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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.46 Belo Horizonte dez. 2016

 

 

O sonho de Accattone: Psicanálise e cinema na obra de Pier Paolo Pasolini

 

The dream of Accattone: Psychoanalysis and Cinema in the work of Pier Paolo Pasolini

 

 

Leonardo Della Pasqua

I Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul
II Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Esse artigo procura estabelecer uma relação entre as interpretações a respeito dos sonhos teorizadas pela psicanálise e sua representação plástica realizada pelo cinema. Para tanto, escolheu-se como exemplo a cena de um sonho do primeiro filme do cineasta italiano Pier Paolo Pasolini Desajuste social (Accattone, 1960). O material onírico presente nessa obra confirma as hipóteses levantadas por Sigmund Freud e Sándor Ferenczi sobre o simbolismo onírico da ponte – interpretada como representante do falo, da angústia de castração e morte; e o simbolismo do duplo – como personificação de uma parte do próprio ego corporal do personagem: seu pênis, com sua potência e vitalidade. Por fim, o sonho de Accattone nos possibilita conhecer as ideias de Pasolini em relação ao inconsciente, ao processo primário, o trabalho do sonho, o simbolismo onírico e seus significados.

Palavras-chave: Interpretação dos sonhos, Cinema, Psicanálise, Simbolismo, Pier Paolo Pasolini.


ABSTRACT

This article tries to establish a relation between the interpretations about the dreams theorized by Psychoanalysis and its plastic representation realized by the cinema. To do so, we chose as an example the scene of a dream from the first film by Italian filmmaker Pier Paolo Pasolini: (Accattone, 1960). The dream material present in this work confirms the hypotheses raised by Sigmund Freud and Sàndor Ferenczi on the dream symbolism of the Bridge - interpreted as representative of the phallus, anxiety of castration and death; The symbolism of the double (when the character dreams of going to his own funeral) - as the personification of a part of the character's own body ego: his penis, with its potency and vitality. Finally, Accattone's dream enables us to know Pasolini's ideas about the unconscious, the primary process, the work of the dream, the dream symbolism and its meanings.

Keywords: Interpretation of Dreams, Cinema, Psychoanalysis, Symbolism, Pier Paolo Pasolini.


 

Tu esplêndida em um sonho
sol escuro:
quem não quer saber
quer sonhar...

PIER PAOLO PASOLINI

 

Introdução

A ligação entre psicanálise e cinema é já bastante conhecida em nossa cultura. Nasceram praticamente juntos em 1895, e não demorou muito tempo para que o cinema se interessasse pela jovem disciplina, apenas descoberta por Sigmund Freud. Desse modo, os sonhos foram protagonistas tanto para psicanalistas como para diretores e roteiristas.

Muitos artistas acabaram procurando psicanalistas para analisar as próprias psicopatologias e os mecanismos próprios do processo primário, investigando e estimulando a produção onírica de sua mente. Alguns deles tiveram suas obras totalmente influenciadas pelos estudos sobre os sonhos, pela noção de inconsciente, pelo complexo de Édipo e pela sexualidade infantil.

Woody Allen, Alfred Hitchcock, Akira Kurosawa, Luiz Buñuel, Salvador Dalí e David Linch são personalidades conhecidas que mudaram seu modo de produzir artisticamente em função de estudos sobre sonhos. Na Itália, Federico Fellini, Nanni Moretti e Pier Paolo Pasolini foram os principais diretores de cinema a incorporar a plasticidade onírica em seus filmes. A eles interessavam as possibilidades que as imagens oníricas davam às histórias.

Os mecanismos de condensação, deslocamento e figurabilidade fazem com que as imagens na telona ganhem força e contenham diversos e importantes significados para o espectador, além do fato de ser esteticamente interessante enquanto representação dos processos mentais humanos.

Desse ponto de vista, o cinema pode ser comparado a sonhar com os olhos abertos, pois as possibilidades que o universo onírico proporciona são bem amplas, inúmeras e diferentes de outras formas de manifestação artística. Alguns diretores de cinema incluem cenas com sonhos em seus trabalhos. Outros realizam obras que são verdadeiros filmes oníricos, abandonando a narrativa lógica no roteiro.

