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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.48 Belo Horizonte jul./dez. 2017

 

PAINEL TEMÁTICO - SEXUALIDADE, GÊNERO E IDENTIDADE

 

 

Transexualidades: desafio à psicanálise do século XXI

 

Transexualities: a challenge to XXI century psychoanalysis

 

 

Anchyses Jobim Lopes

I Universidade Estácio de Sá
II Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

As transexualidades como desafio à psicanálise do século XXI. Conceituação e diferenças entre: identidade de gênero, expressão de gênero, escolha objetal e investimento genital. A patologização das transexualidades a partir da maioria das explicações que utilizam as noções de estrutura: neurótica, psicótica ou perversa. Uma compreensão não patologizante a partir da denegação. Construção do núcleo de identidade de gênero a partir: da feminilidade primária, da identificação feminina primária, do complexo edípico e do investimento genital. Construção do corpo pela linguagem. A pulsão invocante enquanto libidinizadora do corpo do bebê. Um exemplo através da voz e do olhar da mãe juntos com o brincar com as mãos e os pés do bebê.

Palavras-chave: Transexualidades, Núcleo de identidade de gênero, Feminilidade primária, Pulsão invocante, Lacan, Stoller.


ABSTRACT

Transexualities as a challenge to twenty-century psychoanalysis. Conceptualization differences between gender identity, gender expression, object choice and genital investment. Transexualities pathologization throught most explanations using structural concepts of neurosis, psychosis or pervertion. A non pathologizing understanding through denegation. Construction of core gender indentity from: primary feminility, primary femine identification, edipian complex and genital investiment. Body’s construction through language. Invocatory drive libidinizing the baby’s body. An example through the mother’s voice and gaze combined play with the child’s hands and feet.

Keywords: Transexualities, Core gender identity, Primary feminity, Invocatory drive, Lacan, Stoller.


 

Quando duas verdades são incompatíveis,
como a de que os cromossomas são masculinos,
mas a identidade está fixada no feminino,
com um sentimento de feminilidade,
a verdade da identidade deve prevalecer.

ROBERT J. STOLLER, 1975.

 

Introdução - de um texto ao outro

O presente artigo baseia-se na exposição preparada para o XXII Congresso do Círculo Brasileiro de Psicanálise, apresentada no painel temático Sexualidade, Gênero e Identidade. Teve por base o texto publicado no número 47 desta revista (LOPES, 2017). Contudo, foi deixada de lado a extensa pesquisa sobre mitologia grega, que foi o motor principal daquele texto, mas que se tornou tão extensa que deveria ter sido publicada como trabalho à parte. Do trabalho anterior aproveitamos para o painel os trechos sobre o desafio do tema à psicanálise, o desdobramento da sexualidade desde Freud em quatro itens e uma proposta explicativa das transexualidades a partir do aprofundamento do conceito de núcleo de identidade de gênero proposto por Stoller.

Desde que o artigo anterior ficou pronto e foi enviado para publicação, assistimos a palestras e tivemos acesso a outros artigos sobre transexualidades, a maioria pelo viés lacaniano. Alguns apresentaram abordagens diferentes e enriquecedoras. Foram poucos. A maioria nos causou perplexidade. Decidimos acrescentar para a apresentação no congresso um resumo e uma apreciação dessas abordagens. Principalmente as que o fizeram a partir das três estruturas: neurose, psicose e perversão.

E para não ficar apenas numa crítica negativa, resolvemos apresentar algumas ideias nossas sobre gênero e transexualidades, a partir de certas proposições feitas por Lacan. Por questão de tempo, esta parte final não pôde ser incluída na apresentação oral do painel, portanto é inédita no presente artigo.

 

Indagações para a psicanálise

As questões colocadas à psicanálise pelas produções mais importantes sobre gênero e sobre a clínica das transexualidades colocam em xeque parte da herança freudiana. Em primeiro lugar, como foi apresentado por Ana Maria Sigal há dois anos em palestra na jornada anual de 2015 do CBP-RJ e publicado no número anterior da Estudos, se considerarmos que as transexualidades são em sua esmagadora maioria ego sintônicas, a função do psicanalista reduz-se a uma terapia de ego (SIGAL, 2017). Nesse caso, o psicanalista deixaria seu ofício. Seu papel seria reduzido ao assistencialismo, para lidar com sofrimento psíquico causado por discriminação social, rejeição pela família, condenação de religiosos e outros mais. Função que pode ser executada bem melhor por outros profissionais,

Em segundo lugar, se a identidade de gênero se estabelece num momento pré-edípico muito precoce e muito antes da escolha de objeto, ela põe em xeque o modelo psicanalítico clássico calcado no Édipo. Mais do que isso, em vez de ao nascer, seja pela escolha de alguma divindade, seja pelo acaso, automaticamente pertencermos ao sexo masculino ou ao sexo feminino, recebendo dos pais um nome próprio que por si também identifica a qual sexo se faz parte, o(a) transexual cria seu sexo e se autonomeia conjuntamente com seu médico (BIRMAN, 2017).

Há um terceiro desafio à psicanálise, anterior a ampla divulgação pela mídia sobre transexualidades. Nos três ensaios sobre a teoria da sexualidade Freud ([1905] 1978) propôs uma visão da sexualidade que mesmo hoje é subversiva. Contudo, ainda durante a sua vida, a revisão do modelo de pensar primeiro a sexualidade masculina e dela derivar as explicações para a sexualidade feminina era exigido por muitos. Com o crescimento do movimento feminista a partir da segunda metade do século XX, as considerações de Freud sobre o feminino passaram a ser vistas, na definição mais branda, como patriarcais. Com o advento das pesquisas sobre transexualidades, tornou-se ainda mais urgente repensar a sexualidade feminina, na medida em que as estatísticas sobre a passagem para o sexo feminino de pessoas nascidas no sexo masculino são em torno até de quatro a sete vezes mais frequentes que do a passagem das nascidas no sexo feminino para o sexo masculino. Esse fato nos leva à conclusão de que é a sexualidade masculina que é construída e deve ser pensada como uma diferenciação da feminina. E não ao contrário como pensava o pai da psicanálise.

Apesar disso, a discussão e os avanços na compreensão das transexualidades, necessitam ser reconhecidos como o mais recente desdobramento da revolução sobre o conhecimento da sexualidade humana iniciado por Freud. Separando prazer e desejo de reprodução, tudo mais no que concerne aos vários componentes da sexualidade humana pode ser descolado de qualquer naturalismo biologizante. Se no passado esse naturalismo mascarava uma origem religiosa, hoje é uma opção ideológica usualmente travestida do rótulo de “neurocientífica”. E em que pese haver grupos de pesquisadores sérios nessa área, em sua maior parte sempre conduz a ideias de darwinismo social embasando técnicas comportamentais.

 

Transexualidades: histórico e conceituações

O médico e sexólogo alemão Magnus Hirschfeld cunhou o termo “travesti” em 1910 para pessoas que se vestem ocasional ou regularmente como membros do sexo oposto. Em 1923, na mais recente edição de seu Anuário sobre intermediários sexuais [Jahrbuchs für sexuelle Zwischenstufen] Hirschfeld descreve o transexualismo psíquico [seelischen Transsexualismus] como uma “forma de travestismo particularmente pronunciada [...]” mas diferente do hermafroditismo físico (GHEROVICI, 2010, p. 28; TRANS-INFOS.DE, 2017).

Hirschsfeld já fora mencionado por Freud em 1905 nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade ([1905] 1996). O texto de Freud Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade (1908) fora escrito originalmente para uma das edições do Anuário sobre intermediários sexuais, de Hirschfeld, sendo transferido para um novo periódico recém-lançado pelo mesmo editor. Juntamente com Karl Abraham, o sexólogo alemão foi em 1908 um dos fundadores da Sociedade Psicanalítica de Berlim. Mas três anos depois se desligou. Não estava interessado no cerne das ideias psicanalíticas e defendia a origem biológica para a diversidade do comportamento sexual humano. Também há sempre os relatos da homofobia e da oposição de Carl Jung frente ao ativismo político de Hirschfeld.

