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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.46 Belo Horizonte dez. 2016

 

 

Supervisão: um esconderijo essencial onde nosso olhar furta-se a nós mesmos

 

Supervision: An essential hiding place where

 

 

José Renato Berwanger Carlan

I Círculo Psicanalítico de Pernambuco
II Universidade Federal de Pernambuco

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A prática clínica, as inquietações e os pontos cegos decorrentes, assim como a sua transmissão ao supervisor, conduziram-me a pesquisar sobre o sentido da supervisão em psicanálise, as possibilidades e os impasses, quando o objeto de trabalho e estudo orienta-se sob perspectivas radicalmente opostas à lógica cartesiana, quando falamos do sujeito, sua singularidade e a sua (i)lógica do inconsciente. É dessa (i)lógica, desses não saberes que Freud parte, desde sua autoanálise, à busca do outro, à busca de um sentido para o indizível e indescritível de uma sessão analítica.

Palavras-chave: Psicanálise, Supervisor, Analista, Analisando, Pontos Cegos, Pontos de mira.


ABSTRACT

The clinical practice, the concerns and related blind spots, as well as their transmission to the supervisor, led me to research about the meaning of the supervision in psychoanalysis, the possibilities and impasses when the object of work and study is guided under perspectives that are radically opposed to the Cartesian logic, when we speak of the subject, their uniqueness and their (i)logic of the unconscious. It is from this (i) logic, this non-knowledge that Freud begins, from his self-analysis, to the search for the other, the search for a meaning of the unspeakable and indescribable of an analysis session.

Keywords: Psychoanalysis, Supervisor, Analyst, Analysee, Blind spots, Target points.


 

Por mais que se diga o que se vê,
o que se vê não se aloja jamais no que se diz,
e por mais que se faça ver
o que se está dizendo por imagens, metáforas, comparações,
o lugar onde estas resplandecem
não é aquele que os olhos descortinam,
mas aquele que as sucessões da sintaxe definem
FOUCALT, 1999, p. 25.

 

Do latim, super significa “sobre”, e vision, “visão”. Nessa perspectiva, a origem da palavra “supervisão” decorre de uma explicação francesa, ligada à construção das primeiras fábricas e indústrias em meados do século XIX, quando uma pessoa, numa escada com um binóculo, observava o que cada trabalhador fazia. Por isso, “super” (de cima) e “vision” (olhando), conferindo uma visão fundada ou necessária à lógica cartesiana. Há também a origem “supervisar”, orientar em plano, muito característico da área escolar, embora a etimologia ainda guarde um sentido de inspeção.

Indago-me sobre essa visão quando o objeto de trabalho e de estudo orienta-se sob perspectivas radicalmente opostas à lógica cartesiana, quando falamos do sujeito, sua singularidade e a sua (i)lógica do inconsciente. Nessa (i)lógica, muito mais do que a visão ‘linear’, ‘em plano’ ou ‘sobre’, a supervisão, em psicanálise, transcende o enquadre da lógica cartesiana, encontrando sentido numa busca, seja numa busca de respostas, seja numa busca do outro, seja numa busca de situar-se num discurso, numa relação transferencial ou contratransferencial, com o analisando, com o supervisor.

Numa sessão de análise, o analista vê ao mesmo tempo que procura se ver na relação. Às vezes se encontra e às vezes não se encontra. Em supervisão, o cenário se amplia. O que é visto ou escutado pelo supervisor-analista é o mesmo que resplandece na relação paciente-analista?

 

 

Essas múltiplas visões, na relação com o analisando ou com o supervisor, conduziram-me à associação com a pintura de Diego Velázquez, Las Meninas (Museu do Prado, 1656, óleo sobre tela).

Nessa obra, ele mesmo se inclui pintando, encerrando alguns enigmas e perguntas que não têm respostas, principalmente sobre as imagens reversas, sobre o espelho, figuras de fundo, figuras de superfície. O autor, ao mesmo tempo em que olha, olha-se, pinta e se pinta.

Convido para uma análise dessa obra que transcende o próprio quadro, chamando os espectadores de dentro e de fora da pintura, sobre o que é visível e invisível, sobre o que não é representado no espaço do quadro, sugerindo apenas, conforme descreve Foucalt (1999), uma tênue linha de visibilidade que envolve toda uma rede complexa de incertezas, trocas e evasivas, com imagens que saem da moldura, do “enquadre”.

