

Essas questões, por si sós, têm exigido do analista constantes reflexões e remanejos teóricos e técnicos sobre os fenômenos pháticos que falam do nosso tempo e na qual a psicanálise deve continuar a ser convocada a trabalhar nas tentativas de respostas possíveis.

A sobredeterminação da psicanálise também nos possibilita pensá-la não só constituída pelos diferentes paradigmas descritos acima como também pela sua permeabilidade aos outros campos do saber, enriquecendo-se com eles e enriquecendo-os.

Dessa forma, nesses novos tempos, torna-se impossível conceber a psicanálise impermeável aos diferentes discursos da época e aos diferentes modos de viver e gozar.

Diante disso, cabe também pensar sobre como se constitui a formação psicanalítica tecida em redes de saberes e práticas na qual a psicanálise tem partilhado em diferentes contextos da saúde mental e da saúde pública, numa zona de fronteiras marcada pela posição de cada um e pela construção de uma singularidade própria da fronteira do saber e da prática.

A respeito dessa questão, ainda cabem algumas palavras sobre a zona de fronteira da clínica e da formação psicanalítica.

 

A experiência da formação psicanalítica na zona de fronteira e em rede de saberes e práticas

Para situar a zona de fronteiras de saberes e práticas que contribuem na formação psicanalítica, tomaremos inicialmente como referência duas contribuições no campo psicanalítico, que originalmente estão vinculados a paradigmas distintos: a contribuição winnicottiana no paradigma objetal e a contribuição lacaniana como paradigma subjetal.

A perspectiva de Winnicott (1975), ao descrever o processo de constituição do psiquismo, defende como a mãe-ambiente suficientemente boa pode contribuir para que o bebê experimente a realidade dos objetos concretos ao mesmo tempo que os fantasia e os cria subjetivamente numa área intermediária entre ele e a mãe.

Essa área é denominada de espaço potencial, um espaço criativo e, por isso, marcado por sua potência em criar e ressignificar o vivido. Uma área com características necessárias para que o ser viva criativamente e ressignifique sua existência ao longo da vida. Para que isso possa acontecer, o bebê precisou um dia ter criado o seio, objeto subjetivamente concebido numa área de fronteira entre o bebê e a mãe-ambiente. É nessa área que os fenômenos e os objetos transicionais são criados.

Esses objetos transicionais não pertencem exclusivamente nem à realidade externa, nem à realidade interna. Eles são criados no espaço “entre”, numa fronteira criativa em que se constata o processo contínuo da experiência do ser em fazer sentido ao vivido.

Nessa perspectiva, a continuidade da experiência do Ser é processual e ininterrupta entre o mundo concreto da realidade externa e o mundo subjetivo que na sua origem fora descrito pela força motora, pela mobilidade do bebê se apropriando do mundo e o criando.

Vale destacar a importância conferida por Winnicott (1975) a essa área de fronteira, área intermediária, para lembrar que ela tem uma especificidade. Nela se encontram objetos e uma qualidade de experiência do ser, cuja característica paradoxal não pode ser pensada ou referida fora desse campo.

Se em Winnicott encontramos essa orientação teórica destacando a fronteira como essencial ao processo de maturação e desenvolvimento do ser, vejamos agora em autores de orientação lacaniana como a noção de fronteira está sendo referida e realçada para discutir as novas patologias, os inclassificáveis, enfim, os sujeitos que não se enquadram nem como psicóticos, nem neuróticos, nem perversos, sujeitos que se localizam numa zona de fronteira conforme lembra Soria Dafunchio (2015).

Soria Dafunchio (2015) dedicou-se em 2011 a estudar os casos clínicos que resistem à classificação e publicou um livro denominado Nem neurose, nem psicose? para discutir algumas ideias descritas por autores psicanalistas que vêm pesquisando acerca desses sujeitos inclassificáveis que estão numa zona de fronteira e os casos de psicose ordinária.

A autora começa a descrever uma viagem de férias na qual passou pela fronteira entre o sul do Brasil e o Uruguai. Nessa fronteira metade do povoado se encontra no Brasil e metade em solo uruguaio. Chamou a atenção de Soria Dafunchio (2015) o fato de, ao atravessar de um lado para outro do povoado, não se sabia ao certo em que país se estava, onde terminava um e começava o outro país.

Nessa experiência observou que havia uma língua muito particular que não era nem o espanhol nem o português, mas um portunhol. Uma nova língua que surge do encontro de ambas. (nem espanhol, nem português).

Por meio de diferentes questões relativas à clínica psicanalítica contemporânea, dos casos que resistem à possibilidade de se enquadrar numa certa estrutura clínica, Soria Dafunchio (2015) elege para objeto de seu estudo essa zona da clínica da fronteira que, semelhantemente ao povoado que habita entre o Brasil e o Uruguai, se constitui por uma particularidade.

Me interessa especialmente manter aberta a pergunta pelo inclassificável, deixar aberto esse buraco impossível de suportar o inclassificável (SORIA DAFUNCHIO, 2015, p. 21).

A questão da autora é encontrar nessa zona de fronteira, na borda desse buraco, uma orientação sem tentar fugir dela.

Não é nossa intenção, neste artigo, explorar a discussão dessa autora sobre os fenômenos psicopatológicos e da clínica dos inclassificáveis situadas numa zona de fronteira.

