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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.46 Belo Horizonte dez. 2016

 

 

“Aceita que dói menos”

 

“Accept that it hurts less”

 

 

Sara Bezerra Costa Andrade

I Universidade Tiradentes
II Círculo Psicanalítico de Sergipe

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo se propõe refletir numa perspectiva psicanalítica sobre a expressão “aceita que dói menos”, popularizada na mídia e nas redes sociais, no sentido de pensar sobre as reações psíquicas que ocorrem frente às perdas e à dor no desenvolvimento psíquico do sujeito a partir de como ele compreende a realidade.

Palavras-chave: Psicanálise, Perda, Dor, Realidade.


ABSTRACT

In a psychoanalytic perspective, this paper aims to reflect about the popular saying in the media and social networks “Accept that it hurts less” in the sense of thinking about the psychic reactions which occur in the face of loss and pain in the individual psychic development from how the person understands the reality.

Keywords: Psychoanalysis, Loss; Reality, Pain.


 

Considerações iniciais

“Aceita que dói menos” se transformou numa expressão do cotidiano para se referir a perdas, disputas, inveja e principalmente traições. Foi essa temática que levou muitos programas de TV, compositores e cantores a se debruçar sobre as mais variadas formas de significar e elaborar as perdas. As letras das músicas mais tocadas ganharam uma enorme proporção na mídia e nas redes sociais, embora muitas vezes revelem provocação e até ironia, oferecendo um sentido de se conformar para sofrer menos e evitar problemas psicológicos.

Como todo clichê, nem sempre se fala algo por entender o que realmente significa. Fala-se porque todo mundo está falando. Contudo, aceitar, no sentido de entender a realidade como ela se apresenta em suas contradições, constitui um processo de elaboração, por exemplo, de algum tipo de perda, o que não significa dizer que a pessoa não irá sofrer mais, todavia chegou a uma compreensão da realidade.

Com relação a isso, a psicanálise traz uma perspectiva de compreensão sobre a perda tanto no sentido de traduzir a condição psíquica em que o sujeito se encontra, quanto de aceitá-la em um processo de elaboração de luto.

 

Significados do aceitar

A palavra “aceitar” pode apresentar significados bastante semelhantes à palavra “admitir”, conforme explica Rocha (2009). Fala de aceitar no sentido de receber o que lhe é oferecido; conformar-se com; aprovar, consentir, admitir. Refere-se a admitir como dar acesso; concordar; dar entrada a; receber; permitir; aceitar; contratar. Admitir e aceitar terminam por ser empregadas quando identificada alguma situação de conformidade e, por vezes, quando se percebe que não existe outro caminho senão aceitar a realidade.

Kübler-Ross (1996) revela um significado de aceitar a partir de suas ideias sobre a morte, em que a aceitação faz parte de um processo de luto. Nesse estágio, a pessoa já não experimenta o desespero e não nega a sua realidade. As emoções não estão mais tão à flor da pele, e a pessoa se prontifica a enfrentar a situação com consciência das suas possibilidades e suas limitações. Também traz, ao contrário de aceitação, a negação que, segundo a autora, é um mecanismo de defesa temporário do ego contra a dor psíquica diante da morte. A intensidade e a duração dos mecanismos de defesa dependem de como a própria pessoa que sofre e as outras pessoas ao seu redor são capazes de lidar com essa dor.

No contexto do dito que se tornou popular, referir-se ao famoso “aceita que dói menos” é o mesmo que se conformar, admitir, assim como descreve o dicionário supracitado.

No entanto, o sentido que nos interessa é o de admitir uma realidade, sem fugir, sem negá-la. Isso pode demonstrar que aceitar não é admitir na superficialidade que perdeu, para amenizar o sofrimento. Aceitar, no sentido de compreender a realidade como ela se apresenta, envolve um caminho, um percurso psíquico, um processo de luto com vivências de dor, mas com uma possibilidade de recomeço.