O cirurgião e psiquiatra David Caudwell usou palavra “transexual” pela primeira vez em um artigo de 1949. Para ser mais exato, usou a expressão em latim psicopathia transexualis, tomando por modelo o título do famoso livro de 1896 publicado por Krafft-Ebing Psicopathia Sexualis. Nas décadas de 1950 e 1960 “transexual” foi difundido por Harry Benjamin, sexólogo de origem alemã radicado nos Estados Unidos. Benjamin conduziu diretamente ou orientou com colegas tratamentos hormonais e cirurgias de redesignação sexual. Assim como Hirschfeld e Caudwell, Benjamin acreditava nas origens genéticas, endócrinas e hormonais. Desaconselhava veementemente tratamentos psicológicos. O que faz sentido se pensarmos nas crenças patologizantes da psiquiatria e na psicanálise americana e europeia.

Com mais de um século de distância é possível interpretar que o nascimento e a confusão conceitual dos três termos – bissexualidade, travestismo e transexualidade – revelava algo muito mais profundo que aberrações causadas por erros biológicos. E Freud tinha objetivos opostos aos de seu contemporâneo Hirschfeld, ou dos sucessores Caudwell e Benjamin. Desde sua clínica sobre histeria ao final do século XIX, combatia as explicações organicistas. Sabia que todas terminam por descambar na ideologia da degenerescência. Que apesar das boas intenções daqueles sexólogos, acaba por rotular o que é minoritário em inferior e impor em nome da medicina falsos procedimentos terapêuticos, ou até mesmo o extermínio físico.

Como já propusera Freud nos Três ensaios, a compreensão psicanalítica da psicopatologia era a porta de entrada para uma nova psicologia e um entendimento muito mais abrangente da sexualidade humana. Coube ao psiquiatra e psicanalista americano Robert Stoller reconduzir os fenômenos transexuais de volta à trilha dos Três ensaios. Com sua vasta experiência e empatia clínicas, Stoller retornou a um dos termos mais universais de toda linguagem verbal e de múltiplos usos: gênero. Já em 1955 o controverso sexólogo John Money mostrara em muitos seres humanos o descolamento entre o sexo biológico e gênero, da distinção entre diferença sexual e diferença de gênero. Coube a Stoller em um artigo de 1964, publicado num livro de 1968, criar a expressão “núcleo de identidade de gênero” [core gender identity] (STOLLER, 1984, p. 29).

Quase todo mundo começa a desenvolver, a partir do nascimento, o sentido de pertencer a um sexo. Esta expressão de uma identidade acima de tudo mais pode ser conceituada como núcleo de identidade de gênero, produzido pela relação do bebê com seus pais, pela percepção de sua genitália externa, e pela força biológica que brota das variáveis biológicas do sexo. Os dois primeiros fatores são quase sempre cruciais para a determinação final da identidade de gênero (STOLLER, 1984, p. 29-30, tradução nossa, itálico do autor).

Para Stoller, além de terminar colocando o biológico em segundo plano, ameaças ao núcleo de identidade de gênero constituem ameaças ao self e causam defesas conhecidas como perversões. Mas as transexualidades em si mesmas não seriam neuroses, psicoses nem perversões. Apenas seres humanos que se desenvolveram sua identidade de gênero a partir de um núcleo diferente ao do sexo biológico.

Nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade Freud ([1905] 1996) demonstra que a sexualidade humana se descola da reprodução da espécie. O número e a intensidade de relações sexuais infinitamente ultrapassa o necessário para que se gere filhos. A segunda grave separação é entre sexo biológico e o que é popularmente conhecido como orientação sexual e que Freud denominou de escolha objetal. Isto é, a escolha de parceiros ou parceiras que podem ou não ser do sexo oposto. Freud defende a bissexualidade inata, demonstrando também que “[...] há entre a pulsão sexual e o objeto sexual apenas uma solda” (FREUD [1905] 1996, p. 140). Nesse texto Freud também já chama a atenção para o que mais tarde será denominado “expressão de gênero”. Ou seja, as características da personalidade, a aparência e os gostos considerados masculinos ou femininos.

Além das escolhas objetais e das expressões de gênero, o advento stolleriano, com o que denominou núcleo de identidade de gênero, foi acrescentar que mesmo o conhecimento íntimo de que se é homem ou mulher também não é necessariamente conforme o sexo biológico. Soma-se um outro dado. Há um quarto item. Quando se fala de sexo biológico, fala-se de cromossomas e genitais. Mas se os cromossomas não podem ser mudados, os genitais podem ou não. A lógica binária de um corpo feminino ou masculino perfeitos é desejada pela maioria dos transexuais. Pelo menos aqueles que fascinam o grande público e tornaram-se famosos pela mídia.

Mas trata-se de uma lógica subjacente a um conceito idealizado de transexualidade. Há os que não desejam cirurgias de redesignação genital e não somente os que não a realizam devido aos limites das técnicas cirúrgicas atuais. Mendes (2017) longamente descreve um dos exemplos mais famosos. Um homem trans (mulher para homem), que, além de não ter seios ou formas femininas, se tornou possuidor de todas as características e estereótipos masculinos. Contudo manteve genitais femininos. Apesar do advento e do progresso da biotecnologia, hoje sabemos que nem todos os transexuais desejam cirurgias de redesignação sexual, fato que juridicamente já é aceito em vários países.

Contudo, a maioria dos transexuais caracteriza-se por ter horror e nenhum prazer com seus genitais de nascimento e buscam avidamente a cirurgia. De modo que, além de ‘identidade de gênero’ (se alguém se considera homem ou mulher), de ‘expressão de gênero’ (o quanto e de que modo alguém se considera e socialmente se comporta como masculino ou feminino), ‘orientação sexual’ (o quanto alguém ama e tem prazer com o sexo oposto, com o mesmo sexo, ou os dois), também hoje foi incluída a qualificação do ‘sexo biológico’; melhor seria ‘sexo genital’ (preferir os próprios genitais como masculinos ou femininos). Não se trata de um sintoma psicótico, porque claramente reconhecem sua realidade anatomofisiológica. Não há delírios ou alucinações nem mesmo negativas. Algo ocorreu muito precocemente na construção do corpo libidinal do bebê. Quem melhor descreveu a relação entre a maior parte dos transexuais e seus genitais foi Ceccarelli (2013):

A realidade anatômica, por sua vez, é investida de forma bastante singular. Ocorre um investimento que pode ser chamado de “narcisismo negativo”: uma repugnância pelos órgãos genitais, como se eles fossem apêndices desprezíveis, vergonhosos, que devem, a qualquer preço, ser extirpados (CECCARELLI, 2013, p. 127).

Em síntese: prazer pelo prazer ou reprodução, identidade de gênero, expressão de gênero, objeto sexual, prazer genital, todos são soldados ou não ao sexo biológico e podem se reunir de formas e intensidade diversas.

Sintetizou Sigal (2015, p. 7):

Em relação à sexualidade, termo que nos ocupa neste momento, podemos pensar em um mundo de diversidades, no qual traços identificatórios vão formando conjuntos, ensembles, que permitem tantas combinações quantas singularidades existirem.

 

Crítica a algumas interpretações lacanianas

À primeira vista é bastante razoável propor para a compreensão psicanalítica das transexualidades o modelo clínico mais antigo, que originou o paradigma freudiano: a histeria. As transexualidades pela via da histeria são tema abordado por vários autores. Selecionamos o artigo até o presente considerado de maior peso em nosso meio psicanalítico, por sua divulgação acadêmica, bem como pelo conhecimento e seriedade de seu principal autor: A epidemia transexual: histeria na era da ciência e da globalização? (JORGE; TRAVASSOS, 2017).

Ao qualificar a transexualidade com o termo médico “epidemia”, o artigo já a classifica como patológica e grave, mas, felizmente, passageira como o foram todas as epidemias ao longo da história. Contrário à prudência diante das variantes observadas nessas pessoas, o termo “transexual” é sempre usado no singular. Os autores declaram que se trata de “[...] um raro quadro psiquiátrico tem agora sua presença espetacular pela mídia” (JORGE; TRAVASSOS, 2017, p. 308). Concordamos que em sua necessidade de público e lucro que a mídia torna tudo em espetáculo. Usualmente de modo superficial, agressivo e erotizante.