No caso de Pier Paolo Pasolini, desde o primeiro filme, datado de 1960, vemos a importância que os sonhos tinham em sua produção. Pasolini era um homem que sonhava. Valorizava o sonho como forma de expressão artística. Conhecedor de Freud e da psicanálise, se interessava pelos mistérios do inconsciente e pelo poder de representação existente nas imagens. O simbolismo era um elemento constante em seu modo de conceber a sétima arte. Em seus filmes, o mundo onírico acompanha a obra e sua representação do real. Os pensamentos icnográficos e pictóricos se impõem. Fazem parte da realidade psíquica.

Neste texto, o sonho presente em seu primeiro filme Desajuste social (Accattone, 1960) será utilizado como exemplo, para pensarmos o modo como o cineasta entendia e utilizava os sonhos no cinema. É necessário, porém, apresentar algumas considerações sobre sua vida e suas ideias.

No documentário Pier Paolo Pasolini e la ragione de un sogno (BETTI, 2001), Pasolini afirma que começou a sonhar por volta dos três ou quatro anos de idade. Seu sonho era sempre o mesmo: perdia sua mãe e saía para procurá-la até encontrá-la. Uma falta que impulsiona a busca e a redescoberta. Pasolini confessa como sua relação com os familiares era repleta de conflitos. Sua relação mais intensa e difícil era com o pai, um militar de carreira, herdeiro do fascismo. Ele declara:

Era uma típica relação entre pais e filhos quando essas relações são traumáticas. Traumáticas, no sentido inconsciente, que seria explicado por Freud melhor do que por mim. E também por questões objetivas de caráter. [...] Eu, inconscientemente, talvez, era profundamente inimigo dele, e ele era profundamente meu inimigo, inconscientemente. Uma relação assim profundamente dramática como com meu pai não tive mais com outras pessoas, até porque eu fugi delas (BETTI, 2001).

Em 1916, nas suas Conferências introdutórias sobre psicanálise, Freud (1988) dedica boa parte da obra ao estudo dos sonhos. Segundo ele, os sonhos de tipo infantil são evidentes realizações de desejos. Porém, sofreram determinado grau de elaboração onírica, em que um desejo é transformado em experiência real, e os pensamentos foram transformados em imagens visuais. Desde pequeno Pasolini está interessado na transformação dos pensamentos em imagens. Será um longo percurso através da poesia e da literatura até chegar ao cinema.

Existe algo de artificial na escrita que o perturba. Herdeiro do neorrealismo italiano, Pasolini está interessado na representação da realidade. Prefere o cinema porque com ele não é preciso pôr em palavras a realidade que se está vivendo, como no caso da poesia. No cinema, a realidade pode ser mostrada como ela é através da escolha do tipo de sociedade que o diretor pretende retratar. Diz ele: “No fundo o que é um autor cinematográfico? É inventor de uma iconografia” (BETTI, 2001).

O diretor de cinema tem uma rede simbólica própria? Sua iconografia é única? Com certeza podemos ver no primeiro Pasolini algumas peculiaridades:

• sua escolha em filmar as populações da periferia pobre de Roma, girando em dialeto romanesco, não na língua italiana oficial;
• seu estilo cru e seco de filmar, contrário a todo o tipo de moralismo;
• a preferência por atores amadores, que não têm muita experiência cinematográfica;
• sua crença no inconsciente e nas formas de representação do mesmo;
• sua profunda intelectualidade europeia, que era transportada para o roteiro e incluída na trama fílmica;
• seu estilo provocativo e polêmico.

“Por que realizar uma obra, quando é tão belo somente sonhá-la?”

Essa frase termina o filme Decameron, de 1970. O personagem que a pronuncia é um aprendiz do pintor renascentista Giotto, interpretado pelo próprio Pier Paolo Pasolini. A pergunta questiona seu próprio estilo e modo de fazer arte. No filme Decameron o personagem sonha a obra antes de completá-la. A beleza estética do sonho supera a do afresco representado na película.

A obra e as posições políticas de Pasolini estão longe de ser unanimidade. Sofreu em vida trinta e três processos judiciais, enfrentando-os como algo natural, sem lamentações. Tinha a intenção de provocar desassossego. Sentia que esse era seu papel enquanto sujeito político. Só assim era possível escapar da alienação provocada pela Igreja, pela mídia de massa e pela sociedade de consumo.

