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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.47 Belo Horizonte jul. 2017

 

 

Buck Angel, transexualidade e gênero - algumas considerações psiqueeranalíticas sobre os sexos de Angel

 

Buck Angel, transexuality and gender - psiqueeranalytical considerations on the sex of a certain Angel

 

 

Roberta de Oliveira Mendes

I Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O trabalho se propõe a fazer uma reflexão sobre sexo, gênero e transexualidade à luz da psicanálise e das teorias queer, a partir das narrativas e da corporeidade de Buck Angel, conforme tornadas públicas pelo documentário Mr. Angel, de Dan Hunt (2013). Em especial, o trabalho investiga a inscrição corporal “PerVert”, que o ativista transexual tatuou nas costas, reencontrando a potência subversiva e a imanência criativa da sexualidade infantil perverso-polimorfa e da matriz bissexual da constituição subjetiva.

Palavras-chave: Transexualidade, Identidade de gênero, Psicanálise e teorias queer, Sexualidade perverso-polimorfa, Bissexualidade psíquica.


ABSTRACT

The present article reflects on sex, gender and transexuality in light of psychoanalytical and queer theories, based on Buck Angel’s personal narratives and bodyness, insofar as made public by Dan Hunt’s documentary “Mr. Angel”. Moreover, the article addresses the inscription of “PerVert”, that the said transexual activist displays in a tattoo, rediscovering the subversive vocation and the immanent creativity of the infantile polymorphic-perverse sexuality as well as that of the bissexual matrix of the psyche.

Keywords: Transexuality, Gender identity, Psychoanalysis and queer theories, Polymorphic-perverse sexuality, Psychical bissexuality.


 

Minha vagina faz parte
da minha masculinidade.

BUCK ANGEL

Ajudai-me a de novo consistir dos modos possíveis.
Eu consisto, eu consisto, amém.

CLARICE LISPECTOR.
A lucidez perigosa.

 

Introdução

Robert J. Stoller, psiquiatra e psicanalista norte-americano, conta que seu primeiro contato com um homem trans foi surpreendente e perturbador. E não porque o referido paciente manifestasse algum comportamento caricato ou aberrante, mas justamente pelo fato de que a pessoa à sua frente lhe pareceu, sob todos os aspectos, um homem inteiramente comum. Quando a recepcionista anunciou o paciente por seu nome de registro feminino, o psicanalista experimentou um sentimento de estranheza. “Embora as teorias pudessem explicar o bizarro, elas não podiam explicar a naturalidade”, concluiu (STOLLER, 1993, p. 19).

Com essa reflexão, Stoller punha em questão a pertinência nosográfica do fenômeno da transexualidade, fosse às fieiras da psicose, segundo as correntes de inspiração psiquiátrica, e/ou da perversão, como sugerido pelo viés da sexologia.

Ao me deparar com a figura pública de Buck Angel, autointitulado a man with a pussy (um homem com vagina), senti que havia nele, como nos propõe o setting analítico a todo instante, algo de uma singularidade que se enunciava para além dos rótulos das inteligibilidades preestabelecidas.

Foram os debates em torno de sua narrativa e corporeidade no âmbito da instituição que deram ensejo à criação do Grupo de Trabalho de Neo e Transexualidades (GTNTrans),1 do CBP-RJ, em julho de 2015, bem como à escolha do tema NeoSexualidades: novas escutas, da VI Jornada de Psicanálise do CBP-RJ, em 2015.

Nos encontros do GTNTrans tivemos contato não apenas com autores psicanalistas a pensar a transexualidade, como também com as críticas e contribuições à psicanálise feitas por pensadores desconstrutivistas do movimento queer, notadamente Judith Butler e Beatriz Preciado (atualmente Paul B. Preciado). Por essa razão, as especulações teóricas desenvolvidas no presente trabalho são de filiação psiqueeranalítica, numa tentativa de condensação das ideias metabolizadas ao longo da primeira fase dos referidos estudos.

Após apresentar os principais dados públicos da biografia de Buck Angel, serão tecidas algumas considerações sobre os conceitos de sexo e gênero; em seguida, sobre a transexualidade à luz da psicanálise, para, ao final, indagar quanto à pertinência da inscrição “PerVert” (perverso/pervertido) tatuada nas costas do Sr. Angel.

 

O(s) sexo(s) de Angel

Diz-se que a expressão “sexo dos anjos” surgiu de um incidente histórico ligado à queda do Império Bizantino. Na ocasião, o imperador Constantino XI tentava resistir à invasão otomana à Constantinopla, contando com um exército cristão que representava apenas um décimo do contingente do exército inimigo. Enquanto isso, os membros do alto clero, dos quais o imperador esperava apoio, estavam inacessíveis, reunidos em um curioso concílio que se propunha a refletir, justamente, sobre o sexo dos anjos.

É curioso constatar quão mobilizadora parece ser a questão da diferença sexual na humanidade, a ponto de gerar indagações cosmogônicas e metafísicas dessa natureza, como se a estabilidade de um sistema de categorizações fosse posto em risco em caso de haver entes, mesmo que imaginários, excepcionados dele.

Se a indagação do clero custou o cetro ao imperador, podemos pensar que, hoje em dia, o debate pluri- e interdisciplinar em torno das identidades de gênero, longe de ser sinônimo de uma inutilidade diletante, é a possibilidade de fazer ruir o império da lógica binária e falocêntrica, e suas repercussões limitadoras na escuta clínica.

Uma das mais proeminentes teóricas do movimento queer norte-americano, Judith Butler (2013) chama a atenção para o fato de que o conceito de diferença sexual é

[...] um locus em que a relação entre o biológico e o cultural é lançada e relançada, onde talvez possa ou mesmo tenha que ser lançada, não podendo, em sentido estrito, ser respondida (BUTLER, 2013, p. 186, tradução nossa).

O conceito de diferença sexual seria, segundo a autora, um conceito de fronteira entre dimensões psíquicas, somáticas e sociais, em que esses territórios se interpenetram, sem se equivaler inteiramente, mas sem ser também rigorosamente distintos um do outro.

Assim, ao discutirmos também o(s) sexo(s) de Angel, devemos ter desde já em mente que a discussão a que nos empenhamos permanecerá saudavelmente em aberto.

Buck Angel se define como um homem trans, isto é, um transexual feminino. Ou seja, uma pessoa a quem foi atribuído o sexo feminino como evidência biológica no nascimento, por ser portador de cromossomos XX e genitália externa não ambígua feminina, mas que se percebe intimamente e se apresenta socialmente como pertencente ao gênero masculino.

Para quem não está acostumado com o tema, pode parecer confuso no começo. Mas depois complica. Na realidade, complexifica. Buck Angel não se deixa enquadrar facilmente em nenhuma categoria, sobretudo as de lógica binária, isto é, as que se restringem à concepção disjuntiva e opositora de polos referentes pretensamente invariantes homem/mulher, masculino/feminino.

Nem mesmo o catálogo de inteligibilidades revisto e ampliado pelo desconstrutivismo das teorias queer parece ter um espaço inequívoco para ele. Tanto é assim que Buck sofre diversos tipos de discriminação dentro da própria comunidade LGBT(QI),2 por não corresponder às tentativas de tipificação do que seria um transexual. Recusando-se a ser uma abstração ambulante e empenhado em ser ‘si-mesmo’, Buck questiona e reenuncia com e em seu corpo múltiplos (pre)conceitos, confirmando a máxima de que, na prática, a teoria é outra.

Acompanhemos um pouco de seu percurso.

 

She was a boy:3 infância e adolescência de Angel

Vale esclarecer que as informações biográficas sobre Buck Angel foram colhidas principalmente do documentário Mr. Angel, de Dan Hunt (2013) e complementadas por outros vídeos de entrevistas, palestras e sua participação em eventos voltados para o debate e a conscientização em torno da questão de gênero.

Nascido nos Estados Unidos, na Califórnia, em 1962, foi registrado como Susan, aparentemente, a segunda de três filhas de uma família de classe média, Buck diz ter se sentido um menino desde sempre, a despeito de ter um corpo de menina.