Entretanto, não se pode esquecer que tudo que é condenado pela moral do senso comum, pela religião, muitas vezes com o beneplácito do saber médico, torna-se invisível. Sem dúvida a biotecnologia desenvolvida nos últimos cinquenta anos tornou viáveis as mudanças corpóreas da mudança em oposição ao sexo biológico. Contudo, há pouco mais de uma ou duas décadas, condutas como a homossexualidade, especialmente a feminina, além de ser tornadas invisíveis para o público em geral, infelizmente o eram ainda mais para a maioria dos psicanalistas. O mesmo ocorre ainda de modo mais intenso com as transexualidades. O que não se tem ouvidos para escuta não aparece na clínica. A mudança não veio de dentro da área médica ou da psicanalítica (!) que, ao contrário, foram baluartes contra a mudança. Pelo contrário, a psicanálise, tanto na maior parte de sua vertente americana, quanto por grande parte da lacaniana francesa, ficou aquém da despatologização do homoerotismo pela psiquiatria, ou opôs-se ao reconhecimento legal das uniões estáveis e casamento entre pessoas do mesmo sexo (LEWES, 1998; MAYA, 2008). A mudança veio impulsionada pelos grandes movimentos políticos e sociais: feminismo, rebeliões de 1968 e Stonewall, entre outros. Em todos a difusão pela imprensa livre foi essencial.

No artigo A epidemia transexual, toma-se por base que para Lacan a histeria é a estrutura discursiva de base do sujeito. Tal concepção, por um lado, despatologiza a histeria, por outro, não é a tônica do artigo quando se refere à transexualidade. E se fosse apenas casos de histeria (delas os psicanalistas entendem desde seus primórdios da história da psicanálise), se consistisse o problema clínico em algo simples assim, a transexualidade seria tratada com relativa facilidade. Talvez apenas com um pouco menos de sucesso daqueles que propagandeiam a vitória das terapias de reversão sexual, popularmente conhecidas como ‘cura gay’. Contudo, já em 1975, no tratado de psiquiatria mais utilizado pelos alunos do curso de medicina no Brasil durante os anos 1970, Stoller propunha no capítulo por ele escrito – Identidade de gênero – que:

[...] Quando duas verdades são incompatíveis, como a de que os cromossomas são masculinos, mas a identidade está fixada no feminino, com um sentimento de feminilidade, a verdade da identidade deve prevalecer (STOLLER, 1975, p. 1408).

Coerentemente com a defesa enquanto histeria, propõem os autores que a gravidade da atual epidemia também se dá porque o conflito da demanda histérica não pode ser apaziguado pela mudança corporal e que

[...] a frequência igualmente crescente de sujeitos de buscam a destransição após terem mudado de gênero fala a favor da perene insatisfação que condiciona o desejo na histeria (JORGE; TRAVASSOS, 2017, p. 318).

Desse modo a desqualificação das transexualidades como fenômeno histérico criado pela medicina e pela mídia, conjuga-se com a afirmação do aumento das tentativas de destransição e de que “[...] há um pacto silencioso com a mídia de evitar veicular notícias sobre suicídios [...]” (JORGE; TRAVASSOS, 2017, p. 324).

Se o número de cirurgias tem aumentado muito, é razoável que aconteça o mesmo com os casos de arrependimento. Para que isso seja evitado, deve haver o longo acompanhamento psiquiátrico, conforme nos foi relatado pelo psiquiatra que avaliava e acompanhava as solicitações cirúrgicas de redesignação sexual no Hospital Universitário da UFRJ. A estatística importante seria a comparação entre o número cirurgias (que também não são desejadas e/ou realizadas em um número crescente de transexuais) e os de casos de arrependimento. A menção ao termo “destransição” pode fundamentar objetivos que seguramente são o oposto daqueles dos autores do artigo mencionado. Curiosamente o argumento da destransição e do remorso já nos fora previamente trazido através de alunos de graduação em psicologia, tirado de material de páginas religiosas das redes sociais. No que nos foi possível checar, inclusive, material falsificado sobre um dos casos mais conhecidos de transexualidade masculina no Brasil.

Lewes (1998) e Maya (2008) descrevem com detalhes como no caso das homossexualidades, a teorização psicanalítica racionalizava argumentos biológicos e religiosos. As transexualidades não são explicáveis e tratáveis quando colocadas sobre o prisma da estrutura neurótica e do recalque (Verdrandung). Mas os autores do artigo de A epidemia transexual tiveram o mérito de não enfatizar o discurso lacaniano mais antigo, que coloca as transexualidades no campo das psicoses e da foraclusão (Verwerfung).

Em O seminário, livro 18: de um discurso que não fosse do semblante, indica Lacan ([1970-1971] 2009, p. 30):

[...] talvez vocês tenham tempo de ler alguma coisa. Visto que estou recomendando um livro, para variar, isso fará aumentar sua tiragem. Chama-se Sex and Gender [Sexo e género], de um certo Stoller. E muito interessante de ler, primeiro porque desemboca num assunto importante – o dos transexuais, com um certo número de casos muito bem observados, com seus correlates familiares. Talvez vocês saibam que o transexualismo consiste, precisamente, num desejo muito enérgico de passar, seja por que meio for, para o sexo oposto, nem que seja submetendo-se a uma operação, quando se está do lado masculino. No livro vocês certamente aprenderão muitas coisas sobre esse transexualismo, pois as observações que se encontram ali são absolutamente utilizáveis. Aprenderão também o caráter completamente inoperante do aparato dialético com que o autor do livro trata essas questões, o que o faz deparar, para explicar seus casos, com enormes dificuldades, que surgem diretamente diante dele. Uma das coisas mais surpreendentes é que a face psicótica desses casos é completamente eludida pelo autor, na falta de qualquer referencial, já que nunca lhe chegou aos ouvidos a foraclusão lacaniana, que explica prontamente e com muita facilidade a forma desses casos. Mas não tem importância.

A citação de Lacan em 1971 refere-se ao primeiro Sex and Gender (I) - The Development of Masculinity and Femility, publicado em 1968, precursor de Sex and Gender II - The Transexual Experience. O percurso stolleriano foi a despatologização das transexualidades. Mas a descrição de Lacan tornou-se quase um imperativo de que a maioria de seus seguidores – alguns bastante conhecidos – as caracterizassem como psicose. Essa tendência foi associada a termos ou conceitos tais como o empuxo à mulher e não inscrição do Nome-do-Pai.

O caso Schreber quase sempre é lembrado como exemplo. Passando por cima de que o autor do célebre livro interpretado por Freud, na primeira fase de sua psicose vivenciou sua transformação como imposta de fora e absolutamente maligna, e na segunda fase só se conformou porque era um destino inexorável imposto pela ‘ordem das coisas’. Schreber sofria de alucinações corporais extremamente regredidas e concretas. Tal como mencionado acima, os transexuais estudados por Stoller e os que pessoalmente conhecemos ou acompanhamos em supervisão reconhecem sua realidade anatomofisiológica. Não há nenhuma alucinação ou delírio que estejam corporalmente mudando de sexo. Tanto que a solicitação é que os médicos produzam essa alteração. Assim como não há outros dos muitos sintomas esquizofrênicos semelhantes aos apresentados por Schreber, exceto em um único caso de que tivemos notícia. Sintomas que não possuíam relação direta com a transexualidade. Nos transexuais que diretamente observamos ou acompanhamos, não ocorrem alucinações auditivo-verbais ou de quaisquer outros tipos, ou transtornos da linguagem ou da consciência do eu, comprometimento da vontade, pragmatismo ou psicomotricidade, e aí por diante quaisquer outras alterações patognomônicas de psicose em todo o elenco da psicopatologia clássica.

Poucos meses antes da publicação de A epidemia transexual, foi editado o livro O corpo na psicose: hipocondria, Cotard, transexualismo (CZERMAK; JESUINO, 2016), com artigos da publicação de 2006 O corpo: hipocondria, Cotard, transexualismo (CZERMAK; THIBIERGE), com o acréscimo de “psicose” no título. Na publicação de 2016 há vários artigos sobre transexualismo (não o termo mais correto e usual hoje: “transexualidades”), escritos a partir das premissas da psicose e da foraclusão. Encerra o livro uma coletânea de textos de Lacan sobre os temas do título. Em relação ao transexualismo são transcritos vários trechos de Lacan em O seminário, precedidos de um extenso trecho dos Escritos, de Lacan, sobre Schreber. Todos subscrevendo a vertente da psicose.

