SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número47Ainda a psicanálise no campo da sexuaçãoO rabisco como ofício: a plasticidade na construção de uma clínica social para analisandos transexuais índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.47 Belo Horizonte jul. 2017

 

 

Transexualidades - psicanálise e mitologia grega

 

Transexualities - psychoanalysis and Greek mythology

 

 

Anchyses Jobim Lopes

I Universidade Estácio de Sá
II Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A transexualidade como desafio à psicanálise por reduzi-la em terapia de ego e por aparentemente estar além do modelo edípico. Conceituação e diferenças entre: identidade de gênero, expressão de gênero, escolha objetal e investimento genital. Descrição e análise de mitos e divindades gregas: Tirésias, Cenis ou Ceneu, Ífis Hermafrodito e Afrodito. A construção da identidade de gênero, expressão de gênero, escolha objetal e investimento genital de acordo com vários autores, principalmente Robert Stoller e Jacques André.

Palavras-chave: Transexualidade, Identidade de gênero, Mitologia grega, Stoller, André.


ABSTRACT

Transexuality as a challenge to psychoanalysis by way of reducing it to ego therapy or seemingly being beyond the oedipical model. Conceptualization differences between: gender identity, gender expression, object choice and genital investiment. Narratives and analysis of myths: Tiresias, Caenis or Caeneus, Iphis, Hermaphrodite and Aphroditus. Construction of gender identity, gender expression, objeto choice and genital investimento according to several authors, mainly Robert Stoller and Jacques André.

Keywords: Transexuality, Gender identity, Greek mythology, Stoller, André.


 

Nosso insight dessa fase precoce, pré-edipiana, nas meninas,
nos chega como uma surpresa,
tal como a descoberta, em outro campo,
da civilização minoica-micênica
por detrás da civilização da Grécia.

SIGMUND FREUD. Sexualidade feminina (1931)

 

Introdução: transexualidade e o desafio à psicanálise

Ao início de 2015 alguns candidatos, hoje em sua maioria membros efetivos do CBP-RJ, criaram o Grupo de Trabalho de Neo e Transexualidades (GTNTrans) do CBP-RJ. Como consequência, ao final de 2015, ocorreu a VII Jornada de Psicanálise do CBP-RJ – NeoSexualidades: novas escutas. Há aproximadamente um ano a maior parte dos membros do grupo passou a frequentar uma instituição de abrigo, em sua maioria, a pessoas transexuais, em situação de vulnerabilidade social. Coordenando esse grupo de trabalho e tendo acompanhado por algum tempo as visitas, houve como resultado que a leitura de muitos dos textos de psicanalistas sobre transexualidade encontrou-se diante do fogo cerrado da realidade.

Os portadores de uma identidade de gênero contrária à de seu sexo biológico original apresentam vários tipos de problemas. Principalmente se das classes menos favorecidas e oriundos de bairros ou cidades mais afastadas: discriminação social, rejeição pela família, condenação de religiosos e outros mais. Bem diferente dos transexuais glamorosos incensados pela mídia. Mas no que toca a psicanálise há de fato vários questionamentos à teoria e prática tal como propôs Freud e como até hoje escrevem alguns de seus seguidores.

A identidade de gênero pode ser completa ou parcialmente oposta ao sexo biológico de nascimento. Há vários matizes, mas que, em sua quase totalidade, são ego sintônicos. Ao contrário do que vários psicanalistas defenderam em livros ou artigos, não há sinais de psicose. Nenhuma semelhança com o caso Schreber, no qual a mudança de sexo, principalmente na fase mais aguda de sua doença, era imposta por forças externas, numa experiência vivida como completamente executada contra sua vontade, foracluída e ego distônicos.

Tornou-se real o desafio à psicanálise. Em primeiro lugar porque são pessoas que, em sua maioria, necessitam não de um tratamento psicanalítico para identidade de gênero, mas de terapia de apoio e, mais ainda, de recursos assistenciais, médicos e inclusão social. A psicanálise parece ficar reduzida à terapia de ego, problema debatido na jornada de 2015 (SIGAL, 2015). Supridas essas necessidades, a terapia poderia ser mais profunda, abarcando dependências químicas, depressão e um parco caso de psicose sem sintomas schreberianos de mudanças corporais impostas e delirantes. Mas nada que sequer fosse pensável como uma terapia para o retorno à identidade de gênero conforme ao do sexo biológico.

Em segundo lugar, também ficaram patentes advertências sobre o desafio que a transexualidade representa para a psicanálise enquanto modelo teórico clínico. A identidade de gênero se estabelece num momento pré-edípico muito precoce e muito antes da escolha de objeto. O centro do paradigma psicanalítico em suas vertentes teórica (recalque, supereu), clínica (resistência, transferência) e de teoria da cultura (mito totêmico, assassinato do pai primevo) é todo ele focalizado no Édipo. Assim, em qualquer das direções a transexualidade seria não apenas inabordável pela psicanálise, mas um grande desafio ao núcleo do pensamento freudiano, como, por exemplo, afirma Birman (2016). Ou não?

Por fim, em terceiro lugar, há um desafio anterior ao surgimento da importância da transexualidade. Desafio que surgiu há muitas décadas, feito por dentro dos seguidores do paradigma psicanalítico, por muitos pensadores da cultura e, principalmente, por feministas. Ainda em vida de Freud a revisão do modelo de pensar primeiro a sexualidade masculina e dela derivar as explicações para a sexualidade feminina era exigido por muitos. Revisão ainda mais urgente, na medida em que as estatísticas sobre a passagem de pessoas nascidas no sexo masculino para o feminino são em torno até de quatro a sete vezes mais frequentes que do as nascidas no sexo feminino passam ao masculino.1 O que nos leva à conclusão de que é a sexualidade masculinaque é construída e deve ser pensada como uma diferenciação da feminina.

Todas as três faces do desafio devem ser enfrentadas. O desafio freudiano surgiu ao final do século XIX, quando teorias biologizantes eram tidas como absolutas e verdadeiras, e qualquer sintoma de histeria produto de uma degeneração cerebral. E Freud não aceitou que tais sintomas fossem orgânicos e estivessem além de uma compreensão psicológica. Quando de fora se tenta impor um limite à psicanálise, maior o desafio de estender os limites da psicanálise para além desse suposto limite.

Mais do que isso. O fenômeno transexual pode ser encarado como o mais recente desdobramento da revolução sobre o conhecimento da sexualidade humana iniciado por Freud. Como veremos a seguir, separado o prazer da reprodução, tudo mais no que concerne aos vários componentes da sexualidade humana pode ser descolado de qualquer naturalismo biologizante. As discussões sobre identidade de gênero apenas seguem a lógica da trajetória iniciada pelos Três ensaios sobre a sexualidade (FREUD, 1905). Da famosa frase de Terêncio – “sou um homem: nada do que é humano me é estranho” – podemos parodiar: ‘somos psicanalistas: nada do que é da sexualidade humana pode nos ser estranho’.

Se a clínica individual é parca, sigamos a trajetória freudiana de atacar as áreas das maiores criações humanas, tal a literatura e a arte. Ou o estudo da mitologia enquanto repositório decantado da experiência de centenas de gerações humanas.

Como nos deixou Freud em O interesse científico da psicanálise:

Em primeiro lugar, parece inteiramente possível aplicar os pontos de vista psicanalíticos deduzidos dos sonhos a produtos da imaginação étnica, como os mitos e os contos de fadas. [...] Não se pode aceitar como primeiro impulso para a construção de mitos um anseio teórico por encontrar uma explicação para os fenômenos naturais ou para elucidar observâncias e práticas de culto que se tornaram ininteligíveis. A psicanálise procura esse impulso nos mesmos ‘complexos’ psíquicos, nas mesmas inclinações emocionais que descobriu como sendo a base dos sonhos e dos sintomas (FREUD, [1913] 1996, p 187).

 

Definições atuais: por enquanto

Há mais de século em Os três ensaios sobre a sexualidade Freud (1905) separou sexualidade de reprodução. Em realidade apenas tirou o véu de algo que sempre foi conhecido por pessoas de algum bom senso e experiência. Ao longo da vida os seres humanos têm um número infinitamente maior de relações sexuais que seria necessário para a reprodução da espécie.

Mesmo na época vitoriana, para qualquer mulher ou homem com algum discernimento ( cujos olhos não estivessem vendados pela religião e pelos discursos político-jurídicos) era possível observar o divórcio entre o que se falava abertamente e o que na realidade se praticava. Em uma sequência bastante lógica, Freud propôs para a espécie humana uma disposição bissexual inata. Postulado controverso até hoje, mas que iniciou a ideia de que não é biologicamente inata a ligação entre a pulsão e seu objeto. O que para a psicanálise passou a ser descrito como escolha objetal, hoje, para um público muito maior é chamando de ‘orientação sexual’. O afeto mais profundo e/ou a excitação sexual são atraídos para que outra metade da humanidade, ou para toda ela?

Seguindo de modo bem diverso os passos de Freud, Alfred Kinsey complexificou imensamente todos os rótulos. Hétero, homo ou bissexual, estatisticamente são percentagens. Em ambos os extremos do quadro, apenas uma minoria está nos cem por cento das experiências sexuais exclusivas. Por mais que as pesquisas e os achados de Kinsey sejam criticados, as dissociações trazidas pelos conceitos de pulsão e objeto começaram a irreversivelmente sair do divã, e do armário.

O que Freud dificilmente poderia ter intuído foi que, ao longo de um século, essas primeiras dissociações formariam uma bola de neve. Na primeira metade do século XX duas guerras mundiais dizimaram a população masculina, e o ‘sexo frágil’ teve a força de assumir posições de comando. A partir dos anos 1950 se intensifica o movimento feminista, que com o surgimento dos anticoncepcionais explode nos anos 1960. Nada do que se supunha atavicamente masculino ou feminino em comportamento de fato o é: vestuário, linguagem, papéis sociais, a incapacidade mental das mulheres para o aprendizado superior e o voto universal, até mesmo de ir para a guerra não apenas como enfermeiras. Isto é, tudo que hoje se rotula de ‘expressão de gênero’, o é por transmissão cultural e não biológica.

Após a primeira separação entre sexualidade e reprodução, da segunda entre sexualidade e orientação sexual, da terceira quanto aos rótulos de expressão de gênero, mais recentemente ocorreu uma quarta. O termo ‘transexual’ foi criado em 1949 pelo psiquiatra americano David Oliver Caudwell e difundido a partir dos anos 1960 pelo endocrinologista e sexólogo também americano Harry Benjamin. A midiatização da cirurgia realizada em 1952, que transformou Georges Jorgensen em Christine Jorgensen,

[...] provocou um aumento significativo das demandas por tratamento vai contribuir para a reflexão sociológica sobre a identidade sexual e a construção da categoria de gênero. Surgimento do que Harry Benjamin chamará de ‘fenômeno transexual’ (ARÁN et al., s.d.).

A partir dos anos 1960 a expressão “identidade de gênero” começou a ser usada. Remete ao sentimento individual de alguém se considerar homem ou mulher.