 

O sonho de Accattone

Em sua primeira experiência cinematográfica, Pasolini mergulha no universo da periferia romana, retratando a realidade daquela organização social, a partir de sua ótica crítica e contestadora. Acompanhemos a história de Accattone, suas dificuldades em lidar com as adversidades, seu sonho altamente simbólico e seu final trágico.

 

Síntese do filme

Vittorio, também conhecido como Accattone, é um jovem cafetão que explora a prostituta Maddalena. Quando ela acaba na prisão, ele fica sem sustento até se apaixonar por Stella, gerando nele a vontade de mudar de vida. Contudo, são enormes as dificuldades que o personagem enfrenta para realizar seu objetivo.

 

Cena antes do sonho

Accattone volta para casa após um único dia de trabalho em um depósito. Seus amigos ironizam e debocham dele, que nunca trabalhou na vida. Ele briga com todos e leva uma surra. Entra em casa sangrando. Stella, ao vê-lo naquele estado, pergunta:

Stella – Vitto’, o que te fizeram? Meu Deus, fale! O que aconteceu?

Accattone – Acontece que sou um burro! Entendeu? Pra ganhar estas 1.000 liras, quase acabei comigo. Não podia ter me pego um raio de manhã, quando saí de casa?

Stella – Tenha calma Vittorio, não diga isso!

Accattone – Meta-se com a tua vida. Para com isso!

Stella – Vitto’, me escute.

Accattone – Chega, não diga nada. Me esquece.

Stella – Vitto’, se tu achas que não consegues ir trabalhar, eu estou disposta a voltar às ruas, se pensas que é melhor assim.

Accattone – O que dizes? Fique quieta!

Stella – Por que te importas comigo? Não faço falta a ninguém.

Accattone – Voltar para as ruas? Pare com isso! Já decidi. Vou te sustentar. Basta! Tu tens que ficar em casa! Quando enfio uma coisa na cabeça, tem que ser o que pensei. Ou o mundo me mata, ou eu mato ele.

 

Descrição do sonho

Accattone se deita exausto. No quarto dormem sete pessoas: três adultos e quatro crianças. Além dele e Stella, dormem na mesma peça uma mãe e seus filhos. Uma menina chama a mãe, mas ele dorme profundamente, e seu sono não se abala. Está distante da realidade do quarto.

Pasolini dá um primeiro plano no rosto do personagem. A imagem do sonho entra na cena. Os sons desaparecem. Vemos um homem caminhando sobre o parapeito de uma ponte. Ouvimos a respiração do personagem. Accattone é quem está caminhando ali. Ouve a voz do líder de um grupo de delinquentes napolitanos. São os amigos de Ciccio, o cafetão da prostituta Maddalena, antes de Accattone. Ao descer da ponte e se aproximar dos quatro personagens, ele vê seus corpos nus, mortos, jogados no chão, cobertos de areia. Accattone se aproxima e se ajoelha diante dos cadáveres. Aparece, então, seu amigo Pio, com flores para um funeral e lhe diz:

Pio – Vamos? Não queres ir? Estamos todos prontos, esperando você.

Accattone se levanta e observa que estão presentes todos os seus amigos para o funeral.

Accattone – Onde pegaram essas flores?

Pio – Lá embaixo. Vamos...

O grupo se volta e começa a caminhar. Accattone olha para o próprio braço e num instante muda de roupa, vestindo um terno completo, adequado para um funeral. Ele corre na direção do grupo.

Accattone – O que aconteceu? Por que não me dizem nada? Vocês podem me dizer o que aconteceu?

Olha para a sua esquerda e vê seu amigo Balilla sem gravata e com o blazer cobrindo seus ombros, apoiado numa típica fonte romana. Ele fala, mas não se ouve o que ele diz.

Accattone – Não te escuto...

Ele corre para alcançar o grupo de amigos.

Accattone – Pio, o que aconteceu?

Pio – Não sabes? Accattone morreu.

