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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.48 Belo Horizonte July/Dec. 2017

 

PALESTRA DE ABERTURA

 

 

Assim caminhou a humanidade - A cultura da imagem e a subjetividade hoje1

 

Thus has humanity walked - Image culture and today’s subjectivity

 

 

Maria Mazzarello Cotta Ribeiro

I Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Esse texto traz um resumo da história do CBP, desde sua fundação em 1956, sua renomeação em 1971, sua atuação no cenário psicanalítico até os dias atuais, levantando os temas abordados em Congressos e Jornadas. Em seguida, faço uma apresentação dos temas que serão trabalhados, com maior profundidade, nas mesas temáticas do XXII Congresso do Círculo Brasileiro de Psicanálise, em Salvador, Bahia.

Palavras-chave: História do CBP, Niilismo, Sintomas atuais, Sexualidade, Política, Laços familiares, Violência, Cultura da imagem, Laços sociais, Etnia, Artes.


ABSTRACT

The text summarizes the history of CBP, since its foundation in 1956, up to its renomination in 1971 and its presence at the psychoanalytic scene till the current days. It also raises the subjects discussed in former Congresses and conferences. Then the author speaks about the themes that will be worked more deeply at the thematic tables of the XXII Congress of Circulo Brasileiro de Psicanálise, in Salvador, Bahia.

Keywords: CBP history, Current symptoms, Politics, Familiar bonds, Violence, Culture of image, Social bonds, Ethnicity, Arts.


 

Agradecendo o honroso convite da comissão organizadora do XXII Congresso do Círculo Brasileiro de Psicanálise para fazer a palestra de abertura, coloquei-me a trabalho para trazer a este momento algo que fosse significativo para o nosso tão delicado ofício: a escuta do inconsciente!

Comecei pensando no percurso do Círculo Brasileiro de Psicanálise. Qual sua importância para as sociedades filiadas e para a própria psicanálise?

O CBP se caracteriza por congregar na diversidade de suas instituições e por ter como fundamento um espírito pluralista. Em sua abordagem intersocietária, aposta na individualidade de cada federada na transmissão da psicanálise e não espera igualdade entre elas. Ao contrário, não acredita numa repetição uníssona, porque defende a diferença que nos mostra a instabilidade das certezas. Não somos um eco a repetir nosso próprio discurso.

O CBP acredita que o discurso psicanalítico, fiel a seus conceitos e a seu objeto de estudo e pesquisa – o sujeito do inconsciente – esse marcado como é pela falta, pela divisão e pelo desejo, não precisa ser transmitido pelo mesmo modus operandi em suas instituições. E isso é um diferencial! Cada uma tem a liberdade de escolher seu tema de estudo e o modo como fará essa transmissão. Isso torna encontros como este mais ricos e criativos!

Como tudo começou! Um pouco da sua história!

O Prof. Malomar Lund Edelweiss, um religioso austríaco, psicanalista, residente em Pelotas (RS), ativo Diretor da Faculdade Católica de Filosofia de Pelotas e fundador do Instituto de Psicologia anexo a ela, estudando e se analisando com o Prof. Igor Caruso, na Áustria, numa de suas viagens o convidou para palestras no Sul do Brasil.

Anteriormente, Caruso era membro da Associação Psicanalítica de Viena, e em uma dissidência, em 1947, fundou o Círculo Vienense de Psicologia Profunda.

Sobre Caruso, o colega do Rio Grande do Sul Rogério Amoretti (1992, p. 117-119) relata:

Caruso, nos seus primórdios, se identificava com os valores humanistas, cristãos e religiosos. [...] Porém, no período pós-guerra, houve uma grande transformação de suas diretrizes, e o Círculo (Vienense) passou a ser um centro de variada riqueza de estudos onde psicanálise, psicologia analítica e existencial, ecumenismo, psicologia genética, etologia, antropologia, filosofia, psicopedagogia, etc. [...] atraíram a atenção e a participação, em menor ou maior grau, de celebridades como Konrad Lorenz, Jean Piaget, Joseph Nuttin, E. Bohn, Jacques Lacan, entre outros.

