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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.47 Belo Horizonte jul. 2017

 

 

Receitas pseudopedagógicas para infantilizar a cultura1

 

Pseudo-pedagogical recipes to infantilize the culture

 

 

Marília Etienne Arreguy

I Universidade Federal Fluminense
II Association Internationale des Interactions de la Psychanalyse
III Universidade de Paris 8

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente texto parte do encontro com a autora Dominique Ottavi (2011) e da tradução de seu texto Mythe et altérité enfantine , bem como da orientação de formandos em pedagogia, que defendem a importância do uso dos contos de fadas no processo de aprendizagem. Ottavi põe em cheque a asserção aparentemente indubitável sobre o uso pedagógico dos contos de fadas, tomada de modo recorrente pelas famílias e professores como forma de promover o ‘desenvolvimento' da criança. Seguindo as deduções teóricas da autora, ao criticar uma espécie de postulado take for granted na educação infantil, ou seja, o recurso aos contos de fadas como privilegiado meio psicopedagógico, evidencia-se sua função de incutir medo, repressão sexual e preceitos morais datados; algo que carece de maior reflexão. É pertinente levantar certa desconfiança a respeito do mundo encantado e aterrorizante dos contos, uma vez que podem servir como forma de alienação e de encobrimento das angústias dos próprios adultos. A falácia de apostar em uma suposta “primitividade” do pensamento infantil parece preconizar, de forma subterrânea e inconsciente, um infantilismo na própria cultura.

Palavras-chave: Contos de fadas, Medo, Primitivismo, Pedagogia, Psicanálise.


ABSTRACT

The present text is based on the meeting with the author Dominique Ottavi (2011) and the translation of his text Mythe et altérité enfantine , as well as the orientation of trainees in pedagogy, who defend the importance of the use of fairy tales in the learning process. Ottavi puts into question the seemingly undoubted assertion about the pedagogical use of fairy tales, which is recurrently taken by families and teachers as a way of promoting the "development" of the child. Following the theoretical deductions of the author, in criticizing a kind of postulate take for granted in Children's education, that is, the use of fairy tales as a privileged psychopedagogical means, it is evident its function of instilling fear, sexual repression and dated moral precepts; something that needs further reflection. It is pertinent to raise a certain mistrust regarding the enchanted and terrifying world of short stories, since they can serve as a form of alienation and cover-up of the anguish of the adults themselves. The fallacy of betting on an alleged "primitiveness" of infantile thought seems to preach, in a subterranean and unconscious way, a infantilism in one's own culture.

Keywords: Fairy tales, Fear, Primitivism, Pedagogy, Psychoanalysis.


 

As questões teóricas colocadas pela professora Dominique Ottavi (2011) no artigo Mythe et altérité enfantine [Mito e alteridade infantil], a respeito do uso pedagógico dos contos de fadas, merecem ser mais discutidas nos meios escolar e psicanalítico. Nos cursos de pedagogia ditos mais progressistas, que adotam o brincar e o lúdico como ícone da formação ligada ao ‘aprender com prazer', toma-se como dado o fato de que os mitos, as fábulas e os contos feéricos são importantes para o desenvolvimento infantil.

No entanto, essa aposta pedagógico-literária tem base numa espécie de pensamento arcaico, cujo fundo mitológico edulcorado pode também ser uma forma privilegiada de alienar crianças num dado imaginário cultural. Além do conteúdo das histórias mágicas e feéricas, a repetição incessante de certos contos em diferentes arranjos com final feliz, mais as lições de moral ali explícitas e implícitas, parecem reforçar uma inconsciência sobre coisas que realmente poderiam trazer algum conhecimento sobre a cultura ou sobre o próprio desejo.

O sujeito fica, então, fortemente aderido ao imaginário fantasístico em detrimento de formas sublimatórias da pulsão de saber e de pensar. No entanto, seria dada como inquestionável a ‘eficácia' dos contos para a elaboração dos afetos.

