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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.48 Belo Horizonte July/Dec. 2017

 

PAINEL TEMÁTICO - DESAFIOS ATUAIS DA CLÍNICA PSICANALÍTICA

 

 

Sobre o futuro da psicanálise no mundo das coisas

 

About the future of psychoanalysis in the world of things

 

 

Ricardo Azevedo Barreto

I Hospital São Lucas - Sergipe
II Universidade Tiradentes

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho discute sobre o futuro da psicanálise. Enfatiza a imprevisibilidade e o caráter histórico de nossas ações. No mundo narcísico atual, o ser humano é comumente tratado como uma coisa. A sobrevivência do sujeito, numa perspectiva psicanalítica, fica ameaçada. Cabe ao psicanalista construir o que fará no futuro.

Palavras-chave: Futuro, Coisa, Psicanálise.


ABSTRACT

This paper discusses the future of psychoanalysis. It emphasizes the unpredictability and the historical character of our actions. The human being is usually treated as a thing in the current narcissistic world. In a psychoanalytic perspective, the survival of the subject is threatened. It is up to the psychoanalyst to build what he will do in the future.

Keywords: Future, Thing, Psychoanalysis.


 

Enquanto os homens exercem
Seus podres poderes
Morrer e matar de fome
De raiva e de sede
São tantas vezes
Gestos naturais

CAETANO VELOSO

 

Indubitavelmente, o futuro da psicanálise e da clínica psicanalítica é uma questão sistêmica com múltiplas influências. Sob tal prisma, uma análise criteriosa e aprofundada desta problemática nos levaria a um paradigma de complexidade que não exclui ‘a falta’ – com pretensões de completude – e a uma discussão que não se encerraria nesta produção discursiva.

Freud ([1917] 1996), a partir de contribuições de alguns nomes, explicitou golpes direcionados pela ciência ao narcisismo humano: a Terra não é o centro do universo; o ser humano descende do reino animal, assim como o Eu não é o senhor da própria casa. Por outro lado, sabemos que a problematização dos limites do universo tem se complexificado cada vez mais. Outrossim, as raízes animalescas do ser humano, quando desconsideradas, podem se expressar violentamente, sem medida, na atualidade. Quanto à não condição senhoril do Eu, desvelada por Freud e sua noção de inconsciente, há retrocessos nas concepções e práticas psi contemporâneas, pois ocorre uma busca de detenção de saber/poder pelos que desejam abater as ‘rebeldes’ concepções psicanalíticas.

A futurologia trata da “investigação dos possíveis processos futuros de mudança social, econômica, técnica, biológica, ecológica, etc.”. Refere-se a especular sobre “o futuro de uma sociedade, da humanidade ou do mundo” (FERREIRA, 2010, p. 368).

Que tal pensarmos sobre o futuro da psicanálise?

Sabemos que há diferentes concepções acerca do futuro: das mais deterministas e lineares àquelas que enfatizam as potencialidades da invenção do humano e a imprevisibilidade, contrárias aos determinismos e submissões. Corrêa (1995, p. 19), em seu ensaio Exercício sobre o futuro da psicanálise, comenta: “Concluímos [...] com a questão da imprevisibilidade”.

Não é simples a reflexão sobre o futuro na e da psicanálise. Existem contribuições diversas de Freud e outros autores. Herzog e Farah (2005) debatem sobre o futuro da civilização moderna. Explicam que, enquanto em Totem e tabu ([1913] 1996), há uma visão normativa da modernidade, sugerindo o progresso rumo ao estado científico civilizatório, em O mal-estar na civilização ([1930] 1996), encontramos o colapso da referência progressista da modernidade. É percebida uma imagem de futuro imprevisível e aberto com a marca da espera trágica.