Podemos cogitar que, ao constatar a incongruência entre seu corpo e seu sentimento de si, Buck tenha realizado uma cisão defensiva não psicótica de seu Eu, tal como descrito por Freud no caso dos meninos enlutados pela morte do pai (FREUD, [1927] 2016). Isto é, apenas uma corrente em seu psiquismo não reconhecia a realidade biológica de seu corpo (como veremos adiante, ocorreu em algumas ocasiões, inclusive com risco para a sua saúde):

[...] havia outra que se dava plena conta desse acontecimento; [...] a corrente ligada ao desejo e a ligada à realidade coexistiam uma ao lado da outra (FREUD, [1927] 2016, p. 320).

Digamos que “no conflito entre a percepção indesejada” (ser biologicamente uma mulher) e “a força do desejo contrário” (ter um corpo masculino que correspondesse ao seu sentimento de si), ele “[...] chegou a um compromisso, tal como só é possível sob o domínio das leis inconscientes de pensamento: o processo primário” (FREUD, [1927] 2016, p. 317), que permite a coexistência conjuntiva e não opositiva de realidades diversas.

Nos momentos em que esse sentimento de identidade gozava do beneplácito da aceitação familiar, ele se sentia uma criança feliz e brincalhona. Portanto, considera ter tido uma infância feliz, na medida em que seus pais permitiram que ele crescesse como um clássico tomboy,4 vestindo-se a maior parte do tempo como um menino e desempenhando papéis masculinos em jogos e brincadeiras.

No referido documentário, sua mãe relata que uma vez o viu tentar urinar em pé, por volta dos quatro anos de idade e, ao indagá-lo quanto ao que estava fazendo, a então menina respondeu que “estava fazendo xixi como seu pai”. Buck diz sempre ter “se espelhado no pai”, homem de uma masculinidade estereotipada de cowboy americano.

Se, por um lado, seus pais aceitavam e, em certa medida, encorajavam seus comportamentos masculinos nos limites da casa, por outro, forçavam-no a se vestir como uma menina fora dela, o que exasperava Buck enormemente.

Indício dessa aceitação tácita de sua masculinidade pela família é o próprio apelido Buck, que lhe foi dado na infância. Curiosamente, o termo “buck”, em inglês, tanto designa o macho de alguns animais, tais como certos tipos de antílopes e coelhos, quanto é uma gíria para se referir informalmente a dinheiro, um dos clássicos equivalentes fálicos na equação simbólica freudiana.

Buck Angel não apenas veio a alçar o apelido de infância como seu prenome civil ao longo de seu processo jurídico de redesignação, como também o incorporou há alguns anos na forma de uma tatuagem de cabeça de antílope, logo acima de sua região pubiana.

Em geral, Buck fala pouco de seu contexto familiar, limitando-se a dizer que seu pai era um homem severo e que, de modo geral, as demonstrações de afeto em casa não eram muito expansivas. Nenhum comentário específico sobre características de humor ou comportamento da mãe, nem de sua relação com ela é feito por Buck no documentário.

Apresentou uma puberdade tardia, vindo a desenvolver seios e menstruar já depois dos 14 anos. Em diversas ocasiões, refere-se à cena de sua primeira menstruação: estava em um jogo de futebol com amigos e, percebendo o sangue a lhe descer pelas pernas, achou que tivesse se machucado. Não lhe ocorreu que pudesse ter ficado menstruado, pois não se pensava como uma menina.

A menstruação lhe foi traumática, ao confrontá-lo incontornavelmente com a realidade de que seu corpo era, de fato, “de mulher” e ganhava, para seu desespero e à sua revelia, cada vez mais contornos femininos. Stoller comenta que, de fato, é comum nos transexuais femininos que sintam maior urgência de empreender intervenções corporais “[...] após a puberdade e seu odiado desenvolvimento de menstruação e de características femininas secundárias” (STOLLER, 1982, p. 224).

Foi, portanto, apenas na adolescência que Buck passou a enfrentar diversos problemas relacionais e profundo sofrimento psíquico em razão de sua rejeição à imagem inequivocamente feminina que seu corpo ia adquirindo. A partir desse momento se intensificou também o discurso contraditório da família quanto a permitir que ele fosse masculino em casa e a exigir que assumisse uma performance feminina na rua. Ele passou a ter muita raiva do próprio corpo, esmurrando os seios para que parassem de crescer.

Data desse período uma das poucas histórias familiares que Buck relata detalhadamente ao longo do documentário. Conta, visivelmente emocionado, que, por volta dos 14 anos, teve um desempenho excepcional em atividades de corrida na escola, motivo pelo qual foi convidado pelo técnico de atletismo a integrar a equipe feminina em uma competição intermunicipal. Foi, em suas palavras, das poucas coisas em que se destacou como mulher.

No entanto, seu pai condicionou sua participação no evento à melhora de suas notas. Como Buck não conseguiu o desempenho acadêmico esperado, o pai o impediu de competir.

Mesmo sem termos maiores informações sobre a dinâmica familiar de Buck, não nos parece infundado especular que havia um investimento ativo por parte da família em sua masculinidade, ainda que de forma inconsciente, bem como um contrainvestimento igualmente inconsciente em tudo o que o identificava como “mulher”. Da mesma forma, a referência ao tratamento distante e comedido do pai e a uma certa inibição das expansões afetuosas entre os membros da família levam a crer que a seguinte condição favorecedora de suas identificações femininas não tenha se configurado:

[...] a menina precisa ouvir de seu pai expressões de apreço e valor por sua feminilidade e pela feminilidade da mãe dela – sua esposa. Precisa ouvir sua mãe expressar valor e respeito pelo pai, bem como pela identidade sexual de sua filhinha, assim como também atribuir valor a sua própria vida sexual como mulher (MCDOUGALL 2001, p. 12).

Buck relata que dos 16 aos 28 anos se sentiu uma pessoa perdida. Contrariando seu sentimento íntimo de ser um homem, seu corpo era o de uma mulher. Tampouco se identificava com a imagem da lésbica butch com que o nomeavam. Passou a ter comportamentos autodestrutivos, envolvendo-se com álcool e drogas e cortando-se reiteradamente nos braços.

Tais condutas se agravaram particularmente com sua bem-sucedida atividade como modelo fotográfico feminino, tanto é que tentou suicídio por duas vezes, o que lhe rendeu algumas internações psiquiátricas. Quanto mais reconhecimento e sucesso ele obtinha com a imagem feminina, mais se intensificava sua autodestrutividade.

Se, como diz Stoller, a transexualidade, em alguns casos, parece representar “a expressão do ‘verdadeiro self” do indivíduo (STOLLER, 1982, p. 2), podemos compreender a autodestrutividade de Buck a partir do momento em que seu falso self, isto é, a suposta identidade feminina, passa a dominar a cena. Isso porque, em sua infância, ele podia sem maiores empecilhos ou dificuldades alternar as apresentações masculinas (verdadeiro self) com as femininas (falso self). Desse modo, seu falso self, na verdade, assegurava que seu verdadeiro self pudesse emergir, sempre que em condições ou ambientes favoráveis, mesmo que como uma vida secreta.

No entanto, como lembra Winnicott ([1960] 1983), quando as condições para a emergência do verdadeiro self são ameaçadas, organizam-se novas defesas “[...] contra a expoliação do self verdadeiro”, e a ideia do suicídio nesse contexto pode surgir como uma tentativa “[...] de destruição do self total para evitar o aniquilamento do self verdadeiro (WINNICOTT, [1960] 1983, p. 131).

 

Transicionando: um homem pra chamar de Eu

Buck ressaltou em múltiplas ocasiões a importância crucial da terapia no seu longo e gradual percurso de conciliação entre seu corpo, seu sexo, seu gênero e sua sexualidade. No entanto, não há em suas entrevistas nenhuma menção clara à orientação clínica da referida terapia.

Ele conta que na década de 1970 não havia escuta para os indivíduos transsexuais. Segundo ele, o próprio conceito de transexualidade ou transgeneridade não estava amplamente em voga no meio psi como um todo, mesmo na Califórnia, uma das unidades federadas mais liberais e progressistas dos Estados Unidos. O máximo que lhe era concedido pelos terapeutas e psiquiatras que consultava era ser classificado como uma mulher muito masculinizada, uma lésbica butch, um indivíduo com desequilíbrios psíquicos de contornos esquizofrênicos ou, no mínimo, borderline.