Tanto na psiquiatria quanto na psicanálise o primeiro grande pesquisador sobre transexualidade foi Robert Stoller. A partir de uma vasta quantidade de observações clínicas, entre elas, o relato de terapias mal sucedidas para mudar orientação ou identidade sexual, Stoller publicou vários artigos e livros. Destaca-se como o mais importante A experiência transexual (STOLLER, 1982). Livro pouquíssimo reeditado em inglês e nunca mais em português. Mas esse e outros livros de Stoller até hoje são referência obrigatória em todos os trabalhos psicanalíticos sobre transexualidade e, até mesmo, fora da psicanálise. Inclusive no hoje clássico Problemas de gênero (2010), da filósofa pós-estruturalista Judith Butler. Geralmente Stoller é tido como o introdutor do termo “identidade de gênero” em um congresso de psicanálise em Estocolmo no ano de 1963. Foi desse modo que das designações ‘orientação sexual’ e ‘expressão de gênero’, foi incluído um terceiro termo: ‘identidade de gênero’ embora frequentemente confundido com orientação sexual. A confusão não se deu à toa. O objeto inicial das pesquisas era a homossexualidade. A transexualidade seria apenas um caso extremo, um pouco além do travestismo, talvez uma psicose.

Parecia completa a separação da sexualidade humana em três componentes, que podem coincidir com o que se convencionava denominar masculino e feminino, ou até mesmo podem estar completamente separados. Transexuais seriam aqueles que passariam inteiramente dos três de um lado, para os três do outro. Então surgiu uma crítica à transexualidade por um viés completamente diferente do religioso. No desejo dos transexuais de passar inteiramente de identidade e expressão de gênero de um sexo haveria o desejo da manutenção do objeto sexual que era do mesmo sexo que o do nascimento. Assim, seria apenas um modo do binarismo tradicional e bem definido entre dois sexos. Mesmo alguns psicanalistas questionaram se passar completamente ao sexo oposto também não seria uma forma extrema de repúdio ao homoerotismo. Uma lógica que seria seguida por fundamentalistas religiosos em países onde homossexualismo, principalmente masculino, é punido em muitos casos com pena capital, como o Iran. Mas naquele país quem quiser se transexualizar o estado financia a cirurgia. Curiosamente é o país onde ocorre o maior número de cirurgias de redesignação sexual (WIKIPEDIA, 2017).

Essa lógica binária é inerente a um conceito idealizado de transexualidade. Embora muitos transexuais desejem se transformar na mulher ou homem ‘perfeitos’, a observação mais cuidadosa revela muitos casos menos ‘puristas’. Foi quando, por exemplo, começou a se descobrir situações como a de um homem casado e com filhos, que se tornou transexual feminino (homem para mulher), a fim de continuar casado com a esposa. Contudo, mesmo aqui estamos ainda no discurso psicanalítico clássico do Édipo e da escolha objetal. Mas mais recentemente surgiu, por exemplo, um caso de homem trans (mulher para homem), que, além de não ter seios ou formas femininas, se tornou possuidor de todos os estereótipos masculinos: musculoso, careca, de bigode e cavanhaque, tatuado, até com certo aspecto agressivo. Contudo manteve genitais femininos. E a observação que muitos transexuais passam completamente de um sexo ao outro quanto à identidade e expressão de gênero, inclusive físicas, mas sem desejo, ou até aversão, a cirurgias genitais.

Surge, assim, um quarto item. Quando se fala de sexo biológico, fala-se de cromossomas e genitais. Mas se os cromossomas não podem ser mudados, os genitais podem ou não. E os que não desejam cirurgias de redesignação de gênero, o fazem não somente devido aos limites das técnicas cirúrgicas atuais. Enquanto muitos transexuais têm horror e nenhum prazer com seus genitais de nascimento e buscam avidamente a cirurgia, outros não. De modo que, além de ‘identidade de gênero’ (se alguém se considera homem ou mulher), de ‘expressão de gênero’ (o quanto e de que modo alguém se considera e socialmente se comporta como masculino ou feminino), ‘orientação sexual’ (o quanto alguém ama e tem prazer com o sexo oposto, com o mesmo sexo, ou os dois), também hoje foi incluída a qualificação do ‘sexo biológico’, melhor seria ‘sexo genital’ (preferir os próprios genitais como masculinos ou femininos).

Ao se ter uma visão menos purista e idealizada da experiência transexual, menos calcada no binarismo tradicional e mais na observação humana, as classificações tremem. Mas não o furor classificatório. Mesmo para as dissonâncias surgem novos rótulos, por exemplo: o de intersexualidade. Termo confuso, que pode ser utilizado nos textos de três diferentes formas. Primeiro, para classificar pessoas que nasceram com alterações físicas e/ou cromossômicas, que as tornam portadoras em seu corpo de características de ambos os sexos. Nesses casos as alterações independem de possuir ou não qualquer característica transexual na acepção atual do termo. Até pouco eram rotuladas de hermafroditas, designação hoje tida como estigmatizante.

Num segundo sentido, oposto ao primeiro, o termo “intersexual” também pode denotar pessoas de determinadas escolhas de expressão de gênero, mas desprovidas de qualquer malformação congênita genital, cromossomial ou hormonal. Assim como Kinsey demonstrara que entre os dois extremos da escolha objetal, isto é, um grande número de seres humanos se situava no intervalo entre hetero e homossexualidade absolutas, com ou sem transexualidade muitos seres humanos também se situam no intervalo, tanto psíquico e social, entre os extremos binários masculino e feminino: também são classificados de intersexuais.

Em terceiro lugar, intersexualidade também pode designar os transexuais, em que identidade e expressão de gênero não coincidem com seu sexo genital. Os dois últimos usos do termo “intersexual” hoje são superpostos pelos novos termos “não binário” e/ou “queer”.

Parece que a sexualidade humana, cuja separação entre reprodução e sexualidade já havia sido feita por Freud, ainda não terminou de ser decomposta em todos seus componentes. Por enquanto.

Sintetizou Sigal:

Em relação à sexualidade, termo que nos ocupa neste momento, podemos pensar em um mundo de diversidades, no qual traços identificatórios vão formando conjuntos, ensembles, que permitem tantas combinações quantas singularidades existirem (SIGAL, 2015, p. 7).

Os mitos gregos, que serão analisados de acordo com as definições acima, mostram a antiguidade com que tais ensembles já eram conhecidos. Para uma ponte com as discussões atuais sobre transexualidade, esta análise será acrescida de um dado muito importante: a mudança de gênero tem de ser voluntária. Não imposta à força, nem produto de uma psicose, como no caso Schreber.

 

Mitos gregos antigos e transexualidade contemporânea

Personagem de origem antiquíssima, Tirésias participa de vários mitos gregos. De acordo com a definição atual do termo, Tirésias não poderia ser classificado como transexual. Verdade que viveu sete anos como mulher. E parece que aproveitou bastante. Tanto que mais tarde os deuses o consultaram para dirimir a dúvida de qual dos sexos obtinha mais prazer. Mas a mudança de sexo foi imposta contra sua vontade, uma punição. Fora causada por acidentalmente ter se defrontado com o casal de serpentes copulando. Há variações do mito: ou as separou, ou as feriu, ou matou a serpente fêmea. Mas sete anos depois Tirésias deparou-se novamente com um casal de serpentes e teve a conduta oposta. Assim, voltou a ser homem. Tirésias não teve a menor dúvida em voltar ao sexo masculino. E como teve uma vida extremamente longa, passou a maior parte de sua existência, e mesmo depois dela no Hades, como homem. Bissexual, mas sua identidade de gênero sempre foi masculina.

As serpentes na mitologia grega indicam ser um mito ctônico, extremamente antigo e anterior ao panteão olímpico. “A cobra, acima de tudo, parece estar associada a Gaia, a Terra”, divindade primordial, em um bestiário que associa adivinhação e dupla sexualidade (BRISSON, 2002, p. 144-145). Mas dupla sexualidade difere do conceito atual de transexualidade, que, em princípio, é o desejo de pertencer permanente e completamente a apenas um sexo, oposto ao que se foi nomeado ao nascer.

Muito menos conhecida é a transformação do cretense Siprites (Siproites). Os textos mais antigos foram perdidos, e só se conhece a citação nas Metamorfoses, de Antonino Liberal (LIBERALIS, 1968, p. 31, 109). Tendo ido à caça, teve o azar de ver a deusa virgem Artemis se banhar. Como punição foi transformado em mulher. Teve melhor sorte que Acteon, que pelo mesmo motivo foi transformado por Artemis em veado e estraçalhado por seus próprios cães de caça. E uma das versões para a cegueira de Tirésias teria sido a punição por ter visto nua outra deusa virgem, Palas. Assim como Tirésias, a mudança de sexo de Siprites não foi voluntária, logo não se trata de transexualidade no sentido atual.

O mito de Hermafrodito (Hermaphroditos) ou Hermafrodita é citado por vários psicanalistas. O relato utilizado quase sempre é o das Metamorfoses, de Ovídio. Essa versão, a mais recente e única detalhada que chegou até a contemporaneidade, conta a história que Hermafrodito era um rapaz muito belo, que ao se banhar num lago, tem o corpo fundido com o de uma Náiade por ele apaixonada – Salmacis. Ela pedira aos deuses para nunca mais dele se separar e tem seu desejo realizado com a fusão de ambos os corpos num ser intersexual. O poeta narra a história como Hermafrodita sendo a vítima dessa transformação. Torna-se uma criatura enfraquecida que, por vingança, amaldiçoa o lago. Desse modo, todo aquele que ali se banhasse seria igualmente transmutado em um ser intersexual:

[...] quem quer que chegue a esta fonte como homem, dela saia só metade homem e quem tocar nestas águas perca metade de seu vigor (OVÍDIO, 1983, p. 76).

O mito de Hermafrodita contado por Ovídio é uma narrativa do início do primeiro século de nossa era. Época já completamente dominada pelo patriarcado, para o qual toda característica feminina num homem o denigre. Há evidências literárias e artísticas de que o mito originário teria características opostas. A soma do masculino e do feminino seria dotada do simbolismo da fertilidade e seria o dom de deuses. Pela classificação acima descrita, Hermafrodita não seria um transexual, mas intersexual. E na versão de Ovídio a transformação foi uma violência imposta de modo que ficaria fora de ambas as classificações: trans e intersexualidade. Entretanto, a análise de vestígios mais arcaicos do mito revela atributos que podem fornecer dados valiosos para a compreensão psicanalítica da transexualidade. Após a narrativa e a discussão dos mitos transexuais, retornaremos a esses mitos intersexuais.

Apesar do forte patriarcado que veio a se estabelecer nos séculos seguintes, há evidências de que antes ou ao início do período conhecido como Grécia Arcaica (século VIII a 480 a.C.), o papel da mulher e do feminino tenha tido mais relevo, principalmente nas ilhas e na costa da oriental do mar Egeu. Mas desde o início prevaleceu o patriarcado, que se exacerbou mesmo à medida que a cultura evoluía em muitas áreas. Para o patriarcado uma passagem do masculino ao feminino ou mesmo a aquisição de características consideradas femininas é negativa e vista com horror. Todos os mitos acima não apenas reforçam essa crença como também mostram sua intensificação ao longo dos séculos.

Apenas as histórias de personagens da mitologia grega que fizeram o caminho oposto, do feminino ao masculino, apresentam características positivas. Ao menos nos mitos que chegaram até os dias de hoje, o que é atestado por dois mitos: Ceneu e Ífis. Ambos podem ser assimilados ao que atualmente é definido como transexualidade e identidade de gênero. O primeiro, Ceneu é um personagem já conhecido na Grécia Arcaica, mito cujas raízes se perdem em época imemorial e citado ou descrito em vários textos e com algumas variantes interessantes. Fragmentos que ao longo de oito séculos revelam um ciclo complexo e permitem ilustrar várias interpretações psicanalíticas sobre a transexualidade de uma personagem cujo sexo biológico é feminino em direção à identidade de gênero masculina. O segundo mito é o de Ífis. Deste os relatos são bem mais recentes, provavelmente da época helenística, quando Alexandria era a capital do ocidente, e da época romana. Dele só possuímos duas descrições, singelas e românticas. Mas a menção de uma deusa – Leto em um dos relatos pode significar que o mito original seja bem mais antigo. A história de Ífis também possui conteúdo que nos permite refletir sobre discussões a respeito da transexualidade em questões diferentes das do mito de Ceneu.