Estando o Prof. Caruso aqui no Brasil, alguns colegas se reuniram em torno de seus cursos e palestras, e em 1956, foi fundado o Círculo Brasileiro de Psicologia Profunda em Pelotas. Sua ata de fundação teve as assinaturas do Prof. Malomar Lund Edelweiss e do Dr. Igor Caruso, entre outros. Em 1971 passou a se chamar Círculo Brasileiro de Psicanálise.

A revista Estudos de Psicanálise n. 19 tem um artigo de Clovis Figueiredo Sette Bicalho, nosso colega de Minas Gerais, sobre os primórdios do CBP, dizendo que:

[...] a estada de Caruso foi um grande incentivo para o Prof. Malomar consolidar e expandir os estudos. [...] surgem as primeiras unidades filiadas – o CPRS, cuja fundação se confunde com a do CBP, e depois em 1963 o CPMG, à época em que o Prof. Malomar foi residir em Minas Gerais.

Seu artigo progride relatando a fundação das demais filiadas através de depoimentos e de cartas dos colegas Antonio Franco Ribeiro da Silva e Carlos Pinto Corrêa, quando no cargo de Presidentes do CBP. Traz ainda, relatórios dos demais presidentes, assim como a preparação de sua projeção no cenário internacional através de seu ingresso na IFPS, em 1971. Discorre também sobre o planejamento de congressos, jornadas, publicações científicas e a carta de princípios do CBP (1996, p. 105).

Com o passar dos anos, em 1998 participamos também da fundação da FLAPPSIP, uma entidade da América do Sul, cuja ata de fundação tive a honra de assinar junto com a colega Maria de Lourdes Mello Baêta, em Montevidéu, Uruguai.

Anos depois, o CBP se desvinculou da FLAPPSIP, mas manteve-se filiado à IFPS sob a sigla CPMG, por motivos internos na época.

Desde sua criação, o CBP vem sustentando uma posição atenta e participativa junto à nossa sociedade. Desde o ano 2000 tem presença importante nas reuniões do Movimento da Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras, que se reúne no Rio de Janeiro, na luta para manter a psicanálise independente de propostas espúrias para sua regulamentação. Participou da edição do livro Ofício de psicanalista: formação vs regulamentação (2009), em que o CBP tem um capítulo escrito por Anchyses Jobim Lopes e por mim, e mantém a publicação da revista Estudos de Psicanálise, que já está na edição do seu número 48.

Neste momento, mais uma vez, fez-se importante a sua participação, junto com as demais instituições, contra o Projeto de Lei do Senado n. 174/2017, tramitando nessa casa, na Comissão de Assuntos Sociais, quando foi redigida pelas entidades integrantes do Movimento da Articulação uma carta endereçada à Sra. Senadora Fátima Bezerra, solicitando a retirada da psicanálise desse projeto, pois sua aprovação incorreria em “um desserviço à causa pública”. Nesse fato, atestamos que uma instituição sozinha não faria frente a um ato de governo. Disso advém a importância de uma filiação a uma entidade nacional e internacional que nos represente frente a um poder!

Estamos na XXII edição dos congressos do CBP e algumas jornadas. Pesquisei os temas abordados no período de 1971 a 2017. Eles versaram sobre assuntos concernentes à formação em psicanálise e à clínica. Evidência do compromisso do CBP com os psicanalistas, os analisandos e as mutações da sociedade. Começando com técnica psicanalítica passaram por temas como agressividade no processo analítico, relações objetais, narcisismo, o espaço do analista, identidade, o saber inacabado – clínica e teoria, violência, olhar sobre o corpo, as diferenças, os nós, as fronteiras da psicanálise e outros saberes, os sonhos um século depois, a psicopatia da vida cotidiana, sexualidade em suas várias apresentações, as conexões virtuais, chegando às indagações sobre a angústia do homem do século XXI.