É na perspectiva de futuro não preconcebido que floresce a esperança de a psicanálise e a clínica psicanalítica se apresentarem como potencialidades de existência do ‘sujeito desejante’, não coisificado pelos processos massivos de colonização, assujeitamento e exploração humana no amanhã, visto que compreendemos a psicanálise como uma instituição da contracultura, pois não segue a lógica do contexto. Os psicanalistas produzem efeitos de mudança no ‘con-texto’ e nas subjetividades. A intervenção psicanalítica, por conseguinte, assusta a ordem vigente.

Corrêa (1995, p. 13) escancara:

De minha parte prefiro pensar que a psicanálise está sempre a serviço da subversão do sujeito. Cada vez denunciará mais a moral sexual hipócrita e a consciência como centro da verdade, ou o status quo da cultura.

Segundo Francisco et al. (2000, p. 154), a palavra “cultura” pode ser concebida de diferentes maneiras. Uma das dimensões é falar da cultura humana como

[...] forma de expressão de idiossincrasias de civilizações que historicamente, através de condutas, costumes e ideologias (que incluem o seu imaginário coletivo), chegam a construir sucessivas identidades grupais.

Desse modo, nossos interlocutores ressaltam a referência ao modus vivendi de grupos em períodos históricos delimitados.

Com base em nossas reflexões, acrescentaríamos: quando falamos de psicanálise como uma instituição da contracultura, estamos nos referindo à resistência, no sentido político de reconfiguração de forças (há um viés foucaultiano em tal pensamento que não iremos abordar aqui), para com a história construída pela humanidade, os discursos coisificantes sobre o psicológico e a clínica psicanalítica no mundo atual, entre outros aspectos.

O tempo que está por vir da psicanálise está atrelado ao futuro da humanidade e das relações sociais, do pacto civilizatório ou do status quo de uma civilização-barbárie. De acordo com Freud ([1930] 1996), a relação entre pulsão e civilização/cultura está na base do mal-estar na civilização.

Ampliando o debate da modernidade para a atualidade, ouçamos Birman (2001) ao falar sobre psicopatologia da pós-modernidade:

[...] Esta se caracteriza por certas modalidades privilegiadas de funcionamento psicopatológico, nas quais é sempre o fracasso do indivíduo em realizar a glorificação do eu e a estetização da existência que está em pauta. Esta é justamente a questão da atualidade [...] (BIRMAN, 2001, p. 168).

Para além das características formais da pesquisa psicopatológica recente, é preciso considerar agora a direção assumida pela psicopatologia na dita pós-modernidade. O que define a psicopatologia é o destaque conferido a quadros clínicos fundados sempre no fracasso da participação do sujeito na cultura do narcisismo. Quando se encontra deprimido e panicado, o sujeito não consegue exercer o fascínio de estetização de sua existência, sendo considerado, pois, um fracassado segundo os valores axiais dessa visão de mundo. Pelo uso sistemático de drogas o indivíduo procura desesperadamente ter acesso à majestade da cultura do espetáculo e ao mundo da performance. É necessário glorificar o eu, mesmo que por meios bioquímicos e psicofarmacológicos, isto é, pelos artefatos tecnológicos (BIRMAN, 2001, p. 169).

Birman (2001) menciona a crise do sujeito, referindo-se a muitas dimensões importantes da atualidade. Também fala da crise da psicanálise. Aborda o não lugar do corpo, a expulsão do afeto, ‘o sujeito fora-de-si’, a pobreza simbólica, o desamparo no mundo desencantado, a medicalização do social, entre outros aspectos, para a compreensão do mal-estar contemporâneo, das novas formas de subjetivação e da clínica psicanalítica na atualidade.

[...] a psicanálise também entra em crise [...]. Não porque aquela seja fundada na filosofia do sujeito, mas porque se contrapõe aos pressupostos éticos da cultura do narcisismo e da sociedade do espetáculo. Pois a condição de possibilidade para a emergência do inconsciente e da fragmentação pulsional é justamente o esfacelamento do registro narcísico do eu (BIRMAN, 2001, p. 173).