 

O mito de Cenis e Ceneu

O poema épico Ilíada (HOMER, 2011) atribuída a Homero constitui o mais antigo e extenso documento literário grego. Datando do início da Grécia Arcaica, por volta do século VIII a.C., sendo que Heródoto situa Homero no século IX a.C., o épico também é o fundador da literatura ocidental. Narra uma mistura de mitos originários do período micênico, e fatos talvez reais que teriam ocorrido por volta dos séculos XIII e XII a.C. Já na Ilíada o nome de Ceneu (Caeneus) aparece pela primeira vez. Segundo Martin Nilsson, renomado filólogo e mitógrafo sueco, os heróis míticos mais antigos seriam aqueles cujo nome terminam em eus (NILSSON, 2008, p. 26-27).

Ao início do poema Nestor, rei de Pilos, aconselha Agamemenon e Aquiles a fazer as pazes. Velho demais para combater, Nestor liderava suas tropas guiando seu carro de combate. Acentuando a autoridade que lhe dava a idade e experiência, Nestor cita os grandes guerreiros e heróis do passado que conhecera.

Nunca havia visto, e nunca mais verei, homens como Pirítoo e Driante, pastor de seu povo, e Ceneu e Exádio e o divino Polifemo, e Teseu, filho de Ageu, que lembravam aos imortais. Os homens mais fortes que a terra havia gerado, e com os mais fortes combateram, a tribo de bestas selvagens que morava nas montanhas, as quais deram um terrível fim (HOMER I, 2011, p. 9, tradução nossa).

A tribo de bestas selvagens será posteriormente conhecida como a dos centauros. O episódio será símbolo da vitória da civilização contra a barbárie. Na época clássica da Grécia a centauromaquia será esculpida em Atenas por Fídias nos frisos do Partenon. No livro seguinte da Ilíada também é mencionado “ [...] Leonteu, parceiro de Ares, filho do magnânimo Corono, filho de Ceneu” (HOMER II, 2011, p. 37, tradução nossa).

O segundo grande poeta da Grécia Arcaica foi Hesíodo. Contemporâneo ou pouco posterior a Homero, além de várias obras perdidas, nos deixou dois pilares da mitologia grega: Teogonia, também conhecido como genealogia dos deuses, e Os Trabalhos e os dias. Durante a Antiguidade outro dos textos reconhecidos como de Hesíodo era mais um longo poema genealógico, conhecido como Catálogo de mulheres. Infelizmente não esteve entre os manuscritos escolhidos para sobreviver à Idade Média. Os eruditos modernos o consideraram apócrifo e datado do século VI a.C., mais de um século após a morte de Hesíodo. Nos últimos cem anos muitos fragmentos e relatos do Catálogo de mulheres foram redescobertos, e vários especialistas consideram uma obra autêntica de Hesíodo. Era um catálogo mitológico das mulheres mortais que haviam mantido relações sexuais com os deuses, e dos descendentes dessas relações. Segundo o helenista Ziogas (2013), seria o contraponto feminino na literatura de Hesíodo, em oposição à Ilíada como épico e fonte de genealogias masculinas.

Entre os relatos que chegaram até nós está o de Flégon, de Trales, escritor grego romanizado do século II de nossa era. É ele que nos conta segundo Hesíodo, bem como escritores e poetas mais tardios que utilizaram o mesmo tema, a surpreendente origem do herói Ceneu:

Os mesmos autores (isto é, Hesíodo, Dicearco, Clitarco, Calímaco, e alguns outros) narram que na terra dos lápidas uma filha chamada Cenis nasceu para o rei Elato. Poseidon uniu-se a ela e lhe prometeu que faria o que ela desejasse, e ela pediu que a transformasse em homem e a tornasse invulnerável. Quando Poseidon realizou seu pedido, seu nome foi mudado para Ceneu (HESIOD, 2007, p. 248-249).

Mesmo para a época antiga o verbo ‘unir’ é um eufemismo. Forçar, abusar, violar são mais adequados. Propor a realização de um desejo ou conceber um filho com poderes sobre-humanos, uma compensação divina.

No desejo de Cenis os gregos certamente entendiam tanto a invulnerabilidade no sentido corrente do termo quanto uma invulnerabilidade sexual (DELCOURT, 1953, p. 131, tradução nossa).

O especialista em pensadores pré-socráticos e mitologia grega G. S. Kirk descreve um terceiro sentido desse desejo. Uma palavra que em vários idiomas se refere não apenas ao corpo mas também ao sentimento e ao amor próprio. Cenis

[...] pediu para ser tornada atrôtos, ‘que não pode ser ferida’, e ser tornada em homem. Suponho que atrôtos originalmente significasse ‘impenetrável’ em um sentido fisiológico, e que a transformação de sexo era a melhor forma de conseguir isso. Mas naquela época muito antiga também podia ser compreendido num sentido literal como ‘invulnerável’ [...] (KIRK, 1973, p. 201, tradução nossa).

E foi assim que Cenis (ou Cenide) se tornou Ceneu, impenetrável e invulnerável, embora não totalmente invencível, desguarnecendo e sobrepujando os heróis que não conseguiam eliminá-lo com suas espadas e lanças, e que só poderiam matá-lo por sufocação.

A história da transformação de Cenis em Ceneu no Catálogo das mulheres também é relatada, de modo mais extenso e com mais detalhes, por um outro autor, um pouco posterior a Hesíodo, mas ainda na Grécia Arcaica: Acusilau (Akusilaus) de Argos, escritor e mitógrafo que viveu no século VI a.C. Sua obra nos é conhecida apenas através de uns poucos fragmentos de papiro e resumos de autores posteriores.

O fragmento 40 de Acusilau nos conta que:

Poseidon uniu-se a Cenis filha de Elato. Posteriormente, uma vez que ela não queria ter um filho dele ou de ninguém mais, Poseidon a transformou num homem (Ceneu) invulnerável, que tinha uma força maior que todos os homens de seu tempo, e quando qualquer um tentava lhe ferir com ferro ou bronze, ele mantinha-se firme. Esse Ceneu tornou-se rei dos Lápidas e estava acostumado a guerrear contra os centauros. Mais tarde ele erigiu sua lança na praça do mercado, e exigiu que ela fosse reconhecida como se fosse um deus. Isso desagradou os deuses, e Zeus tendo visto isso, lançou contra ele os centauros, eles o enfiaram solo abaixo de onde ele estava, colocaram uma rocha acima como lápide, e ele morreu (ACUSILAUS OF ARGOS, 2017)

O episódio de Ceneu sendo sepultado vivo parece ter sido tema de certa relevância na arte grega antiga. Dois exemplos chegaram até os dias atuais. Um relevo de bronze da cidade de Olímpia datado ao redor de 630 a.C. e um vaso por volta de 570 a.C. Este último, conhecido como vaso François, um vaso de mais de 60 centímetros com uma dúzia de cenas mitológicas e mais de cento e vinte figuras, é a fonte única de alguns mitos antigos. Ambas as obras mostram Ceneu sendo socado de pé terra a dentro por dois ou três centauros (CARPENTER, 1994, p. 165, 176).

Se repudiou na forma feminina ter filho de um deus, em sua forma masculina deixou um filho – Corono – que participou da expedição dos argonautas em busca do velocínio de ouro. Outra aventura clássica da mitologia grega, que foi relatada pelo único e extenso poema épico que nos chegou da época alexandrina: Argonáutica de Apolônio de Rodes (século III a.C.). Por sua vez, Corono também deixou descendência.

A mais extensa fonte sobre o mito de Cenis/Ceneu que chegou até nossa época data do início do Império Romano. Está nas Metamorfoses, de Ovídio, obra completada por volta do ano 8 d.C. Embora acrescente algumas invenções suas, Ovídio teve acesso a autores gregos arcaicos e das épocas clássica e helenística que não chegaram até nós. No livro XII o poeta latino utiliza o mesmo Nestor da Ilíada, que maravilha a mesma plateia de guerreiros sitiando Troia, com a narrativa da origem de Ceneu e da batalha dos lápidas contra os centauros. Só que essa contação de histórias teria ocorrido no primeiro ano da guerra de Troia. Ao contrário do relato de Homero que situaria Nestor no décimo e último ano da guerra.

Em vosso tempo, o único que pode desprezar o ferro e se mostrar a salvo de qualquer ferimento, foi Cicno. Eu, porém, vi, outrora, Ceneu [...], ser golpeado mil vezes, sem que seu corpo tivesse sofrido dano algum. [...] E, para tornar ainda mais maravilhoso o que havia nele, nascera mulher. [...] A filha de Elato, Cenide, célebre por sua formosura era a mais bela das donzelas da Tessália [...] era cobiçada, em vão, por numerosos pretendentes. [...] Cenide não se casou. Certo dia, quando andava pela praia deserta, foi violentada pelo deus do mar [...]. Depois de ter se deleitado com aquele novo amor, disse Netuno: ‘Não te será recusado qualquer pedido. Escolhe o que queres’. [...] ‘Quero muita coisa, pois muito grande foi a afronta que me fizeste’, disse Cenide. ‘Quero não poder jamais sofrer igual violência. Faze com que eu deixe de ser mulher, e ter-me-ás dado tudo’. Ao pronunciar as últimas palavras, sua voz se tornara mais grave; essa voz podia ser confundida com a de um homem; e era, de fato. Eis que o deus do mar profundo anuíra a seu pedido, e, além disso, concedera-lhe o dom de jamais ser ferido e de não morrer pela ação das armas. [...] (OVÍDIO, 1983, p. 221-222).

Depois de revelar a origem de Ceneu, Nestor passa a uma longa narrativa da batalha entre os lápidas e os centauros. Estes, que eram filhos de Íxion com uma nuvem criada à semelhança de Hera, haviam sido convidados para as bodas de Pirítoo (Pirithous), rei dos lápidas, com Hipodâmia, mas, tomados pela luxúria e a violência, após terem se embriagado, tentaram raptar e violar a noiva e outras mulheres. Na realidade tanto Pirítoo como o pai dos centauros ou eles próprios eram filhos de Íxion. Isso na genealogia mais comum dos centauros em geral. Várias outras filiações foram descritas na mitologia grega. Entre elas, a do sábio Quíron, também meio homem meio cavalo, preceptor dos heróis, do deus da medicina e, em algumas versões do mito, de Dioniso, seria filho de Cronos e a ninfa Filira. Desconhecida a ligação genealógica de Cenis/Ceneu com Íxion, que também é um(a) lápida, até mesmo a filha de um reis dos lápidas.

Ceneu luta ferozmente na centauromáquia. De saída mata cinco centauros. Então outro deles, Latreu, revela a origem do guerreiro:

E tu, Ceneu, vou ter de te aturar? Ao meu olhar tu serás sempre uma mulher, sempre Cenis. Esqueceste do teu nascimento e da desgraça pela qual ganhaste tua recompensa – a que preço ganhaste a falsa semelhança com um homem. Lembre-se tanto de teu nascimento, quanto ao que te submeteste. Vá pegar o fuso [de uma roca de fiar] e o novelo de lã. [...] Deixe a guerra para os homens (OVÍDIO, 1984, p. 214-215, tradução nossa).

