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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.47 Belo Horizonte jul. 2017

 

 

Ainda a psicanálise no campo da sexuação1

 

Yet psychoanalyis in the field of sexuation

 

 

Ana Maria Sigal

I Instituto Sedes Sapientiae
II Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este texto revisa alguns conceitos freudianos em relação à sexualidade e o gênero. Retoma os progressos da ciência e as novas formulações epistemológicas que nos aportam à teoria do caos, da complexidade, das teorias dissipativas, para pensar a psicanálise fora dos sistemas de causa e efeito da física tradicional e nos convida a pensar em sistemas complexos, dinâmicos, não lineares, em desordem, sistemas nos quais as variáveis interatuam com diversas alternativas. Questiona o lugar que as teorias do gênero vêm a ocupar na psicanálise. Estas, no lugar de oferecer ferramentas diferenciadas que agregassem e nos obrigassem a repensar alguns elementos a ser elaborados em função de questões da época em que foram produzidos, vêm ocupar um lugar na teoria, empobrecendo-a ou desqualificando-a. Essa dificuldade não é necessariamente produto das teorias do gênero e sim da forma como a psicanálise se apropria delas. Retoma os elementos próprios da sexuação, como Édipo, identificações, sexualidade infantil e castração simbólica, para ressituá-los à luz da contemporaneidade e diferenciá-los da identidade de gênero. Necessita trabalhar a sexualidade na diversidade e se apropria do conceito de diferença não oposicional.

Palavras-chave: Identidade de gênero, Sexuação, Diferença, Diversidade.


ABSTRACT

The review of some freudian concepts related to sexuality and gender. The cientific progress and new epistemological formulations brought by the caos, complexity and dissipative theories, are retaken to think about science away from the traditional physical systems of cause and effect. We are invited to think about complex systems, dynamic and linear ones, disordered ones, systems were variants interact with different alternatives. We enquire the position were gender theories came to dwell in psychoanalysis, impoverishing or disqualifying it. Those difficulties are necessarily not products from gender theories, but the way psychoanalysis appropriates them. By retaking concepts as Oedipus, identifications, infantile sexuality and symbolic castration, as to restore them through the shades of contemporaneity and to differentiate them from gender identity. It needs to work sexuality through diversity and to appropriate itself the concept of a non oppositional difference.

Keywords: Gender identity, Sexuation, Difference, Diversity.


 

A única maneira de manter a psicanálise viva é pensar novas formas de produção do conhecimento que possam incorporar o novo e reorganizar o já conhecido dentro dos paradigmas que nos caracterizam como especificidade científica. Para dar conta da ideologização que se infiltra no campo psicanalítico e das novas questões que se nos apresentam, é necessário não tomar a teoria como um corpo morto, coagulado ou estagnado. É trabalhando-a e aprofundando-a que conseguiremos avançar. Faz-se necessário retrabalhar a obra freudiana à luz dos progressos da ciência , da filosofia, da antropologia, da sociologia, da economia, das artes e da cultura em geral.

É nesta trilha que apresentarei este trabalho porque – a partir de novas leituras, das questões com que nos confronta a transmissão, da clínica que apresenta novos modos de expressar a patologia, ou simplesmente a partir de uma subjetividade que assume novos devires – um incômodo se me fez presente: percebo no campo da psicanálise certa confusão para pensar o modo como se incorporam os novos conhecimentos. Entendo que se trata de ampliar o pensamento, mas sem descaracterizar aquilo, em nosso saber, que se tem construído no decorrer dos últimos 100 anos.

Hoje me ocuparei especialmente dos efeitos produzidos no nosso campo pela incorporação dos estudos que provêm das teorias do gênero. Estas, no lugar de oferecer ferramentas diferenciadas que agregassem e nos obrigassem a repensar alguns elementos a ser elaborados em função de questões da época em que foram produzidos, vêm ocupar um lugar na teoria, empobrecendo-a ou desqualificando-a. Essa dificuldade não é necessariamente produto das teorias do gênero, e sim da forma como a psicanálise se apropria delas.

