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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.48 Belo Horizonte July/Dec. 2017

 

SELETA DE COMUNICAÇÕES

 

 

Considerações iniciais sobre a melancolia

 

Initial Comments on Melancholy

 

 

Gabriela Lazarini

I Círculo Psicanalítico da Bahia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O interesse em estudar a melancolia se justifica pela crença de que ela carrega um enigma, que nos coloca diante de sujeitos que parecem trazer as chaves para os mistérios da existência. Esse enigma se estende, não se restringe aos impasses clínicos, às dúvidas quanto a estrutura psíquica por detrás de um discurso, às perguntas quanto ao que fazer quando as queixas são escassas, e uma história de dor e de perda é contada num tom de indiferença. Enigma compartilhado entre os campos das artes, cultura, filosofia, ciência e psicanálise. Há uma relação entre os modos de saber desenvolvidos pela ciência moderna e o aparecimento de subjetividades marcadas por fortes traços depressivos? O que a psicanálise tem a dizer nesse início de pesquisa a respeito do que hoje nomeamos depressão? Esses são os pontos de partida deste trabalho.

Palavras-chave: Melancolia, Luto, Mania, Narcisismo, Falo, Desejo.


ABSTRACT

The interest in studying melancholy is justified by the belief that it carries an enigma, which puts us in front of subjects who seem to bring the keys to the mysteries of existence. The enigma that extends, not limited to clinical impasses, doubts about the psychic structure behind a speech, questions about what to do when complaints are scarce and a history of pain and loss is told in a tone of indifference. Enigma shared between the fields of arts, culture, philosophy, science and psychoanalysis. Is there a relation between the modes of knowledge developed by modern science and the appearance of subjectivities marked by strong depressive features? What does Psychoanalysis have to say in this early research about what we current call depression? These are the starting points for this work.

Keywords: Melancholy, Mourning, Mania, Narcissism, Phallus, Desire.


 

[...] já que é presumível que a experiência analítica seja minha referência essencial quando me dirijo à plateia que vocês compõem, a ideia que podemos fazer do ensino deve sofrer um certo efeito, afinal, do fato de que o analista, não podemos esquecer, é, se assim me posso expressar, um interpretador [inter-preta-dor].
LACAN, [1962-1963] 2005, p. 25.

Objeto de estudo ao longo do tempo, a teoria dos quatro humores domina o campo do saber e do conhecimento acerca da melancolia na Antiguidade, além de marcar o fim da medicina como derivação do misticismo e retirar da doença seu estatuto de sagrado.

Hipócrates é quem inaugura a ciência baseada na observação clínica. As doenças deixam de ser compreendidas segundo as leis da religião e passam a significar o resultado de um desequilíbrio humoral.

Cada um dos quatro humores, com suas peculiaridades, se faz presente na constituição dos seres. A predominância do sangue, quente e úmido, é causa dos tipos fisiológicos sanguíneos. Já a predominância da fleuma, fria e úmida, é causa dos tipos serenos. Em decorrência do predomínio da bílis amarela, quente e seca, respondem os tipos coléricos. E, finalmente, quando se trata do humor da atrabile, mais conhecida como bílis negra, fria e seca, temos os melancólicos.

Melancolia é um termo grego (/melagcholía), que tem na junção das palavras mélas (negro) e cholé (bílis) seu sentido literal. É caracterizada assim por Hipócrates: “[...] o medo e a tristeza persistem por muito tempo” (PERES, 1996, p. 14). Vincula-se a um dos quatro humores naturais do corpo, por isso pode sofrer excessos, deslocamentos, se corromper ou inflamar.

Aristóteles foi quem questionou sobre o que faz com que homens reconhecidos como excepcionais nos campos da filosofia, política, artes e literatura tenham como marca a tristeza, beirando a insanidade. Chegou à conclusão de que “homens de exceção” teriam uma predisposição, numa justaposição e interdependência entre as noções de melancolia como traço de caráter e melancolia como enfermidade.

