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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.48 Belo Horizonte jul./dez. 2017

 

PAINEL TEMÁTICO - AGRESSIVIDADE, VIOLÊNCIA, TERROR E TERRORISMO

 

 

Raízes da violência no Brasil: impasses e possibilidades

 

Roots of violence in Brazil: impasses and possibilities

 

 

Eliana Rodrigues Pereira Mendes

I Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
II Círculo Brasileiro de Psicanálise
III International Federation of Psychoanalytic Societies

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Atualmente a violência aparece de várias formas no Brasil. Rapidamente o Brasil passou de um país agrícola para industrializado, o que resultou em amplo êxodo rural e explosão demográfica nas grandes cidades. O Brasil enfrenta hoje uma enorme disparidade social e econômica, acrescida de uma corrupção endêmica do governo, além do nepotismo e falta de planejamento social. As raízes de tal violência podem ser encontradas na herança arcaica, que tem formado a identidade brasileira desde nossos primeiros dias. O interesse dos colonizadores de então era extrair riquezas, sem considerar o estabelecimento da nação. Essa exploração foi sempre feita pela força e pela violência através do trabalho escravo dos índios nativos e dos negros importados da África. Como um estado, o Brasil ficou exposto à lei do pai primevo e à ausência de um pai simbólico, que poderia garantir a seu povo uma identidade mais estável, a qual apenas a lei paterna pode conceder. Será possível reformular a herança arcaica, reconstruindo a imagem do pai que falta, sem recorrer a um falso salvador da pátria? Será possível construir uma sociedade mais igualitária, que possa propiciar condições verdadeiras de cidadania, a fim de tornar cada cidadão, na medida do possível, o protagonista de sua própria história?

Palavras-chave: Violência, Colonização, Herança arcaica, Identidade, Pai primevo, Pai simbólico.


ABSTRACT

Nowadays, violence appears in various forms in Brazil. From an agricultural country, Brazil became rapidly industrialized, which resulted in large rural exodus and explosion of population density in major cities. Brazil faces today a great social and economic disparity, added to endemic corruption of government, nepotism and lack of social planning. The roots of such violence can be found in our archaic heritage that has been forming Brazilian identity since its early days. The interest of former colonizers was to extract wealth, without regarding the establishment of a nation. This exploitation has been always done by force and violence, with the slave labor of native Indians and imported black people. As a state Brazil was exposed to the primal father’s law, and to the absence of a symbolic father, who could have provided his people with a more stable identity, only given by the paternal law. Is it possible to reframe archaic heritage, rebuilding the missing father image without resorting to a false savior of the fatherland? Is it possible to construct a more equitable society that could propitiate true conditions of citizenship in order to make every citizen, to the extent possible, the protagonist of his own history?

Keywords: Violence, Colonization, Archaic heritage, Identity, Primal father, Symbolic father.


 

O Brasil vive hoje um momento em que a violência se manifesta de várias maneiras. Esse fato nos surpreende, porque sempre fomos considerados um povo cordial e pacífico. Além disso, somos um país de amplos recursos naturais, com ampla possibilidade de expansão em todos os níveis. Mas a cada dia que passa, o País tem se afundado em situações de violência, que vão tornando a vida sempre mais difícil.

São muitos os assaltos à mão armada, alto índice de homicídios por motivos fúteis, latrocínios, sequestros relâmpagos, balas perdidas, todos demonstrando um profundo desrespeito pela vida do outro. Se antes, no Brasil profundo, os crimes de vingança eram mais frequentes, o que se vê hoje é uma violência sem alvo certo, que, tal qual os atos terroristas, atinge indiscriminadamente o seu alvo. Estamos todos sujeitos a essa violência trivializada. Temos de considerar também a violência incruenta, que é vista nos crimes mais sofisticados da corrupção, da apropriação indébita, da negligência frente ao outro.

De um país predominantemente agrícola, o Brasil veio sendo transformado, principalmente a partir dos anos 1950, num país industrializado, com consequente êxodo rural e com a explosão da densidade demográfica nas cidades maiores, o que compromete toda a conformação da sociedade.

Como ponto mais importante das dificuldades pelas quais passa o povo brasileiro, talvez o fator preponderante seja a forte disparidade social, que abre um fosso intransponível entre a população, trazendo mal estar para todos os segmentos.