Nesse contexto, cabe refletir com Márcia Arán que, certamente, pelo fato de os transexuais serem comumente

[...] confrontados com várias questões de natureza existencial, se é que podemos nos expressar assim, sintomas considerados ‘narcísicos’ ou ‘limítrofes’ muitas vezes fazem parte dessa configuração subjetiva por uma questão contingente (ARÁN, 2006, p. 61, grifo nosso).

Até que um dia, quando contava por volta de 30 anos de idade, uma terapeuta o ouviu. Acolheu sua fala de que se sentia um homem, dizendo que acreditava nele e, o que lhe foi ainda mais significativo, que era também como o percebia. Sua condição ganhou um nome: transexualidade (ou, na época, transtorno de identidade de gênero).5 E seu modo de ser, uma possibilidade.

Somente a partir daí teve efetivamente início sua transição. Ao acompanhamento psicoterápico somaram-se, ao longo dos anos, as seguintes intervenções corporais: doses regulares de bloqueadores de hormônios femininos; injeções de testosterona; maciças sessões de musculação e uma dupla mastectomia. Buck menciona que a cirurgia de remoção das mamas foi o passo mais significativo e libertador de sua transição, pois os seios eram o que mais “traíam” esteticamente sua indesejada condição biologicamente feminina.

Conta que, certo dia, ao se masturbar, acabou por se questionar se realmente queria correr o risco de fazer a cirurgia de transgenitalização, tendo em vista a péssima relação risco/benefício de tal procedimento, já que seus resultados tanto estética quanto funcionalmente eram (e ainda são) bastante precários, podendo tornar o indivíduo inteiramente anorgástico.

No entanto, a decisão de renunciar à cirurgia não foi tomada sem angústia e foi, em seu entendimento, um dos efeitos mais relevantes de sua terapia, por permitir, finalmente, que integrasse sua vagina à sua autoimagem e assumisse para si mesmo a singularidade de seu gozo.

Buck não estava disposto a ceder de seu prazer sexual em nome de corresponder a uma imagem do que deveria ser um homem, resultando disso a montagem personalíssima de seu corpo.

Joel Birman (1999, p. 23) nos lembra que

[...] o corpo não é nem o somático nem tampouco o organismo, mas ultrapassa em muito o registro biológico da vida, sendo marcado pelas pulsões.

Em outras palavras,

[...] um corpo não se define pela sua substância, nem pelos seus órgãos, nem mesmo por suas funções, mas pelo seu movimento, pelo conjunto de seus afetos intensivos (ARÁN, 2006, p. 34).

Angel diz ser até hoje cobrado por segmentos da própria comunidade trans a realizar a neofaloplastia. Alguns se recusam a reconhecer sua condição transexual, justamente por conta da ausência da cirurgia de transgenitalização. Segundo essa ótica, ele teria apenas mudado de gênero, devendo, portanto, ser considerado um indivíduo transgênero, por ter passado a adotar uma performance social masculina, sem, no entanto, ter mudado de sexo.

Toda essa polêmica relança para Buck a pergunta: afinal, o que faz de um homem um homem? É preciso ter um pênis para ser um homem? E se alguém que se identifique como homem, nascido biologicamente com pênis, vier a perdê-lo por conta de um acidente, um incêndio ou qualquer outra fatalidade, deixará de ser ou de se sentir um homem por causa disso?

Com sua verve habitual e denunciando a arbitrariedade dos símbolos, Buck costuma dizer que, pelo mesmo valor de uma cirurgia faloplástica, compraria para si um falo muito mais vistoso e funcional, igualmente validado socialmente: uma caminhonete 4x4!

Em resposta às mencionadas críticas da comunidade trans, Buck Angel se descreve como alguém socialmente “binário”, mas de corporeidade queer, no sentido de que se identifica integralmente como indivíduo do sexo – e não apenas do gênero! – masculino, a despeito de conservar o genital feminino.

Com isso, Buck sustenta o caráter performativo tanto do sexo quanto do gênero, em franca e radical ressonância com as concepções desconstrutivistas de Judith Butler (2015), para quem nada seria definido pela anatomia. Tanto o sexo quanto o gênero seriam construções discursivas.

Em outras palavras: o ser humano, único animal pulsional e linguageiro, não seria capturável por nenhuma determinação natural, mas por discursos naturalizadores como os que engendram a construção de uma diferença sexual sobre uma lógica binária, opositora e disjuntiva, ao invés de sobre uma diversidade conjuntiva de gêneros plurais.

Desse modo, a atribuição do sexo à criança com o nascimento seria

[...] um ato performativo, não porque o corpo não exista como materialidade, mas porque ele só pode existir dentro de um discurso que o laça e o molda.

Os corpos seriam, assim, “constituídos no ato da descrição” (SALIH, 2015, p. 125, grifo nosso).

De maneira provocadora, Beatriz Preciado denuncia a ausência de naturalidade da lógica atributiva:

A mesa de atribuição da masculinidade e da feminilidade designa os órgãos sexuais como zonas geradoras da totalidade do corpo, sendo os órgãos não sexuais meras zonas periféricas. [...] Assim, então, os órgãos sexuais não são somente ‘órgãos reprodutores’, no sentido de que permitem a reprodução sexual da espécie, e sim que são também, e sobretudo, ‘órgãos produtores’ da coerência do corpo como propriamente humano (PRECIADO, 2014, p. 130-131).

Vejamos a seguir como Buck Angel, não apenas a partir de sua montagem corporal mas também de suas vivências, tende a ilustrar concretamente a ideia da performatividade do sexo e do gênero.

 

Uma sublimação pela pornografia? Outras desconstruções

Como a maioria das pessoas trans, Buck Angel também teve dificuldades de se engajar num mercado formal de trabalho, acabando por desempenhar alguns serviços temporários como auxiliar de produção em filmes de entretenimento adulto.

Após se decidir a não abrir mão de seu prazer genital e manter sua vagina, Buck Angel se lançou como ator e produtor de filmes pornôs, apresentando-se pioneiramente como “um homem com vagina”.

Segundo ele, foi surpreendente observar que o público consumidor de seus filmes era predominantemente o de homens gays, o que significava o reconhecimento indiscutível de sua masculinidade, tendo em vista que, mesmo nas ocasiões em que se fazia penetrar vaginalmente por outros homens, as cenas eram percebidas pelo público como uma prática inequivocamente homossexual.

Note-se que, com isso, Buck Angel faz cair por terra as teorias que afirmam (i) que o indivíduo transexual é necessariamente aquele que tem horror, desprezo ou um completo desinvestimento de seus genitais, bem como (ii) as teorias que falam do desejo homossexual como evitativo do confronto com a “castração”, enquanto marca incontornável da diferença sexual (genital).

Da mesma forma, afirma provocadoramente que, nas cenas em que tem sua vagina penetrada pelo pênis de uma mulher trans, seja por qual perspectiva for, trata-se, inescapavelmente, de uma cena de sexo heterossexual, tanto por se tratar de algo que se dá entre uma pessoa de apresentação de gênero feminina e outra de apresentação de gênero masculina, como por se dar entre um pênis e uma vagina, pouco importando que quem tenha a vagina seja o homem e quem tenha o pênis seja a mulher.

Relata que sua atividade na indústria pornográfica foi se imbuindo cada vez mais de um propósito ativista, com o objetivo de trazer visibilidade para os homens trans, figurando-os como pessoas sexualmente ativas e engajadas em múltiplas formas de expressão sexual, contribuindo para desconstruir o decantado estereótipo da hipossexualidade transexual.

Ademais, é seu entendimento que seus filmes contribuiriam para o enriquecimento das fantasias sexuais de quem assiste, já que, ao lado da fantasia mais corriqueira da mulher com pênis, que permite a inclusão sexual de mulheres trans e travestis no imaginário de muitos, diversas pessoas se surpreendem de se sentirem excitadas pela figura de um homem com vagina, em suas múltiplas possibilidades de intercurso sexual.