A ideia fixa, característica da produção reflexiva, é o dado diagnóstico para a melancolia, definido por Aristóteles: pressupõe um esgotamento ao atribuir à atividade intelectual a consequência da inibição ou inércia corporal. A ideia fixa é um dado diagnostico presente até os dias de hoje nos manuais psiquiátricos.

Aristóteles considerou que as oscilações do humor variam de acordo com as reações de pânico típicas dos melancólicos, variações que correspondem às oscilações entre os elementos quente e frio na bílis negra.

Peres (1996, p. 18) explica:

[...] se uma má notícia chega em momento de osmose fria, irá gerar temor, pois o medo gela, produz o temor dos temerosos; se o momento for quente haverá moderação e autocontrole.

Enfim, para Aristóteles, a possibilidade de um equilíbrio nessa variação entre o quente e o frio é que diferencia os melancólicos uns dos outros, que os distingue e os faz seres “excepcionais por natureza e não por doença” (PERES, 1996, p. 19).

Na Idade Média, o melancólico é visto como um ser de alma adoecida por permanecer afastado de Deus. As doenças, assim como toda a perda de razão ou estados de loucura, são justificadas “num fundamento religioso, místico e supersticioso”, que as converge em “obras demoníacas” (SANTA CLARA, 2009, p. 4). O distanciamento da fé é causa da “acedia”, termo que designa tristeza profunda, desânimo, preguiça – um ‘sinal de punição’ acarretado pela ausência de Deus.

Uma vez inerente à natureza sublime dos gênios, adivinhos e artistas a melancolia tornou-se responsável pela avareza, pela ganância, pelo medo e pela deslealdade. Os excessos, intimamente ligados ao feminino, foram condenados como bruxaria. E não só as mulheres podiam ser queimadas em fogueiras, mas também os feiticeiros e os necromantes.1

Embora o conflito e as teorias de Hipócrates e Aristóteles predominassem na Idade Média e Renascença, ao lado da crença do abandono de Deus, um jogo de oposições entre os elementos humorais passou a situar a melancolia noutro registro de compreensão; num jogo de contrastes primeiramente marcado por uma oposição de afetos que acabou por se mesclar (PERES, 1996).

No mito de Adão e Eva, o alquimista suíço Paracelso, fez do cruzamento entre os humores a causa da transmissão da significância dos sentimentos entre as gerações.

[...] a alegria e a tristeza também nasceram de Adão e Eva. A alegria foi atribuída a Eva e a tristeza a Adão [...]. Depois, as duas matérias contidas em Adão e Eva se misturam, de tal modo que a tristeza foi temperada com a alegria e a alegria com tristeza... A ira, a tirania e a violência, da mesma forma que a doçura, a virtude e a modéstia, também derivam deles: as primeiras de Eva, as segundas de Adão, e mesclando-se, foram transmitidas a seus descendentes (TEOPHASTUS PARACELUS, ERSTER THEIL DER BUCHER UND SCHRIFFREN, 1958 citado por PERES, 1996, p. 20).

Urania Peres (1996, p. 20) analisa a citação de Parcelso:

Adão, primeiro homem, é depositário da tristeza e será Eva o primeiro semelhante, o outro especular que lhe trará alegria. É ao contemplar o outro e nele se reconhecer que o júbilo faz a sua aparição na ‘fase do espelho’. Em Adão e Eva o primeiro encontro especular, e a tristeza e a alegria fizeram sua presença.

A astrologia, fonte de conhecimento e cultura, define o melancólico por sua inclinação em se aventurar em grandes viagens, tendo o mar como horizonte. Saturno, o planeta mais alto e mais afastado da terra, é regente dos melancólicos, responsável por toda a contemplação profunda que convoca a alma para a vida interior e a afasta das exterioridades (PERES, 1996).

Saturno é o demônio das antíteses, investe a alma com preguiça e apatia em contrapartida da força e da inteligência advindas da contemplação. Exerce influência não em pessoas vulgares, mas apenas em seres extraordinários, divinos, bestiais, felizes ou acometidos pela mais profunda miséria.