Para melhor entender o aparecimento dessa violência, temos de rastreá-la desde o seu aparecimento, na época da fundação do País até os dias de hoje, em que ela chega a um tão elevado grau.

Quero apenas lembrar que este é um tema amplo de debate, multifacetado, interdisciplinar e que minhas considerações visam apenas trazer o foco de atenção para o assunto.

O Brasil é um país jovem, com pouco mais de quinhentos anos de existência como nação. Nossa história pregressa relata fatos significativos que falam de nossa formação como povo, na base da violência e da exploração da população.

O descobrimento do Brasil se deu como um erro de rota. Os navegantes portugueses que aqui aportaram, na verdade, estavam interessados pelo caminho das Índias, que lhes daria acesso às especiarias tão cobiçadas no mundo ocidental de então. Mas chegaram a uma terra diferente, que lhes causou um estranhamento pela sua extravagância, além de um deslumbre diante de uma natureza tanto fantástica quanto indomável, que era necessário explorar. Podemos dizer que nascemos, como país, de um equívoco que nos tornaria, para sempre, um entreposto comercial.

As primeiras populações que foram trazidas para o novo mundo não vieram de bom grado nem planejavam aqui ficar. Eram, na sua maioria, deserdados da sorte indesejáveis na sociedade da qual partiram. Na busca de esposas para esses primeiros povoadores foram recrutadas à força jovens órfãs que se casavam contra a vontade. Pode-se imaginar daí o complexo enredo do romance familiar da fundação do Brasil.

Segundo historiadores (MELLO; SOUZA, 2013, p. 23-24), no princípio da colonização não havia nenhuma preocupação consistente com o povoamento, e Portugal, que só tinha olhos para o Oriente, considerou a terra, ainda um território fragmentado, que nada tinha da unidade de hoje, uma espécie de “espaço de reserva” para atividades posteriores. O início da colonização não criou a unidade, e foram várias as frentes colonizadoras que se formaram, mais ou menos independentes, isoladas, comunicando-se mais com a corte do que umas com as outras.

A princípio chamada de Terra de Vera Cruz, Terra dos Papagaios, Terra de Santa Cruz, o nome que prevaleceu foi o de Brasil, que designava o pau-brasil, madeira que tingia panos e alimentava o mercado econômico financeiro de então.

Quando se faz uma comparação com a colonização dos EUA, país que tem a mesma idade de descobrimento e território tão grande quanto o nosso, temos que concordar com o historiador Vianna Moog (1954), que faz um cotejamento das condições de uma e de outra colonização.

Enquanto nos EUA os colonizadores eram peregrinos que vinham se estabelecer com a família no novo mundo, para seguir sua fé e cultivar seu pedaço de terra, no Brasil tivemos desbravadores que se embrenhavam nas matas para capturar os nativos para trabalho escravo e conseguir riquezas como o ouro e as pedras preciosas para o comércio com a Europa.

É bem verdade que dessas temerosas aventuras muitas cidades foram se formando, com a desistência de prosseguimento da viagem de muitos de seus integrantes e o consequente assentamento nessas terras.

Mas isso aconteceu ao acaso e sem nenhuma intencionalidade. Mais uma vez, a mentalidade extrativista predominou. O Brasil se configurava, numa perspectiva psicanalítica, como um grande corpo desfrutável, próprio para o gozo de seus desbravadores.

Contardo Calligaris (1991, p. 16-17) afirma:

[...] o colonizador foi aquele que veio impor sua língua a uma nova terra, ou seja, ao mesmo tempo demonstrar a potência paterna (a língua do pai saberá fazer gozar um outro corpo que não o corpo materno) e a vai exercer longe do pai. Pois talvez o pai interdite só o corpo da mãe pátria e aqui, longe dele, a sua potência herdada e exportada abra o acesso a um corpo que o pai não proibiu.

Ele também considera um equívoco fantástico que só existe na língua portuguesa, o fato de a expressão “explorar a terra” significar não só ser o primeiro a conhecê-la, mas também aquele que arranca seus recursos.