Aparecem em cena os membros da Igreja e o carro fúnebre. Escuta-se somente a respiração de Accattone. Um de seus amigos diz: “Deviam ter lhe dito para não fazer isso. Que amigos vocês foram!”. Quando o padre está entrando no cemitério, veem-se duas crianças loiras que choram. Elas estão nuas ao lado do portão. Todos entram no cemitério, e a respiração do personagem fica mais agitada. O porteiro lhe barra a entrada.

Porteiro – Tu não podes entrar.

Accattone – Por quê?

Porteiro – Não.

Todos estão dentro quando o porteiro fecha a entrada. No portão se lê a frase, escrita com grafia infantil: “La Roma...”. Observa-se também o desenho de duas cruzes, e uma delas está dentro de um círculo, parecendo o símbolo do fascismo. Accattone caminha alguns metros e decide pular o muro do cemitério. Ele salta e vê o coveiro cavando seu túmulo na sombra (o curioso da cena é que a câmera de Pasolini começa filmando o sol, descendo até o coveiro que cava na sombra).

Accattone – Senhor coveiro, por que não faz a cova mais para lá? Não vês que a terra aqui é escura?!

Coveiro – Lamento, mas não posso.

Accattone – Faça-a um pouco mais para lá! Só um pouco, por favor... é melhor onde tem luz.

Coeiro – (sorrindo) Eh va bene...

O coveiro larga a pá, vai até onde tem sol, pega a marreta que se encontra no chão e começa a cavar ali mesmo. Ele olha e sorri para Accattone. A câmera agora sobe, filmando as montanhas ao fundo. Fim do sonho.

 

Tentativas de compreensão

Todo o sonho de Accattone é acompanhado pelo som da respiração ofegante do personagem, nos informando o tom emocional do sujeito que sonha.

Em Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos, de 1915, Sigmund Freud (1988) fala dos restos diurnos na formação dos sonhos e o quanto as impressões do dia anterior influenciam a produção onírica. Além disso, reafirma a importância da formação do desejo e descreve em detalhes a regressão temporal e a regressão topográfica na formação dos sonhos.

Seguindo as ideias formuladas em A interpretação dos sonhos, de 1899, ele descreve o caminho “regressivo” dos resíduos do dia na formação dos sonhos. A excitação proveniente do sistema pré-consciente (Pcs) passa pelo sistema inconsciente (Ics) e chega até a percepção. Os pensamentos são transformados em imagens visuais, e para Freud (1988, p. 234):

[...] as apresentações da palavra são levadas de volta às apresentações da coisa que lhes correspondem, como se, em geral, o processo fosse dominado por considerações de representabilidade.

Onde havia um pensamento, uma imagem se instala.

No sonho de Accattone vemos a situação descrita por Freud. O protagonista dorme depois de um dia emblemático para ele. No dia anterior ao sonho, ele tinha tentado mudar radicalmente estilo de vida, procurando trabalhar em um depósito, enfrentando muitas dificuldades, terminando o dia exausto e sangrando, após ter brigado com todos os seus “amigos” de bairro. Em casa, após Stella sugerir voltar a se prostituir para conseguir dinheiro, Accattone diz: “Quando enfio uma coisa na cabeça, tem que ser ela. Ou o mundo me mata, ou eu mato o mundo”.

A passagem do mundo da vigília para o mundo do sonho é representada de modo eficaz por Pasolini. Accattone dorme na mesma peça em que dormem Stella, Nannina (uma garota napolitana), a mulher de Ciccio (um cafetão que explorava a prostituta Maddalena antes de Accattone) e seus cinco filhos. A câmera percorre todo o quarto. As crianças choram e chamam pela mãe, mas Accattone dorme, alheio àquela realidade.

Entramos dentro do sonho com o personagem. Imediatamente os sons desaparecem.

A passagem da ‘realidade’ para o sonho se dá com a transposição da imagem do sonho (Accattone caminhando sobre a mureta de uma ponte) sobre a imagem do rapaz, agitando-se na cama enquanto dorme (FERREIRA, 2009, p. 86).

Ouvimos somente a respiração do personagem. Os sons não são protagonistas, apesar de presentes. Os pensamentos são transformados em imagens. Os restos diurnos fazem parte do sonho. Os pensamentos sobre a morte aparecem na experiência onírica de ver o grupo de napolitanos mortos e depois na sua própria morte, com o funeral em que é proibido de entrar. Na verdade, o simbolismo da morte está presente desde o início, quando Accattone caminha na mureta de uma ponte.