Quando o novo invade e não se imbrica necessariamente com aquilo que é propriamente psicanalítico, quando o que chega de fora tenta dar uma explicação totalizadora dos elementos que, na psicanálise, poderiam ser revisados a partir de sua própria metodologia, estamos no caminho errado. Perdemo-nos nas lutas científicas de poder e não necessariamente acrescentamos. Uma psicanálise com a qual temos sido sempre solidários vem, há anos, questionando-se sobre o lugar que os fenômenos histórico-sociais têm na formação do inconsciente e do supereu. Pensar de que modo esses fenômenos incidem no inconsciente não o descaracteriza como aquele que, segundo suas próprias leis, determina nossas condutas desejantes.

Na época em que Freud elaborou o arcabouço científico sobre o qual desenvolveria seu modelo metapsicológico, as ciências estavam impregnadas pelos modelos da termodinâmica e pelos modelos deterministas de causa-efeito. Hoje os novos paradigmas científicos nos permitem pensar de um modo diferente, oferecem-nos postulados que abrem novos modos de entender os fenômenos dos quais teremos que dar conta.

 

Sobre os novos paradigmas da ciência

A partir do século XVI foram surgindo grandes transformações nos processos de legitimação do conhecimento. As cisões da igreja e o advento do protestantismo ocorreram pela negativa de alguns grupos em aceitar que existisse uma única leitura possível das escrituras. De uma subversão religiosa decorreu, naturalmente, uma subversão no campo social e da ciência, a partir da qual não mais se pode falar de verdades únicas.

A epistemologia clássica adaptou seu ideal de teoria científica à concepção da geometria euclidiana: a teoria ideal é um sistema dedutivo com uma definição de verdade incontestável baseada em uma conjunção de axiomas, de modo que a verdade se desloque por caminhos definidos de inferência válida, que se propagam por todo o sistema. Se o critério de univocidade das ciências empíricas foi, para filósofos como Comte, requisito de toda ciência, um grande avanço se promoveu na história do pensamento a partir das colocações de Dilthey, que diferencia ciências do espírito e da natureza, com diversas metodologias e formas de pesquisa.

Hoje não interessa promover o conceito de univocidade como se procurava nos sistemas galileanos e newtonianos. Até mesmo no campo das ciências exatas, a pluralidade de hipóteses é admitida. Já dizia Poincaré, um matemático do começo do século XX, que a crença de que as verdades científicas são certezas só pode ser admitida numa mente ingênua.

O método clínico, que é o método científico por excelência no campo da psicanálise, guarda pouca conexão com a ciência “fisicista” do século XIX. A verdade do paciente é sempre conjectural. Inclusive no campo da medicina podemos dizer que não há enfermidades, mas sim enfermos, partindo-se da impossibilidade de assumir qualquer tipo de certeza. Conservar a singularidade se faz fundamental na pesquisa psicanalítica.

À revolução copernicana, que desloca a Terra do lugar de privilégio, une-se a ferida narcísica que promove a psicanálise ao reconhecer que a consciência não é o elemento central que se deve analisar para entender as determinações que impulsionam os caminhos psíquicos do homem. Como tínhamos anunciado, hoje em dia se faz necessário repensar o modo como operavam na psicanálise os postulados científicos da época, na forma como aparecem, por exemplo, na construção do Projeto para uma psicologia científica (1895), assim como incorporar novos modelos científicos para pensar a psicanálise.

Penso que tais modelos vão afetar fundamentalmente as concepções de sexualidade que encontramos em vários escritos freudianos. Diante de novos paradigmas, há quem considere nulos os anteriores , outros propõem uma nova forma de organização do conhecimento , outros ampliam ou questionam os postulados ideológicos que correspondiam às visões da época. Assim, os novos conhecimentos – tanto os internos à teoria como os que vêm da teoria de gênero – precisam ser postos à prova e modificados ou reinventados. Esses avanços da epistemologia não ocorrem sem consequências e afetam tanto as ciências duras como as sociais.

Em diversos campos do conhecimento, desde a matemática até as ciências sociais, há novas formas de entender os processos e as leis que regem o conhecimento. No século XX, nenhum conceito se ressignificou com tanta profundidade como o de “complexo”. De um uso comum e científico que tinha perdido suas raízes e o relacionava ao complicado ou emaranhado ao difícil de entender, retomou seu sentido originário e passou a significar uma nova perspectiva para designar o ser humano, a natureza e as nossas relações com ela. Assim o termo “complexo” designa hoje uma forma de compreensão do mundo na qual tudo se encontra entrelaçado como uma trama composta de finos fios.