[...] a memória tende ao silêncio pela ênfase atribuída ao presente. Da mesma forma, o horizonte de futuro se estreita, pois, ao se sublinhar a imediatez da presença, o sujeito perde a dimensão do devir. Pode-se depreender que o fim das utopias, que construíram e fundaram o imaginário da modernidade, teve como efeito uma nova concepção do sujeito centrado na presença e na pontualidade do tempo, no aqui e agora, em que as instâncias do passado e do futuro se silenciaram relativamente (BIRMAN, 2001, p. 245-246).

Além de ser um corpus teórico-técnico amplo acerca do humano, a psicanálise apresenta produções reflexivas sobre nosso tecido sociocultural, o que inclui os romances familiares, as vivências edípicas e pré-edípicas, entre outras dimensões.

Mezan (1986) fala de Freud como pensador da cultura. Com base no pai da psicanálise, que aproxima os termos “cultura” e “civilização”, nosso interlocutor fala da cultura humana, referindo-se ao que a vida humana superou das condições zoológicas. Menciona a conquista do saber e do poder pelos seres humanos para a dominação das forças da natureza e a obtenção de bens materiais para a satisfação das necessidades humanas. Também comenta, entre outros aspectos, a regulação das relações humanas por meio das organizações e a distribuição de bens materiais.

Corrêa (1995, p. 14) menciona com lucidez: “O que a psicanálise não conseguiu fazer via terapêutica pode conseguir pela transformação da cultura”. Ademais, pensamos que a dimensão de análise da cultura é um dos pilares para construirmos um lugar digno para a psicanálise, a clínica psicanalítica e os sujeitos no futuro.

Como sabemos, no contexto histórico de Freud, a psicanálise foi vanguardista quanto às concepções culturais vigentes. Simultaneamente, foi rígida no que tange às tendências dissidentes de sua abordagem. Contornar sua identidade constituinte com o intuito de perpetuá-la era, indubitavelmente, uma questão freudiana. Mesmo com traços conservadores, sua força revolucionária foi e é tamanha. Sua influência é fulgurante em quase todo o campo psicoterápico contemporâneo, além de possibilitar múltiplas leituras analíticas das subjetividades, de nossa civilização e nossas produções socioculturais.

Fome, pobreza, dimensões ecológicas como sustentabilidade do planeta, violência, terrorismo, entre outros assuntos, são muito relevantes socialmente às discussões psicanalíticas e formulações de intervenções da psicanálise. Na ruptura de um enfoque conservador, a psicanálise, que é muito mais ampla do que uma modalidade de psicoterapia, inclui a análise do capitalismo selvagem, alicerce do mundo das mercadorias, das coisas. Por conseguinte, é imprescindível que os psicanalistas hoje e amanhã sejam, em princípio, pensadores da cultura por meio do approach da psicanálise.

Mais especificamente sobre a problemática social da pobreza, citemos Fonseca (2010, p. 140), que debate sobre o assunto e afirma: “Temos a posição política de que um analista deve partilhar a responsabilidade pública com a ordem social”.

No pensamento de Brousse apud Fonseca (2010, p. 140), é salientado que a

[...] psicanálise aplicada é um móbil (móvel, um motivo) maior para o futuro da psicanálise, tanto como disciplina quanto como solução ética nova introduzida na civilização [...].

Ressaltemos, então, que a psicanálise, oriunda do divórcio de Freud com a medicina de sua época, desbravou e desbrava o terreno da psique, construindo um aporte teórico-técnico fecundo, produzindo-se por intermédio de muitos paradigmas, escolas e autores. Influenciou e influencia diversas áreas, como a psiquiatria, a psicologia, a educação, a filosofia, as artes, etc. Tem efeito instituinte na pesquisa científica, entre tantos outros exemplos de sua potencialidade transdisciplinar.