Peres (1996, p. 22) afirma:

O complexo Saturnino é a grande reação de recusa de perder aquilo a que nos ligamos sucessivamente ao longo da vida, a fixação cristalizada na infância, o desmame. As situações diversas de frustrações afetivas, que levam a uma exasperação da avidez sob várias formas [...], ligam o aspecto canibalesco do mito ao tema de Cronos devorando os seus próprios filhos.

Junito de Souza Brandão (2000, p. 198) escreve que, na mitologia, Cronos (Xpóvoç/Khrónos) é quem representa o tempo personificado, a ideia do tempo como uma via que perpassa fases de pura ambivalência, de euforia e fertilidade, de mutilação e esterilização, nas quais o destino é o entusiasmo e a morte; componentes sempre presentes nos sonhos e delírios melancólicos.

 

Melancolia em Freud e Lacan

Freud estudou muito pouco a melancolia e a considerou uma afecção grave associada ao luto. A diferença entre luto e melancolia em Freud ([1917/1915] 1996, p. 249) é que no luto a questão

[...] é a reação à perda de um ente querido, a perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a liberdade ou o ideal de alguém.

Essas mesmas influências produzem melancolia em sujeitos marcados por uma “disposição patológica” (FREUD, [1917/1915] 1996, p. 249).

No luto, após um tempo não muito longo, os mais graves afastamentos são superados. Já na melancolia, o desânimo profundo, a perda do interesse pelo mundo, a consequente perda da capacidade de amar são expressas por recriminações e expectativas de punição. Correspondem a uma perda ainda mais ideal, que não pode ser reconhecida (FREUD, [1917/ 1915] 1996).

Freud ([1917/1915] 1996) faz uma distinção: o melancólico, mesmo que saiba quem ele perdeu, desconhece o que ele perdeu nesse alguém. Já no luto, não há nada de inconsciente em relação a uma perda. A diferença é que na melancolia o que está perdido é o que Freud já identifica como a ‘causa do desejo’ que a ligação com o objeto implica.

As fases maníacas são especialmente perigosas para os melancólicos, pois é quando há um risco maior de suicídio. É quando o “complexo de melancolia”, descrito como uma ferida aberta que esvazia o Eu deixando-o totalmente empobrecido, não está sob nenhum domínio (FREUD, [1917/1915] 1996). Na mania há um triunfo, ainda que inconsciente, na medida em que o desejo é quase diretamente satisfeito de modo direto ou imperativo, por isso a animação e a desinibição.

Para Freud, o retorno da condição depressiva evidencia que na mania o sentimento de felicidade e alívio corresponde ao Ideal do Eu convertido temporariamente no Eu do melancólico, após governá-lo “com especial rigidez” (FREUD, [1921] 1996, p. 142).

Característica da melancolia é a libido livre, proveniente de a ausência do objeto retirar-se para o Eu do sujeito na impossibilidade de ser deslocada (FREUD, [1917/1915] 1996).

Ali, contudo, não foi empregada de maneira não especificada, mas serviu para estabelecer uma identificação do ego com o objeto abandonado. Assim a sombra do objeto caiu sobre o ego, e este pôde, daí por diante, ser julgado por um agente especial, como se fosse um objeto, o objeto abandonado (FREUD, [1917/1915] 1996, p. 254-255).

Freud escreve que, como os neuróticos voltam contra si os impulsos assassinos que primeiramente se dirigem à pessoa que os ameaça, um Eu só pode levar a cabo o desejo de se matar “se puder tratar a si mesmo como objeto” (FREUD, [1917/1915] 1996).

Enquanto o Ideal do Eu do objeto ocupar o lugar destinado a um novo laço de amor, o suicídio será sempre um risco, a tentativa maníaca de o sujeito se livrar definitivamente do objeto perdido.

Lacan diferencia em Freud dois narcisismos: o primeiro se relaciona com a imagem corporal, com a unidade do sujeito comum a todos os vertebrados; o segundo, com a “possibilidade noética original”, responsável por inserir as leis da lógica na constituição, quais sejam: identidade, contradição, o terceiro excluído e a razão suficiente.