O século XVIII propunha-se a eliminar o impreciso, as complexidades. Hoje as teorias de Edgar Morin e seus contemporâneos esforçam-se para incorporar o aleatório e a complexidade. Pensemos na revolução que traz a teoria do caos para a compreensão de diversos fenômenos.

Ela nos convida a pensar em sistemas complexos , dinâmicos, não lineares, em desordem, sistemas nos quais as variáveis interatuam com diversas alternativas de soluções e que têm sua origem em modelos muito simples. As in terferências e o acaso em seu trajeto transformam seu comportamento em imprevisível, gerando desordens aparentes de difícil explicação e entendimento.

Situações imprevistas criam ordens desconhecidas, supostas desordens que na realidade criam novas formas de ordenamento. A lógica com que costumávamos analisar certos trajetos históricos na vida dos sujeitos pode se transformar à luz da teoria do caos e das estruturas dissipativas, pois não nos cabe pensar o curso da vida dos sujeitos a partir de uma relação de causa-efeito. A sobredeterminação freudiana pode adquirir um novo sentido uma vez que estamos sempre expostos à criação de novas inscrições psíquicas que são produto do acaso.

A partir dessas ideias, o mundo já não se organiza por dualidades dicotômicas ou causa-efeito: abrem-se as diversidades, nas quais uma aparente desorganização está dando origem a uma nova organização que pode ser entendida, na psicanálise, como a possibilidade de criação permanente de inscrições em um inconsciente que será considerado como um sistema aberto.

Em relação à sexualidade, termo que nos ocupa neste momento, podemos pensar em um mundo de diversidades , no qual os traços identificatórios vão formando conjuntos, ensembles, que permitem tantas combinações quantas singularidades existirem.

Uma fala que se tornou símbolo dessa teoria nos diz: “O bater das asas de uma borboleta no Brasil pode ocasionar um tornado no Texas” (Edward Lorenz , meteorologista do MIT, 1972). As figuras investidas libidinalmente, que circulam a curta ou longa distância dos sujeitos, podem produzir transformações inesperadas segundo a forma como os traços identificatórios são incorporados, formando conjuntos absolutamente impensados nos sujeitos de destino.

A teoria das estruturas dissipativas tem como ponto de partida o não equilíbrio. Para Freud haveria sempre um passado que daria sentido à história presente e ao sintoma; a questão estava em encontrar os determinantes inconscientes do passado que retornavam no recalcado. O papel do acaso abre-nos caminho para a neogênese. Elementos imprevisíveis na história criam novas configurações inconscientes. À psicanálise interessa trabalhar nas abordagens cruzadas entre acontecimento, inscrição do acontecimento, retorno do acontecimento, relato do acontecimento.

 

Psicanálise e teorias do gênero

O que seria necessário manter para permanecer no campo da psicanálise? Será que as teorias de gênero viriam a dar conta da totalidade de nossas questões no que se refere ao modo sexuado de estar no mundo?

A psicanálise corre o risco de se transformar em sociologia ou antropologia se não tomarmos os cuidados necessários para pensar o que é específico de seu campo.

As teorias de gênero, que nos proporcionam hoje valiosos elementos críticos para repensarmos nossos postulados, têm seu alcance limitado a algumas questões : de Stoller a Judith Butler, desta a Beatriz Preciado encontramos diferenças fundamentais. Desses aportes aos de Foucault e às lutas feministas teremos um amplo leque para rever a questão, sem necessidade de aderir como verdade última a nenhuma delas.

O elemento central que essas teorias trazem se refere ao modo de produção do conhecimento, que sempre está imerso num meio histórico-cultural determinante na compreensão da própria produção científica. As teorias de gênero, em especial no que se refere à sexualidade, alertam e desqualificam a psicanálise em relação a certos postulados intrínsecos à elaboração teórica, porque os tomam por valores ideológicos da época em que foram produzidos, e não como verdadeiros postulados teóricos – o que não deixa de ser parcialmente verdadeiro mas é insuficiente para invalidar essas construções, a ser revisitadas para uma melhor discriminação. É nessa nova espiral que podemos confirmar que certos elementos da construção teórica se mantêm como pilares indiscutíveis.