Furioso, Ceneu investe com sua espada e fere de morte Latreu. Os demais centauros se unem e inutilmente tentam matá-lo. Surge, então, o episódio, já mencionado, que possui muitas variantes. Os centauros o socam, com pedras e troncos de abeto (pinheiro), para dentro da terra, mas ele permanece rigidamente ereto, ou até a cintura, ou completamente, com tal força que teria ido diretamente para o Tártaro. Ou o próprio Ceneu, dentro da terra, teria permanecido eternamente vivo, mas imóvel ou teria dado fim a sua vida. Além de tudo, Ceneu era filho de Elato, que em grego significa abeto ou pinheiro.

Ovídio foi bastante fiel ao mito de Ceneu como um todo. Contudo acrescentou um final, depois do sepultamento vivo do herói, a partir de sua própria imaginação. Conta que do local onde fora enterrado Ceneu surgiu um pássaro maravilhoso de asas douradas, que sobrevoou o acampamento dos gregos, soltou um grande e retumbante grito, voando embora.

Vírgilio, o poeta nacional romano, uma geração anterior ao autor das Metamorfoses, também acrescentou à história de Ceneu algo de sua própria imaginação. Entrando no Mundo das Sombras, Enéias chega aos Campos de Lágrima, onde se escondiam os que um amor cruel e rude matara (quos duros amor crudeli tabe peredit). Entre eles Ceneus, antes um jovem, agora uma mulher, sua forma original restaurada pelo Destino (VIRGIL, 1998, p. 536-537, tradução nossa).

 

Considerações sobre o mito de Cenis e Ceneus

O tema da violação por um deus é característico da mitologia grega. Para conseguir seu intento, frequentemente se transformavam ou raptavam, ou os dois ao mesmo tempo. Formas de não deixar à escolhida, alguns casos ao escolhido, qualquer alternativa. Embora nesse caso Poseidon não tenha utilizado desses artifícios, o mito de Cenis é bem claro quanto ao aspecto brutal da violação. Desde Hesíodo os textos dão claramente a entender que se trata de uma jovem muito nova, virgem em idade núbil, e um homem muito mais velho. Em se tratando de um deus, logo imortal, a associação com a figura paterna se torna ainda mais nítida. Mesmo na concisão dos fragmentos de Hesíodo e de Acusilao, o pedido de Cenis a Poseidon ecoa como uma surpresa ao leitor e como um repúdio ao deus, que Ovídio soube muito como bem explorar em literatura. Para um ouvinte ou leitor de Acusilao da Grécia Arcaica a rejeição a Poseidon soaria imensa. Como uma mortal recusava-se a ter o filho de um deus! Resta a dúvida de que, se não tivesse ocorrido fisicamente um abuso sexual, como não ocorreu no mito de Ífis, Cenis teria assim mesmo pedido a algum deus ou deusa a mudança de sexo.

A atitude dos centauros nas bodas de Piritoo e Hipodâmia é uma revivência ampliada da cena de violação por Poseidon. Mais que todos os outros convidados, Ceneu possui motivos próprios para reagir com fúria à tentativa de violação de uma virgem, ampliada em estupro coletivo. É um helenista, e não um psicanalista, quem comenta que “o centauro zomba de Ceneu e traz de volta uma experiência traumática” (ZIOGAS, 2013, p. 204, tradução nossa). Apesar de ocorrido muitos anos depois, é a reedição do trauma de sua violação por Peseidon que acaba conduzindo à própria destruição de Ceneu pelos centauros. Como deixou escrito Virgílio, Ceneu havia sido um dos que “um amor cruel e rude matara”.

Na Grécia Arcaica há outro modelo feminino, muito mais conhecido do que Cenis. Também são de Hesíodo, na Teogonia e em Os trabalhos e os dias, os primeiros relatos da mulher causadora de todos os males: Pandora. Também há menção ao mito na Ilíada. Junto com a tradição judaico-cristã, a greco-romana é um dos dois pilares da cultura ocidental contemporânea. Ambas as tradições são patriarcais e destinam o feminino ao papel do masoquismo, da culpabilização pela origem do mal, e a submissão ao homem é o preço da queda. E dessa justificativa desenvolvida pelos homens uma sistemática de negar a maior angústia de seu sexo: a castração. A organização social, aquela que acua as mulheres para situações passivas, em que a violência sexual é uma realidade e um símbolo extremo, é apenas um resultado.

Em seu princípio, encontramos da primazia do falo e, por detrás dela, o que ela dissimula ou nega: a dominação exercida pela angústia de castração na psique masculina.

[...] Sofrimento feminino e dominação viril formam um velho par, um dos sexos exigindo do outro, o “fraco” que ele represente sozinho a ferida (ANDRÉ, 1996, p. 111).

A violação de Cenis foi uma ferida (atrôtos) passivamente infligida. Dessa forma, todo prazer é imposto, reforça o masoquismo que Freud demonstrou ser inerente a todos os seres humanos. Ainda por cima por uma criatura que hoje nada mais seria que uma figura paterna mitificada, o que muito exacerbou a ferida narcísica do defloramento. Além da defesa contra um novo trauma, tendo seu amor próprio ferido em seu próprio ser, Cenis pediu para se tornar homem. Tal como em um sintoma neurótico ou em um sonho, o significante em grego foi imageticamente desmembrado em seus vários significados. Assim, fisicamente impenetrável e invulnerável, o homem Ceneus compensaria a ferida em seu corpo, mas também a ferida em sua psiché, no movimento em que a pulsão é o elo entre corpo e mente. Cenis fora ferida no núcleo de seu ser, tanto pelo violento ataque à figura idealizada de um objeto paterno bom, quanto ao limite e imunidade do corpo em relação ao mundo externo, no que Freud descreveu com o eu corporal sendo o modelo para o eu psíquico. Era imperioso que Ceneu, de modo ativo, buscasse reforço narcísico transformando masoquismo em sadismo, projetando-o em direção a um fazer compulsivo e violento. E como a maioria dos frutos do patriarcado, negando sua angústia de castração.

Símbolos fálicos pertenceram ao mito original e outros foram sendo associados ao longo dos séculos por diversos autores. A eficientíssima espada usada no combate contra os centauros. O sepultamento ereto dentro da terra, realizado por troncos da mesma árvore do nome de seu pai. Sobre o culto ímpio a sua lança, à qual exigia juramento, não é um psicanalista, mas outro helenista e tradutor do grego quem comenta: “[...] não se tem de ser um freudiano para indagar sobre as possíveis implicações fálicas nisso” (CELORIA, 2005, p. 153).

Surge uma dúvida. Ao longo de toda a mitologia grega deuses violaram, pelos mais diversos meios e formas, mulheres mortais e até divinas. Por que apenas Cenis pede a transformação em homem? Há algo mais no mito que poderia até indicar que, mesmo sem ser violada, Cenis, cedo ou tarde, desejaria ser Ceneu? Poderíamos justificar essa dúvida apenas pelo pouco ou nada que restou de outros mitos femininos arcaicos, invocando helenistas como Blundell (1996) e Ziogas (2013) para justificar que quase tudo que temos da Grécia Arcaica é o que sobreviveu à tradição patriarcal. Que o Catálogo das mulheres resulta de fragmentos de toda uma extensa tradição feminina, oposta àquela patriarcal representada por Homero, que foi aos poucos sendo destruída pela censura dos homens através dos séculos. Tal como ocorreu com a poesia de Safo? Essa justificativa historicista não nos basta. É realidade que toda interpretação imposta ao mito foi feita apenas tomando as imagens de Cenis adulta. Ora, em psicanálise há que atingir a primeira infância. Impossível pelos dados que temos sobre esse mito. Logo, é também verdade que, por enquanto, estivemos mais no psicologismo da psicanálise de ego de um mito, que na psicanálise propriamente dita. Mas isso pode ser relevado com o estudo de outro mito.

 

O mito de Ífis e Iante

Também consta das Metamorofoses, de Ovídio, a versão mais conhecida da história de Ífis e Iante. Quando a cretense Teletusa estava grávida, seu marido Ligdus a advertiu de que só queria um bebê menino. Pertenciam a uma família livre mas pobre. A criação de uma menina daria muito mais trabalho e nenhum reconhecimento social e, embora não estivesse dito, ainda seria necessário um dote para casá-la. Afinal era esse o costume. Ligdus decreta que, se nascesse uma menina, ela deveria ser morta. Em muitas sociedades antigas (e algumas contemporâneas) o infanticídio era aceitável, tanto de bebês que apresentassem anormalidades, quanto do sexo feminino, mesmo sem anomalias.

Teletusa estava desesperada, mas em um sonho, à meia-noite apareceu-lhe a deusa Ísis, acompanhada pelos deuses Anubis, Bubastis, Apis, Harpócrates e Osiris. A deusa lhe disse que, quando do parto, protegesse a criança fosse qual fosse o sexo. Nasceu uma menina. Com a cumplicidade da ama, Teletusa mentiu para o marido dizendo ser um menino, que convenientemente recebeu o nome de Ífis, que pode ser usado por ambos os sexos. E, assim, Ífis foi sendo criada e crescia como um belo menino. Aos treze anos Ligdus arranjou-lhe como futura noiva uma bela menina da mesma idade: Iante, filha de Telestes. Ífis e Iante passaram a conviver e estudar juntas. E se apaixonaram. Sem saber quem era em realidade seu noivo, Iante ansiava pelas núpcias. Enfim, a data do casamento foi marcada. E em belos versos Ovídio descreve o amor e o desespero de Ífis. Sua mãe dizia-se doente e inventou todo tipo de outras desculpas, conseguindo adiar várias vezes a cerimônia. Até que não houve mais jeito. Então, levou Ífis ao templo de Ísis e em prantos invocou a deusa.

A estátua pareceu balançar, a deusa pareceu sacudir seu altar, as portas do templo estremeceram, brilhava a coroa com o crescente [...] feliz com o presságio favorável, a mãe saiu do templo. A seu lado caminha Ífis, mas com passos maiores que de costume, desaparecera a palidez de seu rosto, maior parecia sua força, mais dura está a própria expressão [...] O dia seguinte desvenda o vasto mundo com seus raios, quando à cerimônia nupcial Vênus, e Juno e Himeneu e todos chegam, e Ífis, o rapaz, toma para si a sua Iante (OVÍDIO, 2004, p. 244, adaptação nossa).

A história de Ífis foi novamente contada cerca de dois séculos depois por Antonino Liberal (Antoninus Liberalis), gramático grego do século II, em seu livro Metamorfoses (LIBERALIS, 2005). Trata-se de um resumo muito curto, também ambientado em Creta, mas mudam todos os nomes dos personagens. Ífis é Leucipo, sua mãe Galatea e seu pai Lampro. Liberal não cita o amor e o casamento com Iante. E o episódio da mudança de sexo se dá no santuário da deusa Leto.

Contudo, o curto texto de Liberal fornece dados importantes. Cita que a história foi tirada do segundo livro das Metamorfoses, de Nicandro de Cólofon, poeta, prosador e médico grego do século II a.C. Possivelmente a mesma fonte que também inspirou Ovídio. É provável que Liberal, e não Ovídio, tenha mantido os nomes originais do mito. E como bom erudito da época helenística, que reciclava e embelezava todos os mitos antigos, mas pouco criava de novo, é bem aceitável que Nicandro deva ter se inspirado em narrativa ou narrativas mais antigas.

