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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.46 Belo Horizonte dez. 2016

 

 

Corpo e dor nas condutas escarificatórias na adolescência

 

Body and pain in scarifying behaviors in adolescence

 

 

Marta Rezende CardosoI, II; Aline Gonçalves DemantovaI; Gabriela Domingues Caetano Soares MaiaI, III

I Universidade Federal do Rio de Janeiro
II Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental
III Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo investigamos o papel do corpo e da dor nas práticas de escarificação tendo em vista sua significativa incidência na adolescência. A passagem da infância à vida adulta pressupõe a presença de uma violência psíquica interna. As transformações pubertárias colocam em risco os limites do corpo, podendo fazer com que o sujeito perca o sentimento de continuidade de si, resultante de um desequilíbrio no plano do conflito psíquico. Os atos de escarificação na adolescência nos interrogam sobre as repercussões internas de um corpo radicalmente transformado, incidindo fortemente na relação entre corpo e psiquismo e naquela existente entre o eu e o outro. A dor perpetrada no próprio corpo constitui recurso defensivo arcaico, mas paradoxalmente funciona como tentativa do ego de dele se apropriar. Essa modalidade de ato, de caráter autodestrutivo, implica a projeção ao espaço corporal de uma luta travada no mundo interno onde o eu se encontra transbordado pela força pulsional.

Palavras-chave: Escarificação, Corpo, Dor, Adolescência.


ABSTRACT

In this article we investigate the role of the body and pain scarification practices in view of its significant impact on teens. A passage from childhood to adulthood presupposes the presence of an internal psychic violence. The pubertal changes endanger the body's limits and can cause the subject to lose the sense of continuity of the self, resulting from an imbalance in the level of the psychic conflict. Acts of scarification in adolescence interrogate us about the internal repercussions of a radically transformed body, strongly focusing on the relationship between body and psyche and that existing between self and other. Pain perpetrated on the body itself is an archaic defensive feature, but working, paradoxically, as an attempt of the ego to appropriate it. This mode of act, of self-destructive nature, involves the projection into the body space of a struggle waged in the internal world where the ego is overflowed by the drive force.

Keywords: Scarification, Body, Pain, Adolescence.


 

As pesquisas dedicadas às questões da clínica psicanalítica atual apontam para uma alta incidência de quadros cuja principal via de expressão é o corpo. Estamos diante de casos de adicção, de anorexia, de dor física crônica, de automutilação, modalidades diversas de passagem ao ato. Um denominador comum entre esses quadros, além da sua evidente implicação corporal, é a precariedade da elaboração psíquica que lhes é característica no que tange à singularidade de seu modo de funcionamento psíquico.

De acordo com Birman (2013), se a clínica da neurose é centrada no conflito psíquico entre desejo e interdição, uma marca das situações clínicas que aqui nos ocupam é o apelo ao corpo e ao ato por parte do eu.

A prática da escarificação é um ato automutilatório em que o sujeito corta partes de seu corpo sem intenção suicida consciente, infligindo uma dor corporal em si mesmo.

De que maneira essa prática se articula com a dimensão de trauma?

As marcas corporais, produzidas de modo violento contra si indicariam uma tentativa de inscrição no corpo de elementos que não conseguiram se inscrever no psiquismo, permanecendo fora do universo representacional?

São essas algumas das questões que nos propomos examinar no presente artigo.

 

Potencial traumático e recurso ao ato na adolescência

De acordo com Birraux (2013), o sujeito adolescente será submetido a uma tripla remodelação: em relação a seu corpo, sua sexualidade e ao seu meio social. A agitação somática impõe o advento de um novo corpo, percebido inicialmente como estranho, requerendo, portanto, um processo de reconstrução subjetiva a partir das transformações pubertárias.

Além disso, o acesso à genitalização exige efetivo distanciamento dos objetos edipianos e das imagens parentais outrora interiorizadas, haja vista, a partir de então a possibilidade em potencial da concretização das fantasias incestuosas. Essa tomada de distância dos objetos parentais demanda, por sua vez, investimento em outros objetos fora do seio familiar.