Foucalt se pergunta:

[...] que há, enfim, nesse lugar perfeitamente inacessível, porquanto exterior ao quadro, mas prescrito por todas as linhas de sua composição? Que espetáculo é esse, quem são esses rostos que se refletem primeiro no fundo das pupilas da infanta, depois dos cortesãos e do pintor e, finalmente, na claridade longínqua do espelho? essas três funções “olhantes” confundem-se em um ponto exterior ao quadro: isto é, ideal em relação ao que é representado, mas perfeitamente real, porquanto é a partir dele que se torna possível a representação. O espetáculo que ele (o pintor) observa é, portanto, duas vezes invisível: uma vez que não é representado no espaço do quadro e uma vez que se situa precisamente nesse ponto cego, neste esconderijo essencial onde nosso olhar se furta a nós mesmos no momento em que olhamos (FOUCALT, 1999, p. 16-18).

Freud mergulhava nessas profundezas olhantes da arte e da clínica, partindo de sua autoanálise, procurava ver e se ver, adentrava em suas imagens e, como uma obra de arte, procurava olhar o visível e o invisível, talhando o inconsciente de sua obra de arte.

Assim Freud também o fez quando mergulhava na visão e interpretação do seu cenário pictórico ao tentar decifrar seus sonhos, a exemplo do Sonho da injeção de Irma, um dos pontos de partida da psicanálise por tratar do inconsciente, dos sonhos, assim como por revelar impasses sobre o saber em psicanálise.

Destaca-se uma frase descrita no relato: “Chamo imediatamente o Dr. M.”, reconhecendo a busca de Freud por um saber sobre a condução e olhar de seus casos clínicos:

No sonho, a paciente Irma estava numa festa na casa de Freud e sentia dor de garganta e, quando diante da visão da cavidade bucal de Irma, fica horrorizado pelo que se apresenta diante dele, e desaparece para buscar auxílio em pessoas que acabam por dar respostas tolas, que não permitem que ele possa vir a elucidar o que se passa no caso dela. Assim, diante de um fato clínico que o angustia, chama pelo Dr. M. o qual, acompanhado de outros colegas, representantes do saber médico da época, não têm a resposta (SCHNEIDER, 2013, p. 52-53).

Freud, nesse sonho e em tantos outros, procurava ver e se ver, procurava representar o visível e o invisível das imagens. Transcendendo sua autoanálise, sinaliza sobre a busca do outro.

Na carta de 14 nov. 1887, escreve a Fliess:

Minha autoanálise ainda se encontra interrompida, e compreendi qual o motivo. Só consigo analisar-me com o auxílio do conhecimento adquirido objetivamente (como observador). A verdadeira autoanálise é impossível; não fosse assim, não haveria nenhuma doença neurótica. Visto que ainda encontro alguns enigmas em meus pacientes, eles só terão que me apoiar, a mim também, na minha autoanálise (FREUD, 1950 [1892-1889]).

Em Estudos sobre a histeria (1893-1895), a partir dos contatos com Breuer e das primeiras divergências em relação à sexualidade, à transferência e à contratransferência oriundas do caso Anna O., Freud sinalizava essa necessidade de busca. Mais intensamente, essa busca pode ser vista ainda em suas correspondências e seus encontros com Fliess, conforme o Diário de Sigmund Freud:

A amizade e a troca de ideias tão constante com Wilhelm Fliess em meados da década de 1890 - sua correspondência e seus encontros ou “congressos” - proporcionaram a Freud a confiança intelectual e emocional para desenvolver a sua própria psicologia e realizar sua autoanálise (FREUD, 1929-1939, p. 111).

Freud ([1912] 2014), em Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise, escreve sobre a aproximação da teoria e pesquisa ao tratamento analítico, ao mesmo tempo em que faz ressalvas a tal junção. Muito mais que sublinhar a necessidade da análise pessoal, remete a questões pontuais características de uma supervisão quando dá várias orientações e conselhos aos analistas, desde observações sobre anotações e relatos das sessões até a importância da escuta e da atenção flutuante, assim como alerta para as distorções associadas à contratransferência e resistências à escuta do inconsciente que aparecem em forma de interpretações pedagógicas ou sugestivas, ou mesmo como “pontos cegos” nas associações livres, restos não analisados que podem manifestar-se no tratamento, dificultando a escuta do inconsciente.