Atualmente, Buck vem produzindo uma série documental intitulada Sexing the Transman,6 que consiste em entrevistas com indivíduos transvestigêneres, binários ou não, a respeito de suas fantasias e atividades sexuais pré- e pós-transição, seguidas de cenas de masturbação e/ou de sexo com outres parceires.

A meu ver, esse projeto traz uma preciosa contribuição aos estudos referentes à montagem fantasística do corpo erógeno, ao ilustrar que, tanto as modificações corporais são determinadas por fantasias inconscientes, quanto que, uma vez efetivadas, tais modificações corporais alteram, por sua vez, a posição de gozo do sujeito da fantasia.

Por fim, é relevante mencionar seu trabalho como educador sexual no campo da prevenção e combate a doenças sexualmente transmissíveis e de trato ginecológico para homens trans. Nesse contexto, vale lembrar que Buck Angel passou a atuar nesse segmento após ter precisado se submeter a uma histerectomia de emergência, por conta, ao que parece, da já mencionada cisão defensiva de seu ego. Isso porque ele próprio relata que tomou hormônios masculinos e inibidores de seus hormônios femininos por anos a fio, sem nenhuma consideração aos efeitos que isso poderia trazer a seus órgãos internos, notadamente seu útero e ovários, chegando a “esquecer” que os tinha.

Como pudemos observar, Buck Angel exerce uma forma sublimada de pornografia, o que, num primeiro momento, pode assomar paradoxal.

No entanto, devemos ter em mente que

[...] sublimar não significa dessexualizar. Muito pelo contrário, aliás. A sublimação e o erotismo são derivações de Eros, afirmações da vida e maneiras de tornar a existência possível e suportável (BIRMAN, 1999, p. 171).

Sua pornografia teria, assim, apropriando-nos dos dizeres de Birman, verdadeiro efeito de uma “sublime ação”, implicando “a ruptura com o imperialismo do falo” e “[...] entreabrindo a subjetividade para a possibilidade do erotismo e da criação” (BIRMAN, 1999, p. 172).

Outros aspectos sobre a criatividade sublimatória de Angel serão oportunamente abordados no item referente à discussão da perversão. Antes, no entanto, precisamos ter em mente algumas noções sobre o desenvolvimento dos conceitos de sexo e gênero na psicanálise.

 

Algumas referências sobre sexo e gênero na psicanálise

Sabemos que a distinção conceitual entre sexo e gênero não é contemporânea às teorizações freudianas. No entanto, Person & Ovesey (1999) chamam a atenção para o fato de a psicanálise ter sido a primeira teoria geral da personalidade que tentou explicar as origens e o desenvolvimento da masculinidade e da feminilidade nos indivíduos, levando em consideração as consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos.

Aliás, é curioso observar em que ambiência teórica Freud estava imerso ao desenvolver suas considerações iniciais sobre a sexualidade. Como observa Thomas Laqueur (2001), a própria noção de um dimorfismo sexual com base no modelo reprodutivo, isto é, a construção da ideia de dois sexos como efetivamente distintos, baseada na assimetria anátomo-fisiológica das respectivas funções reprodutoras, só se deu no século XIX.

Até o século XVIII, a ideia reinante era a de um isomorfismo sexual, correspondendo os corpos macho e fêmea a versões hierarquizadas do mesmo sexo. Ora, as teorizações freudianas acerca da fase fálica e as subsequentes construções em torno das consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos parecem aplicar ao campo individual essa passagem da concepção de um isomorfismo para a de um dimorfismo sexual culturalmente elaborada no âmbito filogenético.

Assim, para Freud, a criança inicialmente creria haver apenas um órgão sexual (isomorfismo), que seria necessariamente, talvez por uma questão de autorreferência do autor, o masculino.

Se, por um lado, o desenvolvimento da criança de ambos os sexos seria amplamente equivalente nas fases pré-fálicas (isomorfistas), a descoberta da distinção anatômica entre eles (dimorfismo) acarretaria diferentes repercussões no menino e na menina, inclusive no que diz respeito à travessia dos respectivos Édipos.

Note-se, no entanto, que Freud não abandona inteiramente a ideia de uma hierarquia entre os sexos resultante da corrente isomorfista, restando à menina a posição do sexo “inferior”, porque castrado e eternamente marcado pela inveja do pênis.

No entanto, Paulo Roberto Ceccarelli (2013) chama a atenção para o fato de que, na verdade, é possível reconhecer em Freud “uma classificação segundo o gênero”, uma espécie de percepção da criança de uma distinção entre o pai e a mãe, que começaria em uma etapa anterior à castração, portanto, “sem levar em conta a anatomia”, e sim uma diferença de papéis, funções, comportamentos sociais e vestimentas entre as figuras parentais.

Dessa forma, pode-se pensar que a apreensão dos gêneros pela criança se faria, a rigor, “sem levar em conta o órgão sexual”, franqueando a interpretação de que “[...] o que distingue os gêneros não é o sexo anatômico [...]”, assim como “[...] inversamente, o sexo anatômico não garante, a priori, o gênero” (CECCARELLI, 2013, p. 64).

O próprio Freud ([1924] 2016, p. 302), aliás, utiliza o caso clínico de “um paciente homem para ilustrar sua análise do masoquismo feminino, o que mostra como gênero não se confunde nem com posição sexual, nem com sexo anatômico”.7

Retornemos a Freud. Partindo sempre do modelo masculino, o fundador da psicanálise propunha que o menino tomaria a mãe como primeiro objeto amoroso, rivalizando, consequentemente, com o pai. A partir da descoberta da diferença anatômica entre os sexos, as experiências pretéritas de perda pelo menino (nascimento, seio, fezes) seriam reativadas numa nova angústia: a de que pudesse vir a perder seu pênis, objeto privilegiado de seu investimento narcísico.

O menino renunciaria à mãe como objeto amoroso para preservar o seu pênis, deslocando seu investimento libidinal para outras mulheres e identificando-se com o pai. A angústia de castração, ensejada pelo conhecimento da diferença anatômica entre os sexos, teria, então, para o menino o condão de resolver seu complexo de Édipo, conduzindo-o à masculinidade heterossexual. Note-se que, apesar de admitir a existência de um Édipo negativo (homossexual) no menino, Freud não teoriza a fundo quanto às suas possíveis consequências psíquicas, limitando-se quase sempre a abordar a questão da ambivalência resultante das correntes terna e hostil do menino com relação ao pai no assim chamado complexo paterno.

Para a menina, o caminho seria todo ele mais tortuoso, já que seu Édipo positivo (heterossexual) seria, na realidade, precipitado (e não resolvido) pelo complexo de castração, não tendo, portanto, uma força clara e suficientemente potente que impelisse à sua resolução. Ademais, além de o Édipo na menina ser complicado pela mudança de objeto sexual; a menina precisaria operar também uma mudança da zona erógena predominante do clitóris (tomado como um vestígio fálico) para a vagina.

Assim, toda menina teria uma fase edípica homossexual inicial, ao tomar a mãe como primeiro objeto libidinal. No entanto, ao se dar conta da diferença anatômica entre os sexos, a menina se perceberia castrada. A menina reconheceria forçosamente a inferioridade de seu clitóris em relação ao invejado pênis, o que deixaria nela não apenas uma profunda ferida narcísica, mas uma rancorosa decepção com a mãe, a quem a menina viria necessariamente atribuir a responsabilidade por não lhe transmitir um pênis (diferentemente do menino, para quem a ameaça de castração estaria sempre ancorada no pai).

Tal complexo de castração poderia ter três encaminhamentos típicos na menina:

• a inibição sexual ou neurose;

• um complexo de masculinidade, não necessariamente acompanhado de uma escolha de objeto homossexual;

• uma feminilidade “normal” – leia-se heterossexual – se possível coroada pelo nascimento de um filho, substituto ideal do falo, principalmente quando menino.

Aos seus olhos, diferentemente do menino, que teria no pai, ao final do Édipo, seu modelo identificatório “natural”, a identificação da menina com o modelo feminino da mãe seria conturbada pela própria depreciação advinda do reconhecimento da mãe como castrada.

