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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.46 Belo Horizonte dez. 2016

 

 

Mal-estar na tríade profissional de saúde-pais-bebê e seus reflexos nos vínculos iniciais

 

Malaise on the triad health professional-parents-infant and its reflexions in the initial bonds

 

 

Marisa Amorim SampaioI; Maria do Carmo CamarottiII, III

I Universidade Católica de Pernambuco
II Faculdade de Ciências Humanas de Olinda
III Ciclos da Vida

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Para a psicanálise, o mal-estar se inscreve no campo da subjetividade e da intersubjetividade. O mal-estar seria causado, entre outros motivos, pela superposição entre corpo e organismo. Este trabalho pretende desenvolver reflexões sobre os possíveis efeitos da incidência do mal-estar no bebê, analisando os vínculos iniciais que delimitam e marcam o seu corpo. Esses vínculos, considerados fundamentais à unificação entre psique e corpo, são situados no contexto das relações desenvolvidas entre o profissional de saúde, os pais e o bebê. Remete-se ao papel do profissional na mediação entre os cuidados parentais e o bebê, exemplificado por vinhetas advindas de pesquisa desenvolvida com uma aplicação do método de observação da relação mãe-bebê-família de Esther Bick, enfocando a assistência à díade acompanhada por uma equipe de saúde da família, do pré-natal à puericultura. Desenvolve-se uma reflexão sobre a importância do reconhecimento dos reflexos do mal-estar no corpo do profissional, como suporte da contratransferência, das demandas e do não saber transferido pelos pais e pelo bebê. É por meio da “gestação simbólica” que o profissional poderá pensar o impensado no “útero de sua mente”, dispondo-se a receber o mal-estar e o desamparo, numa experiência intersubjetiva que o auxilia na digestão, no reconhecimento e na nomeação de elementos advindos, também, de sua própria matriz psíquica.

Palavras-chave: Psicanálise, Mal-estar, Corpo, Relações mãe-bebê, Intersubjetividade.


ABSTRACT

For psychoanalysis, malaise is placed in the field of subjectivity and intersubjectivity. Malaise would be caused, among other reasons, by the superposition between body and organism. This paper develops reflections about the possible effects of malaise in the baby, considering the initial bonds that delimit and leave marks in his body. These bonds, which are considered fundamental to the unification between psyche and body, are situated in the context of relationships developed between health professional, parents and babies. The paper also refers to the role of the health professional in mediating maternal/child care and the baby; these reflections take vignettes from a research developed with an application of Esther Bick´s infant observation, focusing on the assistance to dyads accompanied by a health team from prenatal to childcare. The malaise will also be discussed as to its reflexes in the professional´s body, as a support to countertransference, to the demands and to unknowing, transferred by the parents and the baby. It is through the “symbolic pregnancy” that the analyst can think the unthinkable in the “womb of his mind”, opened to receive the malaise and helplessness, throughout the intersubjective experience that functions as containment, digesting, recognizing and naming elements coming, also, from his own psychic matrix. A reflection on the importance of recognizing the reflexes of malaise in the professional's body as a support for the countertransference, demands and non-knowledge transferred by the parents and the baby is developed.

Keywords: Psychoanalysis, Malaise, Body, Mother-baby relation, Intersubjectivity.


 

Para a psicanálise, o mal-estar se inscreve no campo da subjetividade e da intersubjetividade; é intrínseco ao circuito pulsional frente à impossibilidade de satisfação plena (FREUD, [1930] 1996). O mal-estar provém do corpo, do mundo externo e dos relacionamentos humanos. A tensão pode ser de origem externa, via percepção de elementos que são desagradáveis em si, podendo desencadear desprazer, ou ser de origem interna, causada por pulsões insatisfeitas (FREUD, [1920] 1996). O existir como ser de desejo implica um sujeito dividido e singular, constantemente convocado a dar conta do mal-estar, o que o faz muitas vezes encontrando saída nos sintomas (FREUD, [1926] 1996).

No que diz respeito ao bebê, que ainda não se constituiu como ser de desejo, mas que nasce na condição de mal-estar, infans, ser na cultura, faz-se necessário remeter inicialmente à noção de desamparo, uma vez que esta revela uma experiência supostamente anterior e estruturante da subjetividade e da condição humana (ROCHA, 1999).