Todas as mudanças tanto externas quanto internas com as quais o adolescente se vê confrontado fazem com que se encontre em um verdadeiro estado de desamparo. Para conseguir dar conta dessa vivência, o eu deverá realizar árduo trabalho de elaboração psíquica dessa violência interna.

Essa experiência subjetiva, que pode ser considerada de certo modo como traumática, nos fala de um estado de passividade frente à intensificação da força pulsional, por seu potencial de transgressão da capacidade egóica do sujeito. Quando esse traumático assume caráter desestruturante, uma das respostas possíveis é o mecanismo da passagem ao ato, tão frequente nessa travessia da infância à vida adulta (SAVIETTO, 2007).

Vale aqui distinguir a resposta defensiva da passagem ao ato de outras formas de atuação, entre elas, o acting out.

Para Mayer (2001) o acting out constitui um ato determinando por elementos inconscientes, no qual subjaz um significado oculto, envolvendo o endereçamento ao outro. O autor traz como exemplos desse mecanismo o fenômeno da transferência, os atos falhos e os lapsos da memória.

As passagens ao ato funcionam como verdadeiras descargas de evacuação de uma quantidade excessiva de energia pulsional:

[...] o sujeito se precipita numa ação extrema que pressupõe uma ruptura e uma alienação radicais com desmoronamento de toda a mediação simbólica (MAYER, 2001, p. 92-93).

Cardoso (2010) sublinha que a passagem ao ato é um mecanismo de resposta a uma invasão de um pulsional desligado que adentra o eu. Invadido pelo excesso e sem recursos para elaborá-lo, o apelo ao ato violento seria uma tentativa para contenção dessa invasão, que põe em risco a integridade narcísica e o sentimento de continuidade de si.

Segundo Savietto (2006), as passagens ao ato implicam inversão da posição passiva em ativa, um dos destinos elementares da pulsão. Trata-se da busca por parte do ego de dominar o excesso pulsional, o trabalho de representação estando, no caso, impossibilitado.

Trata-se, assim, de uma resposta defensiva de caráter precário, a qual sinaliza para uma situação de passividade egoica, de desamparo frente à irrupção do excesso pulsional.

Como sabemos, a adolescência comporta mudanças que podem ser sentidas pelo sujeito como violentas, reativando experiências subjetivas ligadas ao sexual o que, como apontamos acima, possui dimensão necessariamente traumática, de um ponto de vista constitutivo.

Consideramos que a prática da escarificação surge num contexto em que as representações do corpo púbere modificado e ambivalente atingem as relações corpo/psique e eu/outro.

A entrada na adolescência exige um trabalho de ‘re-ligação’ nem sempre suscetível de ser realizado, ocasionando muitas vezes o acionamento de defesas primárias. Assim, ao se escarificar, o jovem parece tentar recuperar o controle de sua existência, fazendo uso do seu masoquismo erógeno, materializando no corpo esse sofrimento de/por existir (MATHA, 2010).

O ato de se cortar traz consigo a tentativa de marcar um limite para as fronteiras de um interior mal definido e de uma alteridade que ficou precária por meio de um agir compulsivo direcionado à realidade do corpo (DOUVILLE, 2004).

Segundo Dargent e Matha (2011), o ato de escarificação interroga-nos especialmente sobre a relação entre corpo e psiquismo. A singularidade desse tipo de atuação é o fato de o registro do corpo físico estar situado no centro da questão. Sublinham ainda as autoras que a utilização do corpo pelo adolescente, mesmo quando se trata de um corpo atacado, pode ser considerada paradoxalmente como busca de reapropriação de si e do controle das novas excitações surgidas nessa experiência subjetiva de radical transformação.

Frente à passividade das mudanças pubertárias, a utilização do corpo e de sua superfície surge como possibilidade de reversão dessa situação interna: “o corpo advém como vínculo de expressão” (DARGENT; MATHA, 2011, p. 116).