Segundo Person & Ovesey (1999), Karen Horney e Ernest Jones chegaram a propor a existência de uma feminilidade heterossexual primária, e não secundária, nas mulheres, calcada na percepção e elaboração das sensações vaginais e no desejo libidinal (em vez de narcísico) por um pênis. Com isso, se, por um lado, tentavam positivar um modelo biológico especificamente feminino, por outro lado, atrelavam ainda mais radicalmente a heterossexualidade à biologia.

Podemos observar o quanto as teorizações freudianas e aquelas de seus opositores, por mais inovadoras que fossem, acabavam por sofrer a influência limitadora dos paradigmas cultural e cientificamente válidos à época.

Por exemplo, Laplanche (2001, p. 155-157) nos lembra que, a Sexualtheorie, de Freud, não se propunha a ser uma teoria dos sexos ou dos gêneros (uma Geschlechtstheorie), mas antes uma teoria do sexual, ou seja, de uma sexualidade essencialmente não procriadora e, portanto, alheia às questões da sexuação.

De fato, a sexualidade foi concebida como sendo marcadamente infantil, tributária das pulsões parciais, logo mais ligada à fantasia que ao objeto por sua vocação autoerótica. Sua expressão seria notadamente oral, anal e paragenital.

No entanto, essa concepção revolucionária da sexualidade humana como sendo fundamentalmente infantil e perverso-polimorfa se construiu em clara tensão com a ideia de uma organização libidinal que desembocaria no primado da genitalidade sobre as demais zonas erógenas, ao mesmo tempo em que o caráter contingente do objeto pulsional parecia ter de, pouco a pouco, ceder vez à possibilidade de estabilização das relações com “objetos totais”, preferencialmente heterossexuais.

Preciado (2011) chama a atenção para esse engodo da heterossexualidade como norma, tanto em sua acepção normatizante como normalizadora, das quais sequer nosso genial Freud conseguiu escapar de todo.

Elx denuncia que

[...] a (hetero)sexualidade, longe de surgir espontaneamente de cada corpo recém-nascido, deve se reinscrever ou se reinstruir através de operações constantes de repetição e de recitação dos códigos (masculino e feminino) socialmente investidos como naturais (PRECIADO 2011, p. 26).

Assim, a contaminação implícita das teorias freudianas iniciais pela lógica reprodutiva, dismórfica e heteronormativa do século XIX foi o que, de certa forma, estreitou por longo tempo o horizonte de duas de suas concepções mais radicalmente originais: a pulsionalidade do animal humano e a sexualidade infantil perverso-polimorfa. Esses conceitos serão objetos de prolíficas releituras, como veremos a seguir.

Por enquanto, consideremos que é por conta justamente da ênfase na genitalidade e de suas implicações teóricas que as ideias freudianas se interseccionam com os debates em torno do sexo e do gênero. Mas, para compreendermos isso, é necessário antes acompanhar brevemente como se deu a separação dos conceitos de sexo e gênero.

Foi Money, psicólogo e sexólogo neozelandês, no âmbito de seus estudos com indivíduos intersexuados ou de outra forma comprometidos quanto ao reconhecimento inequívoco de suas genitálias externas por causas congênitas ou acidentais, quem, em 1955, primeiro propôs a distinção entre sexo, enquanto referente bio-anátomo-fisiológico, e gênero. Quanto ao gênero, distinguiu ainda a função de gênero, relacionada ao comportamento socialmente observável do indivíduo, da identidade de gênero, relacionada ao sentimento de si.

Money sustentou polemicamente e com consequências trágicas para alguns de seus pacientes que a identidade de gênero seria resultado de fatores ambientais, deslocando o eixo da determinação pela natureza (nature) para a cultura (nurture), esquecendo, no entanto, de contemplar a dimensão do inconsciente tanto dos pais quanto do bebê na formação do núcleo identitário de gênero.

Em 1968, Robert Stoller integrou pela primeira vez o termo “gênero” em uma teorização especificamente psicanalítica, no âmbito de um estudo clínico sobre indivíduos transexuais. Para ele, sexo estaria no campo da anatomia, ao passo que gênero estaria no campo do sentimento social ou psíquico da identidade sexual. Importaria, portanto, compreender como se daria a transmissão-constituição do gênero no sujeito, sobretudo quanto esse gênero se manifesta em desacordo com os fatores biológicos.

Diferentemente da teoria freudiana, que partia da posição do sujeito em relação ao primeiro objeto libidinal, Stoller (1984) levava em consideração o primeiro “objeto” de identificação. Assim, a feminilidade passava a ser primária, vez que tanto o menino como a menina teriam a mãe como primeiro objeto de identificação, na fase fusional do bebê.

Segundo essa teoria, o menino é que passaria a ter dificuldades no percurso de assunção de sua masculinidade, já que, para tanto, teria de se desidentificar da mãe.

Note-se que, apesar de dar ênfase às comunicações inconscientes entre o psiquismo dos pais e o do sujeito em constituição, Stoller não despreza a dimensão da biologia, chegando mesmo a falar do conceito de imprinting, tributário da etologia, como um mecanismo atuante no processo de constituição subjetiva. O imprinting, tal como o conceito de imitação explorado psicanaliticamente por Gaddini (vide RIBEIRO, 2010), seria algo da ordem de um vestígio biológico na genealogia das identificações, sendo anterior às incorporações e às introjeções.

À propósito de identificações, Joyce Mcdougall nos lembra que

[...] o aspecto egossintônico das escolhas e práticas sexuais revela a presença de poderosas identificações – e contraidentificações – com objetos introjetados de um tipo altamente complexo (MACDOUGALL, 2001, p. 192).

Podemos acrescentar, com Laplanche (2015) que não apenas o aspecto sexuado, mas principalmente o aspecto sexual dos pais se infiltram na designação do gênero e, consequentemente, nas identificações que influenciam na assunção de uma identidade de gênero pelo sujeito. Afinal, o sujeito se identifica não apenas com a imagem que consegue capturar do outro mediatizada pela sua própria fantasia, como também com o que imagina ser o objeto do desejo do outro.

Nesse sentido,

[...] a psicossexualidade do sujeito é uma solução – ou se preferirmos um sintoma, no sentido psicanalítico do termo: uma formação de compromisso – frente às múltiplas variáveis com as quais o bebê tem que lidar desde seu nascimento (CECCARELLI, 2013, p. 19).

O que em todo caso não se pode esquecer em psicanálise é que nem a anatomia nem o ambiente determinam integralmente o sujeito, havendo sempre margem para a criatividade. Em outras palavras, se, por um lado, os fatores contingentes, congênitos ou acidentais têm clara participação na constituição subjetiva, “[...] é evidente que o essencial acontece em outro lugar, na maneira como o sujeito os vê, os considera, os investe” (BONNET, 1999, p. 48). É essa investigação em torno da singularidade, da contribuição criativa do sujeito na solução encontrada para sua existência psíquica através da transexualidade que nos interessa.

A seguir, veremos que, tal como a sexualidade feminina permaneceu um enigma para Freud, sendo objeto de uma significativa releitura na fase final de sua obra, o que infelizmente não será possível explorar no presente trabalho, a transexualidade feminina igualmente se apresentou como mais enigmática para os teóricos da psicanálise, carecendo de estudos mais aprofundados.

 

Transexualidade, notadamente a feminina, à luz da psicanálise

A questão da transexualidade nos interroga e implica enquanto enigma. Com referências que remontam à mitologia grega e mesmo a outras tradições culturais do ocidente e do oriente, o trânsito de corpos entre o espectro das apresentações masculina e feminina mostra sua persistência fantasmática no inconsciente humano.

No entanto, há um certo consenso no sentido de identificar a transexualidade, tal como ora se afigura, como um fenômeno estritamente moderno, pois somente graças à ascensão do biopoder e à evolução das tecnologias biomédicas de intervenções corporais, a fantasia de mudança de sexo pôde, enfim, ser objetivada no corpo.

