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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.47 Belo Horizonte jul. 2017

 

 

As peles de Almodóvar ou Existe alguém aí dentro?1

 

The skins of Almodóvar or Is anyone there?

 

 

Isabela Cribari

I Círculo Psicanalítico de Pernambuco
II Hospital Agamenon Magalhães

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta leituras para a paixão humana, debruçando-se em uma metapsicologia do corpo (e seu telos, no tempo). Traça um percurso que vai além do componente corpóreo e avança sobre o estudo do corpo libidinal a partir da linguagem – esse corpo sutil, imaterial, mas também um corpo. O estudo das paixões em Descartes, Espinosa, Freud e Lacan, a partir da produção cinematográfica de Pedro Almodóvar. Busca compreender esse pathos pela leitura dos mitos de Psiqué e Eros, e das Danaides, para dar um corpo unificado a esses pensamentos. Além disso, busca partir da compreensão desse ponto inicial, arcaico, esse arcké, da origem de todas as coisas, de um passado comum ou sentimento primitivo e busca reflexões sobre a contemporaneidade, pois o contemporâneo é também o arcaico – e isso inclui as paixões. A paixão é a busca desse sentimento arcaico e idealizado de satisfação total. A ética da psicanálise consiste em cessar essa saudade do pai protetor, da mãe que a tudo supre e satisfaz para se lidar com esse desamparo, com essa falta. Fazer bem o luto dessa fantasia infantil. Deslocar-se, corpo & alma, nesse tempo morto, portanto. Telos, corpus, cronos, psique, eros, arcké, pathos. Trata desse pathos específico, aquele do qual cuida a psicanálise – o da inscrição do amor no corpo –, buscando compreender o amor também como patologia que habilita a psicanálise em seu objeto, de modo que pouco importem as peles, mas importe quem, de fato, habite dentro dela.

Palavras-chave: Psicanálise, Paixão, Corpo, Cinema, Almodóvar.


ABSTRACT

This article presents interpretations for human passion, addressing the metapsychology of the body (and its telos, in time). It traces a course that goes beyond the corporeal component, and advances into a study of the libidinal body within language - this subtle, immaterial body, but that is also nonetheless - a body. A study on the passions in Descartes, Spinoza and Freud, and Lacan, from the cinematographic production of Pedro Almodóvar. The work seeks to understand this pathos by analyzing the myths of Psyche and Eros, as well as Danaids, in order to provide a unified approach to these thoughts. The intention of the article is to begin with an understanding of this ancient, initial idea, this arché, of the origin of all things, of a common past or primitive feeling, and pursue reflections on contemporaneity, since the contemporary is also the ancient - and this includes passions. Passion is the search for this archaic, idealized feeling of total satisfaction. The ethics of psychoanalysis are involved in bringing to an end this longing for a protective father, for a mother who supplies and satisfies everything as to deal with this helplessness, with this lack. Mourning this childlike fantasy does us good. Accordingly, move on, body & soul, within this dead time. Telos, corpus, chronos, psyche, eros, arché, pathos. This article addresses this specific pathos, that which psychoanalysis takes care of - that which is inscribed with love in the body -, and also seeks to understand love as a pathology that enables psychoanalysis in its object, such that it is not the skins that are important, but rather whoever inhabits them.

Keywords: Psychoanalysis, Passion, Body, Cinema, Almodóvar.


 

Hello!
Olá!
Is there anybody in there?
Tem alguém aí?
Just nod if you can hear me
Apenas acene se puder me ouvir
Is there anyone at home?
Tem alguém em casa?

Come on now
Vamos lá
I hear you’re feeling down
Ouvi dizer que você está se sentindo deprimido
Well, I can ease your pain
Bem, eu posso aliviar sua dor
And get you on your feet again
E te pôr em pé de novo

Relax
Relaxe
I’ll need some information first
Vou precisar de algumas informações primeiro
Just the basic facts
Apenas coisas básicas
Can you show me where it hurts.
Você pode mostrar onde dói?2

O tema da paixão encontra um fértil caminho na filosofia, na mitologia, na literatura e no cinema, além da psicanálise. Espinosa e Descartes, por exemplo, são leituras obrigatórias para esse tema, donde se pode perceber que, embora as vítimas do amor romântico o prefiram de outra natureza, para a filosofia, o amor é só um pensamento, por mais confuso ele se apresente.