Freud situa o paradigma da situação originária do desamparo marcando-o como ligado ao biológico, mas também à mercê do desejo do Outro. Do ponto de vista biológico, sem que o desamparo se esgote numa dimensão biológica, remete a uma experiência na qual o sujeito se encontra sem recursos, tal como o recém-nascido: impossibilitado de poder ajudar-se a si mesmo devido à sua imaturidade motora e psíquica (ROCHA, 1999).

Esse estado de desamparo original do bebê coloca-o numa dependência absoluta do outro materno capaz de protegê-lo contra os perigos e substituir a vida intrauterina perdida, fazendo cessar a tensão interna (FERNANDES, 2006).

O fator biológico instaura as primeiras situações de perigo e cria a necessidade do humano de ser amado; funciona como o modelo das situações de desamparo com as quais necessariamente o homem se confronta. A dependência da criança não é só uma dependência biológica; é sobretudo uma dependência de amor e de desejo (FREUD, [1926] 1996; ROCHA, 1999).

A angústia de desamparo manifesta-se quando a criança se sente ameaçada pela voracidade desse desejo obscuro e desconhecido do Outro. Assim considerado, o desamparo é constituinte da inserção do sujeito no mundo da linguagem e deixa transparecer essencialmente uma falta fundamental, [...] uma falta-a-ser [...], que cuidado algum pode suprir, já que “nenhuma linguagem pode dizer a última palavra sobre a verdade do ser” (ROCHA, 1999, p. 336).

[...] a experiência da abertura e da possibilidade para as infinitas novas formas de manifestações do Ser que torna a experiência do desamparo uma experiência estruturante da subjetividade (ROCHA, 1999, p. 341).

Com base nessa possibilidade, o homem deixa de ser joguete do destino e passa a construir a sua história ao se abrir para a alteridade, como um grito do sujeito para um outro; adversamente, o desamparo só se torna desespero quando o grito fica sem resposta.

O desamparo estrutura um modelo de subjetividade aberta, em contraposição ao modelo fechado do tipo identitário, que enclausura narcisicamente o sujeito dentro de sua autossuficiência (ROCHA, 1999, p. 343).

Frej, Torres e Melo (2011) remetem à importância do outro materno que desempenha a ação específica, aporte de uma ajuda estrangeira, que vai operar a distinção entre interior e exterior, necessária à construção/nominação do corpo.

A mãe destaca do corpo do bebê uma necessidade atribuindo-lhe uma palavra, atribuição que não se restringe ao campo das necessidades vitais (FREJ; TORRES; MELO, 2011, p. 148).

Atribuição e transitivismo são dimensões que marcam o substrato inicial da função materna, o que constitui

[...] uma efração simbólica, no sentido de uma forçagem, mas é assim que a mãe sabe pelo seu bebê, ela sabe por ele mesmo e sabe por ela mesma [...]. Essa forçagem [...] é inevitável e constitutiva do sujeito, dado que isso comporta sua ascensão ao universo simbólico (CULLERE-CRESPIN, 2004, p. 29).

Ela só sabe por ele e pode escutar e interpretar os sinais do corpo do bebê, porque consegue investir libidinalmente esse corpo: transforma o corpo de sensações num corpo falado (FERNANDES, 2006).

O Outro só pode atender a demanda a partir de sua própria condição desejante. A mãe, funcionando como um pequeno outro, porém servindo de Outro, na qualidade de interlocutora da relação primordial, transmite ao bebê aspectos reinterpretados por ela mesma do Outro que a determina. O outro é o polo investidor que vai transformar o biológico em corpo erógeno, dando acesso à simbolização (FERNANDES, 2005).

O corpo, diferentemente do organismo, é ligado à ordem sexual e pulsional, permeado pela alteridade, ao passo que o organismo é de ordem estritamente biológica. O corpo se constitui em ruptura com a natureza, aberto sobre ela e sobre o Outro, tecido na encruzilhada dos destinos pulsionais, marcando a existência de um corpo-sujeito.

Pode-se falar, então, do corpo como um território ocupado do organismo, isto é, como um conjunto de marcas impressas sobre e no organismo pela inflexão promovida pelo Outro (BIRMAN, 2000, p. 62).