A partir da separação entre procriação e prazer como fenômeno socioeconômico decorrente da revolução industrial, a mulher ocupou um novo lugar como força de trabalho e se recolocou no espectro dos meios de produção. Em consequência dessa mudança já não se destina a um único papel , o da reprodutora alheia ao prazer e ao gozo sexual, abrindo-se-lhe o acesso a uma nova subjetividade e permitindo-nos constatar o quanto certos lugares destinados ao feminino na teoria psicanalítica eram intrínsecos não à feminilidade e sim aos valores da época.

No que se refere à teoria da sexuação temos – de Freud a Lacan e de Melanie Klein a Laplanche, Green ou Winnicott – uma diversidade de aportes que permitiram a cada um construir suas próprias abordagens, que diferem entre si, algumas por estarem impregnadas de elementos ideológicos diversos, outras por retrabalharem, de uma forma nova, conceitos metapsicológicos da própria teoria. Mas todas elas se mantêm dentro da psicanálise ao priorizar o deslocamento que sofre o Eu e a consciência em favor da enunciação do conceito de inconsciente.

O que é inegociável para manter nossa especificidade teórica é considerar o deslocamento que faz a psicanálise, de uma concepção ptolomaica de um Eu possuidor da verdade ao recentramento do inconsciente como espaço estrangeiro que deixa ao sujeito à mercê de um desconhecido de si. Outro elemento inegociável é o deslocamento que Freud produz nos Três ensaios ([1905] 1988) ao demolir o preconceito de uma sexualidade pré-orientada instintualmente no homem , em benefício de uma pulsão que só encontraria seu objeto de maneira totalmente aleatória na sua história individual, objeto esse essencialmente vicariante e contingente ( Laplanche , 1987, p. 117). Essa substituição tira o sujeito do campo da pura biologia e o constitui na sua própria diferença, fora do determinismo biológico, a partir da valorização da fantasia e da linguagem. O terceiro deslocamento é o que ressitua a sexualidade infantil como trilha pela qual transita a formação da subjetividade.

Identifico epistemologicamente os conceitos com os quais trabalho – inconsciente, pulsão e sexualidade infantil – para manifestar minha ideia de que há pilares da teoria psicanalítica que podem mudar, mas há constituintes básicos que se mantêm vigentes. Mesmo pensando em diversas concepções metapsicológicas segundo as diversas escolas, impõe-se a radicalidade do inconsciente no campo do desejo, e o modo em que se transita pelo caminho da sexuação na inscrição da alteridade.

Qual é a questão? Penso que a adesão maciça às teorias de gênero nos posiciona em uma psicanálise do Eu, na qual tudo o que temos a dizer sobre sexualidade infantil, Édipo e perversidade polimorfa depende de elementos puramente conscientes, históricos e sociais, e não de modos inconscientes de elaborar as identificações, a proibição do incesto, o encontro com o adulto que seduz e implanta seu próprio desejo a partir de seu inconsciente.

Ao tentar anular os efeitos deletérios produzidos por uma concepção hierárquica do fálico, corremos o risco de apagar as marcas da diversidade sexual e dos processos identificatórios.

Devemos considerar que o problema da diferença e da diversidade sexual ultrapassa os limites da pura interrogação sobre os papéis sociais e culturais da época e faz referência aos elementos inconscientes na formação da identificação sexual , como matriz da subjetividade, ainda que a identidade de gênero seja mais influenciada por elementos socioculturais da época.

O lugar do desejo do outro, assim como a implantação do objeto fonte da pulsão, diz respeito ao inconsciente do adulto que se debruça diante da criança para lhe oferecer uma matriz pela qual circulará o caminho de sua sexuação. Esses caminhos estão definidos, em parte, pelas elaborações edípicas. No que se refere aos caminhos da identificação e ao Édipo, sem dúvida, há no texto freudiano desenvolvimentos que decorrem de valores axiológicos da época. Freud produz a teoria da primazia do falo numa época de surgimento do feminismo, quando estão em questão valores relacionados ao papel da mulher que se defende da valorização androgênica. Não podemos negar que também intervêm elementos da própria história de Freud.

Novas leituras nos obrigam a rever esses postulados e reconsiderar os caminhos dos processos identificatórios, mas não necessariamente anulá-los ou desconsiderá-los.