No texto Além do princípio de prazer, Freud ([1920] 1996) teorizou sobre o processo pelo qual a criança busca integrar afetos traumáticos através de brincadeiras repetitivas.

O brincar, quando ligado a um trauma severo, é representado por uma ‘ compulsão à repetição', que, de algum modo, permite a atuação e, concomitantemente, a simbolização do desejo de separação e, até mesmo de morte, em relação aos pais, rivais e “maus objetos” ( Klein , [1957] 1991).

A integração desses afetos destrutivos, contudo, pode ser demasiadamente custosa ao universo infantil, na medida em que despende um quantum de energia que vai além da intensidade suportável pela economia psíquica infantil.

Meu argumento prossegue no sentido de distinguir o que é um recurso próprio da criança – ainda que seja através de uma atuação agressiva e/ou destrutiva na brincadeira e no jogo – da escolha de dar um privilégio à pulsão de morte por parte dos adultos com o uso pedagógico de histórias miraculosas e/ou atemorizantes.

Por que seria tão importante legitimar a educação com base em histórias altamente idealizadas?

Seria possível abrir mão de educar através do medo de e do apego a coisas que, embora estranhamente familiares ( Freud , [1919] 1996),2 não existem ou não fazem sentido nem mesmo para os adultos mais esclarecidos e contemporâneos?

Com efeito, ainda se cultua e se faz apologia corrente às histórias fantásticas de príncipes e princesas que, por vezes, ganham tons de mandato ao imaginário infantil dado seu caráter prescritivo no campo inconsciente.

É óbvio que os contos de fadas possuem seu valor literário e artístico. Essas histórias, mais do que distraem, atraem as crianças tornando-as presas a certas fantasias compulsivas, logo, deixando livre o tempo dos adultos para gozarem de seus próprios interesses. Essa forma de ‘se livrar' das crianças talvez se constitua ironicamente como o maior ‘valor cultural' dos contos de fadas.

No limite, esses contos também distraem os próprios adultos, incapacitados de enfrentar um mundo profano, mais próximo da realidade factual com todos seus desvelos. Também não é à toa o grande sucesso de novelas e filmes de comédia romântica ‘enlatada', cujo pano de fundo moralista repete o script do interdito, que acentua a falta e aguça o desejo seguido de resolução apaziguadora no ‘final feliz'.

Em consonância a isso, enfatizo, não em oposição, estão os filmes de terror e as histórias estranhamente familiares que metem pavor em todos os que as escutam, mesmo sabendo que são apenas ficções e, ao mesmo tempo, costumam gerar um prazer sadomasoquista no espectador. A atratividade pelo (a)bjeto representada na ‘diversão' com os cult movies é a forma privilegiada em que a indústria cultural captura o gozo do sujeito pela via da angústia, veiculando uma forma catarse geradora de alienação3.

Um pouco intuitivamente, venho pensando sobre a relação entre o consumo de certos ‘produtos' culturais e a sociedade capitalística globalizada. A discussão aparece em cursos de formação de professores na Universidade Federal Fluminense tanto no nível da graduação quanto no mestrado e doutorado, muitas vezes, para transmitir a leitura psicanalítica acerca da ‘crueldade' das pulsões humanas ( Freud , 1919a; Derrida , 2001) e abordar a ‘desconstrução' ( Derrida , 2004) de estereótipos humanistas ancorados em certa ‘obrigatoriedade' de dar aulas divertidas, com ênfase em ilusões (psico)pedagógicas – já bastante criticadas por Lajonquière (2009) – expressas, por exemplo, na expectativa atribuída ao objetivo formativo de ‘lidar' melhor com os alunos, na nostalgia da palmatória ( Arreguy , 2014a), na crença, independentemente do gênero, no amor romântico ( Freire Costa , 1999), e, mais frequentemente, numa suposta certeza de que é preciso colocar limites nas crianças. Procuro, então, desmistificar essas ideias prontas, junto às hipóteses da psicanálise, apoiada no pensamento de nosso “mestre” em desiludir, Sigmund Freud.