Ele maneja a nova terra como se pode sacudir o corpo de uma mulher possuída, gritando: Goza Brasil, esperando o próprio gozo do momento no qual a mulher esgotada se apagará em suas mãos – prova definitiva da potência do estuprador (CALLIGARIS, 1991, p. 17-18).

Embora sejam frequentes as piadas de colonizados em relação aos colonizadores, como entre belgas e franceses, por exemplo, segundo Calligaris, as piadas de portugueses foram inventadas pelos que vieram para cá.

Aqueles que não vieram nunca saberão gozar direito, pois renunciaram ao gozo de um corpo que não lhes fosse talvez proibido (CALLIGARIS, 1991, p. 18).

Seguindo seu raciocínio, o colonizador também é triste, pois saberá que não é bem esse o corpo que ele queria, e sim o que ficou para trás. A meu ver, isso levava os que vieram a sempre alimentar a fantasia de um retorno. A potência da língua paterna da qual o colonizador se apropriou não impede que ele constate o fracasso dessa apropriação, pois para exercer a potência paterna como se fosse a sua, teve que deixar o corpo da mãe pátria.

O colonizador veio então gozar a América, por isso deve esgotá-la, mas sabe que não era a América que ele queria fazer gozar (CALLIGARIS, 1991, p. 18-19).

Quando o brasileiro diz que “o Brasil não presta”, frase que Calligaris ouviu de muitas pessoas quando decidiu permanecer no Brasil, ele acredita que o colonizador tem com o país enquanto corpo uma cobrança que lhe permite dizer isso, seja porque esse corpo deveria ser outro (aquele que foi deixado), seja porque não goza como deveria.

Os indígenas aqui encontrados também foram alvo da ganância e da violência do colonizador, o que vemos até hoje através da pouca importância que se dá a esse segmento da população e do genocídio de nações inteiras de índios. Essa luta pelos direitos dos primeiros habitantes do Brasil é uma luta que é travada até hoje, com pequenos resultados em termos de direito e cidadania dos povos ameríndios.

Outro trauma coletivo do Brasil, enquanto colônia, em relação à violência, foi a substituição, nos trabalhos forçados, da mão de obra indígena pela mão de obra dos escravos africanos. Se hoje não temos um tipo de racismo mais declarado, ele continua de maneira dissimulada, sob a forma de um abismo de diferença econômica e social, bastante intransponível, o que explode na violência atual no País, com grande população carcerária negra e número elevado de mortes de jovens afrodescendentes. Essa violência vem sendo agravada nos dias atuais pelo grave problema do tráfico de drogas, que atinge de modo drástico as áreas mais pobres do País, como as favelas.

Se compararmos novamente nossa história com a dos EUA, vemos que, para os americanos, a libertação dos negros deflagrou uma guerra ferrenha, com uma quase cisão do país, entre os estados do Norte, mais progressistas, e os do Sul, agrários e dependentes da mão de obra escrava. Esse racismo declarado acabou forçando a população negra, depois de muitas lutas, a se definir melhor e buscar um lugar mais igualitário na sociedade. Embora ainda exista racismo, uma parcela maior dos negros tem hoje, um status mais elevado no nível de vida, já tendo sido eleito até mesmo um presidente afro-americano.

A libertação dos escravos se deu no Brasil apenas em 1888 (último país do ocidente a declarar a liberdade total dos negros), trazendo em seu rastro a proclamação da república, em 1889, pois, com a liberação da força trabalhadora dos negros, os grandes proprietários de terra deixaram de apoiar a monarquia, que já estava enfraquecida. Como não houve um planejamento prévio, a grande massa de escravos foi abandonada sem recursos para continuar a vida, de onde se dirigiu para a formação das favelas, em torno das grandes cidades.

Como em todos os regimes escravocratas, o nosso foi de uma violência brutal, e, para apaziguar as consciências, os índios e os negros eram considerados seres de última categoria, seres sem alma. O racismo mais disfarçado também impediu a luta mais objetiva dos direitos de cidadania dos afrodescendentes, fato que só recentemente vem ganhando mais visibilidade.