Já Deleuze e Guattari (1985) , no Anti-Édipo, questionavam o caminho da sexualidade em Freud, ridicularizando a “imbecil dialética” binária dos sexos e formulando teorias de fluxos e devires. Nem por isso a psicanálise deixou de produzir teoria, tampouco de se perguntar sobre questões que essa filosofia nos oferecia ao eliminar a lógica binária.

Podemos questionar a primazia do falo que Freud formula no ano 1923, já que essa concepção – tal como explicitei no artigo de 1997 sobre A organização genital infantil – incorre em erros epistemológicos sérios, como analisar o sujeito a partir do masculino tomado como universal.

É possível percorrer outros caminhos a partir do texto “Sobre a transposição da pulsão e em particular do erotismo anal” no qual Freud (1917) desenvolve com precisão as equações simbólicas, sem atribuir um lugar de valor maior a nenhuma delas. Pênis, bebês, cocôs, presentes, dinheiro estão entrelaçados por um signo igual, e nenhum deles é o referente último que se prioriza diante dos outros.

Conceitos como inveja do pênis, o supereu feminino e a mulher no lugar da histérica não são as referências únicas para entender o caminho da sexuação, ainda que Freud se incline pela primazia do falo. Tanto o caminho para a masculinidade como o caminho para a feminilidade apresentam novos paradoxos se não partimos da ideia única de primazia fálica, abrindo-nos a percepção da potência do feminino.

Pensar na inveja do pênis como aquilo que se deseja ter pode estar marcado pela diferença, mas não necessariamente por ser mais ou melhor. Há uma “diferença não oposicional”, como nos diz Derrida, que é cada vez menos pensada em relação a estruturas binárias; estamos numa época de policromatismo, assim como do polimorfismo da sexualidade. O sistema binário, que oferece uma verdade positiva diante de uma não verdade na diferença, não é a modalidade instituída para pensar feminino-masculino, ativo-passivo se pretendemos abrir caminho para analisar o campo da diversidade.

Numa entrevista a Elisabeth Roudinesco intitulada “Políticas da diferença” ao falar sobre o que há de universal na différance, Derrida diz que essa noção

[...] não é uma distinção, uma essência ou uma oposição, mas um movimento de espaçamento, um ‘devir-espaço' do tempo, um ‘devir-tempo' de espaço, uma referência à alteridade, a uma heterogeneidade que não é primordialmente oposicional ( Derrida; Roudinesco, 2004, p. 34).

É uma relação com o outro, sem que seja necessário, para que ela exista, congelá-la ou fixá-la numa distinção de opostos. A différanceé cunhada por Derrida para dar conta da temporalização e do espaçamento, pois as oposições não podem ser pensadas num binário, visto que ele não encerra o campo semântico da diferença; é possível pensá-la como relação, apenas no movimento, no jogo.

Situar a inveja como uma constelação presente nas teorias sexuais infantis não justifica colocar no destino da feminilidade adulta a mulher como histérica. Entender que o terceiro aparece como rival, porque na estrutura se presentifica como aquilo que separa, não justifica certas deduções que valorizam o falo como o que todos desejam ter na vida adulta , nem como aquilo que, sendo portado pelo pai como metáfora, tenha a função salvadora para que a criança possa entrar na neurose.

Também na época do Édipo, o menino quer ter um filho na barriga e coloca bonecas embaixo da camiseta simulando uma barriga em identificação com a mãe e, se não fosse cortado pelos gritos que dizem: “M enino não pode” ou “Desejar isso é coisa de mulher”, muitos homens teriam mais espaço para elaborar uma sexualidade adulta mais livre e menos ameaçada pelo temor de ser o que não se deve.

Talvez a crença de um homem machista se produza por formação reativa, como modo de esconder a fraqueza que poderia ser vista como feminina, valorizando o priapismo, o que coloca o homem em uma situação de permanente medo do fracasso se não cumprir sua função. Pensemos que os fenômenos de atribuição de gênero acontecem antes dos 3 anos e têm a ver com a ‘identidade de gênero', mais influenciada pelos elementos socioculturais de imitação e cópia.