Uma vez que as transexualidades não podem ser explicadas pelas estruturas da neurose e da psicose, resta a terceira estrutura: a das perversões. Tanto na psiquiatria quanto na psicanálise, esse terceiro grande grupo caracteriza-se por uma série de problemas. O termo “perversão” é sinônimo de maldade. E a partir da medicalização do comportamento criada com o surgimento da psiquiatria e da psicanálise, ao termo associou-se a ideia de aberrações sexuais. É um grupo clínico que, além de receber dejetos do que não pode ser classificado como neurose ou psicose, agrupa desde comportamentos e traços de conduta isolados, até tipos inteiros de personalidades (que um tempo Freud designou como ‘neurose de caráter’). E, como se não bastasse, o rótulo de ‘perversões’ foi utilizado para todas as práticas e escolhas sexuais não reprodutivas proibidas pelo Velho Testamento, portanto também execradas pelos três grandes monoteísmos. Muito naturalmente as transexualidades, embora muito pouco conhecidas e estudadas até poucas décadas, foram encaixadas no rótulo patologizante e moralista das perversões.

O conceito psicanalítico central, para tentar agrupar esse aglomerado heterogêneo numa estrutura perversa foi o de Verleugnung, que pode ser traduzido como recusa, desmentido, denegação ou renegação. Desde 1905 Freud observou nos meninos o horror diante da ausência do pênis nas mulheres. Em 1927 no artigo sobre Fetichismo, Freud caracterizou a denegação como a simultaneidade de uma percepção traumática, tendo por base a da castração, com a crença de que a mulher possui um falo, outorgado alucinatoriamente ou por um objeto que o simbolize – o fetiche.

Não foi apenas na clínica psiquiátrica e psicanalítica que ocorreu uma mistura de quadros e definições, mas na própria obra de Freud. Já em 1924 ele utilizara a denegação para compreender as psicoses. Só que o desenvolvimento do conceito na obra de Freud seguiu no rumo da despatologização. E em seus últimos escritos, de 1938, universaliza a denegação como mecanismo psíquico de todos os seres humanos, provocando um estreitamento ou até uma cisão (clivagem) do eu em dois: um eu realidade e um eu prazer. Por uma leitura kleiniana a tendência à cisão do eu não só é necessária como também formadora da psique de todos os bebês, como se mantém em todos nós, principalmente em situações de crise. A patologia ocorre pelo grau e pela irreversibilidade da cisão. Em um artigo (LOPES, 2010), expusemos como a cisão é necessária ao trabalho de todos os tipos de cuidadores de pessoas, em especial para o ofício de psicanalista. Enquanto uma parte do eu do terapeuta transfere reciprocamente,1 outra parte mantém um eu realidade e observador.

Contudo, o conceito de denegação, segundo Cossi (2011), pode ser utilizado para a compreensão não patologizante e discriminatória das transexualidades. No que concordamos. Segundo o autor:

O sujeito transexual reconhece sua realidade anatomofisiológica e não distorce tal percepção. Contudo, esta traz à tona afetos intoleráveis – daí a tentativa de negar sua presença. Um dos mecanismos em jogo pode ser a Verleugnung, entendida como desmentido, elemento que se ergue a partir da clivagem do Eu, recurso que faz parte do funcionamento psíquico de todos (COSSI, 2011, p. 129).

Os conceitos teórico-clínicos de recalque, foraclusão e denegação, fundamento das estruturas neurótica, psicótica e perversa têm o mesmo problema quanto ao núcleo de identidade de gênero. Todos os três se referem a sintomas posteriores à formação desse núcleo. Se a identidade nuclear foi recalcada, foracluída ou denegada, é porque de algum modo ela já existia. Mesmo no caso dos pacientes psicóticos. Assim como Schreber, ninguém pode se sentir sendo transformado em mulher contra a sua vontade, se não se considerasse previamente homem, ou vice-versa. O(A) histérico(a) pode recalcar e produzir sintomas a partir suas fantasias bissexuais recalcadas. O que implica dizer que se considera de um sexo e teme a atração e as fantasias sexuais com objetos do mesmo sexo. Logo, sabe qual é sua identidade de gênero, por mais que tema por ela. Mesmo se considerada perversão, só pode ser denegado o que ameaça uma crença prévia do sexo ao qual se pertence.

O encaixe das transexualidades em qualquer uma das três estruturas também subentende que, para aquele que faz essa classificação, o correto seria uma subjetividade de acordo com o sexo biológico. A subordinação da sexualidade humana a um tipo específico de coito, em vez da definição mais acurada, inclusive para fins legais, de duas pessoas que concomitantemente (ou quase) atingem o orgasmo. Acrescentamos ao que foi proferido pelo psicanalista Ricardo Goldenberg, em palestra neste XXII Congresso do CBP, de que o real e o gozo ainda possuem restos biologizantes no pensamento de Lacan, que também acreditamos que há muitos desses restos nas ideias sobre homoerotismo e transexualidades do autor dos Seminários e dos Escritos.

Além da abordagem a partir das estruturas, assistimos palestras ou lemos sobre duas outras explicações para as transexualidades através das abordagens lacanianas. Acreditamos a mais interessante a abordagem pelas ideias de véu, mascarada e semblante por Cossi (2011, 2016). Assim como na questão da denegação, o autor seguiu um viés despatologizante.

Outra abordagem lacaniana é através da fórmula da sexuação, também apresentada nesta mesa e, de modo igualmente competente, por Antonio Quinet na conferência Suplências da falta da relação sexual2. Por último lemos as obras de Millot (1992) e de Gherovici (2017), propondo a análise das transexualidades através do sinthoma, calcado no Seminário 23. A sexuação e o sinthoma podem se orientar num viés patologizante ou não. Contudo, nossa observação é que todas essas tentativas de compreensão, além de se referirem ao que consideramos um estágio posterior à formação do núcleo de identidade de gênero, pressupõe a concordância em pelo menos três dos quatro itens: identidade de gênero, expressão de gênero e sexo genital. Mesmo não sendo um resto de subordinação ao biológico, isso ainda implica em limitações a todas as combinações possíveis que a desconstrução do binarismo permite pensar. Isto é, limita as possibilidades combinatórias dos ensembles possíveis. Talvez a reflexão sobre a questão da linguagem para constituição do infans humano, permita uma maior radicalidade para que se pense as transexualidades por meio de instrumentos do arsenal lacaniano.

Para que haja linguagem, é necessário que desde amplas áreas corticais até a sofisticadíssima laringe humana existam, o que não significa que a linguagem se restrinja ao biológico. O biológico é uma condição necessária, mas não suficiente. Pelo contrário, todos os conceitos psicanalíticos, principalmente lacanianos, partem da autonomia de uma superestrutura da palavra que infinitamente ultrapassa as pré-condições biológicas.

A experiência clínica que tivemos há muitos anos com pacientes em estupor catatônico, seja na entrada, seja na saída desse quadro extremo de esquizofrenia, muito nos fez pensar sobre o conceito de regressão. Nesses pacientes, em que desaparece qualquer forma de linguagem, toda vida de relação com o meio é perdida. Não falam nem se comunicam por qualquer outro modo, não ingerem alimentos, não há qualquer motilidade, ou então ficam indefinidamente na posição em que forem colocados; além do mais, podem não realizar as funções excretoras básicas. Antes do surgimento da primeira forma de terapia eficiente na década de vinte do século passado – a eletroconvulsoterapia (choque elétrico) – faleciam de inanição e infecções várias. Essa condição levou à conclusão de que, quando falamos de regressão, se os seres humanos ficassem semelhantes a chimpanzés, cães ou gatos, não haveria problema. Todos eles se alimentam, excretam, se defendem, copulam e geram. Os seres humanos, se levados à regressão extrema, sem nenhum vestígio de linguagem, mesmo a de um bebê de pouco mais de três ou quatro meses, não apenas deixam de ser humanos: deixam também de ser qualquer coisa.