Com o propósito de não levantar diretamente as tão conhecidas e perenes ‘resistências à psicanálise', de forma lúdica, transferencial e implicada, costumo dizer brincando que tenho vontade de processar judicialmente o Walt Disney, com a consciência de que o genial desenhista se esmerou na arte encantadora de alienar o desejo de crianças.

É evidente que não se poderia culpar o artista, tampouco La Fontaine, os Irmãos Grimm, ou a quem quer que escreva e reescreva, encene ou desenhe contos de fadas. Porém, em minha experiência clínica, vejo nitidamente o quanto, e por quanto tempo, uma mulher pode demorar para sair, e talvez jamais saia, da ilusão do príncipe encantado.

Trata-se do que Colette Dowling (2012) chamou, na década 1980, de “complexo de Cinderela”.4 Esse complexo não se trata simplesmente de uma psicopatologia de uma ou outra garota que foi abusada ou que possui um “falso self ” iludido por uma consciência frágil. Ele representa o ideal do ego ( Freud , [1921] 1996) de grande parte das mulheres, incutido de forma contínua, fantasística e falaciosamente na alma feminina desde tempos imemoriais, pela via tanto do mito quanto da tragédia.

Essa forma de ‘tocar o terror' nas mulheres vem sendo consolidada pelas religiões e, de certo modo, também comparece com sua moral e contribui para o uso pseudopedagógico dos contos de fadas, com demasiada ênfase na consolidação de estereótipos de gênero. Nossas meninas são criadas ouvindo essas historinhas de fadas em parte para continuarem a acreditar em uma espécie eufemismo quanto ao amor romântico, baseado numa ilusão coletiva em relação ao que seria o casamento perfeitamente idealizado.

Na contracorrente dessa lógica, Charles Albert (1980) produziu um escrito anarquista contundente, intitulado O casamento burguês; o amor livre, que ataca frontalmente as ilações piegas sobre as benesses do modelo de casamento monogâmico pequeno burguês . O autor critica abertamente o mercantilismo e a hipocrisia no amor forjado pela instituição do casamento enquanto interesse de classe. Embora pintado como idílico nos bastidores, muitas vezes a vida marital funciona como uma peça de terror atuada pelo casal nos bastidores de suas disputas íntimas.

A repressão desses fatos é difundida em forma de uma ilusão romântica, que preconiza a vivência simbólica desses afetos pela via dos contos de fadas. Típicos da narrativa de Perrault, esses contos remetem aos interditos da liberdade sexual em prol da prosperidade econômica fundada na relação monogâmica em que o ‘reino' do lar cabe ao recato das mulheres, ou seja, à sua prioridade na abdicação das pulsões em função de seus príncipes salvadores.

Nos contos, ao mesmo tempo em que se cria um final feliz embutido em uma série de preceitos morais, veicula-se uma gama de medos que interditam a sexualidade infantil de forma a preencher uma ideologia puritanista mal parada. Por exemplo: a bela adormecida “furou o dedinho e sangrou” na adolescência, então, teve que ficar “100 anos” dormindo, ou seja, sem amor, logo, sem sexo.

Na ‘lição' dos contos é melhor, portanto, para a menina ‘se preservar' da vivência ativa da sexualidade uma vez que essa escolha seria determinada por um destino funesto, tal como fora narrado há séculos, nos temas escritos em sua versão clássica por homens, desde as fábulas de La Fontaine, até os contos dos Irmãos Grimm e as histórias de fadas de Perrault.

Nas palavras de Corso & Corso (2006), há toda uma forma de definir papeis de gênero na alusão à posição feminina nos contos de fadas.