 

O princípio da realidade e a realidade psíquica da perda

O entendimento do princípio de realidade produz transformações no ego: de um ego-prazer dominado pelo princípio de prazer-desprazer, forma-se um ego-realidade, como descreve Freud ([1911] 2006, p. 241):

Tal com o ego-prazer nada pode fazer a não ser querer, trabalhar para produzir prazer e evitar o desprazer, assim o ego-realidade nada necessita fazer a não ser lutar pelo que é útil e resguardar-se contra danos.

Com isso, o prazer momentâneo e incerto é abandonado por um prazer seguro e tardio. Percebe-se que, de um lado, o princípio de realidade busca a satisfação na realidade; de outro lado, o princípio de prazer continua a reger a instância inconsciente, a qual funciona de acordo com as leis do processo primário e apresenta outra realidade, isto é, as fantasias.

Klein (1940) descreve que o medo da perda, ou a perda em si, é como se fosse uma desintegração do ego. A luta contra essa perda, seja qual for a instância (o abandono, o distanciamento, ou até mesmo a morte do objeto amado), desequilibra o funcionamento psíquico, desintegra o ego, e o esforço de reintegração é um modo de preservar o ego.

No luto, o indivíduo se depara não somente com a perda do objeto, mas com uma ameaça à sua própria integridade. A perda significa ao enlutado perder parte de seu ego, do seu Eu, o que gera um desequilíbrio psíquico, além de ter que canalizar a libido, antes investida no objeto perdido, em um novo objeto.

Freud (1920) explica sobre a dificuldade de os processos inconscientes concordarem com o teste de realidade, uma vez que dependem da compreensão dos fenômenos psíquicos.

A diferenciação entre fantasias inconscientes e lembranças inconscientes, por sua vez, ocasiona um desvio da realidade e um apego ao objeto perdido, enquanto o princípio de realidade atua através das pulsões de autopreservação do ego.

Embora não abandone a obtenção de prazer, esse princípio pede um adiamento da satisfação, para uma obtenção de prazer no futuro. Em contrapartida, o princípio de prazer, está ligado aos impulsos sexuais, à busca um prazer imediato e pode ser visto como perigoso e ineficaz para a autopreservação do ego.

 

Aceitar a realidade da perda como processo de luto

Negar a realidade, quando é dolorosa, é assumir, como acontece com muitas pessoas, uma atitude radical de se distanciar dos fatos. Por outro lado, aceitar é o mesmo que admitir a perda e compreender a necessidade de passar por estados de negação, revolta, barganha e depressão até chegar à aceitação característica da elaboração do luto.

Nessa perspectiva, Bowlby (1993) observou alguns estados como o entorpecimento, em que se tem o choque como reação imediata e não se aceita a notícia da perda; o anseio e a busca pela pessoa perdida com sentimentos de raiva; a desorganização e o desespero até se aceitar gradualmente a perda com a percepção de que é necessário reconstruir a vida.

Freud ([1917] 2006) declara que o processo de luto é instalado para a elaboração de uma perda, no desligamento da libido a cada uma das lembranças e expectativas relacionadas ao objeto perdido, e o ego se vê envolvido em uma tarefa psíquica difícil, perdendo uma grande quantidade de energia à sua disposição, tendo que reduzir o consumo dessa energia em muitos pontos ao mesmo tempo, por isso é considerado um processo lento e penoso.

Diante de uma situação dolorosa, ocorre uma catexia voltada ao objeto do qual se sente falta ou que está perdido e não existe mais. Enquanto o ego se vê absorvido no processo de luto por meio da hipercatexia, a sua elaboração ocorre sob a influência do teste de realidade, essencial na compreensão de que esse objeto não existe mais.

Kovács (1992) fala que a perda e a sua elaboração são elementos contínuos ao longo do desenvolvimento humano. Assim, a perda pode ser chamada de morte consciente ou morte vivida. A autora se refere ainda à morte como perda e fala em primeiro lugar de um vínculo que se rompe de forma irreversível, sobretudo quando ocorre perda real e concreta.

Nessa representação de morte estão envolvidas duas pessoas:

[...] uma que é perdida e a outra que lamenta esta falta, um pedaço de si que se foi (KOVÁCS, 1992, p. 150).