Uma grande força da psicanálise hoje e amanhã é não sucumbir aos psicanalismos, aos reducionismos psi e aos tecnicismos. Os diálogos com diversas searas do conhecimento, o que inclui a biologia, as neurociências e as diversas formas de práticas psicoterápicas, são de expressiva importância, inclusive para a abordagem psicanalítica se empoderar diante das mazelas da humanidade e não ser engolida pelas ideologias vigentes.

Outra potencialidade da psicanálise é que enfatiza o singular e – na clínica – a unicidade de cada caso por meio de uma metodologia qualitativa em antagonismo à lei geral e à visão positivista de ciência. “[...] a psicanálise contrapõe-se ao massacre da pluralidade das formas de subjetivação do humano” (BARRETO, 2017b, p. 224). É também “[...] uma modalidade de comunicação ímpar e fértil no mundo atual com a articulação de concepções específicas [...]” (BARRETO, 2017b, p. 224).

A psicanálise, cujo nascedouro é a modernidade, desafia-se hoje com os dilemas pós-modernos. Em tal contexto, percebemos que há diferentes modelos de vida social, dos mais líquidos e relativistas aos mais rígidos e conservadores, estes possivelmente como uma busca inconsciente de referências diante do declínio da função paterna e dos norteadores culturais de outrora, pois o que imaginariamente era sólido se tornou liquefato.

Se a psicanálise surge, na modernidade, como uma arte sensível da escuta, atualmente um de seus desafios é lidar com a tecnologia pós-moderna, o mundo globalizado e em rede. Conforme sinalizam Lopes e outros autores (2017), na obra Conexões virtuais: diálogos com a psicanálise, a abordagem psicanalítica precisa dialogar com a virtualidade, já que esta produz contextos antes inexistentes; gera efeitos, por meio da internet e de outros dispositivos virtuais, nas subjetividades e na saúde mental; transforma os modos de estabelecer laços afetivos, culturais, sociais e problematiza a clínica psicanalítica.

Reconhecemos que a crise da psicanálise é de várias instâncias e níveis. Envolve nuanças econômicas, políticas, sociais, culturais, éticas, conceituais, técnicas, etc. Por outro lado, no mundo atual, entre outros exemplos, o suicídio alarmante e o terrorismo revelam o exercício destrutivo da pulsão de morte no humano; a fuga da dor, por meio da atuação, em função da precariedade do desenvolvimento psicológico e dos psicodinamismos regredidos com incidência de núcleos psicóticos e perversos de funcionamento; o esvaziamento dos sentidos do existir e a importância dos processos de escuta e verbalização para as pessoas.

Barreto (2017b) salienta que história, epistemologia, artes, sexualidade humana, visão de instituição, entre outros assuntos, são relevantes para a psicanálise hoje. Além disso, é importante o modo como lidamos com os vazios psicossociais e o não saber na contemporaneidade. Podemos pensar na reinvenção da psicanálise, considerando que Freud e os grandes autores da área não estagnaram. Escutar a sociedade e a própria psicanálise, não somente os analisandos, estaria na nossa trilha.

Reconhecemos, portanto, a emergência da ampliação da psicanálise na contemporaneidade, sem perdermos as bases identitárias da instituição psicanalítica. Sobre o conceito de instituição, Guirado (2004) diferencia esta de um estabelecimento. Com base em Guilhon Albuquerque, pensa em instituição “[...] como um conjunto de práticas, ou de relações sociais, que se repetem e se legitimam enquanto se repetem” (GUIRADO, 2004, p. 44).

Se voltar a Freud é um modo de não perder nossa identidade rumo às inovações, não podemos ser prisioneiros do instituído.

Trabalhar individualmente, ilhado, protegendo-se do contato com o novo, é bem distinto do ponto de vista do caminhar multiplicador que considera as inovações socioculturais e a perspectiva do nós desenhada com esperança (BARRETO, 2016, p. 149).