Tão lisonjeiros são esses contos para a beleza e os dons de suas jovens personagens femininas, que quem os aprecia mal percebe o quanto o julgamento é inclemente relativo ao resto das mulheres. Tantos elogios, em verdade, ocultam um número proporcional de críticas e preconceitos para com o sexo feminino, cuja face perigosa é explicitada com requintes, principalmente na figura da madrasta da Branca de Neve. De acordo com esses relatos, a jovem extrai seus encantos do fato de que ainda é inocente, portanto não sabe usar os ardis típicos da fêmea humana. Carente de poder formal, a mulher sempre foi vista maquinando formas sutis de exercê-lo, e esses são seus feitiços. [...] No conto da Bela Adormecida, a velha fada, com seu mau humor invejoso e nocivo, exemplifica o que resta de uma mulher quando a juventude a abandona. Os atrativos femininos seriam uma arma privilegiada de conquista de posição para uma mulher, como o envelhecimento a privaria destes, a mulher necessitaria recorrer a outros feitiços, os da bruxa. Um homem pode amar apaixonadamente uma princesa adormecida, aprisionada e passiva, mas quando a mulher desperta e perde a beleza inocente da juventude, resta a visão da sua verdadeira alma: poderosa, perigosa e ardilosa. Vemos então que, sob uma capa de elogio, essas histórias contêm um aviso de que todo cuidado é pouco com mães, sogras ou todo o tipo de mulher adulta. A mãe boa, que morre rapidamente na história de Branca de Neve e sai de cena na da Bela Adormecida, é muito menos expressiva do que a malvada. A boa índole está restrita às jovens e a uma que outra fada, mas as fadas boas jamais estão desacompanhadas de sua versão maligna. Essas histórias seriam, então, também um tratado sobre a relação de homens e mulheres com a feminilidade: seu preço, seu fascínio, a magia magnética de sua beleza, seus poderes e perigos ( Corso; Corso , 2006, p. 76).

São muitos os indícios dessas alegorias à maldição feminina nos contos. Marilena Chauí (1984) já deslindara essas bases repressivas da construção das histórias ditas ‘infantis' em seu livro feminista clássico Repressão sexual: essa nossa (des)conhecida. O jogo de palavras já no título dá uma noção de que algo é dito, mas não dito, pois camufla a realidade. Ela analisa a repressão sexual das mulheres em diversos contos de fadas, desvelando seu conteúdo subliminar, dissimulado em metáforas que interditam a autonomia da experiência sexual nas mulheres. ‘Morder a maçã', ‘furar o dedo', ‘perder o sapatinho', ‘ficar presa na torre' sugerem quase que invariavelmente o interdito da perda da virgindade a ser punida (Freud , [1916] 1996).

Essas críticas não são novas, porém não menos importante seria atualizá-las. Antes da filósofa, o “ enfant terrible ” da psicanálise, Sándor Ferenczi (1906; 1932), já havia denunciado a hipocrisia no trato dos adultos, pais e professores para com as crianças. Ele apontou os aspectos traumáticos relacionados ao que chamou de “desmentido”,5 ou seja, quando a criança, vítima de um abuso sexual (que podemos ampliar para toda e qualquer forma de violência por parte de um adulto), vê seu pedido de acolhimento e ajuda desqualificado por um terceiro, outro adulto, a quem ela recorre para contar o que sofreu. Esse adulto, normalmente a mãe, um(a) professor(a) ou irmã(o) mais velho(a), ao invés de legitimar seu relato, o desmente, como se não fosse verdade ou como se o fato relatado pela criança não tivesse valor.

Pois então, nos contos não se passaria algo semelhante, quando, em vez de se falar sobre os perigos e os prazeres da sexualidade humana, cria-se uma aura de ilusões, por um lado, de modo a inventar um mundo romântico idealizado praticamente impossível de se realizar e, por outro, a fim de meter medo e controlar o excesso pulsional de uma forma adaptativa hegemônica? A insistência na educação via contos de fadas não seria uma forma de desmentir a singularidade das paixões humanas pela via de uma falsa universalidade da experiência? Não seria simplesmente mais honesto falar para as crianças, sem grandes mistificações, sobre as implicações, complexas e, porventura trágicas, do erotismo, por exemplo, tratando da incomensurabilidade entre o gozo feminino e masculino?