Outra indicação de que se trata de história bem mais antiga se refere à deusa Leto. Na mitologia grega Leto é filha de um Titã, ente da segunda geração das divindades, anterior aos deuses do Olimpo. Na verdade, uma ponte entre essas duas gerações, uma vez que Leto com Zeus concebeu Apolo e Artêmis, o que pode indicar que a história tenha se originado na Grécia Arcaica ou antes. Horace Gregory (2009, p. 228), poeta e tradutor de Ovídio, defende que a deusa Ísis fora colocada porque tudo ligado ao Egito estava na moda ao final da república romana e início do império. Reflexo da sedução que Cleópatra VII tivera entre romanos célebres e na própria cidade de Roma, onde residiu longo tempo.

Uma curiosidade adicional é que um editor do século XVII disse possuir um manuscrito e uma peça não publicada de William Shakespeare. Ou era mentira, ou o manuscrito acabou sendo perdido. Foram inúmeras as atribuições à autoria do poeta inglês após sua morte. Duas peças foram aceitas, duas provavelmente perdidas para sempre. A autoria da peça em questão, da qual só o título é conhecido, foi recusada pela maioria dos especialistas. Mas uma das maiores fontes de inspiração de Shakespeare foram as Metamorfoses, de Ovídio, na tradução de Arthur Golding. O título da peça perdida, uma comédia, era Ífis e Iante, ou o casamento sem um homem (Iphis and Ianthe, or Marriage without a Man).

 

Considerações sobre o mito de Ífis e Iante

Uma história da época helenística, que pode ter sido baseada em um mito mais antigo, e reciclada por autores da época romana, antecipa mais de dois milênios um debate atual. Ao contrário de Cenis, que até a idade adulta era e se mostrava como mulher, Ífis desde o nascimento fora criada e se mostrava como menino. Mais do que isso, utilizando o termo contemporâneo, sua identidade de gênero sempre foi masculina. Assim como em sua expressão cultural de gênero sempre foi a de um menino ou um rapaz. Seu amor por Iante sequer pode ser classificado como homoerótico. O desespero de Ífis diante do casamento se dá por não poder consumá-lo como homem, e que seria desmascarada por Iante e pela sociedade. Não se tratava de um conflito distônico ao eu.

Pode o desejo consciente ou inconsciente dos pais moldar a identidade de gênero de um bebê em oposição ao seu sexo biológico? Pela história de Ífis, pode. Parece até um dos textos mais radicais dos teóricos que defendem a construção social do gênero, e até mesmo dos que defendem que a identidade de gênero possa ser completamente adquirida.

No mito de Ceneu prevalecem todos os estereótipos de uma cultura patriarcal guerreira: sadismo, violentação sexual, a violência física. Uma variedade de símbolos fálicos e o assassinato de seres dotados de um pênis ainda maior que o de Ceneu: os centauros, que por sua vez terminam por levá-lo à destruição. Numa interpretação contemporânea, deixando de ser mulher, Ceneu se tornou uma caricatura do masculino. Nos textos que chegaram até nós, mesmo o de Ovídio, a narrativa provém de um observador externo. Não há sutileza ou interioridade dos personagens. Somos nós, de milênios depois, que fazemos interpretações psicologizantes. Ao masculino a cultura patriarcal parece ter o cacoete de negar sentimentos e hipertrofiar o comportamento num compulsivo e sádico fazer.

O mito de Ífis se mostra o oposto. Teletusa, num ato desesperado, salva seu bebê. Mesmo que tenha sido por puro narcisismo, há o ato de preservação da vida. A narrativa de Ovídio é permeada de comentários sentimentais e eróticos.

Iante ansiava pelo dia das núpcias e do matrimônio combinado, e acredita que será seu homem quem ela julga ser homem. Ífis ama-a sem a esperança de a poder possuir, e por isto mesmo a amava mais ainda [...] (OVID, 1984, p. 55, tradução e adaptação nossa).

Através dos pensamentos de Ífis, o poeta nos mostra o diálogo silencioso dela consigo mesma, em que nos descortina sua paixão e seu desespero:

É a esperança que causa o amor, é a esperança que o alimenta. A realidade tirou-te a esperança. Não é um guardião severo quem te afasta do teu terno abraço, não é o zelo de um marido desconfiado, não é ela quem recusa teus pedidos (OVID, 1984, p. 57, tradução e adaptação nossa).

Sem dúvida Ovídio, autor de vários livros sobre o amor e o erotismo, pertence a uma época psicologicamente muito mais sofisticada que a de Homero. Contudo é também seu mérito descrever por dentro os sentimentos de um ser humano, sua interioridade, não apenas e exterioridade de um Hesíodo, ou do próprio Ovídio quando descreve o mito de Ceneu. Ífis nos revela seu ser, não apenas um compulsivo fazer. Mais que um falo, humanamente deseja um pênis. Mais que para se satisfazer, para satisfazer a quem ama. Apesar da violência máxima que o destino lhe brindou, ameaçada de morte ao nascer, o desejo de Ífis é quase todo de pulsão de vida. Aparente contrassenso que deseja se transformar fisicamente em homem, mas não para obter as características estereotipicamente associadas pelo patriarcado ao masculino, tais a violência e o sadismo. Não deseja ser um guerreiro, mas um bom marido. Seria uma visão muito feminina do masculino?

O feminino surge sempre como protetor e guardião da pulsão de vida no mito de Ífis. É a deusa quem aconselha contra a morte do bebê. A mesma que, tal como prometera, teatralmente conserta tudo. Não um deus distante e violentador. Ísis ou Leto, mais parecem uma avó bondosa aconselhando a filha. E é Teletusa quem salva sua própria filha. É a paixão por outra mulher – Iante que descortina a Ífis a doce desespero do primeiro amor. Causa da angústia de castração que conduz Ífis à aquisição de um genital masculino. Juno, a deusa do casamento é a primeira na série de divindades que aparecem na cerimônia.

Nesta história o feminino se caracteriza na aparência de um comportamento passivo e de espera, que em realidade ao longo do tempo se revela ativo e eficaz. Uma espera que é conter no interior de si o desejo até que seja possível a pulsão surgir no mundo externo. O oposto do fazer compulsivo, primeiro gestar e amadurecer até o fazer. A história de Ífis é descrita pelo poeta num discurso literário sobre sentimento e pensamento como interiores. Sobre o mito de Ceneu nos apropriamos das palavras de Jacques André:

A via masculina é de uma dupla transformação: da passividade primária em atividade e do pavor em prazer (ANDRÉ, 1996, p. 108).

E para o mito de Ífis aproveitamos outras palavras do mesmo autor:

A via feminina permanece no terreno da passividade [...] mas transita do pavor ao gozo. [...] ou seja, a ligação íntima entre a passividade e o interior (ANDRÉ, 1996, p. 108).

O mito de Ífis também conduz ao cerne do pensamento freudiano. Ao contrário do mito de Ceneu, dele podemos direcionar para o objeto da psicanálise: a primeira infância. E para questionar o próprio relato da história, que evade de um discurso sobre o desejo inconsciente. Seu pai conscientemente a rejeita e ameaça de morte se for menina. Sua mãe conscientemente a deseja menino desde o início. Socialmente pelo noivado passou de menino a homem. A grande diferença em relação entre as discussões de áreas não psicanalíticas é que o desejo dos pais de Ífis é consciente e, para a psicanálise, só o desejo inconsciente teria tal poder de moldar a identidade de gênero de um bebê.

 

Os mitos de Afrodito e Hermafrodita

Autores gregos antigos (Aristófanes e Filocoro) e o romano Lévio mencionam uma deusa chamada Afrodito (Aphroditos). Dela também foram encontradas estátuas e pequenas esculturas compondo uma figura com seios e formas femininas, algumas vezes barbadas, outras não, num gesto de levantar as saias com as mãos e mostrar genitais masculinos em ereção. Com esse gesto também afastariam influências malignas e mal olhado. A relação entre Afrodito e Hermafrodita é confusa. Mas, ao contrário de Afrodito, Hermafrodita jamais é representado com barba. Outros autores (Teofrasto e Alcifrão) mencionam o culto a uma estatura e um templo do Hermafrodito. Desde o século V a.C. sobreviveram vestígios, associados a estas divindades, de ritos nupciais e de fertilidade com práticas travésticas.

Deixaremos de lado deusas associadas à figura de uma grande mãe, como Cibele, em que os sacerdotes são descritos como afeminados e se castravam. Deusas como Cibele e Agdistis parecem ter uma origem oriental diversa.

O nome Hermafrodita é explicado de forma mais corriqueira como a combinação dos nomes de seus pais, Hermes e Afrodite. Mas também pode significar ‘herma de Afrodite’. Herma era um pilar quadrado ou retangular de pedra, terracota ou bronze sobre o qual se colocava uma cabeça do deus Hermes, que era um deus fálico. Com o tempo passou a nomear esse tipo de estátua com a cabeça ou busto de qualquer outro deus ou deusa. As origens mais antigas de Afrodito e de Hermafrodito ficaram hoje quase esquecidas. Talvez em função da repressão cultural judaico-cristã, que culminou na destruição de milhares de estátuas e templos ao final da Antiguidade. Os vestígios da origem mais remota dos mitos foram ofuscados por um dos relatos literários mais famosos de Ovídio. Conto que deve ter sido inspirado em versões tardias, provavelmente da época helenística, originadas de uma tradição mais antiga de divindades intersexuais.

Já mencionamos o relato de Ovídio nas Metamorfoses da conhecida é a história de Hermafrodita (OVID, I, 1984, p. 198-205). Filho de Afrodite e de Hermes, teria nascido um menino extremamente bonito. Passeando pelos bosques encontrou um lago onde vivia a náiade Salmacis que foi por ele tomada de paixão. Mas ela não lhe despertou nenhum interesse. Acreditando que Salmacis tivesse ido embora, Hermafrodita se despiu e foi se banhar no lago. Foi quando a náiade firmemente o abraçou. Enquanto ele lutava por se desvencilhar, ela invocou os deuses para nunca mais separá-los. Seu desejo foi concedido, e seus corpos se misturaram numa forma intersexual. Hermafrodito, aflito e envergonhado, fez então seu próprio voto, amaldiçoando o lago de forma que todo aquele que ali se banhasse seria igualmente transmutado, como ele próprio num semi-homem privado de metade de sua força.

A representação artística das hermas e estátuas de Afrodito, e da estátua mais famosa de Hermafrodita, também não são representações transexuais, no senso estrito como hoje definimos. Não se trata da passagem da identidade de gênero do sexo do nascimento à do sexo oposto, mas de entidades que ao mesmo tempo combinam características físicas e de expressão de gênero de ambos os sexos, isto é, intersexuais. A mais conhecida, que pode ter inspirado Ovídio, é a do ‘hermafrodita dormindo’, uma estátua em bronze de um escultor grego do século II a.C., da qual três cópias em mármore da época romana chegaram até nossa era. A mais conhecida foi encontrada nas ruínas das termas de Diocleciano e hoje se encontra no museu do Louvre. O corpo é inspirado nas representações de Vênus. Visto por detrás com contornos, tez e nádegas femininas. De frente com pequenos seios, mas com genitais masculinos.