Não podemos esquecer também as críticas endereçadas à psicanálise, quando desejamos avançar historicamente como instituição rumo ao futuro e diante das intempéries. “Saber hermético”, “abordagem fria” e “desconsideração da dimensão espiritual do ser humano” são algumas delas. São infundadas, se analisarmos apenas um pouco, pois os psicanalistas estabelecem comunicação com a sociedade em geral através da televisão, dos jornais, das revistas populares e dos dispositivos virtuais; a psicanálise tem conceitos humanísticos, e a escuta psicanalítica se depara com pacientes religiosos, ateus e com visões de mundo variadas por meio de uma atitude de respeito profundo às diferenças humanas. O que ressaltamos, assentados em nossa ética, é que a psicanálise não é uma religião, nem deve ser, o que a descaracterizaria.

A psicanálise não busca responder aos problemas do conhecimento de forma comum. Questiona-os interminavelmente. Não trabalha apenas com a água do leito de um rio, mas com a ‘des-água’, o desdito, o não dito, o interdito, o indizível.

Uma das grandes lições de Freud foi possibilitar giros epistemológicos e paradigmáticos no atendimento clínico, por exemplo, o paciente foi reconhecido simultaneamente nos lugares de sujeito e objeto do conhecimento. Tal acrobacia se entrelaça a diversas outras. A máxima que orienta os psicanalistas e a psicanálise é a noção da psique ser predominantemente inconsciente.

Se a psicanálise, em sua embriologia e seu desenvolvimento, é revolucionária, subversiva, ouçamos Pellanda (1996, p. 31-32):

[...] Há uma tendência geral das revoluções de se institucionalizarem, aburguesando-se [...]. E a psicanálise? Como seguir sendo revolucionária, no sentido de não abrir mão da possibilidade de olhar por novos vértices, de incorporar os novos Freuds [...] que existem anônimos [...]? Conhecer é poder. Análise implica conhecer o outro – o paciente – e a si mesmo – e esta é a parte mais difícil. Reconhecendo isso, David Rosenfeld comenta que o futuro da psicanálise está na contratransferência (grifos do autor).

Pellanda (1996, p. 32) acrescenta que “o futuro da contratransferência está no refinamento da autoanálise [...]”.

Adicionaríamos que o futuro da psicanálise está aberto e associado também à análise da instituição psicanalítica, de suas práticas, suas potencialidades e suas fendas. Nossa construção histórica dependerá da compreensão das culturas e dos processos civilizatórios na contemporaneidade sem esquecer o passado, as raízes. A apreensão do veio contracultural da psicanálise está no cerne do que podemos criar e criaremos em nosso momento histórico de transições e no futuro.

Roudinesco (1996) explica que a história da psicanálise se refere não só à dimensão histórica de grupos, suas lutas e sua gestão, como também às grandes formas de internacionalização do freudismo, destacando a forma legitimista e a forma lacaniana.

Por outro lado, reconhecemos que o terreno é mais multifacetado ainda com outras posições quanto à psicanálise, à formação de psicanalistas, entre outros aspectos, das diversas instituições psicanalíticas espalhadas pelo mundo.

Corrêa (1995), ao discutir sobre o futuro da psicanálise, diz:

[...] Sendo o lugar do analista marcado pelo não saber, em sua escuta ele está sempre inventando (re-descobrindo), daí sua afinidade com a teoria que o sustenta [...] Falar do futuro é pensar na fecundidade que marcando nossos dias aponta um caminho promissor [...] (CORRÊA, 1995, p. 11).

Neves (1995, p. 58), por sua vez, comenta que “[...] onde estiver o homem, a psicanálise deve advir, possibilitando o surgimento do(s) sujeito(s) [...]”.