É patente que a criança não vai entender uma linguagem adulta demasiadamente teórica. Aliás, há também adultos que não acompanhariam um nível de interlocução formal, pois permanecem num estágio cognitivo pré-operacional ou operacional concreto (Piaget , 1967) ou, mais provavelmente, porque têm bloqueios neuróticos quando se trata de falar da sexualidade.

Mas, como preconizou Freud ([1907] 1996) em um texto curto intitulado O esclarecimento sexual das crianças , é possível atuar com mais franqueza na educação infantil usando uma linguagem apropriada a cada idade ou ao desenvolvimento cognitivo e cultural de cada criança, de cada turma, principalmente, respeitando a necessidade e o desejo que as crianças exprimem em saber sobre o tema que quiserem levantar. Ou seja, é importante falar a partir da pergunta feita pela criança, de acordo com a etapa de desenvolvimento cognitivo (e também emocional) em que se encontra.

Acontece que, frequentemente os próprios adultos, pais e professores, têm mais dificuldade em lidar com a ‘verdade' da própria sexualidade do que as próprias crianças poderiam vir a ter. Mentem para as crianças sobre aquilo que não têm coragem de abordar pelo prejuízo daquilo que em si mesmos não querem saber.

Assim, torna-se mais fácil lidar com a mentira, com o segredo e com formas ilusórias do que falar mais abertamente não só sobre a sexualidade, mas também sobre política, sobre as falácias do amor e tantas coisas que se faz, que se vê ou se descobre os outros fazendo, mas não se quer assumir, denunciar ou enfrentar.

Acaba sendo mais fácil e ‘conveniente' aos próprios adultos educar através de anedotas literárias ou religiosas, com um alto grau imaginário, na medida em que asseguram as crenças e o modo de viver próprio do mundo adulto. Nesse sentido, o conto de fadas é um prato cheio, pois com sua aura estética representa recalques, desmentidos e forclusões coletivas de forma lúdica e, supostamente, inofensiva.

Não se trata aqui de ‘censurar' a leitura ou o recurso aos contos de fadas. No entanto, cabe criticar uma certa renúncia à realidade cotidiana, mesquinha, ou seja, de um nível de problemas da esfera microfamiliar, assim como o apagamento de discussões históricas mais amplas, já que implicam se defrontar com espinhosos fatos políticos. Afinal, as metáforas propostas enquanto véu espesso da realidade cotidiana nos contos de fadas não se restringem à interdição da sexualidade feminina.

Em termos específicos, por que acaso a maioria de nossos jovens de 20 a 30 anos não sabe sequer o que foi a ditadura militar brasileira de 1964 a 1984? Por que os jovens não querem saber de política e se dizem apolíticos (Arreguy, 2017)? Por que tantos grupos têm ódio aos homossexuais ou às mulheres que, francamente, se prostituem? Por que não observar que suas próprias mães podem viver décadas em casamentos infelizes simplesmente por conta de uma dependência financeira?

Simultaneamente, numa espécie de negação da realidade, jovens idolatram filmes românticos com roteiro de contos de fadas, filmes gore , cult movies e jogos de guerra, em que uma catártica economia de gozo é irrefutável. Questionar a idolatria aos contos de fadas, portanto, é uma forma de ampliar uma visão crítica sobre a sociedade em que vivemos.

Em tempos de avanço de projetos em que se restringe a liberdade de professores em falar sobre aquilo que sabem e percebem opressão histórica e sistêmica, traduzido no senso comum como a nova ‘escola da mordaça', é, portanto, fundamental demonstrar as mais diversas formas de mistificação da realidade sobretudo as adotadas no meio educacional. Se falar em política e sexualidade é tratar de ideologia, o que então representaria ensinar através dos contos de fadas?