Sempre atento às apresentações pulsionais da sociedade, o CBP, através de suas instituições, vem propondo uma atualização de temas que possam acompanhar uma clínica em constante mudança.

Hoje, se usássemos uma supertecnologia para mapear o aparelho psíquico da sociedade contemporânea, o que ela nos mostraria? Talvez um indivíduo massacrado por um dito superegoico: “Seja assim”! porém enunciado por uma voz desconhecida numa sociedade que tanto o produz quanto o contém.

O sujeito atual seria um sujeito invadido pelo nada? Um sujeito que oscila entre a vontade de nada e o nada da vontade? São pessoas que chegam ao nosso consultório parecendo esvaziadas de seu mundo interno e se apresentam ali como corpos!? Estes, sim, apresentam as marcas do conflito interno, mas e a elaboração psíquica? Esta, por sua vez, parece faltar!

Com um vínculo transferencial frágil, encontramos um imaginário inflado, um simbólico empobrecido e uma invasão insuportável do real! As saídas buscadas para a angústia são as mais imediatistas. Tentam, em uma busca acéfala, uma completude e uma felicidade imaginárias?

Esses sujeitos parecem perdidos de seu desejo. Negam a vida nas suas vicissitudes e em uma atualização pulsional desmedida.

Os subtemas deste Congresso me chamaram a atenção pela sua sintonia com o homem contemporâneo! São tão importantes que em vez de discorrer sobre um deles, optei por apresentá-los todos, aguardando seu detalhamento e aprofundamento nas mesas temáticas que se seguirão. A começar pelo niilismo, busquei o pensamento de Arthur Schopenhauer (1788-1860). Seu livro O mundo como vontade e representação (1818) traz uma visão pessimista da vida, mostrando o espírito angustiado do homem. Seria uma antecipação de nossa sociedade, do homem atual, invadido como é pelo nada absoluto que pode, numa torção, tornar-se um nada relativo?

Imersos no discurso de nossa época, o mal-estar da cultura se expressa através de novos sintomas, aumento da depressão, da proliferação de diagnósticos de transtornos de atenção e hiperatividade, da delinquência, das adições, do individualismo. Tendo como referência alguns ícones de Beleza encontramos o culto excessivo da imagem e do corpo, o uso abusivo das redes sociais versus queda dos laços sociais e a busca de uma felicidade, mesmo que efêmera. Nesse cenário a psicanálise é convocada a se posicionar!

Em uma correspondência particular com um dos mais eminentes psicanalistas de nosso tempo, Alain Didier-Weill, por ocasião do seminário Pesquisas sobre a origem do niilismo e da afirmação originária (2012), promovido pelo CPMG, que tive o prazer de organizar e coordenar, assim se expressou:

Cada um de nós está exposto ao encontro de duas faces do niilismo: a primeira é um fato de estrutura que encontramos no trauma sexual, no qual se revela a experiência de um furo real no simbólico. A segunda é histórica e nos remete ao niilismo rumo ao qual a nossa sociedade – técnica capitalista – se dirige

Uma sociedade de valores evanescentes, em que se perdeu o medo de perder, em que acreditamos em tudo, e ao mesmo tempo tudo nos é indiferente!

Um aniquilamento e ao mesmo tempo uma reedificação, feitos simultaneamente na repetição e na diferença, na satisfação e na insatisfação, no gozar e no mais-de-gozar.

E Didier-Weill continua:

[...] como fazemos face a essas faces do nada? Quando um sujeito faz uma análise, será que ele dispõe, por sua nova transferência sobre o significante, de uma possibilidade de não viver de forma “pessimista” os valores niilistas transmitidos pela sociedade?

Acredito que a direção do tratamento aposta nisso!