O trabalho de nominação do corpo envolve não só o prazer que a mãe pode experimentar no contato com o corpo do filho, ao nomeá-lo e ao dar ao bebê o conhecimento da existência do seu corpo, mas também remete a mãe à relação com o seu próprio corpo como lugar do prazer.

Esses dois níveis de prazer são compreendidos por Aulagnier (1999) como as condições iniciais que permitiriam à criança conceber o seu corpo como espaço unificado, perpassado por diversos elementos do autoerotismo ao narcisismo e finalmente ao amor objetal, fruto do corpo unificado.

Nesse processo de assunção do corpo, Bick infere que os bebês vivem inicialmente um estado de não integração, sentindo as partes da personalidade como partes do corpo mantidas juntas por uma pele frágil, no sentido psíquico. A primeira defesa do bebê para lidar com esse estado não integrado é buscar um objeto ao qual possa aderir.

Esse objeto continente, porém ainda indiferenciado pelo bebê, é constituído por experiências de interações contínuas com alguém capaz de oferecer holding físico e continência mental. Com base na repetição dessas experiências, o bebê introjeta a função do objeto e passa a funcionar de modo integrado.

Com a pele psíquica constituída, o bebê poderá criar e manter um espaço interno necessário ao surgimento de fantasias de espaços internos e externos (BICK, [1968] 2011).

O outro materno desempenha uma função fundamental ao receber as projeções do bebê, quando este exterioriza uma parte do seu self sentida em perigo. Por meio da rêverie a mãe é capaz de compreender e elaborar, mediante seu próprio funcionamento psíquico (capacidade de pensar), as projeções oriundas do bebê e, então, devolver ao filho um modelo de funcionamento mental, como traduções desintoxicadas do excesso intolerável de sofrimento que continham – transforma os elementos betassensoriais brutos em elementos alfa, que são portadores de significado (BION, [1962] 1991).

A progressiva interiorização da função de proteção e de significação, assegurada pelo envolvimento materno, será o primeiro acompanhante interno que auxiliará a criança no controle, na transformação da violência pulsional e na construção de um sistema de pensamento simultaneamente capaz de ler a si mesmo e aos estados emocionais do outro.

Adversamente, se essas angústias não forem suficientemente acolhidas e metabolizadas, conduzirão o bebê a um incremento dos mecanismos de projeção e de evacuação, causando mal-estar e até mesmo desamparo (SÁ, 2009).

Quando os pais são atravessados pela lógica dessubjetivante, há o risco potencial para o desencadeamento de mal-estar na construção da função materno-parental. Como consequência, pode ocorrer uma falha na libidinização do corpo do bebê e na resposta a seu grito, com o risco de que ele seja deixado ao desespero e à autossuficiência, comprometido no seu processo de subjetivação.

Passemos a algumas vinhetas retiradas de uma pesquisa desenvolvida com a triangulação de métodos e técnicas, destacando-se a etnografia e uma aplicação do método de observação da relação mãe-bebê de Esther Bick (SAMPAIO, 2013).

Foram acompanhadas doze díades mãe-bebê ao longo de nove meses, assistidas por uma equipe de saúde da família, do pré-natal à puericultura. Buscou-se compreender as práticas comunicativas desenvolvidas pela equipe no auxilio à construção da maternidade, bem como a inter-retroação dessas práticas comunicativas nos mecanismos psíquicos envolvidos na interação mãe-pai-bebê. O papel da equipe de saúde foi também analisado diante da possibilidade na mediação entre os cuidados parentais e o bebê.

No período pré-natal é indispensável perscrutar os indícios sutis da gestação psíquica, condição-chave para os vínculos precoces entre pais e filho, bem como para a subjetivação infantil.

O Ministério da Saúde (BRASIL, 2005) aponta que a equipe de saúde não deve restringir às consultas os aspectos orgânicos do corpo gravídico. O exame de ultrassom e a ausculta dos batimentos fetais são momentos potencialmente fecundos para escutar e acolher o comunicado pelo corpo e criar condições de fala em torno do feto, auxiliando na construção parental.

Rotineiros no pré-natal, esses exames podem servir como produtores de sentidos à comunicação equipe-pais, além de auxiliar na arquitetura da parentalidade. Ao acolher perguntas e comentários, o profissional reconhece e autoriza o papel dos pais, atuando na prevenção primária. Quando extrapola o biológico, promove a integração bebê de fora/bebê de dentro e o investimento no bebê imaginário.