Como nos mitos de Tirésias e Siprites, a transformação do Hermafrodito de Ovídio também aconteceu contra sua vontade. Tanto que motivou lançar uma maldição. E não se tratou em uma mudança completa, ou quase, para o sexo oposto ao biológico de nascença. Também por isso hoje deve ser rotulado de intersexual. Na literatura latina, e provavelmente na helenística tardia, em vez de representar a união das forças de ambos os sexos como nos cultos mais antigos, é uma criatura enfraquecida. Representação patriarcal de que toda característica feminina num homem o denigre. Bem como a advertência de que, se uma mulher toma a iniciativa em amor e sexo, o resultado será funesto.

A transição entre as estátuas e os cultos aos deuses Afrodito e Hermafrodita, e o personagem de Ovídio, está bem documentada pelo historiador Diódoro Sículo, grego do século I a.C. Anterior a Ovídio, Diódoro inicia sua extensa obra pelo relato dos mitos que teriam precedido a história como hoje a definimos.

Alguns dizem que Hermafrodito é um deus que em certas épocas aparece aos homens [...] possuindo o corpo delicado e belo de uma mulher, mas que também possui a qualidade masculina e o vigor de um homem. Mas outros dizem que tais criaturas de dois sexos são monstruosidades e que raramente vêm ao mundo, pois possuem o dom de predizer o futuro, algumas vezes para o mal, outras para o bem (DIODORUS SICULUS, v. II, 1994, p. 361, tradução nossa).

 

Considerações sobre os mitos de Afrodito e Hermafrodito

No quadro de definições propostas ao início, intersexualidade diferiria de transexualidade. Mas a observação mostra que também podem ser vistas como fenômenos complementares. Apenas o extremo de um amplo espectro, desde o binarismo absoluto, que seria mantido na transexualidade completa, até uma relativização que idealmente combinaria em proporções iguais às características de ambos os sexos. De qualquer modo, o mito de Hermafrodita relatado por Ovídio, pela transformação lhe ter sido imposta contra sua vontade, permanece fora desses rótulos. Já os resquícios, que apontam na direção de cultos a entidades intersexuais mais antigas, na Grécia, podem fornecer pistas importantes para a compreensão psicanalítica das questões colocadas pelas transexualidades.

Um conhecido e excelente egiptólogo amador, ao escrever sobre vários deuses egípcios possuidores de características do que hoje se denomina de intersexualidade, afirma que:

A mitologia nos ensina que a constituição andrógina, isto é, uma combinação das características masculinas e femininas, era atributo não só de Mut mas também de outras divindades, tais como Ísis e Hathor [...]. Ensina-nos, mais, que outras divindades egípcias tais como Neith de Saís de quem se originou, mais tarde, a Atenas dos gregos foram originariamente concebidas como andróginas, isto é, como hermafroditas, e que o mesmo se dava com muitos dos deuses gregos, especialmente aqueles que eram associados a Dionísio, mas também a Afrodite, que mais tarde se limitou a representar uma deusa feminina do amor. A mitologia explica que o acréscimo de um falo ao corpo feminino é uma representação da primeva força criadora da natureza, e que todas essas divindades hermafroditas são expressões da ideia de que somente a combinação dos elementos masculino e feminino poderá de fato simbolizar a perfeição divina (FREUD, [1910] 1978, p. 144, tradução nossa).

Segundo Freud as teorias sexuais infantis explicam a criação dessas divindades intersexuais. Há uma época em que o genital masculino é compatível com a imagem materna. Freud já narrara que o pequeno Hans, por exemplo, já havia dito para a sua mãe que ela “[...] era tão grande que tinha um pipi igual ao de um cavalo”. Mas a lógica do criador da psicanálise sempre vai na direção de que o órgão a ser universalmente atribuído pelas crianças deve ser o pênis. Não deixa de ser coerente no universo clínico limitado de Freud, cuja única experiência de uma protoanálise infantil fora com um menino já em plena fase fálica. Que sem o saber era bem freudiano ao validar que a imagem de que tinha de sua mãe era a de um Afrodito do início do século XX. Mas é hoje corrente a crítica de que a lógica freudiana em atribuir universalidade ao sexo masculino, rebaixando o feminino ao papel de um homem castrado, reflete a ideologia do patriarcado. Ideologia tão penetrante que um menino de cinco anos, extremamente inteligente e perspicaz, negava e recalcava todas as observações concretas em oposto.

Por outro lado, representações mais antigas do Hermafrodita, e mesmo a estátua do Hermafrodita deitado, apesar de uma criação tardia da Antiguidade, podem ser interpretadas nos dois sentidos. Um ser com atributos de ambos os sexos sem dúvida pode ser o produto da negação da castração. Só que em sentido inverso, a atribuição de um pênis a uma mulher também a direciona no sentido na atribuição da característica feminina mais proeminente – o seio – a um homem. E mesmo sendo necessário, diante da realidade, reconhecer que os seres humanos só possuem uma das metades dessas divindades intersexuais, o mesmo raciocínio implica que um ser superior e além dos humanos deveria ter atributos de ambos os sexos. Como escreveu Freud, a perfeição divina, a representação da primeva força criadora da natureza, deve ser intersexual.

Freud não se deu conta da contradição inerente a sua descrição das figuras combinadas de ambos os sexos nas mitologias egípcia e grega, e a nulidade do papel das mulheres em seu texto logo posterior Totem e tabu. O pai primevo também poderia ter sido uma mãe primeva. Ou ao menos que na conspiração de filhos do pai primevo, as mulheres não teriam sido apenas objeto passivo da cobiça masculina. A lógica de Totem e tabu continua sendo falocêntrica, embora permita um tênue aceno de crítica sobre a precedência histórica e a heteronormatividade do patriarcado.

Mas o fundador da psicanálise era um homem e, se revolucionário em muitos aspectos, em outros um homem do seu tempo. Eentre todas as mulheres que vieram a se dedicar à psicanálise no século XX, Melanie Klein foi a maior causadora da reversão do falocentrismo freudiano. Resumindo, em uma de suas principais obras ela escreve ter encontrado na clínica muito mais resistência e dificuldade na interpretação e resistência quanto a inveja do seio, do que em relação ao Édipo (KLEIN, 1975, p. 179). Isso equivale dizer que na clínica o seio materno precede o pênis do pai. Klein, tal Freud, sempre abonou a ideia de que a ontogênese segue a filogênese, a construção de cada ser humano segue as etapas do processo de antropogênese da humanidade. Logo, antes da lei paterna e do nome-do-pai, isto é, do patriarcado, precede uma função materna e o matriarcado. Não por menos a psicanalista e filósofa feminista Julia Kristeva coloca Klein entre as três mulheres do século XX que considera as maiores detentoras da genialidade feminina.

É de Melanie Klein a descoberta de que há no inconsciente ao início da primeira infância uma figura semelhante ao Hermafrodita. Trata-se da fantasia dos pais combinados, mais precisamente, dos seus órgãos sexuais firmemente unidos em um ato sexual permanente. Explicação de muitas fantasias e sonhos, pesadelos acima de tudo, nos quais se é perseguido por figuras como as de contos de fadas, como ogros, gigantes muito gordos ou monstros. A interpretação das imagens revela características de ambos os sexos. Embora se trate de uma figura persecutória que costuma surgir até em crianças de poucos meses de vida, pode contribuir para a emergência de quadros psicóticos se for recorrente e acompanhada de intensa ansiedade.

Mas fora o próprio Freud quem descrevera que uma das principais características do sagrado é ser possuidor do mana, poder terrível e mortal, como o dos deuses gregos, que, se aparecerem em sua plenitude aos humanos, os fulminam. E se interpretarmos a figura dos pais combinados como criada, pela inveja e voracidade do bebê, a partir da deturpação da imagem mais antiga, onde predominaria o lado benéfico do mana? Na imagem de uma ‘mãe’2 contendo tudo que de mais idealizado e desejado por um bebê. Em termos kleinianos, algo ainda detentor do objeto mais cobiçado – o seio – e todos os outros objetos parciais emanados e associados ao seio: pênis, fezes, calor, cheiro, voz, e sabe-se mais o quanto.

O psicanalista kleiniano Donald Meltzer mostrou como, mesmo em textos de Melanie Klein, embora a autora vacile, há uma direção em considerar “esta figura combinada como núcleo do ego e da força do ego [...]” (MELTZER, 1978, p. 115).

Mais tarde R. D. Hinshelwood, professor de estudos psicanalíticos da Universidade de Essex, definirá em seu Dicionário do pensamento kleiniano (1992):

Gênero: Os objetos parciais “mãe”, “pênis”, “seio”, “mamilo”, etc. surgem primeiramente como objetos que povoam a fantasia inconsciente e são mais tarde atribuídos a membros da família. É importante lembrar que, embora a atribuição social de gêneros à mãe e ao pai reais parece classificar os objetos parciais entre os pais [...] a criança não faz isso. Antes da socialização e da aceitação mais consciente destes atributos de gênero, o bebê experienciará esses objetos parciais em qualquer um dos genitores e, depois, apesar das atitudes socializantes, pode continuar a existir uma busca ardente pelos aspectos maternais dos homens ou pelos aspectos masculinos das mulheres. De fato, a união dos pais permanece dentro da personalidade e a maturidade consiste em uma capacidade crescente de tolerar, acolher e valorizar ambos os aspectos, abraçados juntos dentro do self (HINSHELWOOD, 1992, p. 405).

A imagística divina mais antiga de Afrodito é mais que um grande desmentido da castração simbolizado pelo “véu” que encobre seus genitais masculinos em ereção. Assim como a de Hermafrodito não é tão somente a de uma fantasia fetichista, de uma mulher com pênis ou de um homem com seios. Isto é, tão somente a de uma imagem que negue a castração como o quer a interpretação mais comum do travestismo, por exemplo. Mas uma imagem anterior ao Édipo, mesmo de um Édipo muito precoce como postulava Klein. Uma imagem prenhe de narcisismo, ainda não ferida pela percepção da dicotomia sexual e pelo binarismo. Porém, trata-se da imagem primeva, tal como discorria Klein sobre a imagem combinada da mãe que contém o pênis do pai e não o inverso. Imagem que, ao contrário do que pontifica o velho patriarcado, antecede ao falo e será a origem de dons sempre associados ao feminino.

Se, por um lado, o totemismo é a simbolização no concreto da lógica fálica, Totem e tabu contém um aceno na direção oposta à heteronormatividade e ao patriarcado. Escreve Freud que a união dos irmãos contra o pai primevo

[...] pode ter-se baseado em sentimentos e atos homossexuais, originados talvez durante o período da expulsão da horda. Aqui também pode ser encontrado o germe da instituição do matriarcado, descrita por Bachofen [1861] que foi, por sua vez, substituída pela organização patriarcal da família (FREUD, [1913] 1978, p. 144).

 

Algumas construções psicanalíticas sobre identidade de gênero

Embora Freud tenha sempre defendido a bissexualidade, para ele o único órgão sexual reconhecido pela criança nos dois sexos era o órgão masculino. A menina apenas descobre que é um menino com um pênis muito pequeno. Mutilação da qual sua mãe não a defendeu. E da qual meninos e homens passam o resto da vida se defendendo. Durante décadas Freud postulou que a libido era masculina, ou seja, a sexualidade humana se ordena segundo o falo, conceito ambíguo, por mais que se tente distingui-lo de pênis. Ainda em vida de Freud surgiram muitas críticas a essa criação do feminino, um tanto parecida com a do Gênesis, em que a mulher surge de um simples pedaço do homem, privilegiado modelo da criação primeira.

