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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.47 Belo Horizonte jul. 2017

 

 

Atemporalidade e existência: ser um psicanalista

 

Timelessness and life: being a psychoanalyst

 

 

Ricardo Azevedo Barreto

I Universidade Tiradentes
II Hospital São Lucas - Sergipe

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Articulações entre temporalidade, existência e ser psicanalista nos endereçam, entre outros aspectos, à atemporalidade do inconsciente e às mudanças na produção do tempo na contemporaneidade, o que gera impacto ao ofício psicanalítico. A força da psicanálise torna-se saliente por sua perspectiva fora do tempo.

Palavras-chave: Atemporalidade, Existência, Psicanálise.


ABSTRACT

Relations among time, life and being a psychoanalyst address us to the timelessness of the unconsciousness and the changes in time production nowadays among other aspects that have an impact on psychoanalytic practice. The strength of psychoanalysis becomes prominent for its out of time perspective.

Keywords: Timelessness, Life, Psychoanalysis.


 

[...]
Por seres tão inventivo
E pareceres contínuo
Tempo, tempo, tempo, tempo
És um dos deuses mais lindos
Tempo, tempo, tempo, tempo
[...]

Caetano Veloso

 

O tempo é objeto de distintas áreas do conhecimento, um assunto que exigiria um modelo de complexidade para a sua abordagem. Entretanto, nosso objetivo, minimizado, é pensar em algumas articulações entre (a)temporalidade, vida e ser psicanalista.

O que Freud denomina tempo nos permite compreender a tese de atemporalidade do inconsciente [...] por oposição ao tempo introduzido no psiquismo pelo sistema Pcpt-CS [...] O inconsciente então despreza a ideia consciente de tempo; em outras palavras, o inconsciente é atemporal [...] (PIMENTA, 2014, p. 60).

É a partir da atemporalidade e da ausência do conceito de tempo que se constrói a noção temporal nos processos civilizatório e de subjetivação. Numa perspectiva psicanalítica, eu vivo é compreendido num duelo ou conflito de forças e conhecimento/inconsciência. Mais do que o saber, interessa aos psicanalistas o não saber, o que escapa... do tempo da consciência e concerne ao inconsciente.

Os processos do sistema inconsciente [...] não são ordenados temporalmente, não se alteram com a passagem do tempo, não têm absolutamente qualquer referência com o tempo. A referência ao tempo vincula-se [...] ao trabalho do sistema consciente (FREUD apud SANTORO, 2010, p. 130).

Por outro lado, cabe à psicanálise investigar também no mundo atual as várias produções de temporalidade nas culturas e subjetividades, nos discursos e suas políticas de dominação das formas de existir. Parece frequentemente haver uma subordinação ao senhor Tempo, quando o sujeito atual age nos mais distintos contextos de produção da existência, o que se torna muito visível no campo do fazer humano.

Outrossim nas roupagens da atualidade encontramos um excesso do que é liquefeito ou fluido; através de Bauman (2001), cabe-nos lembrar uma “modernidade líquida”.

Reconhecemos seus efeitos na clínica psicanalítica, nas relações amorosas e familiares, entre outros exemplos. Percebemos ainda uma busca de imortalidade, completude, satisfação imediata numa dinâmica marcada pelo infantil, pela recusa aos limites, a intolerância à frustração e à dor do pensar em uma época de empoderamentos e muitas contradições.

Há uma costura do tempo na constituição das subjetividades e da civilização que tomou ritmo frenético quando falamos da temporalidade contemporânea e glorificação do tempo nas sociedades de consumo. O tempo ficou atrelado ao excesso de trabalho e capital, à ação imediata e pouco pensada com consequências ao ofício psicanalítico.

Se o tempo foi se desenhando com contornos específicos na atualidade, para abordarmos o assunto de forma ampla, teríamos que contemplar visões díspares sobre o tempo em um território polifônico e polissêmico na interlocução de Chronos com Édipo, Narciso e muitos outros da mesma forma que consideraríamos a concepção da atemporalidade na constituição da vida humana.

A imagem newtoniana do mundo faz uma redução do tempo a uma dimensão contábil. Para Einstein, a noção de passado, presente e futuro seria uma ilusão (DAVIES, 2016). O tempo é objeto de muitas áreas do conhecimento, como mitologia, filosofia, física, teologia, política, psicologia e psicanálise; desse modo, é uma temática bastante complexa e multifacetada.

Pimenta (2014, p. 65) afirma:

A psicanálise engloba o domínio do acaso e da ordem psíquica. Esta comporta várias formas de organização, e cada uma delas comporta um regime temporal específico: o psiquismo traz consigo várias modalidades de tempo
[...] Para a estruturação subjetiva, é necessário um ordenamento, tornando possível para o sujeito a referência ao tempo e no tempo.