Em sua revisão sobre a teoria dos sonhos, de 1932, Freud (1988) se debruça novamente na questão do simbolismo onírico. Inspirado por Sándor Ferenczi, que escrevera dois textos sobre o simbolismo da ponte uma década antes, Freud reflete sobre o assunto:

Primeiro, ela significa o órgão masculino, que une os pais no coito; mas depois desenvolve outras significações que derivam desta primeira. Na medida em que é absolutamente graças a esse órgão que somos capazes de vir ao mundo, para fora do líquido amniótico, uma ponte se torna a travessia desde o outro mundo (o estado de não nascido, o útero) até este mundo (a vida); e, como os homens também descrevem a morte como um retorno ao útero (a água), uma ponte também adquire o significado de algo que leva à morte, e finalmente, em mais uma mudança de seu sentido original, significa transições ou modificações de condição, genericamente (FREUD, [1932] 1988, p. 33).

Ferenczi ([1922] 1992) vai além. Afirma que todos os indivíduos que sonham com pontes sofrem de impotência sexual e se protegem da proximidade da mulher pela fraqueza de seus órgãos genitais. A angústia de castração e de morte estaria confirmada nas experiências infantis da história do sujeito. A interpretação do símbolo da ponte para ele é tanto o falo como a vida e a morte.

Seguindo essa linha de pensamento, Ferenczi cita a versão primitiva da lenda de Don Juan:

[...] o célebre sedutor Miguel Monara Vicentello de Leco (Don Juan) acende o seu charuto no do diabo por cima do Guadalquivir. Um dia, deparou-se com o seu próprio cortejo fúnebre e quis ser enterrado na cripta de uma capela construída por ele, a fim de ser espezinhado. Foi somente depois desse ‘sepultamento’ que ele se converteu e tornou-se um pecador arrependido (FERENCZI, [1922] 1992, p. 171).

As semelhanças dessas hipóteses com o sonho de Accattone são evidentes. Para Ferenczi, a fantasia do duplo na presença de Don Juan em seu próprio sepultamento é a personificação de uma parte de seu ego corporal: seu pênis.

Em cada relação sexual o órgão viril masculino penetra no mesmo lugar que foi o do nascimento. Assim, “o resto do ego poderia considerar esse ‘enterro’ com certa angústia” (FERENCZI, [1922] 1992, p. 172).

O temor de ser enterrado vivo tem o significado do desejo de voltar ao seio materno. Esse desejo é transformado em angústia. Do ponto de vista narcísico, toda relação sexual (a entrega de si à mulher) é uma espécie de castração, e o ego pode reagir a isso por uma angústia de morte (FERENCZI, 1992).

Uma fantasia de punição pôde contribuir para que Don Juan se sentisse mais próximo do aniquilamento e do inferno em cada ato sexual. A conquista de muitas mulheres seria um simples substituto da única amada interditada para Don Juan, isto é, sua mãe. Essa fantasia edipiana seria o pecado mortal por excelência.

No filme, Accattone é um cafetão e se aproveita das mulheres que ganham a vida vendendo o corpo para sustentá-lo. Não é ele quem deve satisfazer sexualmente Maddalena. São os clientes! O personagem teve o sonho na noite em que tentou mudar de vida. Sua intenção (frustrada) era trabalhar para não explorar sexualmente Stella, por quem se apaixonou. Sexualmente era ele quem deveria dar conta dos desejos libidinosos dela.

Accattone se mostrou impotente nas duas situações: é impotente sexualmente na relação com Stella e é impotente em conseguir dinheiro para a subsistência deles. Sua angústia de castração e de morte serve de motor para o sonho da ponte e de seu próprio funeral. Sua vitalidade e sua virilidade são falsas, sem correspondência com a realidade, seguindo os caminhos do processo primário e do princípio de prazer.

Para Pasolini (FERRETTI, 1977) a história de Accattone dura um verão, o verão do governo Tramboni, o 15° governo da República Italiana, que ficou no poder de 25 de março a 26 de julho de 1960. O objetivo político era superar a emergência, em função da renúncia do então primeiro-ministro Antonio Segni, criando um governo provisório, capaz de permitir a realização das Olimpíadas em Roma e aprovar o orçamento do Estado.