Sem embargo, Laplanche (1987) é radical e nos diz que a atribuição de gênero também se faz a partir da mensagem enigmática do outro, sendo sempre marcada pela sexualidade inconsciente do adulto. No modelo que se oferece à criança para imitação, Laplanche (1987) nos diz que se transmitirá o que a cultura nos oferece como modelo, porém mediatizado pela forma como esses adultos interpretam o que é ser homem e ser mulher. Ou seja, para Laplanche, a identidade de gênero responde também a elementos inconscientes e conscientes transmitidos pelo entorno como mensagens endereçadas à criança e que ela deverá decifrar.

Trata-se, então, de considerar que há processos estruturantes como o Édipo, mas que estão definidos pela singularidade do percurso subjetivo. Não há lugares vazios, e sim encarnados nos processos identificatórios e de amor objetal. As teorias sexuais são válidas como fantasias imaginárias elaboradas pelo infans para dar conta de suas questões na relação com o outro, na qual a castração aparece como diferença – mas não necessariamente porque o falo tem um valor axiológico maior – e abrem um espectro à diversidade. Não somente a diferença sexual, mas também a questão ‘de onde vêm os bebês' é um elemento importante que propulsiona a elaboração das teorias sexuais infantis.

Lembremos que nos Três ensaios Freud ([1905] 1988) nos fala da perversidade polimorfa, na qual o desejo caminha por trilhas diversas. Os caminhos do erótico não se diferenciam na dicotomia binária feminino-masculino, mas descrevem uma situação na qual diversos órgãos são libidinizados sem apelar necessariamente para a diferença sexual. Boca, ânus, pele, ouvido não se diferenciam entre feminino e masculino e, na perversidade polimorfa, todo órgão é passível de ser erotizado.

Melanie Klein e sua escola – na qual, a começar por ela, quem teoriza são majoritariamente mulheres – manifesta posições culturais nas quais o supervalorizado é o seio, ao deslocar para o Édipo propriamente dito a herança dessa relação de objeto primária, pela qual o pênis resultaria investido dos atributos decorrentes da resolução dessa fase primitiva. Essas teorias trabalham com a pré-história do edípico, o Édipo precoce, no qual o significante fundamental é a mãe com seu objeto supridor – o peito – e se atribui ao Édipo um lugar absolutamente diferente, sem se considerar a castração como elemento central, e a inveja está ligada ao seio. Há ainda outros elementos de alto interesse como o fantasma infantil da figura combinada, na qual homem e mulher possuem todos os atributos.

Na teoria kleiniana a castração aparece como reativa na mulher, por fracasso na conquista de sua feminilidade e em sua capacidade de ter bebês; admite-se a ideia de que a vagina é representável antes da puberdade, e o supereu, tanto feminino como masculino, é mais ligado aos elementos sadomasoquistas do sujeito no primeiro ano de vida. A despeito dessas contribuições, sem dúvida essa teoria tem outros problemas sérios, fundamentalmente por seu excessivo apoio no biológico, através do qual praticamente trabalha com o conceito de instinto e não de pulsão.

Até aqui, algumas questões gerais. Agora pretendo escolher um recorte: vou me referir às formas pelas quais opera o desejo inconsciente do outro na formação específica da sexuação e frisarei o modo como a cultura e a identidade de gênero se oferecem como padrões valorizados no recorte social. Proponho, então, manter a diferença entre identidade de gênero e identidade sexual, ambas marcadas pelo discurso do adulto.

 

Identidade de gênero

Trabalhamos o conceito psicológico de identidade de gênero como modelo mimético da identificação primária tingido pela atribuição de gênero, na qual ainda não reconhecemos a existência da relação de objeto. Para a definição conceitual da identificação primária nos referimos ao Vocabulário ( Laplanche; Pontalis , 1986) que nos diz ser um modelo de constituição do sujeito sobre o modelo do outro, que não é secundário a uma relação previamente estabelecida. Trata-se de uma identificação direta e imediata que se situa antes de toda catexia de objeto. Essa forma de ver o processo de identidade, no qual a sexualidade é só mais um dos traços, é retomada por vários autores e descrita de formas diversas.

Para Freud, o modelo básico é o da incorporação oral – forma mais primitiva de laço afetivo com um objeto, em que objeto e sujeito não se diferenciam.