A colonização correu solta em nosso país até por volta de 1540, quando, por necessidade econômico-financeira, a corte portuguesa passou a fazer um controle mais rígido das colônias ultramarinas. Para cobrar e controlar, vigiar e punir, submeter os seus súditos e exigir deles o cumprimento de uma série de novas obrigações e pesados impostos, foi necessário criar vastos e complexos aparelhos burocráticos.

Essa burocracia passou a fazer parte do estado, do que nos ressentimos até hoje, tantos séculos depois. Além disso, a política do nepotismo e do compadrio ficou evidenciada por parte dos funcionários públicos. Aqueles que tinham cargos como desembargadores, cobradores de impostos, juízes, escrivães, administradores e burocratas em geral, se encontravam em posição sólida o suficiente para instituir uma ‘espécie de poder paralelo’, um quase Estado que, de certo modo, conseguia arrebatar das mãos do rei as funções administrativas.

Esse mesmo funcionalismo

[...] articulou também fórmulas legais e informais que lhes permitiram se transformar num grupo autoperpetuador: os cargos eram passados de pai para filho ou então para parentes mais próximos (BUENO, 2013, p. 254-256).

Tal situação ainda persiste até hoje, com as verdadeiras dinastias de políticos que perpetuam o poder em família: de pais para filhos, netos, genros e sobrinhos.

Já há notícia de superfaturamento naqueles tempos, na capital de Salvador, nos pesos e medidas dos bens de primeira necessidade, que eram fraudados frequentemente.

As promoções de candidatos a cargos com isenção fiscal e imunidade jurídica (hoje disputadas a tapas, levando à prática de atos corruptos por nossos políticos), assim como a concessão de títulos nobiliárquicos (em tempos idos), têm raízes no nosso passado colonial.

O que hoje chamamos de peculato, apropriação de dinheiro público em proveito próprio, não chegava a ser uma irregularidade: era institucionalizado, o que foi chamado de Estado Patrimonial pelo historiador e cientista político Raimundo Faoro apud Vainfas (2013, p. 261), no qual as esferas pública e privada se confundem. A Coroa dava a particulares o direito de cobrar impostos, assim como de explorar produtos monopolizados pelo Estado.

As revoltas contra essa situação foram poucas e mesmo assim sofreram repressão brutal por parte da Coroa portuguesa, que puniu com morte e degredo os principais responsáveis.

 

Os reinados

Apenas em 1808, com a perseguição de Napoleão a Portugal e a consequente fuga de Dom João VI para o Brasil, que se deu de forma inesperada e caótica conforme atestam os dados históricos, foi que tivemos um regente entre nós. Até essa data era proibido desenvolver qualquer tipo de indústria, e nossa economia dependia estritamente de Portugal. Só a partir de então pudemos articular uma economia própria. Dom João deixou como seu sucessor o filho Dom Pedro I, que proclamou nossa independência de Portugal. Dom Pedro I é logo chamado para a Corte portuguesa e deixa no Brasil seu filho menor, Dom Pedro II, que aqui permanece aos cuidados de um tutor, tendo assumido a regência aos quatorze anos de idade. Reinou até 1889, com a chegada da República.

Segundo os historiadores, o imperador criou um governo orientado pelos bons valores republicanos, com o cumprimento das leis, o respeito pelo dinheiro público e pela liberdade de expressão. No entanto, depois de garantir a sobrevivência do Estado nacional, falhou em promover a expansão da cidadania política. A elite se manteve limitada e fechada, e o povo só foi introduzido no sistema político muitos anos depois, já sob a vigência da república.

Dizem ainda os historiadores que, no fim de seu reinado, Dom Pedro II, já velho e cansado, foi se afastando de seus deveres públicos, negligenciando seu cargo. Sua sucessora, a filha Princesa Isabel não tinha nenhuma ambição política nem queria ser imperatriz (DEL PRIORE, 2013, p. 297). Foi ela quem assinou a abolição dos escravos e contou sempre com a admiração deles, tendo ficado conhecida como a Redentora. A psicanálise nos diz que é melhor ter um pai tirânico do que não poder contar com um.

 

A república

Na República os vícios da monarquia continuaram praticamente os mesmos: estado moroso, letárgico, nepotismo, falta de planejamento para as ações públicas. Assim se forma e se perpetua uma cultura brasileira de submissão, acomodação e fatalismo, a não ser por revoltas eventuais, logo massacradas. “A distância entre a lei e a realidade sempre esteve presente no cotidiano da maioria da população brasileira” (CARVALHO, 2013, p. 265).