Como qualquer manifestação de subjetividade, a transexualidade existe no tempo e põe em questão os pontos de tensão entre as individualidades e os pactos de pertencimento de uma sociedade. Podemos perceber seu apelo ao inconsciente cultural no esforço de elaboração do tema, eis que há uma proliferação de livros, filmes e séries, não apenas ensaísticos e documentais, mas também ficcionais sobre o assunto.

Também os debates em torno das questões de gênero proliferam em múltiplos campos de produção de saber e cada vez mais se beneficiam, não apenas com o diálogo, mas com o efetivo protagonismo da comunidade LGBT (QI).

A psicanálise, por sua vez, como já mencionado, vai também se deixando atravessar pelas discussões em torno das teorias do assim chamado terceiro feminismo, sofrendo suas críticas e amadurecendo com e a partir delas.

Atualmente, por exemplo, mesmo que ainda refletindo uma posição conservadora, vale ressaltar que o Dicionário de psicanálise, de Elisabeth Roudinesco e Michel Plon dedica um verbete ao “transexualismo” e, ainda mais notavelmente, ventila a questão da transexualidade no próprio verbete dedicado à bissexualidade, conceito desde sempre central da psicanálise.

De fato, em seus Três ensaios sobre a teoria da sexualidade ([1905] 1996), Freud reconhece “[...] uma predisposição originalmente bissexual, que, no curso do desenvolvimento, vai se transformando em monossexualidade” (FREUD [1905] 1996, p. 134) e a ilustra justamente com um caso de transexualidade:

A doutrina da bissexualidade foi exprimida em sua mais crua forma por uma porta-voz dos invertidos masculinos: ‘um cérebro feminino num corpo masculino’. Entretanto, ignoramos quais seriam as características de um ‘cérebro feminino’. A substituição do problema psicológico pelo anatômico é tão inútil quanto injustificada (FREUD, [1905] 1996, p. 135).

Essa recusa a um determinismo anatômico é talvez precursora da pensabilidade queer. Aliás, em que pesem as críticas à psicanálise, Judith Butler reconhece textualmente o seguinte:

[...] não há melhor teoria para apreender os mecanismos da fantasia, percebidos não apenas como um apanhado de projeções em uma tela interior, mas como parte da própria relacionalidade humana. É com base nessa revelação que podemos compreender como a fantasia é essencial para uma experiência do corpo próprio, ou do de outrem, enquanto generificado (BUTLER, 2013, p. 15, tradução nossa).

Como vimos, Stoller foi, na psicanálise, o primeiro a pensar um modelo de causação específico para a transexualidade, mormente a masculina. Em que pese sua relevância e originalidade, não adentraremos a discussão em torno da origem stolleriana da transexualidade masculina, por fugir ao escopo do nosso trabalho. Apenas devemos ter em mente que Stoller (1982) deu ênfase aos fatores ambientais e transgeracionais para a constituição da identidade sexual em detrimento dos fatores anatômicos, contribuindo para descolar a suposta coerência entre anatomia, identidade de gênero e orientação sexual.

Vale notar, no entanto, que o próprio fato de haver uma etiologia específica e diferenciada para a transexualidade masculina e feminina em Stoller permite entrever o quanto sua teoria ainda é influenciada por uma concepção essencialmente binarista.

Stoller teve clinicamente um menor contato com transexuais femininos, o que o levou a concluir que a manifestação da transexualidade feminina seria menos frequente que a manifestação da transexualidade masculina, reforçando sua hipótese de que a construção da masculinidade seria, em si, mais problemática do que a da feminilidade.

Sua hipótese geral é de que a garotinha transexual é designada e tratada ao nascer normalmente como menina por seus pais. Talvez seus pais preferissem ou tivessem a expectativa de um filho do sexo masculino, mas não necessariamente.

A menina transexual nasceria de uma mãe feminina (em contraste com a mãe de histórico bissexual do transexual masculino), mas que, em algum ponto de sua relação inicial com a filha, se tornaria adoentada ou deprimida.

Assim, ao invés de desfrutar de uma simbiose excessivamente prolongada e não conflitiva com a mãe, como na hipótese etiológica do menino transexual, a menina transexual não seria objeto de nenhum investimento expressivo, seja narcísico, seja libidinal, por parte da mãe, sendo levada a uma formação egoica, portanto defensiva, precoce. Devido à carência de investimento, a menina acabaria se voltando para o pai, em quem encontraria um modelo identificatório. Ao desenvolver qualidades e maneirismos tidos como masculinos, seria inconscientemente encorajada a fazê-lo, tanto pelo pai, que a tomaria como companheira de atividades, como pela mãe, para quem a menina pouco a pouco representaria um substituto masculino de um pai que se vinha mostrando indiferente ou reativo ao precário estado emocional da mãe.

Diferentemente do menino transexual, a garotinha transexual entraria em uma dinâmica edípica, tomando a mãe por objeto e rivalizando/se identificando com o pai. Isso, de certa forma, aproximaria a transexualidade feminina de uma homossexualidade acentuadamente masculinizada. Stoller descarta um gozo perverso-travestista no transexual feminino, por entender que a adoção da aparência masculina não traria em si mesma nenhuma excitação sexual ao indivíduo.

Em que pesem as tentativas de catalogação de suas causas, Stoller reconhece que a etiologia da transexualidade feminina não é de forma alguma clara. No entanto, ao supor uma depressão materna em sua origem, parece reconhecer-lhe um caráter um pouco mais defensivo e, portanto, uma matriz mais conflitiva do que na transexualidade masculina. Retornaremos à suposta questão defensiva da transexualidade feminina na discussão referente à perversão.

No mais, conquanto muitas vezes se referisse à transexualidade como um comportamento “aberrante”, Stoller (1982, p. 39) criticava frontalmente o uso do termo transexualismo como diagnóstico, alertando para o fato de que “[...] os indivíduos que experienciam qualquer um desses estados se assemelham menos do que se diferenciam”.

Ele também considerava um erro grosseiro tentar filiar a transexualidade à psicose, esclarecendo que a crença que o transexual possui de se encontrar “no corpo errado” não tem natureza delirante, já que ele não desconhece a realidade do corpo. Simplesmente esse corpo não seria “[...] o corpo de sua realidade psíquica, que responde à representação de sua identidade sexuada” (CECCARELLI, 2013, p. 165, grifo do autor).

Além de Stoller, Lacan se pronunciou expressamente sobre o “transexualismo”, notadamente o masculino, situando-o, inicialmente, no campo estrutural das psicoses.

A psicanalista francesa Catherine Millot (1992), de filiação lacaniana, não parece alocar os transexuais femininos (os homens trans) propriamente no espectro das psicoses, considerando o recurso às intervenções cirúrgicas ou o apelo ao “Outro da ciência” (MILLOT, 1992, p. 122) exatamente como suplência ao Nome-do-Pai pela via do real, estabilizando e prevenindo uma possível deflagração da psicose. A transexualidade teria, sob esse ponto de vista, a mesma função do estilo ou sinthoma reconhecido à escrita de Joyce.

Millot chama a atenção para a fala de um cirurgião que operava transexuais femininos: “[...] elas querem ser como todo mundo, ou seja, homens” (MILLOT, 1992, p. 89), relançando, assim, toda a questão da centralidade fálica.

Como contraponto as posições psicanalíticas, podemos citar as opiniões de Gerald Ramsey (1998), um psicólogo norte-americano com larga experiência de consultoria em comissões de avaliação de redesignação sexual. Ramsey diz categoricamente que, a seu ver, os transexuais “não são normais”, embora possam ter uma vida “próxima do normal” com o devido “apoio médico e psicológico” (RAMSEY, 1998, p. 48). Descarta também os fatores ambientais na emergência dos quadros de transexualidade.

Mostrando ainda sua filiação ao pensamento médico, Ramsey diferencia os transexuais operados e pré-operatórios (binários) daqueles que não desejam necessariamente implementar mudanças físicas em seu corpo (não binários), considerando que os primeiros terão melhores chances de ser acolhidos socialmente do que os segundos, já que estes últimos parecerão se mover no registro de uma “escolha” mais do que de uma “compulsão”.