Sem “jogar fora o bebê junto com a água do banho”, podemos creditar às crianças, aos jovens e aos adultos uma capacidade de interpretar e tomar posições autônomas tanto quanto às formas literárias mais ilusórias de conceber a realidade quanto às bandeiras políticas mais ‘radicais' em relação à história da humanidade. O que não se pode fazer é impedir o acesso às formas plurais de conhecer, retomando práticas de queimar os livros ou amordaçar as pessoas, tampouco idiotizar a cultura ao dar prioridade quase exclusiva à manutenção de crenças e fantasias mirabolantes.

Do mesmo modo que vivemos ‘ondas fascitoides' de tempos em tempos, construímos uma cultura infantil que precisa ‘temer' para poder aceder a uma certa realidade moral supostamente livre de falhas. É comum ouvir pais de crianças pequenas afirmarem: “mas as crianças têm realmente que ter medo” (sic). Nesse sentido, os contos são tidos como úteis para construir o medo infantil longe de uma ameaça de fato. Diz-se: “quando fechamos o livro ou acabamos a história, a criança se acalma, pois sabe que aquilo não é real” (sic).

No entanto, como coloca Ottavi (2011), ao evocar Freud e Wittgenstein, o terror que corre por baixo dos contos de fadas é absolutamente duradouro, pois se adere ao Real de nossas angústias. Ora, mais uma vez, não se trata aqui de dizer que as crianças não devem ter medo ou que poderiam viver num mundo hiper-realístico em que não haveria uma capa imaginária compartilhada como forma de composição ontológica face ao Real.

Contudo, a importância de questionar o uso pedagógico de histórias ilusórias, seja de teor atenuado, seja explicitamente trágicas é saber o porquê de tratar as crianças como se elas fossem sempre incapazes de fazer face à realidade incontornável, como se portassem exclusivamente certo primitivismo no pensamento.

Embora se deva preservar as crianças, não se pode reforçar sua ingenuidade com base em ilusões pseudorromânticas ou pseudoterroríficas, pela prerrogativa de camuflar fatos constitutivos de sua história, pela via tanto de segredos de família quanto de histórias oficiais em geral tendenciosas.

Apostar todas as fichas nessa forma de saber pode aprofundar um infantilismo cultural na medida em que acaba por tornar ipso facto as crianças ignorantes, não no sentido de estúpidas, mas insistentemente inconscientes e alienadas de aspectos subjetivos, sociais e históricos dos quais muitas vezes acabam sendo alijadas.

Dito de outro modo, podemos indagar: por que as famílias inventam tantas mentiras para lidar com seus filhos? Muitos pais e professores têm dificuldade em falar francamente com as crianças, impondo-lhes uma série de segredos sub-reptícios por vezes tão traumáticos quanto a realidade escamoteada, ou mais, pois privam a criança da própria capacidade de confiar nos adultos.

É comum observar, por outro lado, mães que falam de coisas indizíveis na frente de seus filhos, como se eles não estivessem ouvindo, como se fossem surdos ou como se fossem incapazes de qualquer nível de compreensão. Essa postura subestima o potencial cognitivo e desqualifica a afetividade das crianças. Fingir que as crianças não ouvem ou não entendem nada mais parece que uma projeção da própria incapacidade adulta de lidar com seus próprios afetos e, sobremaneira, com seus maiores temores.

Com inspiração nas palavras de Maurice Blanchot (1973, p. 70), diríamos que os adultos se unem às crianças em seus medos:

Entre eles, o medo, o medo comum partilhado e, pelo medo, o abismo do medo acima do qual eles se unem sem poder, morrendo, cada um, só, de medo.6

Ao acreditar que as crianças têm que ter medo por intermédio de fantasias terrificantes construídas com base em histórias fabulosas, perde-se a chance de criar uma educação emancipatória, crítica e menos injusta em relação à abertura para elaborações éticas acerca das dores e dos sofrimentos que, certamente, terão que confrontar na realidade.