A observação direta de transexuais, além de mostrar em algumas dezenas de observações um único caso de psicose, revela que o núcleo de identidade de gênero é algo anterior à formação das três estruturas psíquicas. Ao mesmo tempo esse núcleo é coetâneo ao surgimento de uma base segura para a linguagem e a subjetividade. E a partir dessa base, seria como a inscrição de um ‘segundo corpo’, construído pela linguagem, necessária para que o corpo físico realize até mesmo algumas funções básicas para sua sobrevivência biológica. Em um livro escrito para acompanhar a leitura do Seminário 11, do artigo A relação entre a voz e o olhar retiramos a citação de que:

[...] não há uma relação fixa entre o gênero de alguém e seu sexo biológico no inconsciente. O que tomamos por relacionamentos depende do mito de uma relação “natural” entre os sexos. Mas no inconsciente, no reino da fantasia, nós nos identificamos, não com o gênero, mas com o olhar que primeiro estrutura alguém como sujeito do desejo, procurando reencontrar um gozo perdido (RAGLAND apud FELDSTEIN, FINK, JANUS, 1995, p. 197).

Foi nesse mesmo Seminário 11 que Lacan enunciou ser a “[...] pulsão invocante, que é a mais próxima da experiência do inconsciente” (LACAN, 1973, p. 96, tradução nossa). Nas explicações para as transexualidades através das muitas propostas lacanianas, não encontramos referências à pulsão invocante. Então, depois de desdobrar as ideias de Stoller, retornaremos a essa pulsão.

 

Do primado do falo ao feminino primário

Freud foi sempre acusado de falocentrismo. De ter construído sua interpretação da sexualidade feminina como uma versão incompleta e até castrada da masculina. Mutilação da qual a menina acusa sua mãe de não a ter defendido. E da qual meninos e homens passam o resto da vida se protegendo. Embora tenha sempre defendido a bissexualidade, para Freud, o único órgão sexual reconhecido pela criança nos dois sexos era o órgão masculino. A menina apenas descobre que é um menino com um pênis muito pequeno. Durante décadas Freud também postulou que a libido, por ser uma força ativa, era masculina, mesmo na mulher. Mas o impacto da leitura do artigo de Melanie Klein sobre o Édipo precoce abalou suas convicções. O que se reflete nos seus textos Sexualidade feminina (1931) e Conferência XXXIII: Feminilidade (1933 [1932]). Na conferência admitira que a equação entre atividade e masculinidade, bem como seu correlato lógico, feminilidade e passividade, não procedia. E que:

Existe apenas uma libido, que tanto serve às funções sexuais masculinas, como às femininas. À libido como tal não podemos atribuir nenhum sexo (FREUD, [1932] 1996, p. 130).

Se a libido não é privilegiadamente masculina e se o objeto primeiro kleiniano é o seio materno, é fácil compreender a dedução de Robert Stoller de que:

Consideremos agora essa possibilidade: o que Freud pensou que fosse uma qualidade elementar, “protesto masculino” ou “repúdio à feminilidade” nos homens, ao invés de ser o reflexo de uma força biológica, é uma manobra defensiva, inteiramente não biológica, contra um estágio primitivo de proximidade e identificação anterior com a mãe. Comparativamente em mulheres, anterior à inveja do pênis em meninas, existe um estágio de feminilidade primária (STOLLER, 1982, p. 11, grifos e itálicos do autor).

E assim, ao contrário do primado freudiano do masculino, Stoller retira um termo da etologia, e defende o oposto: um imprinting feminino primário. Contudo, embora seus livros se fundamentem em vasto material clínico, Stoller deixou em aberto vários aspectos teóricos de sua descoberta.

A leitura de outros autores permitiu que separássemos feminilidade primária de identificação feminina primária. Também desdobramos o conceito de imprinting, termo cuja tradução correta em português seria ‘cunhagem’, como ocorrendo em dois momentos. Repetimos aqui a descrição do primeiro momento.

Por feminilidade primária incluímos tanto o seio bom kleiniano, mas ainda como pré-objetal ou mesmo anobjetal, que se alterna com a descrição de Winnicott de que através dessa forma de relação, denominada de elemento feminino puro, mãe e bebê em conjunto estão sendo, e o bebê crê que o seio é criação sua. Por longos momentos não há o contato de duas peles, porque ainda através dessa forma de relação mãe e bebê em conjunto estão sendo. Não há separação entre dois seres diferentes. Ser é conter dentro de si e gestar, depois uma alternância entre um cuidar ativo e uma passividade criativa (LOPES, 2017, p. 65).

A função materna é colocar-se como espera que permita ao bebê desabrochar sua singularidade: ser em oposição a um posterior fazer. Conter, gestar, cuidar, qualidades que serão sempre vistas como femininas. De um feminino que surge como protetor e guardião da pulsão de vida, que possui acesso privilegiado a tudo que é interior, como ao sentir dentro de si a subjetividade. Características que serão sempre depois associadas ao feminino, embora não se trate ainda de um feminino binário, isto é, que exista em oposição a um masculino.

Para explicar o primeiro momento de constituição do imprinting, temos a metáfora da fabricação da matéria de que é feito um carimbo, que ainda não possui a placa de metal ou plástico com os dizeres que nomeiam seu uso, mas primeiro tem de ser feito bem sólido para ser utilizado. Se não se consolidar a feminilidade primária, teremos o âmago para as psicoses e os autismos. Tal qual uma bandeira ou estaca, o falo não pode ser fincado no barro. Não há significante que se estabilize. Não há totem que fique em pé. O que dá para entender, mas não para justificar, a confusão de tantos psicanalistas, seja por preconceito disfarçado, seja por falta de observação clínica, entre casos de transexualidade e sintomas de um psicótico como Schreber.

O segundo momento seria o da identificação feminina primária, compreendendo uma etapa posterior ao feminino primário. Aos poucos, aumenta a alternância com momentos cada vez mais longos, em que já existe um contato de pele entre duas individualidades separadas. E o seio bom inicia a constituição do núcleo inicial do ego. Já ocorre um reconhecimento de que o contato de pele prolongado é entre dois seres distintos. Como descreveu Freud, já que não se pode ter, passa-se a ser como. O objeto metamorfoseia-se em identificação. Núcleo inicial da identidade de gênero feminina: ‘ser como a mãe’. Primeiro momento do imprinting feminino primário. Momento em que é colocada a placa no carimbo, antigamente de metal, hoje de plástico, que doravante marcará todo o ser e todo o fazer. Mas agora em direção oposta à fusão materna original, e sim na direção de um feminino como possibilidade de conter e gerar a diferença, bem como aprofundar a singularidade e a interioridade.

Em um terceiro momento, após o ápice da identificação feminina primária, há o aumento de algo que se intromete cada vez mais entre a relação mãe/bebê: a função paterna. Este terceiro momento constitui o início do processo edípico clássico e inicia a desidentificação com o feminino primário. Nesse terceiro momento também ocorre um segundo tempo do imprinting, em que a identificação feminina primária pode ser recalcada e ressignificada em identificação masculina, transformando a identidade de gênero feminina em identidade de gênero masculina. Mas também pode ocorrer reforçando a identidade de gênero feminina. Assinale-se que esse terceiro, essa função ‘pai’, não se refere necessariamente ao pai biológico. Pode ser realizada por alguém do mesmo sexo biológico da mãe, ou até mesmo pela própria mãe, igualmente biológica ou não, através da imago consciente e inconsciente que dentro de si traz da função paterna.

Trata-se de um segundo tempo do imprinting em que a primeira cunhagem da placa do carimbo pode ser reforçada ou substituída. E um primeiro momento da triangulação edípica. Importante para a explicação das transexualidades de pessoas do sexo biológico feminino para o masculino. Explicando também o porquê da sua frequência estatisticamente bem menor.3 Mas sem dúvida, tanto o reforço da identidade de gênero feminina quanto a translação em identidade de gênero masculina seriam fruto do primeiro momento de entrada na triangulação edípica.