A convocação atuada ao corpo vem apaziguar as pulsões excessivas. O eu faz apelo ao corpo como forma de restituição dos limites entre mundo externo e interno, onde a pele possui a função de paraexcitação contra o excesso de sofrimento psíquico.

Conforme pontuam Dargent e Matha (2011), o recurso à dor – que coloca o sofrimento na superfície do corpo, local onde ela é visível e controlada – possibilita, de certo modo, a restauração das fronteiras entre corpo e psiquismo e o controle do objeto. É precisamente essa erotização do corpo por meio da dor que permitiria salvar o psiquismo do sujeito de um risco de economia psíquica desobjetalizante.

Ao abordar a questão dos traumatismos primários tendo em vista sua estreita relação com o mecanismo da compulsão à repetição, sustenta Roussillon (1999) que os traços do evento traumático clivados no espaço psíquico podem nele retornar em forma de ato, já que não vieram a ser simbolizados.

Esse modo de funcionamento psíquico diz respeito a um regime situado aquém do principio de prazer/desprazer, não sendo de natureza representacional: é através desse recurso ao ato defensivo que esses elementos se exteriorizam, reproduzindo paradoxalmente o estado traumático.

Portanto, a repetição do ato da escarificação em seu aspecto potencialmente compulsivo aponta para experiências subjetivas não passíveis de simbolização. A passagem ao ato nesses casos específicos busca dominar a irrupção das marcas do traumático circunscrevendo-as pela via da dor física (DARGENT; MATHA, 2011).

 

Apelo ao corpo e falência na elaboração psíquica

A apresentação do corpo e no corpo dos vividos internos nos interroga sobre a questão dos limites do trabalho psíquico, em sua vertente radical. Ao mesmo tempo que o caráter precário da elaboração psíquica se evidencia através da ausência de associações, do vazio de linguagem, da falta de produção fantasística, os registros sensoriais são invocados. O corpo que trazemos à cena, aqui, é um corpo apresentado em lugar de representado, situado aquém do processo de simbolização.

Tostes (2005, p. 23) afirma que

[...] o “corpo sensível” do paciente, que se apresenta e se representa na clínica, talvez seja a via possível para aceder à “memória corporal”, constituída de fragmentos de impressões sensoriais do início da vida [...] Há, portanto, uma convocação do corpo a ser levada em conta na maioria das experiências subjetivas: seja o corpo da representação dos sintomas neuróticos, seja o corpo da vida cotidiana normal; ou ainda o corpo da apresentação do “irrepresentável” da pulsão de morte (grifo nosso/do autor).

É a partir do corpo que o vivente entra em contato com o mundo e com a percepção de sua experiência no mundo. O corpo, ou ainda, a superfície corporal é o espaço de onde se originam as sensações (de prazer e de dor), as quais irão informar o eu sobre sua própria existência.

Assim, os sentidos (o tato, a audição, a visão) promovem a troca entre o interno e o externo a si, como intermediários mais elementares da relação com o outro. Ao mesmo tempo, a superfície corporal permite a delimitação necessária para a diferenciação entre o dentro e o fora.

Uma sensação de dor em um órgão interno é diferente quando a pele orgânica recebe um arranhão, ou mesmo quando o próprio vivente se toca. A experimentação de tais sensações e, sobretudo, a diferenciação dessas sensações a partir da percepção corporal, é condição fundamental para a própria existência psíquica.

De acordo com Nunes (2006, p. 16),

Tocar-se, ver-se, sentir-se, provar-se e ouvir-se, como afirma Didier Anzieu (1989), se estabelecem como condições prévias indispensáveis antes de nos podermos pensar como seres pensantes, ato reflexivo por excelência que exerce papel fundador em todo o processo de estruturação subjetiva. Assim, esse instrumento corpo se apresenta como o lugar-fonte da nossa reflexividade. A possibilidade de tocar-se, sentir-se, provar-se, situa, então, a experiência corporal como algo básico, como possível antes mesmo da percepção de um eu corporal, o que não deixa de caracterizar o espaço somático como um espaço primordial do psiquismo (grifo nosso/do autor).