No aclamado curso sobre a parresia – a coragem do dizer verdadeiro – Foucault (2017) remonta às origens gregas do “cuidado de si” como condição de “governança” do outro, ou seja, como prática coletiva que permite a governabilidade. Para que haja chances de um verdadeiro “cuidado de si” como prática de liberdade, antes de tudo, é preciso se afastar das falsas aprendizagens.

Em suas palavras:

A prática de si deve permitir se desfazer de todos os maus hábitos, de todas as opiniões falsas que se pode receber das massas, ou dos maus mestres, mas também dos pais e do entorno”. “Desaprender” ( des-dicere [des-dizer]) é uma das tarefas importantes da cultura de si (Foucault , 2017, p. 56).7

Por que então ‘martelar' tantas novelas, fábulas e contos de fadas na cabeça das crianças e, ainda mais, dos adultos? Num período pós-revolucionário – haja vista o feminismo, as lutas anticorrupção, antiguerras, pró-ecologia, pró-minorias – certos pseudossaberes são postos como formas ilustradas e canônicas de pós-verdades.

Ainda que não se possa, nem se deva abolir tais histórias de monstros e fadas, quiçá belas e encantadoras, talvez sua repetição ad infinitum dê mais trabalho para ‘desaprendê-las' do que realmente tragam desenvolvimento psíquico e coletivo.

 

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SILVA, I. V.  Complexo de cinderela: a imagem da mulher no conto de Perrault. ComSertões - Revista de Comunicação e Cultura no Semiárido, [S.l.], v. 1, n. 4, jan. 2017. Disponível em: https://www.revistas.uneb.br/index.php/comsertoes/article/view/3104. Acesso em: 18 jun. 2017. Publicação do Departamento de Ciências Humanas da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Campus III, Juazeiro.

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: mariliaetienne@id.uff.br

Recebido em: 20/06/2017
Aprovado em: 23/06/2017

 

 

SOBRE A AUTORA

Marília Etienne Arreguy
Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (1999). Mestre em Psicologia (Psicologia Clínica) pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ e Doutora em Recherches en Psychanalyse et Psychopathologie pela Universidade de Paris Diderot (Paris VII) em 2008 (cotutela). Professora pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Educação na Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF). Psicanalista. Membro da Association Internationale des Interactions de la Psychanalyse - Paris. Autora de diversos artigos e do livro Os crimes no triângulo amoroso: violenta emoção e paixão na interface de psicanálise e direito penal (2011).

Coordena o Grupo Alteridade Psicanálise e Educação - GAP(E)/CNPq/UFF. Atualmente faz pesquisa pós-doutoral com bolsa da CAPES na Universidade de Paris 8 - Saint-Denis.

 

 

1Agradeço ao querido colega de pós-doutorado Cristóvão Giovani Burgarelli pelos preciosos comentários e apoio na finalização deste texto.
2Uma criança é espancada (1919). ESB, v. 17.
3Vide Arreguy, 2012; Arreguy, 2014/1.
4Ver também Silva (2017).
5Ferenczi faz uma nova leitura da Verneinung (FREUD, [1938]; 1996). O que é traduzido na obra de freudiana como “denegação” ou “recusa”, ligada ao fetichismo, em Ferenczi (1932) aparece com outra roupagem conceitual enquanto “desmentido” do trauma pela hipocrisia de um terceiro.
6Tradução livre de “ Entre eux, la peur, la peur partagée en commun et, par la peur, l'abîme de la peur par-dessus lequel ils se rejoingnent sans le pouvoir, mourant, chacun, seul, de peur ” (Blanchot, 1973, p. 70).
7Tradução livre de “La pratique de soi doit permettre de se défaire de toutes les mauvaises habitudes, de toutes les opinions fausses qu'on peut recevoir de la foule, ou des mauvais maîtres, mais aussi des parents et de l'entourage. “ Désapprendre ” (de-discere) est une des tâches importantes de la culture de soi ” (FOUCAULT, 2017, p. 56).

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