Com isso, Ramsey chama a atenção para um dos aspectos mais ambivalentes da questão diagnóstica em torno da transexualidade. Ao mesmo tempo em que o diagnóstico patologiza a condição transexual, ele, de certa forma, isentaria o sujeito de “culpa” aos olhos da sociedade.

Atualmente, a transexualidade deixou de ser considerada um transtorno de identidade de gênero (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde - CID-10) para figurar como disforia de gênero, conforme última edição do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais - DSM V.

Curiosamente, o referido manual elege como indícios diagnósticos, sem o dizer claramente, três formações privilegiadas do inconsciente, a saber: a representação do indivíduo como pertencente ao sexo oposto em seus sonhos, suas fantasias e suas brincadeiras.

Apesar de o reconhecimento de algo da ordem do inconsciente aparentemente ficar implícito no diagnóstico, a realidade é que poucos indivíduos atravessados pela questão da transexualidade chegam aos consultórios de orientação psicanalítica.

Um dos fatores que desfavorece a procura de análise pelos transexuais é a obrigatoriedade de comprovação de atendimento psicoterápico por profissional credenciado (psicólogo) como critério de acesso às intervenções hormonocirúrgicas. Tais terapeutas teriam que, a partir de laudos, comprovar que o paciente seria legalmente elegível aos programas de modificação corporal. Assim, o escopo da terapia se torna viciado por uma finalidade prescritiva, de lógica médica, levando a que muitos transexuais adequem seu discurso ao que é descrito nosograficamente como “transexualidade verdadeira”, e, portanto, mascarando as diversidades e singularidades individuais.

Judith Butler (2013, p. 93) alerta que “[...] apesar de a suposta meta do diagnóstico ser a de constatar se o indivíduo poderia se ajustar de forma bem-sucedida a viver de acordo com as normas do outro gênero”, na realidade, parece que o verdadeiro teste recai na possibilidade de indivíduo ser capaz ou não de se ajustar à linguagem do diagnóstico.

Outra questão que certamente contribui para a baixa procura da psicanálise para indivíduos que apresentam um quadro precoce de transexualidade, a exemplo do que ocorre com as crianças autistas, é o temor de uma certa margem de culpabilização por parte dos pais.

Vale dizer que há um esforço crescente entre os psicanalistas para repensar as teorias, de modo a desconstruir qualquer laivo aprioristicamente patologizante de suas formulações, seja a partir de novos alcances ao conceito de feminilidade em Freud (BIRMAN, 1999); de releituras do assim chamado último Lacan, centrado no real (COSSI, 2015); ou ainda com base na retomada de uma radicalidade pulsional a partir da profícua revisão de Deleuze e Guatarri (PEIXOTO JR, 2010).

É de fato revolucionário considerar que o masculino a que Buck Angel dá corpo seria um exemplo categórico da assunção da feminilidade (não do feminino), calcada no desamparo, conforme a entende Birman.

Em entrevista veiculada na revista Carta Capital (2015), Buck Angel afirma que sua ideia do que é ser homem é ser

[...] vulnerável, amoroso, amar a mim mesmo e entender que somos humanos. Eu acho que temos de retreinar os homens para que sejam mais respeitosos. Não é só porque você é um homem que é a coisa mais importante desse mundo, e acredito que muitos homens pensem assim.

Parece com isso ilustrar a seguinte colocação de Birman:

Enquanto pelo falo o sujeito busca a totalização, a universalidade e o domínio das coisas e dos outros, pela feminilidade o que está em pauta é uma postura voltada ao particular, ao relativo e ao não-controle sobre as coisas. Por isso mesmo, a feminilidade implica a singularidade do sujeito e as suas escolhas específicas, bem distantes da homogeneidade abrangente da postura fálica. A feminilidade é o correlato de uma postura heterogênea que marca a diferença de um sujeito em relação a qualquer outro (BIRMAN, 1999, p. 10).

Agora que estamos um pouco mais familiarizados com as questões do sexo, do gênero e da transexualidade, vejamos o que a psicanálise teria a nos dizer quanto a se Buck Angel seria ou não um perverso, conforme sua tatuagem destaca.

 

“Pervert”: será que ele é?

Como vimos, a sanha classificatória pode muitas vezes deslocar perigosamente a legítima pergunta “quem é” o transexual, interessada em escutá-lo a partir de sua singularidade, para “o que é” um transexual, como uma forma de objetificá-lo ao desejo de um conhecimento que se pretenda totalizante.

Quanto a Buck Angel há quem diga, mesmo entre o público leigo, que seu corpo, extremamente musculoso, é, como um todo, fálico; como também seria fálico o próprio uso que faz de sua vagina enquanto vantagem competitiva no segmento de mercado pornográfico. Essas críticas parecem ter como pano de fundo a ideia de que Buck Angel recusaria por meio desses procedimentos sua ausência de pênis, portanto, sua “castração”. A própria comunidade LGBT(QI) o acusa por vezes de “fetichizar” mediante seu comportamento a transexualidade feminina.

Há ainda quem diga que seu discurso de empoderamento da vagina deve ser tomado, em uma visão estritamente falocêntrica, binarizante. Em “psicanalês” seria algo como uma manifestação da inveja do pênis, não reconhecendo a potência subversiva do desconstrutivismo de sua proposta.

Foi de tanto ser xingado de “pervert” (sinônimo de pervertido, degenerado, aberrante), que Buck Angel decidiu se apropriar orgulhosamente do termo, assim como o movimento queer fez com o impropério que lhe dá nome, tatuando-o nas costas.

Curiosamente, Buck diz que diversas pessoas confundem o “PerVert” (pervertido/perverso) de sua inscrição corporal com “PerFect” (perfeito). Poderíamos especular se essas pessoas acaso não trairiam pelo ato falho a nostalgia inconsciente pelas posições pulsionais sacrificadas em favor da assunção de um único sexo.

Afirma, mais radicalmente freudiano que o próprio Freud, que, para ele, ser perverso é simplesmente estar em contato com e exercer livremente a própria sexualidade em todas as suas potencialidades, sem nenhuma restrição além da consensualidade dxs outrxs adultxs com quem se relacione.

Nisso parece convergir com a ideia da perversão enquanto marca pulsional da sexualidade infantil perverso-polimorfa, divergindo, por outro lado, diametralmente da classificação de perversão proposta por Joyce Mcdougall (2001), para quem só deveriam ser considerados perversos, na acepção aberrante do termo, justamente os atos que desconsiderassem o consentimento do outro, tomado na relação sexual estritamente como objeto, sem qualquer reconhecimento à sua alteridade. Segundo esse entendimento, seriam exemplos paradigmáticos de perversão a pedofilia, a necrofilia e o bestialismo.

Podemos observar que o termo “perversão”, intrinsecamente plurívoco, é consequentemente equívoco em sua utilização conceitual. Há, por um lado, uma pecha negativa e derrisória em seu emprego social, com conotações claramente doentias ou socialmente indesejáveis, a oscilar entre as práticas sexuais tomadas como aberrantes e repulsivas até os extremos da sociopatia, do assassino desafetado e sem culpa:

[...] na perversão o sujeito manipula sempre o outro como objeto para o seu gozo, mediante o qual pode incrementar sua posição fálica. Não podendo reconhecer o outro na sua diferença, o sujeito considera o outro na perversão como um objeto a ser predado e depredado, mera carne a ser canibalizada, para que se possa expandir o território de sua onipotência (BIRMAN, 1999, p. 45).

Por outro lado, há uma tentativa de positivação das saídas perversas, enquanto amarrações defensivas contra a psicose ou ainda como possibilidade de existência psíquica para o sujeito.

Mcdougall é uma das maiores expoentes dessa corrente, esforçando-se para realçar “[...] a singularidade das montagens sintomáticas naquilo que elas possuem de criações enquanto tentativas de cura de si mesmo e de evitação do sofrimento psíquico”, no que constituiriam técnicas de “sobrevivência psíquica” (FERRAZ, 2015, p. 29).

Justamente para contornar a conotação negativa do termo perversão é que ela propõe alternativamente a utilização de “neossexualidades”.