A imitação, como nos diz Jean Florence (1994, p. 128),

[...] é um efeito secundário no nível do Eu que se desenvolve no plano da representação pré-consciente do corpo, e pela via das aquisições do jogo mimético das atitudes sociais, das adaptações perceptivas e motoras de Eu corporal.

A identidade sempre será da ordem do Eu, pode ser parte dos aspectos inconscientes do Eu ou do pré-consciente, mas não do inconsciente em sentido estrito, ainda que funde suas raízes no inconsciente. A identidade é anterior a todo reconhecimento da diferença anatômica dos sexos. Aqui a teoria do gênero tem uma determinação fundamental e opera segundo modelos oferecidos pelo cultural, modelos cambiantes no decorrer da história, do lugar do homem e da mulher e dos modelos que se oferecem. A identidade de gênero é anterior aos processos de identificação secundária decorrentes do Édipo e em geral considerada numa perspectiva dual.

Essa situação com o outro do espelho pode ser feminina ou masculina para cada sexo, mas é atributiva em função de padrões sociais. Glitter e cor-de-rosa para meninas; armas, espadas e azul para os meninos – atribuídos pela diferença de órgão – têm mais um valor ontológico de ser e existir que de verdadeira relação com o destino da sexualidade.

Nesses casos entra em jogo tanto a atribuição parental quanto a atribuição social. Determina-se pela aparência externa que marca um lugar para o começo da construção da subjetividade na criança. Por isso, a lei alemã, que deixa em branco a atribuição de gênero, pode se apresentar como um elemento iatrogênico que não oferece uma rede de sustentação para a construção do ser, ainda não sexuado.

A não ser em raríssimos casos de bissexualidade orgânica, nascemos com um sexo biológico, o qual não nos obriga a assumir a sexuação correspondente. Nesse caso anatomia não é destino.

 

Identidade sexual: a identificação como processo de sexuação

Neste caso, faz-se presente a matriz identificatória do outro, pela qual o indivíduo humano se constitui em sujeito sexuado. Entendemos a identificação como resultado de um processo inconsciente que marcará a sexuação.

A criança se identifica com o objeto do desejo do outro, como resposta às demandas de amor registradas no campo imaginário. Caminho estritamente psicanalítico que inclui o processo edípico e seus destinos, no qual as identificações secundárias decorrem da dissolução desse complexo, entendido segundo novos modelos, que compõem diversos traços identificatórios tanto com o objeto de amor quanto com o objeto de identificação em toda a complexidade que Freud nos oferece ao formular o Édipo ampliado.

Devemos ter em conta que os processos narcísicos e identificatórios operam com traços do objeto ou do sujeito, possibilitando inúmeros modelos possíveis, tantos quantas combinatórias o sujeito é capaz de fazer.

As distinções entre identidade e identificação, e suas correspondências com o Eu e o inconsciente não são tão puras assim, e as apresento aqui simplesmente para um primeiro modelo de compreensão – porque sabemos do enraizamento do Eu no inconsciente, ou seja, dos aspectos inconscientes do Eu, assim como não desconhecemos que o inconsciente se apropria de cenas pré-conscientes e conscientes para construir suas fantasias, incorporando elementos do gênero.

Mas para manter a radicalidade do inconsciente, faz-se necessário retomar os conceitos de pulsão e de conflito como elementos vigentes e estruturantes da metapsicologia. Não é possível manter um dos termos (sexo) do lado da anatomia e o outro (gênero) do lado da psicologia-antropologia. O que proponho é trabalhar com o ensemble e não anular uma pela outra, trabalhar no entrecruzamento, na complexidade de ideias que encontramos na teoria psicanalítica do gênero incorporada à teoria estrutural-vivencial dos processos inconscientes.

Faz-se necessário retomar os escritos psicanalíticos, freudianos e pós-freudianos para discriminar:

● O que corresponde a elementos de ideologização da cultura que produzem postulados que põem em questão formulações teóricas próprias da psicanálise; e

● O que faz parte de um inconsciente organizado pelos intercâmbios desejantes e seus diferentes sistemas – tendo em conta como opera a segunda tópica, como funcionam os enraizamentos do Eu no inconsciente e como devem ser reconsiderados dentro de uma nova compreensão do Édipo, que propõe um esquema menos familiarista.