Com o subtema sexualidade, revolvemos toda a tensão do recalcamento! Angústias de gênero e identidade desembocam nos novos sofrimentos, na necessidade de uma reorganização das novas subjetividades e no surgimento de novas demandas. A pulsão ultrapassa os limites da sua contenção e, com a queda dos pilares da cultura, essa força para manter o recalcamento perdeu seu vigor!

Que desafios enfrenta a psicanálise hoje desde os deslizamentos da expressão “escolha objetal”, usada por Freud, para “orientação sexual”, “expressão de gênero”, “identidade de gênero”, cultura LGBTs, queers e outros? O que dizer da proliferação de intervenções radicais sobre o corpo nos transexuais, das transgressões éticas nas homofobias e do mal-estar nos heterossexuais?

Em seu artigo Transexualidades – psicanálise e mitologia grega publicado na revista Estudos de Psicanálise n. 47, o colega Anchyses Jobim Lopes (2017, p. 47) diz que “[...] a transexualidade representa um desafio para a psicanálise enquanto modelo teórico clínico”.

E afirma:

A identidade de gênero se estabelece num momento pré-edípico muito precoce e muito antes da escolha de objeto (LOPES, 2017, p. 47).

Já Marco Antonio Coutinho Jorge e Natália Pereira Travassos, no texto A epidemia transexual: histeria na era da ciência e da globalização?, levantam uma hipótese ousada quanto ao que eles denominam “epidemia transexual”. O texto diz que

[...] hoje a histeria parece ter se apropriado da transexualidade para postular sua perene pergunta sobre a verdade do sexo. [...] O crescimento exponencial de casos na atualidade nos leva a indagar se ela não é a forma contemporânea por excelência da histeria (JORGE; PEREIRA, 2017. p. 318 e 323).

É a ética da psicanálise que vem em nosso socorro: o “deixar falar a verdade do sujeito”, tanto no particular da clínica quanto nas organizações sociais, na política e no emaranhado dos novos laços familiares. Na sua falta o “sujeito social”, escancara a face vazia, o desmentido da realidade psíquica.

Deparamo-nos com a agressividade, a violência, o terror e o terrorismo, faces da pulsão de morte sem a mediação da pulsão de vida, em que o imaginário inunda de sentido a percepção do sujeito contemporâneo e sua conexão com a vida.

Psicanalisar é uma operação que faz diferença no sujeito! Não se é imune a seus efeitos. O analisando faz um comprometimento social a partir de um comprometimento consigo mesmo. Sua ética revolucionou os pressupostos tradicionais de uma aculturação que em muitos momentos ultrapassou os limites suportáveis de renúncia ao desejo inconsciente.

Maria Rita Kehl (2002), no livro Sobre ética e psicanálise, diz que, na tentativa de eliminar o mal-estar e a angústia existencial, são feitas propostas mágicas como se o psiquismo pudesse se libertar

[...] dos incômodos efeitos do inconsciente e servir às finalidades de um eu soberano, [...] ajustado às aspirações [...] do individualismo e do narcisismo (KEHL, 2002. p. 8).

Procuramos recobrir com o simbólico o real do corpo, da morte, do sexo, da falta de garantias, das incertezas do futuro, buscando no reconhecimento do Outro, um sentido para a vida.

Na sua falha, sobrevém a depressão! Esvaziados do nosso Bem, numa sociedade capitalista, as propostas mercadológicas preenchem momentaneamente nossas necessidades que em seguida se tornam descartáveis.

Multiplicam-se as formações imaginárias! Um eu narcísico toma fôlego por intermédio da imagem: sou visto = existo; não sou visto = não existo! Ávido por ser olhado, o voyeurismo cede lugar ao exibicionismo. Nesse veio encontra-se o terror de mãos dadas com o terrorismo, onde o aporte dado ao fantástico do fato social convida a atos de efeito também fantástico!