Esse racionalismo, que tem representação em Descartes (embora seja em Espinosa que atinja seu ponto mais elevado), define o amor como uma confusa “paixão da alma”, essa paixão primitiva e para quem a sua antecipação para aquilo que é o objeto do nosso desejo não se pode jamais dissociar do seu componente orgânico, ou seja, o corpo humano. Espinosa (2010) vai mais além: a paixão é também razão; o pensamento é também algo que se sente, um sentimento.

Se seguirmos pelas visões românticas desde a rebeldia de Caliban até o domínio da alma em Próspero, em A tempestade, de Shakespeare, cuja lição é que a razão é superior às paixões, assim como virtudes vencem vícios, e o civilizado vence o selvagem, ou seja, que os impulsos humanos podem ser controlados, como faz Próspero ao final da peça, do mesmo modo ainda somos tentados a “escolher um dos lados” e a não compreender o homem em sua unidade, mas sempre em sua dicotomia.

Ora, Shakespeare, que, segundo Harold Bloom, inventou o humano, nos explica que nossas paixões, nossos sentimentos e pensamentos acontecem ao mesmo tempo e, quando Hamlet olha para a figura de Claudio rezando, está movido por paixão, razão e sobretudo pela mais apaixonada das razões: a loucura.

De alguma forma, René Descartes, em Paixões da alma, sentencia o amor aos domínios da carne, do tangível, do território. Do que pode ser contido, medido, pesado, quantificado. Podemos compreender ainda que esse pensamento-paixão não poderá se manifestar senão por uma estreita relação ou contingência entre o corpo e a alma. E que, sem a ressonância orgânica no corpo, o amor-pensamento não se satisfaz, não existe. Então, o corpo é o índice da paixão que vem a afetar a alma.

É, portanto, impossível não pensar com mais propriedade – aqui e ali, outra vez e sempre – no mito de Psiqué e Eros; a fonte provável da solução de todos os males ou sofrimentos psíquicos, a panaceia, enfim, que todos buscamos (sempre com um dos pés no outro lado do abismo, como Psiqué, derrotada pela falta de fé, tentando se atirar no rio), porque talvez não acreditemos tanto assim na felicidade como a personagem não acreditou no Amor e traímos, conscientemente ou não, esse pensamento segundo a segundo, todos os dias – talvez por uma única razão: a obra e graça de Voluptas – o prazer – filho desse casal mitológico e enigma para todos os nossos males também. Por que o homem deseja tanto o prazer? Ou por que o homem deseja tanto? E por que se culpa tanto de desejar sem medidas?

Qual seria a medida certa do desejo para ‘o bom uso das paixões’? Os estoicos acreditavam ser necessária a extirpação das paixões e a resignação do destino. Os epicuristas, ao contrário, acreditavam ser o prazer o supremo bem da vida humana, sendo necessário que cedêssemos o mais possível e a qualquer preço aos desejos. Já os eudemonistas, para quem a felicidade, e não o prazer, era o objetivo maior da vida, achavam ser necessário que escolhêssemos os desejos a ser satisfeitos. Conforme cada um desses entendimentos havia uma forma de lidar com as paixões e com sua relação corpórea sem, entretanto, negar a existência dessa estreita relação.

Ainda em As paixões da alma, (no art. 40, Qual é o principal efeito das paixões), Descartes (2012) aponta um caminho: o principal efeito de todas as paixões nos homens é que incitam e dispõem a sua alma a querer coisas para as quais elas lhes preparam o corpo.

No cinema a paixão é tema recorrente, e é no cinema de Pedro Almodóvar que é representada como um corpo vivo, em carne e alma, em gozo. Numa entrevista recente, Almodóvar revela também o seu telos e o que determina o seu modo de fazer cinema: “O essencial é isto: sobreviver e manter a paixão”. O significante paixão. A frase ficou dando voltas na minha cabeça. “Sobreviver e manter a paixão”. Ou ainda: manter a paixão e sobreviver.