Em A questão da análise leiga, explicitamente sinalizava alguns desafios quando escrevia:

A preparação para a atividade analítica não é simples e fácil, o trabalho é duro e a responsabilidade é grande (FREUD ([1926] 2014, p. 187).

Nesse texto, cita os institutos de ensino da psicanálise, assinalando o chamado “tripé” da formação - análise pessoal, seminários e supervisão - e refere-se ao “analista de ensino” (do original lehranalytiker, analista didata), hoje denominado coordenador de seminário e supervisor.

Freud (1937 apud GRINBERG, 1975), sobre a atividade de analisar, perguntava-se: “Onde e como poderá adquirir o ‘desgraçado’ aspirante aquelas qualidades ideais de que necessitará para seu exercício?”. Aqui, mais uma vez, as lentes de Freud visualizam as dificuldades e as impossibilidades de governar pessoas, analisar, educar e, por que não dizer também, as dificuldades e os impasses em supervisão.

Segundo Bion, os maiores impasses e dificuldades remetem ao que não se sabe nomear ou descrever em razão de sua natureza, pois são indizíveis, indescritíveis:

As associações do paciente e as interpretações do analista são inefáveis. A sessão analítica é um tipo de experiência que só pode ser compartilhada pelo analista, sem que possa ser transmitida, em toda a sua essência, a um terceiro. Daí que toda comunicação do registro de uma sessão, seja para uma supervisão ou para um trabalho científico, resultará inevitavelmente imperfeita. A relação existente entre os integrantes do par analítico é de tal natureza que se alguém tem uma ideia seria o caso de se perguntar que fez o outro para sugeri-la (BION, 1969 apud GRINBERG, 1975, p. 85).

Sobre a formação de psicanalista Déborah Pimentel (2004) afirma que não há nenhum instrumento de ensino que sustente a especificidade da vivência analítica. Ela critica ainda a transmissão em universidades, retira-a do campo da técnica, estudos ou regras, colocando-a no campo do testemunho:

A transmissão em psicanálise é única e é exclusivamente a transmissão de uma experiência analítica e, portanto, ela pertence ao campo do testemunho. Não se transmite o ato psicanalítico, ele é sempre uma criação singular vinculado mais à ética do que à técnica. Sem a integração entre a análise pessoal, estudos teóricos e uma boa supervisão, não existe processo de formação analítica (PIMENTEL, 2004, p. 37).

O analista testemunha um não saber do candidato. O que se transfere não é o saber, mas o trabalho. A autora se pergunta: Como pode alguém analisar a análise de outro e tornar a psicanálise transmissível? Seria uma “(trans) missão impossível”. A supervisão, na qualidade de campo do testemunho e da ética, transcende o campo da técnica e do ensino, sendo impossível, segundo a autora, uma avaliação objetiva de um analista.

O ensino da psicanálise só pode ser transmitido de um sujeito ao outro pelas vias de uma transferência de trabalho [...]. Não há uma dissolução da transferência, mas uma transformação do trabalho de transferência em transferência de trabalho, ou melhor, a transformação do amor em saber, em desejo de saber: eis aí o desejo do analista (PIMENTEL, 2004, p. 49-50).

O “ponto cego”, apontado por Freud ([1912] 2014) como a falha na escuta do inconsciente, é citado também por Déborah Pimentel como o lugar da falta. O analista reconhece o ponto cego, reconhece suas resistências, diria também suas contratransferências quando sua análise foi bem feita:

O analista reconhece e se assujeita a esse irredutível [...] continua resistindo, só que agora sabe que está resistindo (PIMENTEL, 2004, p. 52).

Em supervisão, não raras vezes, encontrei-me com o chamado “ponto cego”, ou ao dar-me conta de uma interpretação demasiadamente longa para a situação, ou com uma interpretação precipitada ou num momento inadequado, diria, fora da transferência, restando-me dizer frente ao supervisor: “Bah! Não tinha “visto” ou não tinha percebido...”. Esse é o sentimento do “desgraçado aspirante”? Certamente revela um não saber.

Casement (1986), em Aprendendo com o paciente, observa alguns cuidados em uma interpretação, exemplificando interpretações ou intervenções inadequadas ou prematuras, muitas vezes levadas por uma falta de simetria na relação, associadas à contratransferência ou resistência do analista.