A ausculta e as imagens, portanto, viabilizam o diálogo pais-equipe, podendo facilitar o vínculo com o bebê e produzir um senso de realidade e prazer auditivo e visual (PICCININI et al., 2012).

De modo contrário, a idolatria pelos exames despersonaliza a relação com os pais e torna previsíveis os processos de trabalho reduzindo o universo de necessidades e saberes (CAMPO, 2011).

Nesta pesquisa foi observado o mesmo constatado por Chazan (2007): uma ênfase exagerada nos batimentos fetais em seu sentido funcional, o que parecia mudar a posição subjetiva da mulher, deslocando-a do lugar de observação e intuição. O útero perdia o simbolismo de mistério e negociações, com o aparato tecnológico descaracterizando percepções e afetos por um suposto controle da saúde materna e fetal (MAIA, 2006), desautorizando a mulher, deixando de viabilizar o infans.

Uma das gestantes comenta que a médica vê mais se o bebê está bem, “a área de saúde mesmo”, mas não pergunta se ela conversa com o filho. Noutra passagem a pesquisadora observou que a enfermeira e a estagiária procuravam os batimentos do coração do bebê, divertindo-se com o diálogo científico-pedagógico, excluindo a gestante e o feto.

Dentro desse mesmo cenário trazemos o recorte de uma observação da pesquisadora:

Com o sonar, escutamos o coraçãozinho do bebê: que emoção a minha! Só então me dei conta que só eu parecia emocionada: mãe e médica não esboçavam reação diante do bebê, que dava sinal alto e claro de vida: “estou aqui, falem comigo, falem de mim!”. O mesmo ocorreu com a gestante seguinte. Talvez tenham se emocionado e se contido pela profissional não esboçar nem estimular reação afetiva.

As gestantes quase não falavam com o seu bebê como ocorria quando estavam fora do consultório. Nas consultas, quando exprimiam a ambivalência de seus sentimentos, eles eram biologizados pela equipe de saúde, e associados às oscilações hormonais da gravidez.

A focalização nos aspectos técnicos das consultas parecia bastar às mulheres que, como os profissionais, eram presas da trama de significados que exalta a objetividade das práticas de saúde, desconsiderando a dimensão relacional.

O desprezo das próprias demandas e significados, assumidos por algumas mulheres como irrelevantes nas consultas, restringindo o olhar de si e do outro à dimensão biológica, parecem refletir a subordinação ao discurso biomédico. Ainda quando conversar sobre sentimentos parecia conveniente às gestantes, as consultas de pré-natal eram sentidas e tomadas por elas como lugar de ‘silenciamentos’, o que parecia relacionado às frequentes faltas às consultas no puerpério e na puericultura; o vínculo equipe-pais se construía de modo falho.

Nesta pesquisa, o pré-natal, o puerpério e a puericultura não se configuraram como cenário propício ao desenvolvimento de relações de acolhimento, corresponsabilização e confiança. As práticas comunicativas subordinadas ao saber-fazer técnico propiciaram oportunidades perdidas no auxílio à elaboração da parentalidade e da subjetivação.

A primazia da comunicação informativa e da observação de sinais orgânicos traduzia uma atenção refém de procedimentos codificados, prescrições que se endereçavam basicamente a objetos parciais, quase sem envolver diálogo.

As modalidades da presença implicada do agente de cuidados, desenvolvida seja pelo profissional de saúde, seja pelos pais, estão representadas em atitudes de corresponsabilidade, de sustentação e contenção técnica e psíquica, do vínculo que promove experiências de integração, da alteridade fruto da interpelação.

O que é despertado naqueles que rodeiam os pais e o bebê: práticas que fazem prevalecer o organismo ou cuidados que visam o reconhecimento do corpo materno e o estabelecimento do corpo do bebê?

Nas práticas voltadas ao organismo, regidas pelo biopoder, ditadas pela ciência, e apoiadas nas relações de objeto de consumo, não se promove a reflexão sobre o desejo parental, nem se consideram as condições de possibilidade à libidinização do corpo do bebê, ao reconhecimento no laço social e à assunção do seu desejo.

Tais práticas podem atuar como impeditivo das condições de construção e constituição subjetiva, deixando pais, bebês, e até mesmo os profissionais, ao risco potencial para o desencadeamento de mal-estar na comunicação e na construção parental/filial.