Revalorizaria como elementos da estrutura edípica mais interessantes a proibição do incesto, a interdição do gozo do corpo da criança pelo adulto, assim como sua renúncia a um gozo absoluto, em vez de aceitar que a primazia do falo seria o elemento organizador do Édipo ou o complexo de castração – com seu aspecto de angústia de castração no menino e inveja do pênis na menina – como elemento que propulsiona a entrada e as identificações secundárias na implosão do complexo.

O falo pode entrar na teoria como um elemento a ser invejado pela diferença. Deseja-se o que não se tem, desde que consideremos também que na diferença o menino deseja ter atributos que a menina tem, e não necessariamente pelo valor hierárquico, que responda a um elemento valorizado pela cultura.

Proponho, assim, que as teorias de gênero sofram um processo de antropofagia – ou seja, de metabolização – para serem incorporadas ao campo da psicanálise e que trabalhemos com o conceito de diversidade e não somente de diferença.

Metabolizar significa desconstruir e reconstruir produzindo um novo conhecimento. Esse processo é tão radical que nos leva a reconsiderar elementos centrais da teoria psicanalítica – como o lugar da primazia do falo e a inveja do pênis – a ser reposicionados, tanto em seus conteúdos quanto no discurso à luz dos aportes da teoria de gênero, sem um valor axiológico de supremacia hierárquica, e sim como elementos que introduzem diferença.

Essa nova reconsideração dos elementos em jogo no Édipo não anula a necessidade de manter o complexo de Édipo como um elemento fundamental de passagem na linha da sexuação e das identificações secundárias. Ainda que possa não ser o elemento único que define e o paradigma central da teoria da subjetivação, o complexo tem suas raízes fundamentais na introdução do terceiro e numa primeira escolha de objeto que muda quando a significação sexual dos genitais dos pais entra em jogo.

Se não fazemos trabalhar a teoria psicanalítica à luz dos avanços científicos, filosóficos, sociais e culturais, somos os primeiros a dar às teorias cognitivistas e ao naturalismo biológico um espaço para questionar a psicanálise. Não se trata de uma defesa corporativista de nosso saber trabalhar com uma teoria que se reformula, mas – em acordo com Hornstein (1993, p. 12) – de entender a neogênese como um elemento fundamental que aporta elementos histórico-vivenciais que nos permitem mudar nossa posição como sujeito no decorrer da vida.

Uma escolha diferente não é sempre a aparição de uma identificação recalcada. Pode ser uma nova constelação criada a partir de novas vivências tanto no registro das representações como dos afetos. Devemos reconsiderar o valor das determinações infantis para não transformá-las num fatalismo que interpreta monotonamente a repetição; há permanente criação de subjetividade, nem tudo ficou marcado pelo passado. Assumir uma nova escolha de objeto sexual nem sempre é “sair do armário”. Às vezes é criação de nova subjetividade.

Repensar a psicanálise é uma forma de fazer justiça ao texto freudiano.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: anasigal@terra.com.br

Recebido em: 10/10/2015
Aprovado em: 20/02/2016

 

 

SOBRE A AUTORA

Ana Maria Sigal
Psicanalista. Integrante da equipe fundadora do Curso de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae (1976). Membro do Departamento de Psicanálise, professora do Curso de Psicanálise. Cofundadora e coordenadora do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma, do Instituto Sedes Sapientiae. Autora de vários livros. Representante do Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae no Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras.

 

 

1Palestra pronunciada na VII Jornada de Psicanálise do CBP-RJ - NeoSexualidades: novas escutas, Hotel Mirador, Rio de Janeiro, 28 nov. 2015.
A teoria das estruturas dissipativas ou teoria do caos estuda a aparição de estruturas coerentes, auto-organizadas em sistemas isentos de equilíbrio. Trata-se de um conceito de Ilya Prigogine, que recebeu o prêmio Nobel de Química “[...] por uma grande contribuição à acertada extensão da teoria termodinâmica a sistemas isentos de equilíbrio, que só podem existir em conjunção com seu entorno”. A expressão “ estrutura dissipativa” busca representar a associação entre as ideias de ordem e de dissipação. O novo fato fundamental é que a dissipação de energia e de matéria, que poderia se associar à noção de perda e evolução para desordem, se converte, longe do equilíbrio, em fonte de ordem. https://en.m.wikipedia.org/wiki/Estructura_disipativa.

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