Aqui podemos responder à questão colocada ao início do texto por Birman, de que estaria ameaçada a psicanálise pela contestação ao núcleo de seu paradigma, o complexo de Édipo. O terceiro do triângulo edípico se trata de uma função que independe do sexo biológico de quem a traz. E que se ancora sobre uma constituição do ser e de uma identificação feminina primárias, que também podem ter sido exercidas por pessoas que pertençam a qualquer um dos ensembles que constituem a sexualidade. As transexualidades nos mostram que falo se separa realmente da confusão concreta com pênis. Desse modo, além do real e do gozo, o falo prescinde de qualquer resto biologizante, mesmo o do aforisma kleiniano de que “o pênis do pai é herdeiro do seio da mãe”.

Citamos Márcia Arán, precocemente falecida e uma das principais pesquisadoras brasileiras sobre transexualidades, para responder como pode a compreensão das transexualidades superar um dos desafios à psicanálise neste século XX, tema deste congresso:

Se antes a primazia do pênis/falo era considerada o eixo pelo qual se definia o simbólico, ou mesmo uma trajetória subjetiva, agora a crise desse fundamento exige um novo arranjo teórico que dê conta do que está por vir. [...] A própria escolha do falo como significante do desejo indica uma posição sexuada de quem só pode conceber o feminino em função da exclusão. [...] A feminilidade surge então como uma potencialidade para o pensamento psicanalítico, sugerindo um percurso teórico, que a partir do feminino, incide sobre a singularidade (ARÁN, 2003, p. 253-254).

O quarto momento do conjunto de traços e identificações da sexualidade humana é do segundo momento edípico, o da entrada no complexo freudiano clássico. Em realidade propomos que, depois do primeiro tempo da triangulação edípica, em que se firma a identidade de gênero, seja este segundo tempo do Édipo o definidor da prevalência de uma escolha objetal. Com todas as variações possíveis, desde a bissexualidade freudiana, até muitas crianças que antes dos dois ou três anos, que já apresentam escolhas objetais definidas para a vida inteira. Escolhas que também podem ser confirmadas ou refeitas na adolescência ou no início da idade adulta. Um modelo com vários momentos de fazer e refazer a escolha objetal facilita a compreensão dos vários graus da bissexualidade proposta por Freud e pesquisada por Kinsey.

Dessa forma, as escolhas objetais podem apresentar todas as combinações possíveis em relação à identidade de gênero. Da mesma forma que podem até mesmo se expressar de modo variável ao longo da vida em pessoas cuja identidade de gênero está em concordância com o sexo biológico, também podem ou não mudar no caso de transexuais.

Em paralelo ao feminino primário, à identificação feminina primária e às escolhas objetais, existe um quarto item: o investimento narcísico e traumático nos genitais. Apesar de os genitais biologicamente serem passíveis de alto grau de sensibilidade no bebê, esta pode ser incentivada ou recalcada tanto pela manipulação concreta quanto pelas fantasias inconscientes da mãe e outros cuidadores.

André (1996) escreveu muito sobre a manipulação concreta de adultos não perversos, francamente ativa e necessária para limpeza e higiene de bebês e crianças pequenas. Cuidados exacerbados por muitos que cuidam de crianças, colocando-as em total posição de passividade, desde seios e mamadeiras que literalmente invadem o bebê até cuidados de limpeza em que ele sofre de uma manipulação tão intensa que literalmente ele é arrombado (tradução correta de effraction, termo muito usado por André). Passando por truques como fechar com os dedos o narizinho do bebê turrão, obrigando-o a abrir a boca, para enfiar-lhe uma colherada de comida. A tudo isso soma-se a “confusão de línguas” tão famosa descrita por Ferenczi. Sempre se referindo a adultos não perversos, André coloca como inevitável, e em sua esmagadora parte inconsciente, que a sexualidade adulta do adulto seja percebida e traumática ao bebê ou criança pequena (LOPES, 2017, p. 67).

Apesar da enorme sensibilidade orgânica dos genitais, fato biológico que ocorre desde o bebê, a ela se superpõe uma combinação inevitável de narcisismo e trauma. Os genitais e todas as protuberâncias do corpo (Freud) e as bordas de todos os orifícios (Lacan) podem ser investidas em vários graus ou não. Todas dependem de investimento narcísico e fantasias inconscientes e conscientes da mãe e cuidadores, sendo reforçada por manipulações genitais diretas, em ambos os sexos e necessárias à higiene do bebê. Desse modo, a preferência de sexo genital, bem como o erotismo de todo o resto do corpo, torna-se um quarto item em todas as combinatórias possíveis com a identidade de gênero, a expressão de gênero e a escolha objetal. Surge o mundo de diversidades, no qual traços identificatórios vão formando conjuntos, ensembles, que permitem tantas combinações quantas singularidades existirem.

 

Do feminino primário à pulsão invocante

Proporemos uma interpretação das transexualidades e da formação do núcleo da identidade de gênero a partir da

[...] pulsão invocante, que é a mais próxima da experiência do inconsciente (LACAN, 1973, p. 96, tradução nossa).

Embora pouco tenha sido falado nos Seminários, Lacan acrescenta um pequeno, mas importantíssimo detalhe sobre o ouvido e a escuta:

[...] a pulsão invocante que tem, como incidentemente já lhes disse [...], o privilégio de não poder se fechar (LACAN, 1973, p. 182, tradução nossa).

A partir dos textos de Didier-Weil sobre essa pulsão e a música, escrevemos dois artigos sobre o mesmo tema (LOPES, 2006, 2013). A pulsão invocante tem sido muito trabalhada na clínica com crianças do espectro autista. E também podemos pensar o seu uso na releitura do tratamento de um paciente adulto em caso grave de esquizofrenia catatônica (KARLIN, 2014).

Retornamos ao ponto de que, se a invocação não consolidar o ser, teremos o âmago das principais causas das psicoses e dos autismos. Porém, duas condições resultam de uma inscrição deficiente ou uma não inscrição primordial do traço unário, em que o sujeito do inconsciente não advém plenamente. Nas transexualidades ele advém, mas por um resultado final de inscrição e de um significante em que se articula um núcleo de identidade de gênero diverso ao convencional do sexo biológico

Os adultos cercam de sons o bebê e usam da musicalidade das palavras para chamar-lhe a atenção. O ‘manhês’ nomeia o idioma muito particular e diferente para cada bebê, com o qual a mãe cria uma comunicação de sons, palavras e expressões, combinados com olhares, toques e cheiros. Façamos a ressalva de que a função materna não é necessariamente ocupada pela mãe biológica, nem exclusiva do sexo feminino. Pais, tios, avós, todos se dirigem ao bebê através de dialetos desse idioma. A partir de algumas semanas o bebê começa a inventar e expandir sua versão: a ‘lalação’. O ‘manhês’ e seus dialetos devem ser prenhes da pulsão invocante, que ativa a cadeia significante no processo de formação do sujeito.

Segundo Didier-Weil antes daquilo que chamamos de trauma, o sujeito ‘fala’ e ainda não é sexuado.

Ele tem, na origem, uma relação à palavra que vem do Outro, e que não tem o caráter do sexo porquanto o Outro não é sexuado (DIDIER-WEIL, 1998, p. 41).

A pulsão invocante tem uma função fundante e originária, que será sempre comemorada pela música ao longo da vida. Apesar de advinda do único orifício que não pode ser fechado, ela é não invasora, e sim produtora de um sim absoluto, que ainda não concebe nenhum ‘não’ porque, como Freud ([1925] 1996) descreveu em sua primeira tópica e no artigo da A negativa, ainda não existe recalque que produza este ‘não’. E segundo Didier-Weil,

[...] coloca-nos sobre a pista do que é o sentido verdadeiro da Bejahung. [...] ela liberta o enunciador desse ‘sim’, o sujeito do inconsciente, do não-ser, para fazê-lo advir à existência [...] uma inscrição primordial, sem a mediação do imaginário, do simbólico no real, somos levados a reconhecer o Traço unário de Lacan. Assim somos levados a localizar no Traço unário o surgimento desse elemento musical mais “simples” que é uma nota escandida. A nosso ver, o infans percebe esta nota na música da voz da mãe antes de perceber o sentido dos fonemas (DIDIER-WEIL, 1997, p. 237, 238, 240-241).