Lacan ([1972-1973] 1986) diz que o significante é a causa material do gozo, e podemos dar índices de vida a um corpo tanto quanto mais gozo haja nesse mesmo corpo: “[...] a substância corporal é aquilo de que se goza”, diz ele. Para isso, ele criou apalavra “corpsificar”. Lacan ([1972-1973] 1986) questiona que um corpo possa ser conceituado pelas funções orgânicas, mas isso sugere pouco: “Um automóvel, ou mesmo um computador, segundo as últimas notícias, é também um corpo, mas não é óbvio, digamos, que um corpo seja vivo”, diz ele.

Talvez não seja tão óbvio assim, não em pleno século XXI, neste século do cinema de Almodóvar, em que exatamente essas paixões – compreendidas sobretudo como pathos, outro conceito discutido por Descartes – é que dirigem a ação dos seus personagens-máquinas, em que ele os dirige para o desfiladeiro de um sofrimento insuportável, justo numa sociedade contemporânea em que tudo (a publicidade, a comunicação de massa, o mundo pop de sua personagem ninfomaníaca Sexilia, em Labirinto de paixões, por exemplo) nos faz crer na realização completa de todos os desejos. O mundo do orgasmo ululante.

Em Almodóvar, a paixão (que vem do grego pathos) sugere esse arrebatamento com cheiro de catástrofe, a paixão e os seus excessos. Poderíamos esteticamente acusá-lo de alguns barroquismos, mais ainda no que ela sugere filosoficamente no seu significado: uma passagem, um assujeitamento, algo que foge exatamente ao controle, e a isso o corpo está condenado, que é sofrimento, que se diferencia, portanto do amor.

Não só no cinema de Almodóvar, mas quando pensamos na paixão de Cristo somos remetidos imediatamente para o sofrimento de Cristo, um sofrimento também físico, e não para o amor de Cristo. Por aí podemos entender esses barroquismos, esses excessos, enfim, o kitsch, e ainda mais a escatologia, que se apresenta em toda a obra almodovariana e tem origem notadamente religiosa, da prática ritualista das religiões, sobretudo.

Assim, a partir das aulas dos ritos de tauromaquia das primeiras cenas de Matador, em que o touro traz a metáfora antropomórfica, endereço correto do mito de Teseu, do Minotauro e do labirinto, vemos o corpo sitiado para as experimentações da morte, do prazer e do êxtase. Ou até mesmo podemos pensar num outro corpo, como em Carne trêmula, em que os quatro anjos (justiça, temperança, fortaleza e prudência) no alto de La Puerta de Alcalá, em Madri, parecem se suicidar (como diz Isabel, a personagem). Referindo agora o corpo territorial, o corpo social, a própria Espanha, perdida ainda pelos ecos do seu totalitarismo, Almodóvar cria uma ilha própria de mitos para falar de sua corpolatria e sobremaneira inaugurar sua própria voz, a sua própria linguagem.

A dor e o prazer, a religiosidade, o divino, em Pedro Almodóvar, têm a mesma substância e falam a mesma língua. Basta ver uma cena no último terço de Carne trêmula. Há um plano especialmente valioso para a compreensão da dimensão do corpo e da paixão na obra de Almodóvar. Na cena, a personagem Elena está deitada com Victor, e seus corpos sugerem, juntos, um coração. O diretor comentou numa entrevista que na cena estava especialmente interessado em registrar os rostos “porque os rostos tomados pelo prazer se assemelham muito aos rostos de dor e os gritos de prazer ressoam como gritos de sofrimento”.

A linguagem é uma das fontes que a psicanálise compreende como marca da contraposição entre o corpo biológico e o corpo que tem a marca do desejo inconsciente e sexual, naquilo que Freud apontou como metapsicologia do corpo, em que a pulsão tem sua fonte principal: a excitação do corpo (a tensão). E é exatamente por isso que a pulsão pode atingir o seu alvo. Para Freud, o corpo passa a ser, então, o corpo libidinal, não demarcado somente pela visão cartesiana ou clínica.

A psicanálise, portanto, trata exatamente desse corpo transformado e alterado pela linguagem. O eu almodovariano parte de uma linguagem que se presta para uma leitura também psicanalítica, que é uma das bases que Freud (2011) utilizou em O ego e o id (de 1923) para definir o eu como uma dimensão corporal.