Ao longo do progresso da psicanálise no século XX, o maior movimento de inversão do falocentrismo freudiano derivou de Melanie Klein. Haja vista o impacto da leitura do artigo sobre o Édipo precoce nos textos de Freud Sexualidade feminina e Feminilidade. Possuindo vasto material clínico, Klein postulou que, como objeto o seio da mãe de muito antecede o pênis do pai, a importância das fases pré-edípica e da mãe como sedutora primeira. Ideias que Freud em grande parte incorporou naqueles dois textos.

Ao reestudar a sexualidade a partir da pulsão e dos destinos da pulsão, em sua conferência sobre Feminilidade ([1932] 1996), também admitira que a equação entre atividade e masculinidade, bem como seu correlato lógico, feminilidade e passividade, não procedia. E que

Existe apenas uma libido, que tanto serve às funções sexuais masculinas, como às femininas. À libido como tal não podemos atribuir nenhum sexo (FREUD, [1932]1996, p. 130).

Se a libido não é privilegiadamente masculina e se o objeto primeiro é o seio, é fácil compreender a dedução de Robert Stoller para que:

Consideremos agora essa possibilidade: o que Freud pensou que fosse uma qualidade elementar, “protesto masculino” ou “repúdio à feminilidade” nos homens, ao invés de ser o reflexo de uma força biológica, é uma manobra defensiva, inteiramente não biológica, contra um estágio primitivo de proximidade e identificação com a mãe. Comparativamente em mulheres, anterior à inveja do pênis em meninas, existe um estágio de feminilidade primária (STOLLER, 1982, p. 11, grifos do autor).

O desafio de Stoller ao primado freudiano do masculino torna-se mais grave, na medida em que acabou por afirmar o seu oposto, um imprinting feminino primário. Embora pioneiro em muitos temas audaciosos à sua época, o psicanalista americano deixou incompletas muitas de suas ideias mais ousadas. Observações pessoais e o aprofundamento bibliográfico sobre transexualidade, bibliografia da qual Stoller foi pioneiro e leitura indispensável até hoje, permitiram que separássemos feminilidade primária de identificação feminina primária e desdobrássemos o conceito de imprinting como ocorrendo em dois momentos.

Por feminilidade primária incluímos tanto o seio bom kleiniano, mas ainda como pré-objetal ou mesmo anobjetal, associada à descrição de Winnicott de que através dessa forma de relação, denominada de elemento feminino puro, mãe e bebê em conjunto estão sendo, e o bebê crê que o seio é criação sua. Ser é conter dentro de si e gestar, depois uma alternância entre um cuidar ativo e uma passividade criativa. Colocar-se como espera que permita ao bebê desabrochar sua singularidade: ser em oposição a um posterior fazer.

Conter, gestar, cuidar, qualidades que serão sempre vistas como femininas. De um feminino que surge como protetor e guardião da pulsão de vida, que possui acesso privilegiado a tudo que é interior, como ao sentir dentro de si a subjetividade, tal como no mito de Ífis. Características que serão sempre depois associadas ao feminino, embora não se trate ainda de um feminino binário, isto é, que exista em oposição a um masculino.

Entre a mãe e seu bebê há momentos de fusão winnicottiana, em que o bebê acha que a ‘mãe’ (seio) é criação sua. Que se alternam com momentos em que já há objeto parcial fora, mas oralmente incorporado. Por longos momentos não há o contato de duas peles, porque ainda não há separação entre dois seres diferentes. Aos poucos, aumenta a alternância com momentos cada vez mais longos, em que já existe um contato de pele entre duas individualidades separadas. Mas mesmo através da visão inicial, o seio bom já se constitui como o núcleo inicial do ego.

Na possibilidade de constituir o ser, temos a metáfora da constituição da matéria de que é feito um carimbo. Que ainda não possui a placa de metal ou plástico com os dizeres que nomeiam seu uso, mas primeiro tem de ser feito bem sólido para ser utilizado. Se não se consolidar a feminilidade primária, teríamos o âmago para as psicoses e os autismos. Tal uma bandeira ou estaca, o falo não pode ser fincado no barro. Não há significante que se estabilize. Não há totem que fique em pé. O que dá para entender, mas não para justificar, a confusão de tantos psicanalistas, seja por preconceito disfarçado, seja por falta de observação clínica, entre casos de transexualidade e sintomas de um psicótico como Schreber.

Já a identificação feminina primária seria um momento posterior. Identificação com a mãe, já reconhecida como um objeto parcial mais integrado e já nomeado com o significante ‘mã’ em todos os idiomas. Momento em que o movimento labial de sucção do seio, que se afasta ou se recusa, e cuja ausência é reconhecida e preenchida pelo bebê por um som que forma o primeiro significante. Já ocorre um reconhecimento de que o contato de pele prolongado é entre dois seres distintos. Ocorre a passagem de um envelope ao outro. Como descreveu Freud, já que não se pode ter, passa-se a ser como. O objeto metamorfoseia-se em identificação. Núcleo inicial da identidade de gênero feminina: ‘ser como a mãe’. A semelhança com a etologia, Stoller denominou de impriting, termo cuja tradução correta em português seria ‘cunhagem’. Momento em que é colocada a placa, antigamente de metal, hoje de borracha, no carimbo, que doravante marcará todo o ser e todo o fazer.

Em um terceiro momento, após o ápice da identificação feminina primária, concordamos com a leitura de Stoller feita pelo colega Rodrigo Zanon, que o responsável pelo processo desidentificatório seria a entrada do um terceiro constituindo o início do processo edípico clássico freudiano. Nesse terceiro momento também ocorre um segundo tempo do imprinting, em que a identificação feminina primária pode ser recalcada e ressignificada em identificação masculina, transformando a identidade de gênero feminina em identidade de gênero masculina. Assinale-se que esse terceiro, essa função ‘pai’, não se refere necessariamente ao pai biológico. Pode até mesmo ser feita pela própria mãe, igualmente biológica ou não, através da imago consciente e inconsciente que dentro de si traz da função paterna. E que o segundo tempo do imprinting também pode ocorrer em sentido oposto, reforçando a identidade de gênero feminina. Também nesse caso em direção oposta à fusão materna original, e sim de um feminino como possibilidade de conter e gerar a diferença, assim como aprofundar a singularidade e a interioridade. Um segundo tempo do imprinting em que a primeira cunhagem da placa do carimbo pode ser reforçada ou substituída. Mas sem dúvida, tanto o reforço da identidade de gênero feminina quanto a translação em identidade de gênero masculina seriam fruto do primeiro momento de entrada na triangulação edípica.

Por sua vez, um segundo tempo da triangulação edípica seria o definidor da escolha objetal. Em realidade muitas vezes seria um momento mais lógico do que cronológico. Algumas crianças antes dos dois ou três anos, ainda de passagem pela identificação feminina primária e antes das expressões de gênero serem impostas, já apresentam escolhas objetais definidas para a vida inteira. Um número provavelmente maior de crianças exibem vários tipos e graus de objetos, desde a bissexualidade até escolhas objetais nítidas ao final da primeira infância e latência. Que podem ser confirmadas ou refeitas na adolescência ou no início da idade adulta. Um modelo com vários momentos de fazer e refazer a escolha objetal facilita a compreensão dos vários graus da bissexualidade proposta por Freud e pesquisada por Kinsey. Referendadas pela observação de que na prática há desde crianças com uma escolha objetal precoce e bem definida e até muitos ‘pequenos Hans’ que, segundo Freud, era o “paradigma de todas as perversões”. Dessa forma as escolhas objetais podem apresentar todas as combinações possíveis em relação à identidade de gênero. Da mesma forma que podem até mesmo se expressar de modo variável ao longo da vida em pessoas cuja identidade de gênero está em concordância com o sexo biológico, também podem ou não mudar no caso de transexuais.

Em paralelo ao feminino primário e à identificação feminina primária, existe um quarto item: o investimento narcísico e traumático nos genitais. Apesar de os genitais biologicamente serem passíveis de alto grau de sensibilidade no bebê, esta pode ser incentivada ou recalcada tanto pela manipulação concreta quanto pelas fantasias inconscientes da mãe e outros cuidadores.

André (1996) escreveu muito sobre a manipulação concreta de adultos não perversos, francamente ativa e necessária para limpeza e higiene de bebês e crianças pequenas. Cuidados exacerbados por muitos que cuidam de crianças, colocando-as em total posição de passividade, desde seios e mamadeiras que literalmente invadem o bebê até cuidados de limpeza em que ele sofre de uma manipulação tão intensa que literalmente ele é arrombado (tradução correta de effraction, termo muito usado por André). Passando por truques como fechar com os dedos o narizinho do bebê turrão, obrigando-o a abrir a boca, para enfiar-lhe uma colherada de comida. A tudo isso soma-se a “confusão de línguas” tão famosa descrita por Ferenczi. Sempre se referindo a adultos não perversos, André coloca como inevitável, e em sua esmagadora parte inconsciente, que a sexualidade adulta do adulto seja percebida e traumática ao bebê ou criança pequena.

Assim, ocorre uma inevitável e humana combinação universal de narcisismo e trauma na qual os genitais biológicos podem ser investidos ou repudiados. As protuberâncias do corpo (Freud) e as bordas de todos os orifícios (Lacan) podem ser investidas em vários graus, ou não. Todas dependem de investimento narcísico e fantasias inconscientes e conscientes da mãe e cuidadores, sendo reforçada por manipulações genitais diretas. Protuberâncias podem ser investidas ou não. As bordas podem variar mais ainda. O sexo genital torna-se um quarto item em todas as combinatórias possíveis com: a identidade de gênero, a expressão de gênero e a escolha objetal.

 

Conclusão

Os mitos de Ceneu e Ífis tratam de uma questão bem delicada sobre transexualidade: a do feminino em masculino. Quatro a sete vezes mais rara que seu oposto. Observando alguns casos, Stoller descreveu bebês do sexo feminino para os quais uma mãe deprimida era incapaz de fornecer uma identidade de gênero consonante ao sexo biológico de nascimento. Autores posteriores, ou repetiram essa hipótese, ou se calaram sobre o assunto. Seja qual for a validade da tese stolleriana, uma explicação única sempre se mostra insuficiente para qualquer aspecto da natureza humana.

Ao mito de Ceneu podemos invocar as ideias de André. Para esse autor, seja por estimulação genital, seja através do reto, é muito pouco crível que um bebê do sexo feminino de seis meses ou mais não tenha percepção da estimulação vaginal. Contudo, a manipulação corpórea excessiva, indo até ao arrombamento (effraction), provocaria trauma e fixação reativos na direção oposta: recusa à penetração e passividade genital. Se fosse relato de um caso clínico, poderíamos interpretar que o segundo momento do imprinting não foi de reforço ao feminino, mas em direção à mudança da identidade de gênero masculina. A recusa de Cenis já adulta dos pretendentes, assim como a violação por Poseidon, encaixou na neurose infantil de tal modo que seu desejo explicitado ao deus era de se tornar invulnerável em todos os sentidos.