A pulsão invocante explica de maneira muito mais profunda o que descrevemos da construção do ser antes do fazer no bebê: a feminilidade primária. A criação da matéria com a qual é feita o carimbo para o imprinting. O psicanalista José Outeiral, grande conhecedor da obra de Winnicot no Brasil, já falecido, em palestra no CBP-RJ muito discorreu sobre a necessidade de a mãe e as pessoas no entorno do bebê o investirem de libido. Lembramos de suas palavras: “O bebê acabou de sair do nada, há uma força e uma tendência muito fortes que o atraem de volta”.

Quando e qual seria o momento em que haveria a passagem do feminino primário para a identificação feminina primária? Talvez a identificação com a mãe, já reconhecida como um objeto parcial mais integrado e já nomeado com o significante ‘mã’, relatado como o primeiro em todos os idiomas. Momento em que o movimento labial de sucção do seio, que se afasta ou se recusa, e cuja ausência é reconhecida e preenchida pelo bebê por um som. Que procede da ‘lalação’, formando o primeiro significante claramente reconhecível pelos adultos. E hoje vemos a identificação feminina primária quando da observação de um bebê de três meses e meio, que ficava longo tempo brincando com sons e gritinhos, que não se dirigiam a ninguém no meio ambiente.

E os gritinhos o que eram? Talvez um pouco autoeróticos, pelo puro prazer na produção de sons pela faringe, [...]. Talvez um tanto narcísicos por esboçarem o início da unidade de um eu corporal (os movimentos associados do corpo todo) que, como postulou Freud, é o modelo para o eu psíquico. Uma espécie de autonarcisamento auxiliando a constituição de um todo. E como para Klein o desenvolvimento do eu e do objeto é paralelo, os gritinhos também seriam um pouco objetais por já conter em si um tanto da pulsão invocante, isto é, um tanto da mãe internalizada. Não mais mero som, mas produto de uma voz, isto é, de uma subjetividade, já um pouco objetal, e não mais apenas pré-objetal, uma vez que mãe já não seria apenas o seio kleiniano ou uma função, mas percebida como um alguém coemissor da pulsão [invocante] (LOPES, 2013, p. 18-19).

Em o Ego e o Id, Freud fez uma menção direta ao homúnculo, vestígio de seus estudos de medicina, e estabeleceu um vínculo entre o eu corporal e o eu psíquico sempre muito mencionado:

O eu é, primeiro e acima de tudo, um eu corporal; não é simplesmente uma entidade de superfície, mas é, ele próprio, a projeção de uma superfície. Se quisermos encontrar uma analogia anatômica para ele, poderemos identificá-lo melhor com o ‘homúnculo cortical’ dos anatomistas, que fica de cabeça para baixo no córtex, estira os calcanhares, tem o rosto virado para trás e, como sabemos, possui sua área da fala no lado esquerdo (FREUD, [1923] 1978, p. 26, tradução nossa).

Observações pessoais de bebês forneceram um exemplo, entre centenas de outros possíveis, de como experiências ao início da primeira infância formam o enredamento das imagens, do simbólico e do real para a construção e do elo entre o self e o corpo bebê. Podem inclusive ilustrar uma das muitas possibilidades, conjugada com muitas outras, que explique a criação da identidade e as expressões de gênero.

O homúnculo sensório-motor ou “homúnculo de Penfield”, descrito de modo mais profundo na primeira metade do século XX pelo neurocirurgião Wilder Penfield, é um mapa das áreas corticais dedicas à sensibilidade e ao controle motor do corpo. Uma imagem corporal inconsciente que o ser humano tem de si mesmo. Colocado em desenho, forma um ser muito disforme semelhante aos elfos e anões dos contos de fada ou filmes de fantasia contemporâneos. Há dois desenhos: um do homúnculo sensorial e outro do motor. E ambos formam figuras com uma cabeça muito grande em relação ao resto do corpo, contudo o que chama mais atenção é como os lábios são enormes, e as mãos, gigantescas em relação ao resto do corpo, formando uma imagem grotesca. Não fica muito atrás a área motora necessária para a vocalização.

No homúnculo sensorial a faringe e a língua ocupam uma grande área. E se pensarmos nas diversas outras áreas cerebrais, além das do homúnculo, implicadas na linguagem, compreende-se por que os vários componentes da linguagem são os que, em funcionamento, mais unificam o funcionamento simultâneo de várias áreas corticais. Contudo, no homúnculo os lábios e as bochechas e as pontas dos dedos são as que aparecem com maiores áreas, uma vez que refletem as partes mais sensíveis do nosso corpo. São dotadas de mais receptores sensoriais por centímetro quadrado do que qualquer outra superfície do corpo, ocupando, portanto, uma área desproporcionalmente maior do córtex (SABATTINI, 2017).

O homúnculo sensorial é muito bem-dotado por um grande pênis e testículos. Apesar de grande área sensorial, os genitais masculinos não excitados representam uma superfície muito inferior à das mãos. Não descobrimos nenhum relato ou descrição do homúnculo sexualmente excitado. Curiosamente, entre dezenas de figuras consultadas, também não há quaisquer representações sexuais femininas.

Muito se fala há mais de século das fases oral, anal e fálica. Mas não conhecemos nada de uma psicanálise que disserte sobre a ontogênese e a filogênese da mão. A diferenciação e a oposição completa do polegar aos demais dedos constitui um dos grandes diferenciais evolutivos em relação aos nossos primos primatas. Observa-se em bebês e crianças em todas as fases clássicas do desenvolvimento, que a mão é um auxiliar intensamente usado em todas fases do desenvolvimento psicossexual. Se a linguagem é a função que ocupa o maior número e espaço de áreas corticais, pouco é lembrado que a mão não fica atrás.

Pensemos no uso das mãos do bebê, já corticalmente predispostas, para formação do homúnculo, desenho que é popularmente descrito como ‘o mapa cortical de nossa humanidade’. As mãos, ao início da vida, pouco mais são do que uma extensão da superfície de pele e toque do bebê, ampliando o contato sensorial de todas as formas no momento que denominamos de feminino primário. Toques junto com a troca de olhares, sons, odores entre o adulto e o bebê. Seja pela mãe, seja por outros, que também sempre invocam a pulsão pela fala.

Em algum momento mítico a simbiose dá maior lugar à alteridade. Ficam mais reconhecíveis as brincadeiras entre dois seres, que iniciam a dialética de aos poucos se reconhecer como separados e da construção de objetos e identificações. Um momento mítico em que o feminino primário vai se tornando uma identificação feminina primária. Desse jogo podemos dar o exemplo das mãos.

É uma brincadeira comum das mães e muitos outros cuidadores pegar as mãozinhas ou os pés fechados do bebê e envolvê-los apertando dentro das próprias mãos do adulto. E também a brincadeira oposta: o adulto colocar à disposição do bebê os dedos indicadores, para o que o bebê os contenha e aperte dentro de suas mãozinhas. Às vezes o adulto coloca as mãos ou os pezinhos do bebê dentro de sua boca e brincar de que vai comê-los. Ao invés de pânico, o bebê se contorce todo em risos. Claro que nada disso ocorre em silêncio. Constitui exemplo clássico do maior número possível de baboseiras ditos em ‘manhês’ e ‘lalação’. Num dizer que é mais canto que prosa. Um nome conhecido na clínica psicanalítica de bebês e no estudo de crianças autistas corrobora as observações acima, com um adendo essencial:

Na clínica dos bebês isso é muito evidente, o “se fazer chupar” é um jogo que bebês gostam muito: de dar o pezinho e a mãozinha para ser chupado pela mãe, ou empurrar a barriguinha para cima, para a mãe dar um beijo, mordiscar o bebê, como se diz. Mas é muito importante destacar que o que interessa ao bebê é se ele fisgou ou não o gozo do Outro (LAZNIK, 2013, p. 193).