Mas essa leitura psicanalítica da obra do diretor espanhol é feita também na contramão, a partir da sátira da própria psicanálise ou do ambiente psicanalítico. Em Labirinto das paixões, a figura de uma psicanalista, empenhada em explicar a ninfomania de uma paciente, termina por encarnar um dos mais cômicos personagens da filmografia de Almodóvar. O diretor, certa vez, explicou que ali a intenção era demonstrar que algumas vezes os comportamentos não têm mesmo uma explicação (assim como as paixões).

O uso do flashback no cinema tem uma função na maioria das vezes explicativa. Quase sempre emocional. A psicanálise utiliza-se mais ainda de flashbacks, do uso do passado para a explicação do presente.

De fato, buscar uma explicação para algo é buscar uma origem para algo. Ou, como diziam os gregos, o arkhé, o ponto inicial, mas também o princípio sagrado e indemonstrável. A esse desejo se juntam o temor diante do mistério, além de que esse sagrado é fascinante e dionisíaco, o que provoca possessão e êxtase. É sempre uma relação com o princípio. Resumindo, é buscar, portanto, um pai, uma mãe, um sentimento primitivo. E o que é a paixão senão a busca desse sentimento arcaico e idealizado de satisfação total?

Para Freud (2006) a ética da psicanálise consiste em cessar essa saudade do pai protetor, da mãe que a tudo supre e satisfaz e lidar com o desamparo, com a falta. Fazer bem o luto dessa fantasia infantil, deslocar-se desse tempo morto.

Portanto, a paixão, além do seu componente corpóreo, teria seu telos no tempo, por isso a impossibilidade de viver no tempo atual o que, subjetivamente ou alucinadamente, se viveu no arkhé da vida do sujeito. O tempo é o tempo do desejo, o tempo subjetivo. O mundo tem outro tempo. E nós temos vários.

Mas nem a filosofia, nem a psicanálise foram tão claras ao definir a paixão e suas (im)possibilidades, quanto o professor Levy, personagem criado pelo cineasta Woody Allen, que é assumidamente de grande influência para Almodóvar, no filme Crimes e pecados:

Podem notar que o que nos move quando nos apaixonamos é um estranho paradoxo. O paradoxo consiste no fato de que, quando nos apaixonamos, procuramos reencontrar todas ou algumas daquelas pessoas de que gostávamos quando éramos crianças. Por um lado, queremos que o ser amado corrija todas as faltas que os pais ou irmãos cometeram contra nós. Portanto, esse amor contém em si uma contradição. O desejo de voltar ao passado e o desejo de transformar o passado (grifo nosso).

É essa busca pelo ponto inicial, da pele mais colada aos ossos, da origem de todas as coisas, da figura arquetípica da Grande Mãe, e não do pai, em Almodóvar, que dá a tônica ao seu cinema, e todos os seus filmes poderiam ter o título de um deles, Labirinto das paixões, como disse Frédéric Strauss (2008).

Almodóvar apresenta personagens que buscam uma fusão física, amniótica, como em Carne trêmula ou um fusionamento psíquico, que pode ser visto com o olhar terno do romantismo, como em Fale com ela. E é isso que garante à obra do diretor espanhol essas suas muitas peles, porque a sua fala se baseia em certa espetacularização do corpo, a sua fala trágica ou melodramática como em A flor do meu segredo, de um Almodóvar ainda instável; ou como no filme De salto alto, no quase fantasmagórico show de travestis ou, ainda ali, com a personagem Rebeca se confessando diante das câmeras de televisão, o que se transforma também numa espetacularização do sofrimento da alma, geralmente arrebatadas pela paixão. Ou ao ponto mais extremo, no recente A pele que habito, a versão almodovariana do Frankenstein, assumidamente de terror porém asséptico como um bisturi, em que o corpo, o objeto do desejo, “se constrói” a partir do próprio desejo, em que o corpo é o palco principal. E nesse filme o médico é o deus que constrói o corpo imune à dor, mesmo que para isso seja um pouco pele de animal, um porco, como é o caso – o que nos leva direto a Nietzsche e o seu conceito de super-homem, e ser humano é só uma passagem, parte da travessia que se inicia no animal.