 

O processo de perda e a dor

Conforme Freud (1926), constata-se a necessidade que alguns indivíduos têm em não se deparar com a perda, pois isso requer um investimento de energia psíquica que talvez não esteja ao alcance de uso no devido momento ou talvez a estrutura psíquica do individuo não suporte lidar com o vazio e a dor.

Nesse sentido, o luto é um processo doloroso, e a justificativa para isso seria encontrada quando tivessem condições de apresentar uma caracterização da dor, que na dimensão mental, é, por assim dizer, a própria reação real à perda do objeto.

A reação do eu contra o trauma provocado pela perda se dá através de dois movimentos, segundo Nasio (1997, p. 28):

[...] uma aspiração súbita da energia que o esvazia – movimento de desinvestimento – e a polarização de toda essa energia sobre uma única imagem psíquica – movimento de superinvestimento.

A dor mental é resultante de um duplo processo defensivo: o eu não investe, quase que totalmente, nas suas representações e passa a superinvestir numa única representação do amado, que não existe mais. Os dois movimentos de defesa contra o trauma produzem dor. Mas se a dor do não investimento toma uma forma clínica de uma inibição paralisante, a dor do superinvestimento é oprimente:

[...] assim, a dor psíquica é um afeto que exprime o esgotamento de um eu inteiramente ocupado em amar desesperadamente a imagem do amado perdido. O langor e o amor se fundem em dor pura (NASIO, 1997, p. 29).

O autor esclarece que o eu está dividido entre dois estados: por um lado, concentrado e contraído na figura do amado; por outro, sem forças e empobrecido. Entretanto, existe uma outra dissociação – que é ainda mais dolorosa – um outro motivo para a dor de amar.

Com tudo isso, ele conclui:

A dor é a desorientação que sentimos quando, tendo perdido um ente querido, nós nos encontramos diante da mais extrema tensão interna, confrontados com um desejo louco no interior de nós mesmos, com uma espécie de loucura interior que fica adormecida em nós, até que uma perda exterior venha arrancar os seus gritos de desespero (NASIO, 1997, p. 52).

 

Considerações finais

As expressões que surgem ao longo da nossa cultura vão ganhando sentidos no cotidiano das pessoas e acabam por fazer parte da sua vida e do seu desenvolvimento psíquico. Foi o que aconteceu com o “aceita que dói menos”. Essa expressão parece contraditória, pois afirmar que aceitar as perdas evita um sofrimento maior pode levar aqueles que sofrem com perdas, separações, traições, entre outros exemplos, a pensar apenas no lado conformista da situação, quando o que ocorre, na verdade, é a tentativa, em alguns casos, de fugir da dor e não aceitá-la.

Entendendo assim, a psicanálise esclarece que a capacidade de elaboração psíquica do sujeito existe desde a infância e não é um processo simples, pois se adaptar às novas realidades produzidas diante das perdas servirá às experiências futuras que se constituem a partir de modelos de estados psíquicos que são incorporados na mente.

Com isso, pode-se concluir que, embora a maioria dos bordões derivados do sofrimento psíquico evoquem sentidos simplistas, para a psicanálise, aceitar a realidade significa, sim, pensar que haverá sofrimento, além de um trabalho psíquico complexo e profundo de elaboração.

 

Referências

BOWLBY, J. Angústia e separação: revisão da literatura. In: ______. Separação: angústia e raiva. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1993. Apêndice 1, p. 389-411.         [ Links ]

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NASIO, J.-D. O livro da dor e do amor. Tradução de L. Magalhães. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.         [ Links ]

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Endereço para correspondência
E-mail: sarabc_andrade@hotmail.com

Recebido em: 28/11/2016
Aprovado em: 05/12/2016

 

 

SOBRE A AUTORA

Sara Bezerra Costa Andrade
Psicóloga graduada pela Universidade Tiradentes (UNIT), Aracaju (SE).
Candidata à formação em psicanálise pelo Círculo Psicanalítico de Sergipe (CPS).

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