Temos aqui um exemplo mais claro da pulsão invocante. Com a libido do adulto doando o ‘tesouro de significantes’ a uma parte importantíssima do corpo do bebê. O que era só corpo biológico recebe seu traço unário. Investimento direto nas mãos, órgão que nos diferencia de nossos primos primatas, pela completude da apreensão feita pelo polegar, completamente diferenciado e opositor dos demais dedos. Além do uso prático, há o uso erótico e autoerótico das mãos, que perdurará a vida inteira. Contudo, o uso para os interesses do eu tanto quanto o uso libidinal (outro ponto de anáclise) se torna possível pela confluência dos três registros do nó borromeano. O puro registro do real do corpo não funciona se não for dotado de uma totalidade especular pelo imaginário e revestida (ou duplicada?) por significantes. Estes passarão sempre a tentar apreender entre os dedos do corpo concreto uma quantidade infinita de objetos, que jamais recuperarão aquele primeiro perdido para sempre: o som da voz, o toque da pele, algum cheiro sentido ao mesmo tempo, a inscrição feita pela força da mão materna e dos outros que a cercaram.

A brincadeira com as mãos ou os pés do bebê repete-se inúmeras vezes. Desde os textos sobre histeria na década de 1890, Freud discorre que não é um único episódio traumático – bom ou mau – que causará alguma marca ou sintoma. Eles se encaixam uns dentro do outro como bonecas russas. E muitas vezes só se tornam significativos com ressignificações posteriores da criança. Podemos reler Freud nos Três ensaios. No terceiro ensaio Freud amplamente disserta sobre a função que usualmente é atendida pela mãe ainda na fase oral do bebê, que para ele é uma fonte incessante de excitação e satisfação sexuais vindas das zonas erógenas, ainda mais que essa pessoa, usualmente, a mãe

[...] o encara com os sentimentos derivados de sua própria vida sexual: ela o acaricia, beija e embala, e claramente o trata como o substituto de um completo objeto sexual. [...] A mãe está apenas cumprindo seu ofício de ensinar o filho a amar. (FREUD [1905] 1996, p. 120, tradução do autor).

O jogo com mãos e pés do bebê é um dos muitos exemplos que podem ser diretamente observados. Assim como nessa brincadeira, em todas as demais, mesmo quando desprazerosa, qualquer excitação infantil e adulta de maior intensidade, a curto ou médio prazo, sempre transborda para excitação genital. E que a pulsão invocante forma uma série complementar, em que sendo todo gozo sexual traumático por não encontrar significantes e significados prévios, complementa aqueles doados pela mãe com aqueles previamente inseridos no bebê a partir do trauma do nascimento, quiçá antes. Podemos conceituar dezenas de exemplos de como a imagem corporal, revestida de significantes, corporifica-se em significados. Que formam a representação inconsciente do corpo. Lembrando que a colagem entre significante e significado é construída de modo arbitrário social e individualmente. Pode-se, assim, observar e pesquisar o modo como nosso corpo inconscientemente se constrói para o mundo, com a predominância da linguagem inconsciente inscrita no corpo acima dos fenômenos fisiológicos

Desse modo, também podemos criar hipóteses sobre a simbologia das mãos, que por deslocamento pode ser extrapolada aos genitais. Ter a mão inteira contida pela oposição do outro. Conter e apertar todo o dedo do outro em sua mão. Penetrar e ser contido, inclusive a ter a própria agressividade refreada. Possuir dentro de si e conter, sem destruir ou devorar. Simbologias do masculino e do feminino. Não se trata de uma simbologia tão somente, e nem mesmo primordialmente, determinada pelo sexo biológico. Nem mesmo feita apenas de significados vindos do Outro, que foram arbitrária e precariamente unidos a significantes, por mais fortes e estáveis que criem a ilusão de ser. E sim uma construção feita por inúmeras repetições, de significados e significantes moldados pela sexualidade adulta e infantil da mãe e outros cuidadores, pelas suas oralidades amorosas e agressivas. Pessoas que também foram moldadas pelo contexto sociocultural de sua infância e que sofrem as vantagens e as vicissitudes do meio ambiente.

O exemplo da brincadeira com as mãos de um bebê é apenas um entre os muitos que podem ser pesquisados na observação prática. Um vasto conjunto que estabilize o sentimento de ser e do self por meio da identidade de gênero nuclear. No ofício analítico com frequência se esquece de que análise é a análise da primeira infância.

 

Conclusão - além do binarismo e da transcendência

É provável que Melanie Klein ou algum de seus discípulos indagasse: e como tudo isso se encaixa na luta entre a pulsão de vida e a pulsão de morte dentro do bebê? Antes de uma resposta, winnicotianos responderiam: a pulsão de morte não existe. Mas ainda temos o primeiro dos binarismos pulsionais, o primeiro do próprio Freud, que em pouco tempo, ele mesmo viu que não funcionava plenamente. E toque-se o conceito de apoio ou anáclise (anlehnung).

Pensemos nestes e em outros binarismos quando aplicados à sexualidade humana como construções semelhantes a partir montagem de ensembles: ter ou ser o falo, gozo feminino e gozo fálico, ativo e passivo, conter ou ser contido, sadismo e masoquismo. Conjuntos que podem se inscrever na predisposição orgânica binária de um corpo que é ser XX ou XY. Ou não. Binarismos que didaticamente são descritos como essências transcendentes e opostas. Como se fossem dualidades perfeitas, cada um dos lados em oposição perfeita ao outro. Só que nenhum ser humano situa-se na combinação perfeita de todos esses extremos didáticos. Fixar o humano em leis e dualismos transcendentes é papel das religiões monoteístas. A mesma lógica transcendente usada quando é afirmado que tal ou qual comportamento é “natural” ou “contra natureza”. Lógica transcendente que – até graficamente - embasa a fórmula da sexuação. Aos psicanalistas cabe refletir sobre que transferências recíprocas causam que fundamentos transcendentes sejam aplicados à clínica. Agora a crise desses fundamentos exige um novo arranjo teórico que dê conta da sexualidade humana.

Para terminar, podemos em parte tirar algumas palavras de Arán de seu contexto e propor que o desafio da psicanálise do século XXI, saber muitas vezes acusado de ser uma vertente laica para perpetuação do patriarcado ocidental,

[...] exige um novo arranjo teórico que dê conta do que está por vir [...] pensar um espaço do simbólico que não se constitua por nenhuma forma de elevação em relação ao mundo sensível e não exclua a diferença exige pressupor o exercício da alteridade no plano da imanência (ARÁN, 2003, p. 253, 256).

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: anchyses@terra.com.br
Página: http://www.anchyses.pro.br

Recebido em: 5/01/2018
Aprovado em: 17/01/2018

 

 

SOBRE O AUTOR

Anchyses Jobim Lopes
Médico e bacharel em filosofia pela UFRJ.
Mestre em medicina (psiquiatria) e em filosofia pela UFRJ.
Doutor em filosofia pela UFRJ.
Psicanalista e membro efetivo do Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro (CBP-RJ).
Professor do curso de formação psicanalítica do Centro de Estudos Antonio Franco Ribeiro da Silva do CBP-RJ.
Supervisor clínico do Centro de Atendimento Psicanalítico (CAP) do CBP-RJ.
Coordenador do Grupo de Trabalho Sobre Neo e Transexualidades (GTNTrans) do CBP-RJ.
Um dos editores da revista Estudos de Psicanálise, do CBP.
Presidente do CBP-RJ 2000-2004, 2008-2012 e 2014-2018.
Presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP), 2004-2006 e 2017-2019.
Ex-professor assistente do quadro principal do Departamento de Psicologia da PUC-RJ e adjunto da Faculdade de Educação da UCP.
Professor titular III dos cursos de graduação em psicologia e de especialização em teoria e clínica psicanalítica da UNESA.

 

 

1Apreciamos a expressão “transferência recíproca” para designar contratransferência, usada nas Obras Completas de Sigmund Freud, 10 volumes, Editora Delta, 1958. Coleção foi usada antes do surgimento das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, pela IMAGO.
2XXXV Jornada de Psicanálise do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais A falta está fazendo falta, Belo Horizonte (MG), 22-23 set. 2017.
3Stoller levantou a questão desta frequência muito menor, o que também resulta em menos casos a ser estudados. Sua explicação para tais casos é factível, mas não pode ser tratada como exclusiva.

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