Entendo que o futuro da psicanálise, naquilo que ela tem de mais virulento – o acesso ao inconsciente –, se fará na medida em que essa demanda se repita num vir a ser constante ... o analista circulando continuamente: ora no lugar do analisante, em busca de um saber, ou seja, de um modelo teórico-clínico em constante transformação; ora no lugar próprio do analista, no exercício de uma prática, num processo sem fim... a caminho das (re)construções... (NEVES, 1995, p. 58, grifos do autor).

Entre outros conceitos pilares da psicanálise e da clínica psicanalítica, como o inconsciente e a transferência – na atualidade, muito fragilizada –, ressaltemos que a sexualidade precisa estar no seio de nossas intermináveis reflexões analíticas. O futuro da psicanálise está muito relacionado ao futuro da sexualidade no campo do humano, aos processos de subjetivação.

Sobre a sexualidade, o historiador Stearns (2010, p. 284-285) comenta:

[...] Em termos globais, e na maior parte das sociedades, incluindo a nossa, a sexualidade está passando por uma transição entre sistemas profundamente arraigados [...] e uma situação ainda não totalmente mapeada, moldada pelas reduzidas necessidades de reprodução e por um novo tipo de cultura de consumo. A transição bate de frente com muitas tradições estabelecidas e também cria novos problemas [...]. Se os elementos da inovação contemporânea começaram a tomar forma mais de dois séculos atrás, para a maioria dos grupos o ritmo das mudanças sexuais acelerou consideravelmente ao longo das últimas décadas [...]. Os resultados são empolgantes, confusos ou bastante ofensivos, ou uma mistura dos três, dependendo do observador [...].

A psicanálise possibilita compreensão e intervenção do e no humano de forma ímpar e fecunda. Entretanto, o mundo tem se dessubjetivado ou coisificado exponencialmente, e a psicanálise – com suas concepções – tem sido desafiada, pois contribui ou pode contribuir para a humanização, a ação e a vida humanas.

Corrêa (1995) se refere à superficialização da vida psíquica pela sociedade de consumo de modo que não se constitui um sujeito; goza-se o beneplácito da condição de objeto.

Ritzer (1993) fala da mcdonaldização da sociedade, apresentando muitas contribuições para a reflexão da vida social.

Barreto (2010, p. 139) salienta a importância de

[...] devolver ao sujeito o que lhe foi extirpado pelo processo de coisificação do humano, que tem sido muito intenso, sobretudo no contexto neoliberal.

De modo geral, estamos falando das possibilidades para o sujeito hoje e amanhã. Nesse escopo, endereçamo-nos não a um organismo, uma mercadoria, um avatar do consumo ou um fetiche, mas ao sujeito em psicanálise.

Giacomelli (2011, p. 21) problematiza:

O que significa sujeito em psicanálise? Quando falamos em sujeito em psicanálise, referimo-nos àquele que é movido pela angústia inevitável do conflito: sujeito dividido, que desconhece uma dimensão de si mesmo. Esse sujeito, sujeito do inconsciente, é permanentemente faltoso, desejante e singular.

Garcia-Roza (1996, p. 225) afirma: “Só há psicanálise [...] a partir da clivagem da subjetividade [...]”.

E acrescenta:

[...] Assim como a intersubjetividade psicanalítica não tem seu fundamento no sujeito do enunciado, o próprio sujeito não se esgota em ser sujeito do enunciado. Se a subjetividade cartesiana (psicológica) é uma subjetividade unificada, identificada com a consciência e pertencente a um sujeito psicofísico, a subjetividade psicanalítica é fundamental e essencialmente uma subjetividade clivada, sujeita a duas sintaxes distintas e marcadas por uma excentricidade essencial. O inconsciente não é um acidente incômodo dessa subjetividade, mas o que a constitui fundamentalmente. Com ela, não estamos apenas longe da psicologia, mas em outro espaço de questões (GARCIA-ROZA, 1996, p. 229).