Em A pele que habito, em nome da paixão Almodóvar nos oferece uma bricolage do corpo. Ele quer nos perguntar: “Você deseja algo? Você deseja mesmo isso? Por que deseja tanto?” E nos responder: “Ora, então ‘faça você mesmo! – “do it yourself” – o conceito americano, panaceia moderna do consumo desenfreado.

Na cena, à semelhança de uma linha de montagem, o corpo, ao receber um rosto logo uma identidade, destacam-se, em cores fortes, exatamente os quadrantes da garganta, da traqueia, da fala, ou seja, é só ali que o ser se completa, que o corpo está vivo, como distingue Descartes.

E o filme faz lembrar o Moisés, de Michelangelo. O grande artista renascentista, ao terminar obra tão perfeita, não pediu a ela que se movesse, que piscasse os olhos, que sonhasse, que criasse uma conta no Facebook. Nada. Simplesmente pediu: “Fala, Moisés”.

Nesse caso, a fala é, portanto, o índice da existência do sujeito. Matéria, carne, granito e pele de cada Almodóvar, Moisés e Frankenstein, criadores e criaturas que somos, sem saber se há realmente alguém dentro, abaixo da pele e além do desejo, da paixão.

Para Lacan ([1953] 1998, p. 302), “a fala é um dom de linguagem, e a linguagem não é imaterial. É um corpo sutil, mas é corpo”. E essa fala sutil, mas ainda um corpo, em Almodóvar, tem essa função caprichosa da hipnose (ele dirige os seus atores assim mesmo, como se os estivesse hipnotizando, revelou numa das suas entrevistas), mas especialmente porque uma fala também revela uma voz, uma voz específica. Um diretor, num set de filmagens, é como um deus. Um criador. Aquele é o habitat mais natural para quem dirige uma cena.

E Pedro Almodóvar sabe muito bem disso. E entende que funcionamos – pessoas, espectadores e atores – a partir de poderosas vozes em off, inconscientes. Em A flor do meu segredo, por exemplo, a impressionante sequência do suicídio de Leo ganha força exatamente por causa de voz da mãe da personagem, das entranhas de uma secretária eletrônica, que resgata Leo do meio dos mortos. A mãe se queixa da saúde, e Leo pensa: “Se me mato agora, minha mãe morre também”. Portanto, é uma voz, esse off, que a salva.

Mas não há melhor exemplo da sacralização dessa voz do que na primeiríssima cena de A lei do desejo. A cena mostra um rapaz (um miché, um prostituto, algo assim) se masturbando, ouvindo a voz em off de um diretor, que ordena e conduz tudo.

Almodóvar, inclusive, define um pouco o cineasta como uma figura oral, e o trabalho com a voz é uma de suas obsessões. A voz, para ele, no set, inclusive, é símbolo de autoridade. Alteridade. O pleno controle, que o vitimiza, não só aos atores, mas a ele próprio, porque é uma voz apaixonada. “Só sei trabalhar me tornando vítima de minha própria paixão pelo trabalho [nesse caso, pathos, paixão do amor]”.

O filósofo François Regnault (1999) tem um texto que apresenta o amor como uma doença. Para ele, é apropriado falar em doença, para o caso da paixão do amor, quando alguma coisa da alma suporta alguma coisa do corpo ou quando alguma coisa do corpo suporta alguma coisa da alma.

De novo, o velho Descartes (2012) que diz que o amor é um tipo de paixão que depende do corpo e que o controle das paixões não passa pela vontade, o que nós entendemos por controle dos desejos; portanto, para ele, as paixões tendem à patologia.

E, assim, para completar o giro pela circunferência, voltando a Psiqué, Eros e o seu filho Voluptas, mencionados no início deste artigo, falta refletir o que a paixão na contemporaneidade tem a ver com a mitologia, a filosofia de Espinosa e Descartes, com Shakespeare, com o que foi descrito por Freud, Lacan, cada um no seu tempo e distante do nosso, e com o cinema atual de Almodóvar, utilizado aqui para dar um corpo unificado a esses pensamentos.