A concepção de corpo aqui convocada diverge completamente da antiga concepção dualista mente/corpo, verificada tanto na tradição filosófica. Esse corpo do qual tratamos foge também da concepção médica que o reduz aos registros do anatômico e do biológico.

Isso porque aqui estariam os registros desejante e pulsional do corpo, irredutíveis que seriam ao conceito de organismo (BIRMAN, 1999, p. 58).

O psiquismo é sobretudo possível porque existe um corpo. E, de acordo com Birman (1999), o corpo é atravessado por forças pulsionais que lhe são irredutíveis, sendo permeado inteiramente pela alteridade. Sua constituição se dá em ruptura com a natureza. Há um corpo-sujeito que se implica mutuamente através do campo pulsional. É, portanto, a emergência do pulsional que irá engendrar a atividade psíquica, a partir de sua exigência de trabalho.

A função do aparelho psíquico, conforme nos mostra Freud em Além do princípio de prazer ([1920] 2006), é justamente controlar o excesso pulsional, promover a ligação psíquica, inserir as representações em cadeias associativas. Quando o pulsional se apresenta em excesso, essa dimensão traumática é evidenciada pela impossibilidade de inscrição psíquica; consequentemente, pode ocasionar o apelo à esfera do corpo daquilo que não pôde ser simbolizado. A relação que aqui se trava é, desse modo, menos de dependência ou dominação da mente sobre o corpo, mas antes de um corpo que não passou a ser palavra, isto é, que não pôde ser representado.

Ressaltamos, então, que o contexto da segunda tópica freudiana, levando em conta a compreensão da pulsão e do trauma elaborados nesse período da década de 1920, traz em seu entorno de forma mais explícita o corpo pulsional enquanto campo de expressão. As impressões traumáticas são, assim, inscritas no corpo e irrompem também no corpo quando o trabalho de representação não é realizado.

Nesse ponto, vale retomar brevemente o processo de constituição do eu para focarmos na estreita articulação entre o corpo e esta instância. No texto de 1923, O eu e o id, Freud define o eu como

[...] primeiro e acima de tudo, um ego corporal; não é simplesmente uma entidade de superfície, mas é, ele próprio, a projeção de uma superfície (FREUD, [1923] 2006, p. 39).

Isso é dado em especial pelo modo de sua constituição e terá certamente uma relação tanto na sua função exercida no aparelho psíquico quanto em sua atuação sobre o sujeito. Já sabemos que o terreno do ego não é coextensivo ao terreno da consciência.

Inclusive, Freud leva o componente inconsciente do eu ao extremo quando estipula que as raízes do eu estariam repousadas no id:

É fácil ver que o ego é aquela parte do id que foi modificada pela influencia direta do mundo externo, por intermédio do Pcpt-Cs; em certo sentido, é uma extensão da diferenciação de superfície. Além disso, o ego procura aplicar a influência do mundo externo ao id e às tendências deste, e esforça-se por substituir o princípio de prazer, que reina irrestritamente no id, pelo princípio de realidade. Para o ego, a percepção desempenha o papel que no id, cabe ao instinto (FREUD, [1923] 2006, p. 38-39).

Vemos, então, de maneira explícita como o eu é constituído por uma diferenciação do id a partir de seu contato com a realidade externa. Ele precisa se modificar para responder às demandas do mundo, além de proteger o próprio aparelho psíquico de uma possível invasão.

Sendo assim, o eu também é elementar para a diferenciação de um espaço externo e um espaço interno; considerando que o próprio psiquismo será constituído por relações intrapsíquicas das instâncias.