Até a metade do século XX, para quase toda a população rural, que era majoritária, a lei do Estado era algo distante e obscuro. O que a população conhecia bem era a lei do proprietário. Até delegados e juízes eram controlados pelas facções dominantes nos municípios. Havia ‘o juiz nosso’, ‘o delegado nosso’. O problema da transgressão da lei não se colocava para essa população.

Nas cidades maiores a situação variava pouco. Mas como pedir ao povo que respeite a lei se ele toma conhecimento, todos os dias, de exemplos de políticos, empresários e grandes magnatas que burlam a lei? (CARVALHO, 2013, p. 267-268).

O que se sabe é que a lei, quando não representa a maioria, acaba caindo no arbítrio e na violência, como resultado.

Tivemos duas ditaduras explícitas: a da era Vargas, de 1930 a 1945, e a ditadura militar, de 1964 a 1985, nas quais os dissidentes políticos foram presos, torturados e assassinados, e a violência à liberdade individual praticada de várias formas. Sob as ditaduras, o arbítrio dos governantes foi protegido, tendo sido interrompida a formação de uma nova sociedade mais crítica e ética.

Desde então, findo o último período da ditadura militar, o Brasil vem tentando desenvolver a democracia através de governos civis. Mas isso não tem sido uma tarefa fácil. Tivemos, na nossa história, fatos que foram traumatizantes para o encaminhamento do ideal democrático. Aqui se incluem: o suicídio de Getúlio Vargas, que foi considerado o pai dos pobres; a renúncia mal explicada de Jânio Quadros, eleito legalmente e movido por “forças ocultas” e inexplicáveis, muito provavelmente por moções internas de seu próprio psiquismo, o que nos levou indiretamente ao golpe militar de 1964. Depois tivemos a morte de Tancredo Neves, num momento de retomada da democracia. E por aí vamos.

De fatos em fatos, chegamos ao governo em que foi eleito um metalúrgico, líder das classes trabalhadoras, como opositor a uma política elitista e tido como uma grande esperança para a diminuição da desigualdade social vigente. Mas a força da repetição fez com que esse governo pouco se diferenciasse dos outros. Apesar de ter trazido alguns ganhos sociais, praticou os mesmos vícios, para desaponto de tantos que dele esperavam outros rumos. Do seguimento malfadado desse governo, caímos numa situação de crise moral de credibilidade e de uma corrupção generalizada e desavergonhada da classe política, acoplada ao empresariado rapace e ávido de lucros e benesses.

Do ponto de vista psicanalítico, seria possível falar de uma herança arcaica, portando um trauma que nos impele a não progredir e a sempre repetir os mesmos erros?

O trauma se define como um incremento de excitação no sistema nervoso, que este é incapaz de fazer dissipar-se adequadamente pela ação motora (FREUD, [1892] 1974, p. 197).

Toda impressão que o sistema nervoso tem dificuldade em abolir por meio do pensamento associativo ou da reação motora transforma-se em trauma psíquico (FREUD, [1892] 1974, p. 216).

Tendo suas origens no sexual, com as descobertas posteriores de Freud, o trauma foi deixando de lado o estatuto de verdade factual para se tornar um componente da ficção, passando à fantasia. O trauma é importante como uma lembrança arcaica, que vai abranger não só um indivíduo da espécie humana, mas uma totalidade de pessoas que se encontrem sob as mesmas condições físicas e psíquicas, num determinado momento.

Na obra freudiana, vamos encontrar em Totem e tabu a apresentação da fundação da sociedade humana, através do assassínio do pai da horda, na disputa e rivalidade pela posse das mulheres do grupo, às quais o pai primevo tinha todo o direito e acesso.

Um acontecimento como esse, da eliminação do pai primevo pelo grupo de filhos, deve inevitavelmente ter deixado traços indeléveis na história da humanidade, e quanto mais ele próprio tenha sido lembrado, mais numerosos devem ter sido os substitutos a que deu origem (FREUD, [1913] 1974, p. 164).