A ênfase quase exclusiva no enfoque instrumental das práticas de saúde [...] mostra os efeitos “desumanizadores” a que estão submetidos também os profissionais quando a dimensão prática e intersubjetiva do cuidado é completamente colonizada pelo objetivismo tecnicista (SOUZA; MELLO; AYRES, 2013, p. 1191).

A proximidade e a longitudinalidade das consultas de pré-natal na atenção básica teriam o potencial de aproximar os pais e a equipe de saúde, constituindo-se como um espaço para contemplar expressões biológicas, sociais e psíquicas da maternidade.

Entretanto, a primazia da objetividade do engravidar e o obscurecimento da revolução psíquica vivenciada na gestação e no puerpério, inviabilizaram o reconhecimento precoce de indícios de dificuldades na construção da maternidade, parentalidade e à vinculação.

Os profissionais não pareciam preparados para reconhecer a importância dessas construções nem não se mostraram dispostos a acolher e significar as projeções advindas dos pais, não fazendo uso de sua capacidade de rêverie com as famílias.

Bion ([1962] 1991) tomou como exemplo a relação mãe-bebê para conceituar rêverie, tomando-a como uma gestação simbólica que o analista realiza a serviço do paciente, pensando o impensado no útero de sua mente.

É com base na rêverie que a mãe atua como continente do filho, criando significados pela transformação, pela ligação e pela atribuição de sentido ao material bruto projetado pelo bebê, composto por fragmentos dispersos, impressões sensoriais e emocionais.

Autores como Ogden (2013) fazem uso dessa ferramenta, indispensável à compreensão e interpretação da transferência e da contratransferência, para ampliar seu sentido na situação analítica. Ogden vai além, utilizando seus próprios estados de rêverie e os estados sobrepostos de rêverie (dele e do paciente), compreendidos como “bússola emocional”.

A rêverie representa

[...] nossas ruminações, devaneios, fantasias, sensações corporais, percepções fugazes, imagens emergindo dos estados de dormência, melodias e frases que atravessam nossas mentes (OGDEN, 2013, p. 146).

Golse (2003) lembra que o bebê pode nos ajudar a fazer bom uso dos nossos conflitos: projeta partes dele próprio, partes do psiquismo que se forma, partes do seu corpo. Isso pode ser um instrumento de trabalho extremamente útil para compreender o bebê que se situa aquém da linguagem.

Ocupar-se do bebê é aceitar ser tocado no nível de nossas partes mais profundas, porque o bebê que fomos não morre jamais.

Os profissionais da saúde básica não precisam ser psicanalistas, mas podem se aventurar junto à gestante e sua família nas trilhas dos significados, nas condições de possibilidade à arquitetura da psique, sendo também propositivos.

Para a capacidade de continência, é preciso que exista uma condição de espera, vivida na capacidade de sustentar o tempo de construção de algo que está por vir (STOIANI, 2007).

É essa disponibilidade para receber fatos e reações ligadas ao impacto emocional que permite ao profissional aguardar que esses elementos possam ser reconhecidos e nomeados.

A clínica com o bebê exige que o profissional responda com seus recursos subjetivos, com o seu corpo como o seu desejo, por meio da contratransferência, na construção interpretativa de suas próprias formações imaginárias (REZENDE, 1993).

Birman (2000) aponta que um mal-estar seria causado, entre outros motivos, pela superposição entre corpo e organismo, quando o profissional se debruça apenas sobre o organismo ou apenas sobre o psíquico, resultando numa técnica que se inscreve no limite da racionalização.

Assim como na ausência da “mãe suficientemente boa” para o bebê, a ausência da presença viva do profissional, paralisado em sua escuta, que reduz sua função ao trabalho de deciframento do organismo, reenvia a família ao congelamento da libido e dos significados.

Quando a mãe se encontra afetada em sua capacidade de banhar o filho com a rêverie, de ser continente e leitora do corpo do bebê, psiquicamente ausente ou pouco disponível sob o plano interativo, pode ocorrer inversão da relação conteúdo/continente, com o bebê ocupando lugar de receptáculo das projeções maternas (WILLIAMS, 2004).