Assim temos acompanhado os atos terroristas mundo afora! Basta a mostração de um evento que reúna pessoas em um entretenimento pelo prazer, para atrair o ato terrorista pelo gozo implacável sobre as vidas que se findam ali, para o horror de todos. Nesse momento fecha-se o ciclo do sou visto e reconhecido pelo outro! Infelizmente, pelo viés da violência.

O sujeito dos dias atuais está no mais além do sujeito dividido, conflituoso e alienado no desejo do Outro, que a psicanálise nos apresentou. É um sujeito imaginariamente pleno, determinado pelo que lhe é externo, numa sociedade do exibicionismo, em que ele vive, na verdade, um novo desamparo – o desamparo do Outro, que desta vez nada deseja dele. Não mais o Outro para quem se dirigia a pergunta “Que queres?”.

Nesta sociedade o exibicionista tem o seu lugar garantido, pois as pulsões parciais encontram formas de apresentação socialmente aceitas. O Facebook e o Instagram não seriam atualizações modernas dos restos do Estádio do Espelho, que vivemos cotidianamente?

Cleo Mallmann, na revista Estudos de Psicanálise n. 46, diz que:

[...] da mesma forma como somos vistos e vigiados, também espiamos o mundo no que ele tem de mais belo e abjeto, humano ou cruel, banal ou espetacular, público ou privado. [...] é a internet, por excelência, a janela através da qual o voyeur espia a intimidade do ser humano (MALLMANN, 2016, p. 49-50).

No empobrecimento do pensamento e do juízo crítico perde-se a capacidade de negociação das diferenças.

Marta Gerez-Ambertín em artigo no livro Conexões virtuais – diálogos com a psicanálise, uma publicação do CBP, refere-se ao sistema econômico dizendo que ele se incrementa com

[...] o retorno pulsional, com a retroalimentação da pulsão de morte que não só aniquila o desejo do sujeito e engorda o gozo, como também ameaça a subsistência do laço social (GEREZ-AMBERTÍN, 2017. p. 14).

Nessa mesma publicação Juliana Marquez Caldeira Borges fala sobre uma prática atual de jovens postarem nas redes sociais,

[...] partes do corpo feminino sem que o rosto apareça. Questiona, pedaços de corpos nos quais haveriam marcas da sexualidade, do desejo? [...] O exibicionismo virtual pode ser visto como novas formas de apresentação do sujeito ou estamos diante de um sintoma da vida moderna? (BORGES, 2017, p. 38).

Ainda na mesma publicação, Eliana Rodrigues Pereira Mendes (2017, p. 97) enfatiza a importância, desde o final do século XIX, que a psicanálise deu à subjetividade e às diferenças entre os humanos e que “[...] a privacidade foi uma conquista da evolução da história das mentalidades”.

E continua dizendo:

Com o avanço das tecnologias de informação, [...] a privacidade vai perdendo valor para dar lugar a um excesso de exposição, que quase a elimina (MENDES, 2017, p. 98).

Vemos o contraste entre essa exposição e o anonimato que as redes sociais permitem ter. Quanto mais redes virtuais conectadas, menos intimidade nos laços sociais.

O que dizer, então, dessa massificação da imagem, das clonagens do eu entre os pares no grupo, dessa exposição excessiva ao espetacular e ao mundo das aparências?

A não privacidade se revela, por exemplo, quando somos detectados e denunciados por nossas escolhas em um dispositivo virtual, quando qualquer pessoa pode ser localizada ou quando palavras e imagens perdidas são recuperadas, etc.

No texto O humor, assim como em outros, Freud ([1927] 1974, p. 191) fala sobre

[...] a extensa série de métodos que a mente humana construiu a fim de fugir à compulsão a sofrer – uma série que começa com a neurose e culmina na loucura, incluindo a intoxicação, a autoabsorção e o êxtase.

Acrescentamos a essa lista a cultura da imagem e as novas formas de subjetividade com uma regressão do sujeito ao pensamento mágico, à onipotência do pensamento e sua projeção, pela vulnerabilidade do eu quando invadido pela angústia do vazio existencial.