Mas aí será necessário antes entender “[...] de quem e do que somos contemporâneos? E, acima de tudo, o que significa ser contemporâneo?”, questões do filósofo vivo portanto de nosso tempo, Giorgio Agamben (2009).

Para ele “[...] a contemporaneidade é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo dele toma distâncias”, e questionando “[...] o que vê quem vê o seu tempo”, aprofunda seu conceito: “[...] contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro”.

E para explicar essa percepção do escuro, recorre à neurofisiologia, às células da retina (off-cells), que são ativadas no escuro e que nos permitem analogicamente perceber o escuro do nosso tempo “Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provém do seu tempo”. Mas o contemporâneo pode ser também o arcaico, como a paixão e todo pensamento sobre ela.

Segundo Agamben (2009), a origem é contemporânea ao futuro histórico e “[...] não cessa de operar neste, como o embrião continua a agir nos tecidos do organismo maduro e a criança na vida psíquica do adulto”, exatamente como a paixão.

Para encerrar com Almodóvar, tudo parece ser como nas aulas de tauromaquia, no seu filme Matador, quando o personagem Diego, o toureiro, diz que é necessário matar o touro com a espada. Mas também com o coração.

A psicanálise cuida em especial dessa ressonância orgânica, de como o amor afeta o corpo. O efeito do gozo, do sintoma, o efeito do sujeito “em” um corpo unificando todos os seus tempos. É desse pathos, portanto, de que cuida a psicanálise, da inscrição do amor no corpo.

E é compreender o amor também como uma patologia que habilita a psicanálise ao tratamento desse mesmo amor, de modo que pouco importam as peles, mas importa quem, de fato, habita dentro dela.

 

Referências

AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Santa Catarina: Argos, 2009.         [ Links ]

DESCARTES, R. As paixões da alma. São Paulo: Lafonte, 2012.         [ Links ]

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STRAUSS, F. Conversas com Almodóvar. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.         [ Links ]

 

Filmografia

A FLOR do meu segredo. Direção: Pedro Almodóvar. Espanha e França: El Deseo S.A. e Ciby, 1995. (1h 47 min). Tradução de: La flor de mi secreto.

A PELE que habito. Direção: Pedro Almodóvar. Produção: Augustin Almodóvar e Pedro Almodóvar. Produtora: El Deseo S.A e Fox Film do Brasil. Espanha, 2011. (1 h 57 min). Tradução de: La piel que habito.

CARNE trêmula. Direção: Pedro Almodóvar. Produção: Augustin Almodóvar. Produtora: El Deseo S.A. Espanha, 1997. (1 h 39 min). Tradução de: Carne trémula.

CRIMES e pecados. Direção: Woody Allen. Produção: Robert Greenhut. Produtora: Orion Pictures Corporation. EEUU, 1989.

DE SALTO alto. Direção: Pedro Almodóvar. Produção: Augustin Almodóvar. Espanha e França: El Deseo S.A, Ciby 2000, Canal + e TF1 Films Production. 1991.

LABIRINTO das paixões. Direção: Pedro Almodóvar. Produção: Pedro Almodóvar. Espanha: Alphaville S.A., 1982.

MATADOR (1986). Direção: Pedro Almodóvar. Produção: Andres Vicente Gomez. Produtora: Television Espanhola (TVE) / Compania Iberoamericana de TV. Espanha.

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: isabela.cribari@gmail.com

Recebido em: 15/05/2017
Aprovado em: 25/05/2017

 

 

SOBRE A AUTORA

Isabela Cribari
Psicanalista associada ao Círculo Psicanalítico de Pernambuco e coordena a programação científica daquela instituição desde 2015. Psicóloga pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Atua no Hospital Agamenon Magalhães, no Recife, com ênfase aos serviços especializados a mulheres vítimas de violência, além do seu consultório particular. É também cineasta, pesquisadora da cultura popular e autora de livros, com especialização em Economia da Cultura (UFRGS, 2010).

 

 

1A primeira parte deste trabalho é um vídeo, que pode ser visto nos endereços: https://www.youtube.com/watch?v=fpkpgFvJuIQ ou https://vimeo.com/216714433.
2Comfortably Numb. In: GILMOUR, David; WATERS, Roger. The Wall, 1979.

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