Essas questões políticas ocupavam a mente de Pasolini naquela época; tendo-as presente, o diretor volta o olhar para a alma do proletariado da periferia romana. As questões políticas demarcam a impotência do personagem. O efeito social vira tema do filme encarnado no proletariado...

Em seus comentários sobre o filme, Pasolini constata as seguintes questões presentes na vida do personagem (FERRETTI, 1977):

• miséria material e moral;
• feroz e inútil ironia;
• ansiedade e paixão obsessiva;
• preguiça desprezante;
• sensualidade sem ideais;
• atávico e supersticioso catolicismo pagão.

Assim completa Pasolini (FERRETTI, 1977, p. 116).

Por isso ele sonha de morrer ou de ir ao paraíso. Por isso somente a morte pode ‘fixar’ um seu ato pálido e confuso de redenção. Não existe outra solução para ele.

O princípio de realidade falha. Accattone não possui recursos de ego suficientes para lidar com as frustrações da vida. Predomina o princípio do prazer, e a morte aparece como única solução. Trabalhar e buscar o próprio sustento parece impossível. O sonho pode ser considerado premonitório?

Tudo indica que essa era a intenção de Pasolini, mas podemos ver esse sonho também sobre outra ótica: pode representar uma tendência psíquica crescente no mundo interno do personagem, mais do que uma premonição.

Essa hipótese aproxima o sonho ainda mais da ótica psicanalítica, pois na Interpretação dos sonhos, Freud ([1900] 1988) nos indica que os sonhos podem antecipar movimentos psíquicos que o sujeito ainda não percebeu em sua vida de vigília.

O tema anticlerical atravessa o sonho. Duas crianças loiras estão nuas, ao lado do portão do cemitério.

A introdução da imagem dos meninos nus, que se divertem, calmos, com brincadeiras simples, restitui ao leitor o sentido daquela ideia de inocência, própria dos pequenos que ainda não experimentaram as dificuldades e as angústias existenciais e que, em sua ‘humildade indigente’, parecem aos olhos de Pasolini semelhantes aos anjos (CORDAZZO, 2008, p. 70).

As ideias de Cordazzo parecem coerentes, apesar de as crianças não estarem brincando nuas, mas sim chorando nuas! Quando o portão se fecha, vemos escrito “La Roma...” e duas cruzes desenhadas, com grafia infantil, lembrando o símbolo do fascismo. A infância de Accattone foi em plena ditadura fascista, e o personagem é um ditador com as mulheres.

Estaria Pasolini sugerindo a presença de um traço mnêmico infantil, de modo pictórico (pensamento em forma de imagem), que nos falaria da origem infantil da estrutura de personalidade do personagem?

Ferreira (2009) afirma que o sonho antecipa o desfecho da narrativa e desvela o mundo que lhe tirava todos os direitos.

As metáforas oníricas sinalizam a negação a Accattone de entrar no cemitério, como se lê no início do filme – ‘até do céu são privados’ – e o fato de seu túmulo ser cavado à sombra aponta para algo ilegítimo; é como se ele não fosse merecedor da luz do sol, sinal que aqui funciona como a negação, novamente, do Céu. Ou seja, no seu descanso final, o rapaz continuaria na escuridão, nos guiando aos conceitos católicos de Céu e Inferno (FERREIRA, 2009, p. 86).

Realmente, o tema da morte aparece desde o início do filme, com a citação do Canto V do Purgatório, da Divina Comédia de Dante:

[...] o anjo de Deus me levou, e aquele do inferno
Gritava: ‘Oh tu do céu, por que me privas?
Tu levas este para o eterno
por uma lagrimazinha à toa.

A história de Accattone é uma tragédia sem esperança (FERRETTI, 1977). É significativo o sinal da cruz de Ballila ao final do filme, mas o próprio diretor espera que os expectadores do filme não confundam isso como sinal de esperança. É um mundo sem aberturas nem perspectivas de nenhum tipo.