Buck Angel poderia talvez ser classificado como um perverso segundo a primeira teoria da perversão em Freud, conquanto se permite realizar concretamente fantasias profundamente recalcadas no ideário neurótico. Dessa forma, sua sexualidade apontaria para o pulsional, no sentido daquilo que aponta para o que é “universalmente humano e originário” (FREUD, [1905] 1996, p. 180).

Vale lembrar que, para Freud, as pulsões em si mesmas

[...] seriam designadas de perversas (no sentido mais lato) se pudessem expressar-se diretamente, sem desvio da consciência, em propósitos da fantasia e em ações (FREUD, [1905] 1996, p. 157).

Nesse contexto, cabe refletir que a sublimação e a cultura remontam justamente à força das pulsões parciais (perversas), quando estas, em lugar de ser recalcadas, encontram um outro destino, um agenciamento criativo, podendo, então, ser integradas à realidade, ornando-a ou modificando-a, conforme o grau de inventividade do gesto criador.

Por outro lado, como o próprio Buck afirma, sua prática sexual tende para o reconhecimento da alteridade de seus parceirxs, tendo como condição a consensualidade, fazendo com que, sob essa outra ótica, ele não se enquadre no conceito de perversão.

Se admitirmos, com Stoller (1982), que a transexualidade de Buck Angel poderia ser vista como a expressão de seu verdadeiro self, ainda que necessariamente mediada pelo seu falso self social, também o retiramos do espectro da perversão reconhecido por aquele autor, para quem a perversão seria um compromisso firmado à custa de um eu primitivo que nunca mais seria visto, tendo em vista a defesa perversa ser “profunda e eroticamente agradável” (STOLLER, 1982, p. 2).

De fato, o autor entende que

[...] o desenvolvimento da masculinidade ou da feminilidade nos transexuais é como nas pessoas normais – nas quais esse desenvolvimento é mais frequentemente o resultado de forças não conflitivas do que nos casos de desordens familiares de identidade genérica (as perversões) (STOLLER, 1982, p. 4).

Como vimos, compreender Buck Angel como perverso ou não depende fundamentalmente do referencial teórico adotado. Se, conforme sua proposta, nos despimos de preconceitos e categorizações quanto ao termo e o abraçamos em sua humanidade, indagamos provocadoramente e com ele: por que não ser?

 

(In)conclusões

Ao longo de sua vida, Buck Angel atravessou intensos conflitos entre sua autoimagem, seu sentimento de si e o olhar desaprovador dos outros, até engendrar em seu corpo uma montagem singular que, ao mesmo tempo que representa sua sexuação psíquica, permite-lhe acesso aos seus modos de gozar.

De fato, os efeitos de seu percurso terapêutico parecem ter sido, entre outros, permitir-lhe alinhavar fantasisticamente uma imagem corporal integrada, viabilizadora de seu modo próprio de gozar; o fortalecimento de um espaço egoico de onde ele pode enunciar um modo singular de ser, permitindo que seus conflitos intrapsíquicos e intersubjetivos se tornem gradativamente menos ameaçadores e, ainda, o recurso a algumas formas bastante peculiares de sublimação.

Entre os muitos conceitos da psicanálise que sua corporeidade e atividade sexual nos convidam proficuamente a revisitar estão certamente o caráter perverso-polimorfo da sexualidade humana; os conceitos de pulsões parciais e relações de objeto; o autoerotismo; o narcisismo; a bissexualidade psíquica constitucional do ser humano (ou as “N” sexualidades de Deleuze); a imagem (inconsciente) do corpo, nesta incluindo-se a montagem fantasística da corporeidade assim como as repercussões das modificações corporais nas posições fantasísticas que subjazem ao gozo e, como vimos, até mesmo o conceito de sublimação.

Patrícia Porchat (2014) nos exorta a que, se a psicanálise pretende exercer sua vocação subversiva, é preciso repensar a teoria de modo que

[...] as posições de sexuação não reproduzam os gêneros existentes em sua maneira clássica, espelhos do dimorfismo sexual. Mesmo porque a psicanálise não tem que reproduzir o discurso da maioria e, sim, permitir o discurso do singular (PORCHAT, 2014, p. 134).

Adaptando o que Marco Antonio Coutinho Jorge disse a respeito da luta pela despatologização das homossexualidades, podemos consentir que também a(s) transexualidade(s) é/são “subversiva(s), pois manifesta(m), em ato, a existência no ser falante de uma liberdade absoluta em relação ao natural” (JORGE, 2013, p. 24).

Acreditamos que, por provocação das teorias queer e das novas correntes filosóficas de viés desconstrutivistas e de pensamento complexo, a própria psicanálise pode, enfim, reabilitar como válida a pensabilidade proposta no modo de atuação do processo primário, onde as diferenças não são oponíveis, disjuntivas ou mutuamente excludentes, mas, ao contrário, onde se realizam conjunções díspares, amigas da complexidade dos paradoxos.

Esse é o “raciocínio” da pulsão, essa “a lei dos objetos parciais” para os quais

[...] nada falta, nada pode ser definido como falta, e as disjunções no inconsciente nunca são exclusivas, mas objeto de um uso propriamente inclusivo que é preciso analisar (PEIXOTO JR., 2010, p. 28).

Para Jô Gondar (2014), “[...] as teorias queer denunciam a contingência histórica da redução binária das sexualidades”, o que configura uma importante contribuição para a psicanálise e para a cultura.

Em contrapartida, a psicanálise também teria uma contribuição a fazer, a saber, lembrar da dimensão trágica de cada modo de sexuação: “[...] binária ou múltipla, sexualidade é conturbação [...], um território de impasse e uma questão em aberto” (GONDAR, 2014 p. 65). A cada um, portanto, o preço inafiançável de ser si mesmo.

Se caberia a cada um “[...] encontrar os caminhos de seu desejo e seus modos próprios de situar-se quanto ao sexo” (GONDAR, 2014, p. 66), Buck Angel parece ter encontrado os seus. Mais do que isso, parece ter compreendido que a vida se trata de percurso, mais do que de pontos de chegada. Coloca-se do lado do devir, ao enunciar que a transição é um processo permanente, tal como a vida: um fluxo dinâmico e contínuo. Põe-se em marcha e transita pelas múltiplas potências dos espaços possíveis e nos leva a passeio pelas possibilidades tantas de inexplorados espaços potenciais.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: rmendes.psi@gmail.com

Recebido em: 10/04/2017
Aprovado em: 18/05/2017

 

 

SOBRE A AUTORA

Roberta de Oliveira Mendes
Advogada e bacharel em direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
Mestre em Direito de Integração Europeu (Magister des Europäischen Rechts, Legum Magister - LL.M.Eur.) pela Universidade de Würzburg, Alemanha.
Psicanalista e membro efetivo do Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro (CBP-RJ).
Integrante do Grupo de Trabalho de Neo e Transexualidades (GTNTrans) do CBP-RJ.

 

 

1 O Grupo de Trabalho de Neo e Transexualidades (GTNTrans) do CBP-RJ é composto por Fernanda Freitas, Rodrigo Zanon, Roberta Mendes, Tânia Cynammon, Fátima Barcelos e Ana Paula Perissé sob a orientação de Anchyses Jobim Lopes. Vale dizer que, desde agosto de 2016, juntou-se a dimensão clínica aos estudos teóricos, mediante a escuta analítica de indivíduos tranvestigêneres em situação de risco.
2 LGBT(QI): Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais (Queer e Intersexuados).
3 She was a boy é o título de uma canção de autoria da cantora israelense Yael Naïm em parceria com David Donatien.
4 Tomboy : termo corrente em língua inglesa para designar meninas de comportamento e aparência socialmente percebidos como masculinos.
5 Atualmente, o DSM classifica a transexualidade não mais como um transtorno de identidade, mas como uma disforia de gênero. Vale lembrar que há um crescente movimento por parte de vários setores da sociedade em prol da despatologização da transexualidade.
6 Uma tradução possível seria “sexualizando o trans homem”.
7 Trecho extraído dos comentários ao texto O problema econômico do masoquismo (Freud, [1924] 2016, p. 302).

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