São muitas as considerações que podem ser tecidas acerca do tempo na psicanálise. Santoro (2010) sinaliza algumas delas ao falar, entre outros aspectos, de antecipação, pressa, sujeito produzido no só-depois e tempo lógico.

De acordo com Vale e Castro (2013), Freud compreende o tempo com as concepções de a posteriori e atemporalidade do inconsciente.

A questão do tempo e sua relação com a direção do tratamento psicanalítico perpassa toda a obra de Freud e podemos pensar que Freud subverteu o tempo cronológico (o tempo mensurado pelo relógio e que separa passado, presente e futuro) [...] (VALE; CASTRO, 2013, p. 439).

O tempo tornou-se a grande expressão da vida e esta se esvai com o tempo. Por outro lado, podemos pensar, segundo Costardi (2014), na vida numa perspectiva psicanalítica com base no desenvolvimento da teoria das pulsões de Freud, da qual a sexualidade é uma dimensão central. De acordo com a autora, numa primeira forma de análise, diferenciando fome e amor, são consideradas as pulsões de preservação do organismo (pulsões do ego) e também as pulsões sexuais. Mais adiante, a visão freudiana acrescenta outra classificação para a pulsão: ela pode se ligar ao ego ou aos objetos externos. Com a noção de pulsão de vida e pulsão de morte, há a compreensão da vida no âmbito pulsional ligada à morte.

A partir do terceiro momento de Freud com a teoria das pulsões, podemos falar que Eros (pulsão de vida) e Tânatos (pulsão de morte) – amor e agressividade – desvelam a ambivalência do existir na aliança e no conflito (a)temporais da ordem e do caos.

Sobre as pulsões de vida, Laplanche e Pontalis (1994, p. 414) explicam:

Grande categoria de pulsões que Freud contrapõe, na sua última teoria, às pulsões de morte. Tendem a constituir unidades cada vez maiores, e a mantê-las. As pulsões de vida, também designadas pelo termo “Eros”, abrangem não apenas as pulsões sexuais propriamente ditas, mas ainda as pulsões de autoconservação.

Costardi (2014, p. 175) comenta:

A novidade que a psicanálise trouxe em relação à sexualidade foi exatamente a subversão de seu caráter natural, a noção de que o sexo não é um fato do instinto, mas da pulsão, de que o corpo sofre da linguagem, além de gozar dela. Isso implica que, ainda que o homem socializado não tenha como experiência privilegiada a liberdade na esfera pública, ele não pode ser reduzido à animalidade; a linguagem está irremediavelmente imiscuída em suas entranhas.

Consideramos, por conseguinte, a importância das noções de (in)consciente, (a)temporalidade, sexualidade, pulsão, dialética entre vida e morte, linguagem, restrição de liberdade, entre muitas outras, à compreensão da existência humana numa perspectiva psicanalítica.

Barreto (2010), por outro lado, a partir de um viés institucionalista específico, pensa na vida humana como uma modalidade ou estilo de relação em que estão presentes dinâmicas de poder e alienação. Reflete sobre a clínica psicanalítica do estilo de vida, fazendo uma interlocução com distintos autores, sobretudo com o pensamento acerca de instituição de Marlene Guirado.

Conforme delineamos, a concepção de tempo é do Eu consciente, não do sujeito do inconsciente atemporal. A partir da atemporalidade, são sensações e movimentos que vão esboçando no corpo vivências de tempo. O Eu é, antes de tudo, corporal. Aos poucos, formam-se imagens e noções de tempo, e este vira um senhor que desenha seu poder na organização subjetiva. A compulsão à repetição paralisa a vida humana e sua potência de inovação. Numa análise de um paciente, há possibilidades de ruptura, retemporalização, de tal experiência que presentifica o passado num amálgama vicioso da vida com a morte. Todavia muitos dos efeitos de uma análise surgem posteriormente.

Quando falamos de uma análise, necessariamente nos referimos à posição do psicanalista. Na contemporaneidade, a virtualidade e as novas formas de existência têm impactado a experiência do tempo em psicanálise e o investimento pulsional para se tornar um psicanalista. A correnteza do campo psicoterápico vai no sentido das cobranças por um atendimento psi breve e pouca catexia para a formação psicanalítica. Desse modo, como trabalhar com o inconsciente atemporal?

Santoro (2007), com base em Coutinho Jorge e Lacan, fala da relação entre análise, ensino e supervisão na formação psicanalítica, explicitando que tal formação não é acabada.