Ao mito de Ífis pode-se pensar nos casos em que o desejo consciente ou inconsciente dos pais por um menino é forte ao ponto de sobrepor-se ao sexo biológico. No filme francês Tomboy (SCIAMMA, 2011), a protagonista, biologicamente uma menina de dez anos, apresenta uma identidade e uma expressão de gênero claramente masculinas, além de moldar em massa de brinquedo um falo para que possa vestir calção e nadar. Já na cena inicial em que o pai com o menino em seu colo, ensina a criança a dirigir o carro, passando depois por cenas em que o incentiva a beber cerveja ou jogar pôquer, fica claro o desejo manifesto por um primogênito homem. Ainda mais que a segunda filha é uma muito feminina garotinha de seis anos. Associa-se uma linguagem de dúbios duplos sentidos, que revelam ao espectador o desejo inconsciente do pai. E desde o início o espectador sofre um estranhamento de como tanto o pai quanto a mãe, grávida do terceiro filho, tomam como absolutamente normais as condutas da ‘filha’. São pais afetuosos, aparentemente um bom casamento de pessoas de classe média baixa, sem pruridos do ‘politicamente correto’. A Ífis contemporânea conquista até as atenções de uma namorada. Nada indica um relacionamento lésbico, mas um primeiro amor de um menino pré-adolescente despertado por uma menina um pouco mais velha, que não tem dúvida que seu apaixonamento é por um garoto. Só quando a realidade externa se impõe, a cumplicidade familiar é obrigada a se submeter ao social.

O declínio de mitos de divindades intersexuais ou femininas, e de sua redução à história do personagem Hermafrodito, ilustram bem a imposição do patriarcado. Do qual vários pensadores colocaram a obra Freud como sendo uma versão laica modernizada. Mas o desenvolvimento kleiniano pode ser visto como o pêndulo da balança virando em sentido oposto. Ainda mais por criar o arcabouço para a observação e o estudo de bebês e crianças na primeira infância. Várias teorias psicológicas, tal a psicologia analítica, abordaram a importância da integração de elementos femininos e masculinos para a maturidade e realização em ambos os sexos. Mas, por sempre refutarem a sexualidade infantil descrita por Freud e seus derivados como a amnésia infantil e o recalque, permaneceram como teorias demais especulativas e superficiais. A observação de transexuais e o estudo de intersexuais permite que se compreenda a conjugação, ou não, de componentes de ambos os sexos a partir de toda a herança teórico-clínica criada a partir dos Três ensaios sobre a sexualidade.

Por último, o desafio que as transexualidades impuseram à psicanálise atingindo o núcleo edípico de seu paradigma, bem como o risco de reduzi-la à terapia de ego, tal como descreveram Sigal e Birman, pode ser provisoriamente respondido. A conceituação de um terceiro momento após o ápice da identificação feminina primária constitui a entrada no processo edípico freudiano. Momento em que a identidade de gênero é confirmada ou ressignificada. Ao mesmo tempo que permite o desenvolvimento de uma ideia tão rica como a do imprinting de Stoller, despatologiza identidades de gênero diversas do sexo biológico e permite que a terapia psicanalítica clássica seja postulada, quando obstáculos se interpõem ao desenvolvimento completo dessas identidades.

 

Referências

ACUSILAUS OF ARGOS. Fragments. In: Demonax Hellenic Library Beta. Disponível em: http://demonax.info/doku.php?id=text:acusilaus_of_argos_fragments.         [ Links ]

ANDRÉ, J. As origens femininas da sexualidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1996.         [ Links ]

ANTONINUS LIBERALIS. Les métamorphoses. Paris: Société d’Édition Les Belles Lettres, 1968.         [ Links ]

ARÁN, M., MURTA, D., LIMA, F., LION, T. Transexualidade e saúde: condições de acesso e cuidado integral. IMS IMS-UERJ/MCT/CNPq/MS/SCTIE/DECIT, s.d.         [ Links ]

BIRMAN, J. Sexo e gênero. Conferência pronunciada na Jornada XV - O sexo que habito, do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos. Rio de Janeiro: EBP-RJ, 21 jun. 2016. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kaNHGzI56Xc. Acesso em: 26. fev.2017.         [ Links ]

BLUNDELL, S. Women in Ancient Greece. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1995.         [ Links ]

BRISSON, J. Sexual ambivalence- androginy and hermaphroditism in Greco-Roman Antiquity. Translated by Janet Lloyd. Berkeley, Los Angeles, London: University of California Press, 2002.         [ Links ]

CARPENTER, T. H. Art and myth in Ancient Greece. London: Thames and Hudson Ltd., 1994.         [ Links ]

CECCARELLI, P. R. (Org.). Diferenças sexuais. São Paulo: Escuta, 1999.         [ Links ]

CECCARELLI, P. R. Transexualidades. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2013.         [ Links ]

CELORIA, F. The metamorphoses of Antoninus Liberalis - a translation with a commentary. London and New York: Routledge, 2005.         [ Links ]

DELCOURT, M. La légende de Kaineus. Revue de l’Histoire des Religions, Paris, 1953, v. 144, n. 2, p. 129-150, Presses Universitaires de France. Disponível em: http://www.persee.fr/doc/rhr_0035-1423_1953_num_144_2_6001. Acesso em: 28 dez. 2016.         [ Links ]

DIODORUS SICULUS. The library of history, v. II. Translated by C. H. Oldfather. Cambridge, Massachusetts; London, England: Harvard University Press, 1997.         [ Links ]

FREUD, S. Conferência XXXIII: Feminilidade (1933 [1932]). In: ______. Novas conferências introdutórias sobre psicanálise e outros trabalhos (1932-1936). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 113-134. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 22).         [ Links ]

FREUD, S. Leonardo da Vinci and a memory of his childhood (1910). In: The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud, v. XI. London: The Hogarth Press and the Institute of Psycho-Analysis, 1978.         [ Links ]

FREUD, S. O interesse científico da psicanálise (1913). In: ______. Totem e tabu e outros trabalhos (1913-1914). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 169-192. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 13).         [ Links ]

FREUD, S. Sexualidade feminina (1931). In: ______. O futuro de uma ilusão, o mal-estar na civilização e outros trabalhos (1927-1931). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 233-251. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 21).         [ Links ]

FREUD, S. Totem and Taboo (1913). In: The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud, v. XIII. London: The Hogarth Press and the Institute of Psycho-Analysis, 1978.         [ Links ]

GREGORY, H. Afterword, commentaries. In: OVID. The Metamorphoses. Signet Classics, reprinted 2009.         [ Links ]

GRIMAL, P. Dicionaire de la mythologie grecque et romaine.15e édition, 4e tirage. Paris: Presses Universitaires de France, 2011.         [ Links ]

HESIOD. The shield, catalogue of women, other fragments. Translated by G. W. Moss. Cambridge, Massachusetts, London, England: Harvard University Press, 2007.         [ Links ]

HINSHELWOOD, R. D. Dicionário do pensamento kleiniano. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.         [ Links ]

HOMER. The Iliad. Translated by Anthony Verity. Oxford, New York: Oxford University Press, 2011.         [ Links ]

KIRK, G. S. Myth - it’s meaning and function in ancient and other cultures. Berkeley and Los Angeles: Cambridge University Press / University of California Press, 1973.         [ Links ]

KLEIN, M. Envy and Gratitude (1946). In: ______. Envy and gratitude and other works (1946-1963). London: The Hogarth Press, 1975.         [ Links ]

LAPLANCHE, J. Da teoria da sedução restrita à teoria da sedução generalizada. In: Teoria da sedução generalizada e outros ensaios. Tradução de Doris Vasconcellos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1988. p. 108-125.         [ Links ]

MELO, R. Z. Quando o Édipo não é o destino: pensando o fenômeno transexual como possibilidade identificatória e de existência psíquica. Estudos de Psicanálise, Belo Horizonte, n. 45, p. 149-165, jul. 2016. Publicação semestral do Círculo Brasileiro de Psicanálise.         [ Links ]

MELTZER, D. The Kleinian development, part II - Richard week by week. Pertshiere: Clunie Press, 1978.         [ Links ]

NILSSON, M. P. The Mycenaean origin of Greek mythology. BiblioBazaar, 2008.         [ Links ]

OVID. Metamorphoses. Translated by F. J. Miller. Cambridge, Massachusetts, London, England: Harvard University Press, 1984.         [ Links ]

OVÍDIO. As metamorfoses. Tradução de David Jardim Júnior. Rio de Janeiro: Ediouro, 1983.         [ Links ]

OVÍDIO. Metamorfoses. Tradução de Paulo Farmhouse Alberto. Lisboa: Livros Cotovia, 2004.         [ Links ]

PONTALIS, J.-B. Bisexualité et difference des sexes (Org.). Gallimard, Folio Essais, 2004.         [ Links ]

SIGAL. A.M. Ainda a psicanálise no campo da sexuação! Psicanálise e gênero. Palestra pronunciada na VII Jornada de psicanálise do CBP-RJ – NeoSexualidades: novas escutas. Rio de Janeiro: CBP-RJ – Hotel Mirador, 28.11.2015 (texto impresso distribuído).         [ Links ]

STOLLER, R. J. A experiência transexual. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1982.         [ Links ]

STOLLER, R. J. Sex and gender. London: Karnac Books, Maresfield Library, 1984.         [ Links ]

TOMBOY. Direção: Céline Sciamma. Hold up films, Arte France, Cinéma. 2011. 1 h 30 min. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=hqe-PdHy_Pk. Acesso em: 06 abr. 2017.         [ Links ]

VIRGIL. Eclogues, Georgics, Aeneid I-VI. Translated by H. R. Fairclough. Cambridge, Massachusetts, London, England: Harvard University Press, 1998.         [ Links ]

WIKIPEDIA. LGBT rights in Iran. https://en.wikipedia.org/wiki/LGBT_rights_in_Iran. Acesso em: 25 fev. 2017.         [ Links ]

ZIOGAS, I. Ovid and Hesiod: The Metamorphosis of the Catalogue of Women. Cambridge; New York: Cambridge University Press, 2013.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: anchyses@terra.com.br
Página: http://www.anchyses.pro.br

Recebido em: 13/03/2017
Aprovado em: 28/04/2017

 

 

SOBRE O AUTOR

Anchyses Jobim Lopes
Médico e bacharel em filosofia pela UFRJ.
Mestre em medicina (psiquiatria) e em filosofia pela UFRJ.
Doutor em filosofia pela UFRJ.
Psicanalista e membro efetivo do Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro (CBP-RJ).
Professor do curso de formação psicanalítica do Centro de Estudos Antonio Franco Ribeiro da Silva do CBP-RJ.
Supervisor clínico do Centro de Atendimento Psicanalítico (CAP) do CBP-RJ. Coordenador do Grupo de Trabalho Sobre Neo e Transexualidades (GTNTrans) do CBP-RJ.
Um dos editores da revista Estudos de Psicanálise, do CBP.
Presidente do CBP-RJ 2000-2004, 2008-2012 e 2014-2018.
Presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP), 2004-2006 e 2017-2019.
Ex-professor assistente do quadro principal do Departamento de Psicologia da PUC-RJ e adjunto da Faculdade de Educação da UCP.
Professor titular III dos cursos de graduação em psicologia e de especialização em teoria e clínica psicanalítica da UNESA.

 

 

1 Segundo o DSM-V (Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais 5. edição, 2015) a proporção de transexuais do sexo masculino original em relação aos do feminino original vai até 4,5 e 6.1 para 1. Em comunicação pessoal durante a jornada do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos-RJ O sexo que habito, em junho de 2016, o palestrante convidado Dr. Sergio Zaidhaft, professor da Faculdade de Medicina da UFRJ, que trabalha e pesquisa diretamente no hospital universitário da UFRJ no atendimento a transexuais, informou que a proporção não é de quatro ou cinco para um (números que dispúnhamos na época), mas de sete para um.
2Entre aspas, porque não é uma pessoa nem um objeto parcial um pouco mais integrado. Pode até mesmo ser pré-objetal. Algo como o que Winnicott descrevia que o próprio bebê, em sua onipotência e fusão, achava que era mera criação sua.

Creative Commons License