Além do papel dessas experiências sensórias, base essencial do funcionamento psíquico, Freud aponta igualmente para o papel da dor como a modalidade através da qual chegamos à ideia de nosso corpo ([1923] 2006, p. 39). A dor passa a ser, então, um sinal, “uma via para a assunção do corpo próprio e, portanto, para a coesão entre o eu e o corpo” (FORTES, 2013, p. 289).

A vivência de dor seria paradigmática do narcisismo e da constituição da ideia de corpo próprio. A sensação de dor vem se associar a certas representações, garantidas por percepções externas às sensações e afetos (percepções internas). A ligação entre percepções funciona como experiência de unificação na vida do aparelho psíquico a partir da qual ele vem aceder a uma autopercepção de sua organização. A dor constituiria uma forma depurada do sentimento de ser, já que possibilita a emergência da consciência de um eu-corporal (NUNES, 2012, p. 34)

O vivido do corpo seja através da dor ou da experiência de prazer, seja através de sua experimentação sensória do mundo através dos órgãos do sentido, garante ao vivente a emergência da percepção de si ao mesmo tempo que serve de modelo para a experiência subjetiva.

 

O apelo à dor na prática da escarificação

Em sua relação com a dor, o corpo adquire um estado de concretude. Segundo Fortes (2013), a dor, seja física, seja psíquica, pode funcionar como índices que apontam a presença do corpo. A autora chama a atenção para a presença dessa relação nos quadros psicopatológicos atuais, como a hipocondria, a dor física crônica e as automutilações.

No que refere especificamente à prática automutilatória da escarificação, parece existir a necessidade por parte do sujeito de se autoinfligir uma dor corporal para se apropriar de sua existência. A dor e o desprazer também são importantes para a constituição da noção de corpo próprio.

Freud ([1923] 2006) afirma que a maneira pela qual adquirimos um novo conhecimento de nossos órgãos por ocasião de doenças dolorosas talvez seja um protótipo da maneira pela qual, de forma geral, chegamos à representação de nosso próprio corpo. Portanto, sentir dor informa o eu sobre a existência de um corpo constituído de órgãos, o que permite a representação interna do próprio corpo.

Ao abordar essa questão em Inibição, sintoma e angústia Freud ([1926] 2014, p. 12) declara:

[...] é sabido que, ao sentir dor em órgãos internos, temos noções espaciais e de outro tipo das partes do corpo envolvidas, que normalmente não são representadas na imaginação consciente.

Além de assinalar a presença do corpo, a dor pode vir a ser um caminho de apropriação dele.

Entretanto, Fortes (2013) pontua que a apropriação do corpo não pressupõe a sua unificação: o conhecimento dele pode ser obtido através de suas partes, de um corpo fragmentado que está relacionado com o corpo erógeno.

A autora acrescenta:

[...] a dor oferece a possibilidade de apropriação do corpo, mas mantendo neste o seu caráter fragmentário [...] ao apontar a dor como índice de conhecimento geral do corpo, Freud não faz deste uma entidade unificadora, mantém a referência a ele enquanto constituído por partes (FORTES, 2013, p. 292).

Retomando nossa análise sobre essa problemática dentro do contexto da adolescência, a emergência do sexual pubertário vem novamente reativar os conflitos anteriores narcísicos e edipianos com as figuras parentais. Esses vividos impõem ao sujeito a necessidade de se separar dos objetos primários, mas ao mesmo tempo a de se manter ligados a esses primeiros objetos de amor. Esse conflito também provoca angústias paradoxais, de abandono e, ao mesmo tempo, de invasão por parte do objeto (MATHA, 2010).

O recurso ao ato de escarificação, na análise que aqui propomos, parece-nos, inclusive, especialmente relacionado a uma problemática de separação, vinculada, por sua vez, a uma vivência traumática de indiferenciação com o objeto primário.

Segundo Douville (2004), o ato da escarificação na adolescência pressupõe um sujeito que se percebe internamente invadido pela presença onipresente do outro, o que tende a ativar uma angústia de despersonalização. Ao se escarificar, o jovem tenta recuperar o controle sobre sua existência materializando no corpo esse sofrimento de existir.