Temas como religião, etnia e raça, também sugeridos, ainda resvalam para a segregação nos dias de hoje, quando sustentam uma verdade absoluta, uma imposição sobre o sujeito, anulando seu desejo e governando com autoritarismo. Onde a palavra não se faz, faz-se o ato violento sobre um sujeito devastado em suas convicções e em sua interioridade.

Quais as saídas para bem vivermos nossa contemporaneidade, desfrutando do que ela nos traz, sem resvalar para o adoecer psíquico?

O que faria barra à exploração do capitalismo sobre o indivíduo e instalaria o laço social seriam, nas reflexões de Marta Gerez-Ambertín (2017), repetindo Lacan, (1972), a recuperação do simbólico, a aceitação da castração e as coisas do amor.

Finalmente chegamos às artes. A sublimação, como um dos caminhos saudáveis para escoar a pulsão, se apresenta como uma possibilidade de atualização da fantasia. A fantasia serve tanto à realização de desejo quanto à defesa dos conflitos internos. A saída pela arte pode reparar as faltas no psiquismo! “Após um tempo de análise em que meu estado depressivo se aliviou, percebi que ocupar-me com as ‘manualidades’ recuperava minha ligação com a vida!”, dito por uma analisanda. A contemplação diante da obra de arte tem o mesmo efeito do juízo lúdico, que segundo Freud seria um “eco interno de satisfação”.

O que dizer das recentes censuras à arte, senão como uma estratégia para desviar o olhar da sociedade de outros focos nevrálgicos, por exemplo, da política?

Os progressos da ciência e do mundo virtual, claro, nos trouxeram inúmeros benefícios. Não podemos demonizar as conquistas do nosso tempo! Toda essa tecnologia virtual, sem dúvida, muito ajudou e facilitou a organização deste encontro! Que esse crescente avanço tecnológico esteja a serviço do homem e não o homem a seu serviço, submetido a ele!

Não resisto à famosa frase de Lacan, no texto Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise ([1953] 1990, p. 309), que diz:

Melhor que renuncie [à Psicanálise] quem não possa unir a seu horizonte a subjetividade de sua época. Pois, como poderia fazer de seu ser o eixo de tantas vidas aquele que não soubesse nada da dialética que o compromete com essas vidas em um movimento simbólico? Que ele conheça bem a espiral a que o arrasta a sua época na obra contínua de Babel, e que conheça sua função de intérprete na discórdia das línguas.

O que a psicanálise teria a oferecer ao sujeito em sofrimento seria uma proposta de recuperação de sua dignidade como sujeito desejante, usufruindo pelo prazer e não pelo gozo daquilo que a modernidade e todo esse aparato tecnológico possa nos oferecer? Seria possibilitar a esse sujeito não se permitir ser o objeto de gozo de um outro sem rosto!?

Essa é a ética da psicanálise com a qual estamos comprometidos!

 

Referências

AMORETTI, R. Labirintos da identidade: fragmentos da história do CBP. Estudos de Psicanálise, Recife, n. 14, p. 113-123, 1992. Publicação semestral do Círculo Brasileiro de Psicanálise.         [ Links ]

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Endereço para correspondência
E-mail: mazzarellocotta@yahoo.com.br

Recebido em: 21/11/2017
Aprovado em: 02/12/2017

 

 

SOBRE A AUTORA

Maria Mazzarello Cotta Ribeiro
Psicóloga.
Psicanalista.
Sócia do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG).
Presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise no biênio 2002-2004,
Presidente do CPMG no biênio 2005-2007.
Diretora Científica do CPMG no biênio 2011-2013.
Coordenadora da Comissão de Publicação da revista Reverso, publicação semestral do CPMG.

 

 

1 Trabalho apresentado na abertura do XXII Congresso do Círculo Brasileiro de Psicanálise Assim caminha a psicanálise. Indagações do século XXI . Salvador (BA), nov. 2017.

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