Barbieri (2014, p. 11) problematiza a transmissão da psicanálise e comenta que numa análise visamos a:

[...] fazer do resto um novo objeto que possa nos servir na abertura de novos sentidos
[...] Criar novas formas de representação que nos permitam dizer o que é impossível pela palavra e realizar os desvios que nos colocam nos trilhamentos da vida evitando o encontro com a morte subjetiva.

Para abordarmos a complexidade do ser psicanalista, traríamos ainda questões da análise leiga, da psicologização da psicanálise, das tentativas de regulamentação e controle do fazer psicanalítico, dos ensaios de reconstrução da psicanálise, entre muitos outros assuntos. O tripé de formação supramencionado está na base do que cada instituição concebe em sua temporalização, tempos de ação/viver, da psicanálise. Diferenciando-se da psiquiatria, psicologia e de outras áreas psi, na psicanálise, é ressaltado o reconhecimento do não saber, atemporal, bem como os efeitos de tal posição diante do conhecimento.

Ao psicanalista não cabe uma posição falocêntrica. Portanto, precisa analisar as configurações de poder nas relações não apenas entre psicanalista e analisandos, mas também entre instituições psicanalíticas e da psicanálise com outras áreas do conhecimento.

Dunker (2008, p. 23-24) comenta:

Portanto, a psicanálise em seu tempo, não deve resumir-se a saber se ela é filha da modernidade ou da pós-modernidade, se ela sobrevive ao fim das grandes narrativas ou se inclui na sociedade do espetáculo. Se ela é herdeira das práticas de confissão e disciplinarização dos corpos ou se inclui como uma forma de familiarismo repressivo, falocêntrico ou universalista. Se ela é uma forma laica de religião ou uma técnica terapêutica ineficaz. Se ela fornece as bases biológicas para uma possível neurociência ou os fundamentos lógicos de uma teoria da cognição e da linguagem. Se ela é progressista ou conservadora. Tais debates são importantes e caracterizam a posição da psicanálise em uma época. Espera-se que deles se extraia um diagnóstico: será que a psicanálise cabe neste tempo? [...]

Tempo é vida, mas o atemporal e a morte estão presentes na existência humana no tecido da linguagem e dos afetos. Quando vivemos, a cada momento, a cada instante, morremos, perdemos... E criamos, recriamos... A psicanálise lida não só com a invenção do tempo na cultura, na civilização, com a temporalização da formação psicanalítica, mas também com o tempo primevo de sua existência como objeto perdido, entre muitos outros aspectos.

Em termos pragmáticos, as instituições psicanalíticas, de acordo com sua filiação, seu estatuto e seu regimento, tentam dar ordem e governar o encontro com o inconsciente atemporal? Para isso, estabelecem enquadre ao tempo e articulações próprias? No entanto, mais do que as condições extrínsecas ao ofício psicanalítico, são suas condições intrínsecas aquilo que nos assenta. Como preservá-las hoje?

[...]
Tempo, tempo, tempo, tempo
Nas rimas do meu estilo
Tempo, tempo, tempo, tempo

CAETANO VELOSO

Na contemporaneidade, a pulsão de vida precisa ser pensada na perspectiva do narcisismo; das relações com a pulsão de morte, a agressividade, o terror e da fabricação de uma temporalidade do imediato, viralizada pelos dispositivos virtuais. Ser psicanalista na atualidade se relaciona com a atemporalidade do inconsciente e a temporalização da vida em nosso contexto sociocultural.

A partir de nossas interlocuções, mais do que pensar nas relações entre temporalidade e existência humana, torna-se saliente aqui o destempo, o que acontece ou se encontra fora do tempo... Em tal reflexão reside nossa força como psicanalistas na luta contra a coisificação da vida humana.

 

Referências

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VELOSO, C. Oração ao tempo. Disponível em: http://www.m.letras.mus.br caetano-veloso. Acesso em: 20 jun. 2017.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: ricardobarreto@saolucas-se.com.br

Recebido em: 05/07/2017
Aprovado em: 06/07/2017

 

 

SOBRE O AUTOR

Ricardo Azevedo Barreto
Psicólogo graduado pela Universidade de São Paulo (USP).
Tem mestrado e doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela USP.
Especialista em Psicologia Hospitalar pelo CEPSIC da Divisão de Psicologia do Instituto Central do Hospital das Clínicas da FMUSP.
Teve experiência de treinamento no Butler Hospital (RI-USA).
Psicanalista. Foi presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise (2014 a março de 2017).
É um dos editores da revista Estudos de Psicanálise do Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP).
É coordenador do programa de humanização da assistência e membro do Conselho Administrativo do Hospital São Lucas em Sergipe.
Professor titular da Universidade Tiradentes (UNIT), onde ensina nos cursos de Psicologia e Medicina.
Professor de Psicologia em cursos de especialização na área de Odontologia.

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