O ato de se cortar traz em si a tentativa de se marcar um limite no âmbito das fronteiras de um interior mal definido e de uma alteridade cuja interiorização se revelou precária. Há, nesse caso, a tentativa de expulsão do objeto interno, de sua face irrepresentável, por meio de um agir compulsivo direcionado à realidade do corpo.

É como se a marca corporal – a exibição de uma pele com cicatrizes – fosse um mecanismo de sobrevivência, de uma maneira [...] de se singularizar, de ter o sentimento de uma apropriação de si mesmo e de diferenciação do objeto materno (ANDRADE; HERZOG, 2013, p. 145).

Essas marcas na pele são autoinfligidas a partir de uma ação dolorosa. Dessa maneira, as escarificações dizem respeito a uma experiência de dor. Os adolescentes que se escarificam têm seu eu impelido por um forte impulso de rompimento com a irrupção de um excesso pulsional que transborda o seu espaço, e o ato é uma forma de apaziguar essa invasão, onde a dor parece possuir um papel “autocalmante”, apontando para a dimensão erógena do corpo fragmentado (MATHA, 2010).

Ao tentar recuperar os limites entre o externo e o interno, o eu opera um processo de regressão narcísica em relação ao seu corpo: a pele funciona como escudo protetor frente à dor psíquica. Essa regressão narcísica ao nível do corpo físico permite que a dor venha circunscrever a dor psíquica, possibilitando, assim, sua materialização possibilitando certo contorno. Daí sua função “autocalmante”, embora de caráter transitório, uma vez que o ato de se cortar tenderá a incessantemente retornar, entrando no campo da compulsão (MATHA, 2010; RIOULT, 2010).

Assim, a convocação da dor, cometida contra si mesmo, pode ser considerada como recurso extremo de luta, como última defesa contra uma angústia de despedaçamento e desaparecimento de si, visando a recuperação do controle psíquico. Por meio da dor, tenta-se a retomada do sentimento de continuidade de si e de domínio do objeto interno.

Conforme assinala Fortes (2013), a dor vem aqui como um sinal que não apenas indica a presença do corpo, mas também aponta para uma maneira de se reapropriar dele dado que, na adolescência a imagem corporal é acometida por grandes transformações.

A dor é uma forma de o sujeito poder habitar seu corpo, apropriar-se dele e reconstruir seu eu corporal. Anzieu (1989) comenta que os atos automutilatórios podem ser tomados como tentativas drásticas de manter os limites do corpo e do eu, restabelecendo o sentimento de coesão.

Ao se cortar, o adolescente tenta se proteger de certas angústias de caráter psicótico, como o despedaçamento, uma vez que esse ato permite, ainda que precariamente, encontrar os limites do corpo e escapar a uma invasão mortífera de uma alteridade que ficou mal assimilada.

Percebemos, assim, que a dor como forma de concretização desse sofrimento traz a possibilidade de certo controle sobre do corpo “invadido”, permitindo ao sujeito uma apropriação do seu corpo e de sua existência.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Aline Gonçalves Demantova
E-mail: alinedemantova@gmail.com

Recebido em: 01/08/2016
Aprovado em: 20/09/2016

 

 

SOBRE AS AUTORAS

Marta Rezende Cardoso
Psicanalista.
Doutora em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise - Universidade Paris Diderot (França).
Professora Associada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica e Departamento de Psicologia Clínica).
Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental.
Pesquisadora do CNPq.

Aline Gonçalves Demantova
Psicóloga. Mestranda em Teoria Psicanalítica pela UFRJ.
Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Gabriela Domingues Caetano Soares Maia
Mestranda em Teoria Psicanalítica pela UFRJ.
Bacharel em Filosofia pela UNICAMP.
Aluna da Formação em Psicanálise no Centro de Estudos Antonio Franco Ribeiro da Silva, vinculado ao Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção RJ.

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