Observa ainda sobre o dogmatismo e as profecias do analista ao impor suas próprias inclinações teóricas sobre os pacientes. Nesse ponto, cita Bion (1967) sugerindo que o analista deveria abordar cada sessão sem desejo, memória ou compreensão antecipadas.

Sem desejo, memória ou compreensão antecipadas não significa uma tela em branco. Analistas frequentemente revelam mais sobre si do que imaginam. Não é mais adequado, diz Casement, pensar o analista como aquele que observa e interpreta, e o paciente como a única pessoa desse relacionamento que apresenta evidências de comunicações inconscientes e de patologias:

É algo extraordinário que o inconsciente de um ser humano possa reagir ao de outro sem passar pelo consciente (FREUD, 1915 apud CASEMENT, 1986, p. 87).

Algumas vezes, pergunto-me sobre determinada sessão:

O que se remete a mim?

Por que, após relatar uma sessão e apresentar ao supervisor, descubro (“só depois”) que uma intervenção estava fora do contexto das associações do analisando?

Penso: São lapsos de memória?

São lapsos inconscientes levados pela contratransferência ou resistência?

Pergunto-me também quando determinada interpretação foi favorável e adequada:

“Caiu como uma luva”, no sentido de que analista e supervisor viram ou observaram a mesma coisa?

Por que o relato de uma determinada sessão é mais curto, demorado ou até mesmo pesado?

Certamente cada pergunta daria um trabalho, mas o faço apenas para ilustrar que muitas dessas perguntas e suas respostas circundam o ponto mais importante, talvez determinante nas mancadas e nos acertos, no saber e não saber, e dizem respeito à transferência e contratransferência, ao chamado “encontro de inconscientes”, ou comunicação entre inconscientes, seja do analista e do analisando, seja da tríade analista-analisando-supervisor, fundamentais no andamento de um processo analítico ou construção em análise.

A superposição inconsciente pode existir entre a experiência de “eu” e o “outro”. O que vem de quem, em qualquer relacionamento bipessoal (ou tripessoal), nem sempre fica claro. Isto ocorre porque os processos de comunicação podem ser ou projetivos (uma pessoa se introduzindo na outra) ou introjetivos (uma pessoa extraindo da outra) (CASEMENT, 1986, p. 23).

É através do “supervisor interno”, um estilo próprio, segundo Casement, que o analista identifica a dimensão interativa, o ponto de encontro onde pode estar havendo uma “comunicação entre inconscientes”.

O supervisor interno equivaleria a uma “autoanálise” e vai sendo lapidado e desenvolvido a partir da internalização de aspectos do seu analista e do supervisor (identificações projetivas e introjetivas como forma de comunicação), com o cuidado de não copiar excessivamente a forma de trabalho do analista ou do supervisor.

Quando o supervisor interno permanece pobremente individualizado, observa o autor, há uma tendência à imitação, um processo muito próximo ao de “clonagem” pelo qual o paciente, ou mesmo o candidato a analista, vem a ser formado à imagem e semelhança do seu analista, de seu supervisor e de sua orientação teórica, e o processo analítico pode facilmente pender para uma direção predeterminada, o que significa que ele deixa de ser verdadeiramente psicanalítico:

Não causa surpresa que os críticos da psicanálise possam salientar como os pacientes freudianos parecem ter sonhos freudianos, enquanto que os pacientes jungianos ou kleinianos têm sonhos que se encaixam nas diferentes posições teóricas de seus analistas (CASEMENT, 1986, p. 40).

Ogden (2010), em Esta arte da psicanálise, ilustra como a compreensão da inter-relação entre subjetividade e intersubjetividade influencia a prática da psicanálise, assim como é determinante na produção de uma teoria, de uma obra ou de uma clínica.

Segundo esse autor, a concepção do sujeito analítico, conforme a elaboração de Klein e Winnicott, dá ênfase cada vez maior à interdependência entre sujeito e objeto na psicanálise, aproximando-se de um ponto em que não se pode mais falar simplesmente do analista e do analisando como sujeitos separados que tomam um ao outro como objetos, ou do analista como uma tela em branco, neutra para as projeções do paciente.