Nosso objetivo é realçar que as novas patologias e as diferentes psicopatologias contribuíram e vêm contribuindo para a autora defender uma área de fronteira em que se constatam os sujeitos inclassificáveis e seus quadros psicopatológicos afetando as constantes reformulações e posições do analista no cotidiano de sua prática clínica.

Essa clínica na/da fronteira tem sua complexidade e produz seus efeitos sobre a prática clínica e na posição do analista.

E mais: convoca o psicanalista a adentrar campos distintos paradigmáticos psicanalíticos, a saber, convoca-o a transitar por uma epistemologia e por uma metapsicologia da fronteira.

Realçar e discutir a “metapsicologia da fronteira” além de contribuir nas questões destacadas acima, contribui também para pensar sobre os efeitos dessa metapsicologia no processo de formação psicanalítica.

Esses feitos apontam para novos endereçamentos da clínica e da teoria psicanalítica em virtude da especificidade da relação transferencial do analista em formação com a pluralidade paradigmática da psicanálise.

Apostar nessa direção não significa desejar normatizar uma formação psicanalítica exclusivamente plural e sobredeterminada, pois considero importante que cada analista possa fazer seu percurso de formação considerando as premissas e as identificações que lhes são próprias e articuladas com o desejo de se tornar analista.

Apenas defendo e desejo que possam circular no âmbito da formação psicanalítica dispositivos que destaquem o campo sobredeterminado da psicanálise, suas possibilidades, seus desafios e seus limites na ética na clínica psicanalítica.

A zona de fronteira descrita por Winnicott (1975), quando situa o espaço potencial necessário para o desenvolvimento saudável do Ser, e a zona de fronteira defendida por Soria Dafunchio (2015) para situar tanto os sujeitos que habitam uma área geográfica como as descritas entre o Brasil e o Uruguai e que falam o ‘portunhol’, quanto aos sujeitos inclassificáveis do ponto de vista da estrutura clínica, oferece-nos a oportunidade de propor que a formação psicanalítica possa ser vivenciada na zona de fronteira entre os diferentes paradigmas descritos por Mezan (2014), dessa forma, permeados pela contribuição das escolas de psicanálise.

Porém, penso que o inusitado a ser experienciado nessa zona de fronteira pode e deve contribuir na reformulação de saberes e práticas do campo psicanalítico. Retornar a Freud e à sua produção é tão importante quanto retornar ao seu espírito criativo e inventivo, cujo legado é transmitir que a psicanálise nasce e sobrevive nas fronteiras das teorias, da cultura e da experiência singular da clínica psicanalítica.

O campo da fronteira do saber e da formação psicanalítica plural ou sobredeterminada convoca o analista a um desafio premente: escrever uma metapsicologia na fronteira dos paradigmas psicanalíticos.

Seria isso possível?

 

Considerações finais

Refletir sobre a história da psicanálise e as diferentes escolas e os diferentes paradigmas que a contituem ofereceu a oportunidade de discutir e afirmar que a pluralidade paradigmática do campo psicanalítico pode contribuir para uma formação psicanalítica singular.

Dessa forma, quando uma instituição psicanalítica, como a descrita na introdução deste artigo, o CPP, se posiciona como ‘plural’, pode provocar em seus sócios o desejo de adentrar campos paradigmáticos psicanalíticos distintos.

Para que isso ocorra, faz-se necessário que o analista em formação deseje assim proceder. Uma coisa é a instituição se afirmar como plural; outra coisa é o que o analista em formação vai fazer com isso.

Alguns serão afetados por essa nomeação, porém continuarão identificados a um determinado paradigma psicanalítico, enquanto outros podem se sentir convocados a adentrar o próprio campo da pluralidade.

O respeito à posição que cada um ocupe diante de sua escolha se faz necessário, assim como a constante reflexão que o analista deve fazer sobre suas motivações e suas identificações às escolhas realizadas.

Parece-me plausível continuar articulando o desejo de ser analista e as escolhas feitas para realizar esse desejo durante toda a formação psicanalítica, que nunca se esgota nem termina.

 

Referências

CCP. Diplomas legais: projeto institucional. 2001. p. 2-13. Inédito.         [ Links ]

FIGUEIREDO, L. C.; COELHO JÚNIOR, N. C. Ética e técnica em psicanálise. São Paulo: Escuta, 2000.         [ Links ]

MEZAN, R. O tronco e os ramos: estudos de história da psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.         [ Links ]

SORIA DAFUNCHIO, N. NiNeurosisnipsicosis? Buenos Aires: Del Bucle, 2015.         [ Links ]

WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: ivoalf@bol.com.br

Recebido em: 31/10/2016
Aprovado em: 16/11/2016

 

 

SOBRE O AUTOR

Ivo de Andrade Lima Filho
Graduado em Terapia Ocupacional pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e em Psicologia pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP).
Especialista em Saúde Mental (UFPE).
Mestre em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP).
Doutor em Linguística pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Atualmente é Professor Adjunto I do Departamento de Terapia Ocupacional da Universidade Federal de Pernambuco.
Membro do Laboratório de Pesquisa em Psicophatologia Fundamental e Psicanálise (UNICAP).
Psicanalista e sócio do Círculo Psicanalítico de Pernambuco (CPP).

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