Há a predominância da pulsão de morte. O sonho apresenta o personagem já morto, impedido de presenciar seu próprio funeral. Ele não pode intervir nisso. Sua única possibilidade é encontrar um lugar ao sol para a sua cova. O tema religioso invade a cena, mas é impossível encontrar a salvação. O sonho produz uma ilusão de redenção pela morte. Ilusão que é duramente destruída no final do filme, quando percebemos o sonho como indicação do destino pulsional do personagem principal.

 

Considerações finais

Neste texto, procurou-se mostrar a relação entre sonho, psicanálise e cinema na obra desse importante cineasta. Após os argumentos apresentados, fica clara a aproximação que Pier Paolo Pasolini faz entre os pressupostos psicanalíticos e a história que leva às telas.

O sonho de Accattone nos revela os conhecimentos do diretor italiano em relação à dinâmica do inconsciente, os modos de expressão do processo primário de pensamento, o trabalho do sonho, o simbolismo onírico e seus significados.

Usando Freud e Ferenczi como referências, tem-se a impressão de que todos os símbolos escolhidos no sonho e os modos de comunicação escolhidos para expressá-los são intencionalmente apresentados. A impotência do personagem, a angústia de castração e de morte, o narcisismo, o masoquismo e a presença do duplo no sonho mostram sua filiação freudiana. Há ainda sua crítica social e política, centrada no inconformismo perante a Igreja católica, à ditadura do capitalismo e a televisão produtora de sujeitos alienados e manipulados.

Sua iconografia singular e única condensa, desloca e representa figurativamente (metaforicamente) o funcionamento coletivo e individual do sujeito inserido na própria cultura. Accattone é o início desse processo, que durará por mais 15 anos e outros 23 filmes, até sua trágica morte em 1975.

Para encerrar, ficamos com pequeno diálogo do curta Que coisa são as nuvens? (1967), pertencente ao filme coletivo Capricho à italiana. O filme é uma fábula onírica sobre a vida, tendo como pano de fundo a encenação de Otelo, de Shakespeare, onde os atores são fantoches, comandados por cordas, enquanto estão no palco.

Otelo (Ninetto Davoli) – Por que temos que ser tão diferentes do que acreditamos que somos?

Iago (Totò) – É, meu filho, nós estamos em um sonho dentro de um sonho.

A presença do onírico na realidade. Um tema altamente relevante e contemporâneo tanto para a psicanálise quanto para a sétima

 

Referências

ACCATTONE: Desajuste social. Direção Pier Paolo Pasolini. Fotografia: Tonino Delli Colli. Versátil Homevídeo, 2012. 1 DVD (122 min), P/B. Título original: Accattone.         [ Links ]

CORDAZZO, I. “Accattone”, di Pasolini. Dal testo al film. Bologna: Edizioni Pedragon, 2008.         [ Links ]

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FERENCZI, S. O simbolismo da ponte e a lenda de Don Juan (1922). São Paulo: Martins Fontes, 1992. (Obras completas, v. III).         [ Links ]

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FERRETTI. G. C. Pier Paolo Pasolini. Le belle bandiere - dialoghi 1960-1965. Roma: Editori Riuniti, 1977.         [ Links ]

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PIER Paolo Pasolini e la ragione di un sogno. Direção: Laura Betti. Fotografia: Fabio Chianchetti. Mikado Film, 2001. 1 DVD (90 min), colorido.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: leopasqua@hotmail.com

Recebido em: 21/11/2016
Aprovado em: 01/12/2016

 

 

SOBRE O AUTOR

Leonardo Della Pasqua

Psicanalista.
Psicólogo.
Mediador judicial.
Instrutor e supervisor de mediadores judiciais pelo TJRS.
Formado em psicanálise na escola Lo Spazio Psicoanalitico di Roma, Itália.
Sócio-fundador do Laboratório Psicoanalitico Tiburtino, em Roma, na Itália, onde coordenou o evento “Cinema e Terceira Idade” por um período de três anos.
Presidente da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul (Biênio 2011-2013), onde coordenou as atividades “Cinema e psicologia” e “Diálogos entre o direito e a psicologia”.
Ministra a disciplina Teoria e Técnica Psicanalítica III no curso de formação em psicanálise do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul.
Coordenador do curso “A interpretação dos sonhos na psicanálise: um laboratório onírico didático”, com diversas edições no Rio Grande do Sul.

 

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