Ogden (2010) propõe um novo olhar para o processo analítico, estabelecendo uma visão dialética entre o sujeito e o objeto, ressaltando, dessa forma, a intersubjetividade. Os sujeitos da análise, analista e analisando, criam-se mutuamente. Não há analista sem analisando, e não há analisando sem analista, embora mantenham o contorno de suas individualidades.

No processo analítico, o analisando não pode ser apenas o sujeito da investigação, tampouco o analista poderá ser apenas o observador dos esforços do analisando.

O analisando precisa ser sujeito nessa investigação, criar essa investigação; e o analista também precisa fazer parte ativa no processo, pois a sua experiência subjetiva, um passado que está sendo recriado, é o caminho possível para a compreensão da relação que está sendo vivenciada.

Ogden (2010) diz ainda que o funcionamento da mente do analista durante as sessões – e aqui me permito incluir a criação de uma obra, de uma teoria ou prática clínica – contém aspectos mundanos da vida altamente pessoais, privados e constrangedores. Contém formas de rêveries cotidianos da própria vida do analista que raramente são discutidos com colegas e, muito menos, escritos em relatos públicos de análises ou produção de escritos.

Através da intersubjetividade, forma-se o chamado “terceiro analítico”. Ogden (2010) refere que a situação analítica é composta de três sujeitos em conversação inconsciente entre si: o paciente e o analista como sujeitos separados e o “terceiro analítico” intersubjetivo, criado pela integração do inconsciente do paciente e do analista.

A experiência do analista de vir a saber quem o paciente está se tornando é inseparável da experiência do paciente de vir a saber quem o analista é ou está se tornando.

Os sonhos sonhados pelo paciente e pelo analista são, ao mesmo tempo, seus próprios sonhos e devaneios e os sonhos de um terceiro sujeito, que é tanto o analista e o paciente quanto nenhum deles (OGDEN, 2010, p. 18).

Nasio (1999) escreve sobre a produção comum de um só inconsciente na relação analítica, momento de entrecruzamento entre paciente e analista: o ponto de mira. Nesse entrecruzamento, nesse ponto comum, estão em jogo a transferência e a contratransferência e é desse ponto que se deve abordar o tema da supervisão.

Muito além da influência exercida pelo paciente sobre os sentimentos do analista ou das resistências ao tratamento do analista, a contratransferência, como conjunto de obstáculos, indica, conforme Nasio (1999), a ocupação de um lugar: o lugar do analista.

Nessa integração e produção comum de um só inconsciente na relação analítica e, por que não dizer, na relação entre analista-analisando-supervisor está em jogo o entrecruzamento de múltiplas visões e não visões.

Os personagens olhantes que se confundem na pintura de Velázquez também estão em cena nas funções olhantes do supervisor-analista-analisando, seja no setting analítico, seja no momento da supervisão, na decifração do inconsciente, na decifração de um sonho, na transferência e contratransferência, implicando encontros, difrações, misturas e interferências.

Assim como o pincel vai além do espaço da tela, o enquadre analítico também é transbordado pelo inconsciente e, por mais que possamos tentar nomeá-lo, ou por mais que se faça ver o que se está dizendo, em supervisão esse lugar em algum momento nos escapa.

A imagem, o inconsciente saem da moldura, sobretudo quando tentamos uma superposição da escuta analítica à escuta em supervisão, pois, da mesma forma que a relação da linguagem com a pintura é infinita, assim o é a relação do inconsciente com a pintura ou tentativa de pintura da cena analítica.

É preciso, conforme diz Foucault, pôr de parte os nomes próprios e meter-se no infinito da tarefa e, quem sabe, por intermédio dessa linguagem nebulosa, anônima, meticulosa e repetitiva, demasiado ampla, a pintura, pouco a pouco, acenderá suas luzes.

Nos pontos de mira, nos pontos cegos e nos não saberes residem as verdades do inconsciente, da psicanálise e do “vir a ser” psicanalista, como um processo que começa, continua e nunca é completado.

Bion, no seu esconderijo essencial, com uma metáfora de Freud, sublinha: “Às vezes preciso cegar-me artificialmente para poder ver coisas que não se veem no claro” (BION, 1994, p. 27).

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: renato.carlan@yahoo.com.br

Recebido em: 21/11/2016
Aprovado em: 01/12/2016

 

 

SOBRE O AUTOR

José Renato Berwanger Carlan
Psicólogo.
Psicanalista.
Associado do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul.

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