É com tal concepção que operamos psicanaliticamente na clínica única de cada sessão ou fora dela como psicanalistas, produzindo efeitos de mobilização discursiva e subjetiva. Entretanto, atualmente há no mundo uma tentativa de rejeição da condição de sujeito do ser humano em suas dimensões psicanalítica e social. Existe também, na contemporaneidade, uma tentativa de rejeição do lugar do psicanalista por ser subversivo em sua práxis.

Para abordarmos a complexidade do ser psicanalista, traríamos ainda questões da análise leiga, da psicologização da psicanálise, das tentativas de regulamentação e controle do fazer psicanalítico [...]. O tripé de formação [estudo da psicanálise, análise e supervisão] está na base do que cada instituição concebe [...] (BARRETO, 2017a, p. 189-190, complemento nosso).

Neste momento, debrucemo-nos mais sobre a coisificação, o mundo das coisas. Podemos tomar diferentes perspectivas de análise do tema. Há o vértice marxista; o ponto de vista dos discursos da humanização – da assistência em saúde, por exemplo; as contribuições discursivas psi ou filosóficas sobre o assunto, entre outras possibilidades de abordagem da questão. Não pretendemos nos restringir a um desses vértices especificamente, mas transitar pelo assunto livremente.

Doti e Delgado (2013) falam de um espaço que é inundado de coisas, produzido pelo capital. Fazem referência às mercadorias e à estética do capital no mundo das coisas. Tecem comentários sobre detenção de poder, ideologia, entre outros pontos.

Acrescentamos que percebemos – a cada instante de manifestação de nossa sociedade narcísica e imediatista – que o mundo se desumanizou, tornando-se, ‘mas não totalmente’, um conjunto de coisas com seres humanos despersonalizados que respiram a lógica do mercado. Em nosso mundo de coisas, houve, numa dose significativa, o esquecimento da amplitude do universo, da animalidade das pessoas, das construções do sujeito da linguagem na cultura, do inconsciente, dos limites e potencialidades da alma humana e seus desfiladeiros. Dessa forma, na pretensão de onipotência, na contemporaneidade, as pessoas frequentemente não conseguem, entre outros aspectos, exercer bem sua cidadania.

E o que faremos com o futuro?

Como será desenhado o tecido psicossocial da humanidade?

Partindo de uma civilização-barbárie, narcisista e coisificante, como o animal humano poderá se tornar um sujeito?

Reconstruiremos nosso pacto civilizatório e nossas produções culturais?

De que forma a psicanálise participará de tal história?

Como a psicanálise e a clínica psicanalítica não serem coisificadas perversamente no decorrer do século XXI, esvaziando-nos como seres humanos?

A psicanálise seguirá os rastros da atemporalidade do inconsciente?

No mundo das coisas, a perspectiva humanizante das invenções e da criatividade nos parece uma força muito preciosa.

 

Eu quero aproximar o meu cantar vagabundo
Daqueles que velam pela alegria do mundo
Indo e mais fundo
Tins e bens e tais

CAETANO VELOSO

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: ricardobarreto@saolucas-se.com.br

Recebido em: 11/12/2017
Aprovado em: 17/12/2017

 

 

SOBRE O AUTOR

Ricardo Azevedo Barreto
Psicólogo graduado pela Universidade de São Paulo (USP).
Tem mestrado e doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela USP.
Especialista em Psicologia Hospitalar pelo CEPSIC da Divisão de Psicologia do Instituto Central do Hospital das Clínicas da FMUSP.
Teve experiência de treinamento no Butler Hospital (RI-USA).
Psicanalista. Foi presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise (2014-2017).
É um dos editores da revista Estudos de Psicanálise do Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP).
É coordenador do Programa de Humanização da Assistência e membro do Conselho Administrativo do Hospital São Lucas em Sergipe.
Professor titular da Universidade Tiradentes (UNIT), onde ensina nos cursos de Psicologia e Medicina.
Professor de Psicologia em cursos de especialização na área de Odontologia.

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