Freud fala que os começos da religião, da moral, da sociedade e da arte convergem para o complexo de Édipo, e esse complexo constitui o núcleo das neuroses.

Parece-me ser uma descoberta muito surpreendente que também os problemas da psicologia social se mostrem solúveis com base num único ponto concreto: a relação do homem com o pai (FREUD, [1913] 1974, p. 186).

Na consideração dessas ideias, Freud esclarece que tomou por base de sua posição a existência de uma mente coletiva, em que ocorrem processos mentais exatamente como acontece na mente de um indivíduo.

Um quarto de século depois desse artigo, Freud publica o livro Moisés e o monoteísmo em que retorna ao problema da importância da tradição para os homens e de que modo ela pode se ter feito presente.

Diz ele:

Em minha opinião existe, a esse respeito, uma conformidade quase completa entre o indivíduo e o grupo: também no grupo uma impressão do passado é retida em traços mnêmicos inconscientes (FREUD, [1939] 1974, p. 115).

Quanto à herança arcaica, Freud diz:

Quando estudamos as reações a traumas precoces, ficamos amiúde bastante surpresos por descobrir que elas não se limitam estritamente ao indivíduo que a experimentou, mas dele divergem de uma maneira que se ajusta muito melhor ao modelo de um evento filogenético, e em geral, só podem ser explicadas por tal influência. O comportamento de crianças neuróticas para com os pais no complexo de Édipo e de castração abunda em tais reações, que parecem injustificadas no caso individual e só se tornam inteligíveis filogeneticamente por sua vinculação com a experiência com as gerações anteriores [...] a herança arcaica dos seres humanos abrange não apenas disposições, mas também um tema geral: traços de memória da experiência das gerações anteriores. Dessa maneira, tanto a extensão quanto a importância da herança arcaica seriam significativamente ampliadas. Pressupondo a sobrevivência de vestígios de memória na herança arcaica, se elimina a separação entre psicologia individual e de grupo: podemos abordar os povos da mesma maneira como encaramos um indivíduo neurótico (FREUD, [1939] 1974, p. 120).

Abrindo um parêntese a respeito dessa opinião de Freud sobre esse assunto polêmico, temos a dizer que, num artigo recente, ainda não publicado, o colega Arlindo Pimenta diz:

[...] a genética moderna traz certas questões que seriam interessantes de se considerar. Muitos geneticistas atuais acham que a transmissão genética não se faz só pela via cromossômica, havendo outros fatores envolvidos, como, por exemplo, a transmissão por via citoplasmática, o que privilegia a herança materna, visto que no óvulo que vai formar o ovo há prevalência de citoplasma. Outra hipótese que associa a genética ao evolucionismo darwiniano propõe que um grupo que aceita uma determinada alteração cultural que o faz mais apto a enfrentar a luta pela vida torna-se, por isso, dominante, e sobrevive aos que não adotaram essas alterações. Os sobreviventes e dominantes transmitem as alterações incorporadas aos descendentes. Haveria também uma seleção sexual, como no caso dos pavões e dos alces aparentemente pouco aptos a enfrentar a batalha pela vida, mas que seriam escolhidos por seus atributos pelas fêmeas, perpetuando as gerações (PIMENTA, 2016).

Voltando à nossa realidade, o que parece ser a situação no Brasil e de outras repúblicas da América Latina é que sempre se faz presente essa herança de um pai primevo (o colonizador brutal), que encarna a lei em si e não distribui seu poder. Mesmo os mais bem intencionados políticos não conseguem, muitas vezes, se libertar da situação de poder e caem nas armadilhas do enriquecimento ilícito, das arbitrariedades e da corrupção generalizada, o que acaba fortalecendo a violência.

Padecemos todos da ausência de um pai simbólico, de um grande Outro que possa nos dar uma identidade mais efetiva, que só a lei paterna pode trazer. Por isso, a meu ver, os países da América Latina são tantas vezes submetidos a governos autoritários, que encarnam o pai salvador da pátria, o pai do gozo, que acaba por espoliar o povo que deveria defender.

Nessas condições, não se pode contar com uma cobertura de um Estado mais ético, que não seja a fonte da lei, como no caso do pai da horda, mas que a represente para seus cidadãos. Nas repúblicas sempre sujeitas às ditaduras, não podemos contar com um bom pacto social, que é a lei do pai simbólico, o que dá nome ao filho e não o maltrata.