Talvez possamos imaginar também profissionais que fazem essa inversão. Se não nos permitimos sentir e nos ocupar pelo bebê e se ignoramos os pais ou os culpabilizamos, faremos a mesma ultrapassagem que o discurso do mestre prima em reiterar: em busca de poder sobre os sujeitos, elimina a subjetividade.

Como sustentar a ilusão antecipatória de sujeito, quando se prioriza o organismo e a eficiência técnica de pais e profissionais?

A adesão acrítica ao embasamento dito científico desautoriza questionamentos sobre sua adequação aos modos de vida e sobre o que é da ordem do desejo; corre-se o risco de extinção do sujeito na condição de produtor de enunciado próprio.

Nossa prática deve ser perpassada por reflexões relativas ao modo como acolhemos o mal-estar que incide nos pais, no bebê e em nós mesmos, considerando a célebre frase de Kreisler (1999) segundo a qual o corpo é o lugar e o meio pelos quais o bebê, colhido num conflito, exprime seu mal-estar.

Quem e como se apazigua e transforma a violência pulsional primitiva e as angústias precoces diante das instâncias externas e internas?

Como nos colocamos diante da impossibilidade de o outro materno assumir o lugar de leitor e intérprete dos sinais do bebê?

Como lidamos com o desconhecido e com o inesperado, com os significados que extrapolam o organismo?

Bion ([1962] 1988) retomou a “capacidade negativa”, conceito criado por Keats ([1817] 1979), para se referir a uma das funções que permite ao analista se manter em estado de suspensão diante do desconhecido, da dúvida e do questionamento até que algum entendimento possa se configurar.

É essa disponibilidade para receber os fatos e as reações ligadas ao impacto emocional vivido na situação que permite ao analista/profissional de saúde aguardar o tempo suficiente para que esses elementos possam ser reconhecidos e nomeados, salvaguardando o espaço para a surpresa e para a inovação.

Nesse sentido, Lebovici (1999) afirma que o analista deve ser capaz de desintoxicar as representações que tem do bebê e, com isso, permitir a eclosão dos pensamentos nascentes da criança.

O campo do analisável precisa se desdobrar sem que excluamos o que nos parece bizarro, arcaico e ambivalente, fornecendo indicações sobre aspectos projetados em nosso corpo, em nosso discurso, em nossos significantes, deflagrantes da falta-a-ser e da insistência pulsional (BIRMAN, 2000).

A elaboração da contratransferência continua sendo o guia essencial, pois permite indicar se o mal-estar do bebê tem função de apelo ou se remete a uma desorganização do equilíbrio psicossomático da criança e da díade/tríade (GOLSE, 2006).

Não se trata [...] de uma reflexão somente intelectual, pois ela engaja questões clínicas, teórico-técnicas, terapêuticas e mesmo éticas (GOLSE, 2006, p. 185-186).

Essa compreensão intersubjetiva fornecerá ao profissional ricos elementos na análise das possibilidades quanto aos vínculos iniciais mãe-bebê.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Marisa Amorim Sampaio
E-mail: marisasampaio@hotmail.com

Maria do Carmo Camarotti
E-mail: cacautti@terra.com.br

Recebido em: 05/12/2016
Aprovado em: 07/12/2016

 

 

SOBRE OS AUTORES

Gilberto Lucio da Silva
Psicóloga pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) com formação em Clínica Psicanalítica da Infância e Adolescência pelo Centro de Pesquisa em Psicanálise e Linguagem (CPPL).
Mestre e Doutora em Saúde Materno-Infantil pelo Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira (IMIP), com realização de Programa de Doutorado Sanduíche na Clínica Tavistock, em Londres.
Pós-Doutora em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Professora Assistente na UNICAP (graduação e pós-graduação em Psicologia).
Coordenadora do Laboratório de Família, Gênero e Interação Social.
Membro do colegiado do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica.

Maria do Carmo Camarotti
Psicóloga pela Faculdade Frassinetti do Recife (FAFIRE). Psicanalista.
Especialista em Intervenção Precoce Pais-Bebê.
Mestre em Saúde Materno-Infantil pelo Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira (IMIP).
Formadora em Intervenção Precoce Pais-Bebê.
Professora da Pós-graduação da Faculdade de Ciências Humanas de Olinda (FACHO). Fundadora e Coordenadora do Ciclos da Vida - Recife/PE.

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