Nesse pacto, através do trabalho, pede-se ao ser humano que confirme sua renúncia pulsional primária, aceitando o princípio de realidade. O trabalho é a inserção no tecido social, por mediação de uma práxis, aceitando a ordem simbólica que o constitui. Trabalhar é poder assumir os valores da cultura com a qual nos articulamos organicamente. O pacto com a lei do pai prepara e torna possível o pacto social (PELLEGRINO, 1983).1

Se essa lei falha, o pacto fica esgarçado, e mais uma vez dá lugar à violência, que não tem como ser barrada.

A configuração da sociedade brasileira nos leva a alguns estereótipos sociais como: brasileiro gosta de levar vantagem em tudo; é o rei do jeitinho; para o bem e para o mal; é improvisador e superficial. Mas, em contrapartida, é sociável, versátil, musical, bom de lábia. Sem poder contar com uma boa educação garantida pelo Estado, aposta em seu corpo e em seus dotes pessoais. O Brasil exporta corpos para o mundo, sejam os jogadores de futebol, sejam as mulheres que vão se prostituir em outros países, ou vende corpos a varejo, para o turismo sexual, muitas vezes pedófilo.

Sem a religiosidade característica de outras épocas, em que tudo se colocava nas mãos de Deus, e com o pacto social simbólico esgarçado, não há divida simbólica a ser quitada. Todos querem o seu quinhão. A violência explode sob novas formas de gozo, nas toxicomanias, nas apropriações pelo roubo, na corrida do consumo como fonte prioritária do prazer.

A população atual tem tido maior acesso a bens de consumo, embora de baixa qualidade, sem que tenha tido acesso a uma educação mais aprimorada. Acabamos formando consumidores e não cidadãos. Esses são alguns dos nossos impasses.

Como sair dessa situação? Teremos que melhorar a educação de base, combater a impunidade, reformar a legislação penal, assim como as instituições, sobretudo a polícia e o funcionamento judiciário. A democracia política tem de ser usada para produzir a democracia civil, com igualdade perante a lei e menos desigualdade de renda. Na ausência de um pai que seja fonte de identificação, que preencha o ideal do eu coletivo, as fratrias são levadas a buscar soluções. A sociedade civil tem de se mobilizar nas organizações não governamentais para criar saídas viáveis para os problemas. Nosso autoconceito é volátil: varia da maior euforia ao maior desalento. Muitas vezes se foge pelo humor, uma saída brasileira típica para enfrentar a angústia de nos confrontarmos com situações que não se consegue resolver.

Temos de enfrentar as velhas fontes de mal-estar que nos traz a modernidade: a ambivalência, a irresolução, a incerteza, procurando ter mais tolerância e jogo de cintura. Essa duas características sempre fizeram parte de nossa mitologia como povo. Mas tais metas não são alcançáveis individualmente. Há que haver um esforço coletivo.

Será possível reestruturar nossa herança arcaica, reconstruindo a imagem do pai que falta, sem recorrer a um falso salvador da pátria?

Será possível alcançar uma sociedade mais igualitária e humanizada, que possa prover a maioria da população com verdadeiras condições de cidadania, a fim de tornar cada cidadão, tanto quanto possível, o protagonista de sua própria história, sem ter de se defrontar com os danos que lhe traz a violência?

Temos de insistir nessas possibilidades.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: elianarpmendes@hotmail.com

Recebido em: 27/11/2017
Aprovado em: 10/12/2017

 

 

SOBRE A AUTORA

Eliana Rodrigues Pereira Mendes
Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG).
Presidente do CPMG nos biênios: 1997-1999 e 2011-2014.
Vice-presidente do triênio 2017-2020.
Delegada do Círculo Brasileiro de Psicanálise frente à International Federation of Psychoanalytic Societies (IFPS).
Participante da Comissão de Publicação da revista Reverso, publicação semestral do CPMG.
Editora da Revista International Forum of Psychoanalysis (IFP, revista da IFPS) para a América do Sul.

 

 

1 Esta citação foi extraída de uma cópia xerográfica da revista, em que não constava a paginação.

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