Lacan sublinha que, no segundo narcisismo, “o seu pattern [modelo, padrão ou desenho]2 fundamental é imediatamente a relação ao outro” (LACAN, [1953-1954] 2009, p. 169), posicionando essa relação na raiz da crítica lacaniana do texto Sobre o narcisismo: uma introdução, uma vez que em Freud a expressão “identificação narcísica” é considerada como indiferenciada.

Segundo Lacan ([1953-1954] 2009, p. 169), em 1914, Freud não destacou o narcisismo como uma identificação ao outro que “[...] permite ao homem situar com precisão sua relação imaginária e libidinal ao mundo em geral”, como uma instância que, ao determinar um lugar numa relação reflexiva com o outro, possibilita estruturar o “ser libidinal”.

Lacan ([1953-1954] 2009, p. 169-170) esclarece:

Vocês veem aí que é preciso distinguir entre as funções do eu – por um lado, elas desempenham para o homem como para todos os outros seres vivos um papel fundamental na estruturação da realidade – por outro lado, elas devem no homem passar por essa alienação fundamental que constitui a imagem refletida de si mesmo, que é o Ur-Ich,3 a forma original do Ich-Ideal4 bem como a relação com o outro.

Lacan afirma que nesse momento está às voltas com a questão da estruturação, “na junção do imaginário e do simbólico” (LACAN, [1953-1954] 2009, p. 182) mesmo ponto em que situamos a melancolia na estrutura, ou seja, como consequência da “difícil acomodação do imaginário no homem” (LACAN, [1953-1954] 2009, p. 187).

Explicamos melhor ao nos referirmos ao esquema óptico, quando uma ilusão real só é percebida enquanto tal, se puder se inserir no mundo dos objetos reais.

Ou seja:

[...] ser acomodada ao mesmo tempo que os objetos reais, e mesmo trazer a esses objetos reais uma organização imaginária, a saber, incluí-los, excluí-los, situá-los, completá-los (LACAN, [1953-1954] 2009, p. 184).

Segundo Lacan ([1953-1954] 2009) é essa a função do Ideal do Eu, um guia intermediado pela imagem, que responde do lugar destinado ao sujeito no desejo do Outro que, em oposição ao Eu Ideal orienta na direção da escolha anaclítica de objeto, condiciona para o recalque ou garante a “sublimação bem-sucedida”.

A escolha de objeto do tipo narcísica pode suprimir uma falha nessa função tão marcante na disposição para neurose ou psicose. Entretanto, relações que privilegiam o investimento na própria imagem, ou seja, no Eu Ideal, evidenciam o quanto a linguagem está funcionando de modo insuficiente como coaguladora da ferida narcísica freudiana.

Lacan inscreve a problemática especular no âmbito de uma ligação simbólica intermediada pela lei, numa troca de símbolos que situa uns em relação aos outros e que irá desaguar nos fenômenos do amor. Destaca a função simbólica do Ideal do Eu diferenciando-a da noção freudiana que o associa com os imperativos do Supereu.

Na descrição lacaniana da loucura e da paixão, a melancolia teria a mesma dinâmica, quando o Eu Ideal “enquanto falante”, ou seja, ocupando no mundo dos objetos a função simbólica do Ideal de Eu, produz, segundo as palavras de Lacan ([1953-1954] 2009, p. 189),

[...] a captação narcísica com que Freud nos martela os ouvidos.5 Pensem que, no momento em que essa confusão se produz, não há mais nenhuma espécie de regulação possível no aparelho.

Para Freud ([1917/1915] 1996, p. 257) o conflito entre o amor e o ódio na melancolia se manifesta quando o refúgio na identificação narcísica coloca em ação o ódio que abusa do objeto substituto, “[...] degradando-o, fazendo-o sofrer e tirando satisfação sádica de seu sofrimento”.

Ele nos alerta a

[...] confiar de imediato e sem reservas nas declarações quase sempre cruéis do melancólico a respeito de si mesmo, nisso que se revela a condição esmagadora da melancolia (FREUD, [1917/1915] 1996, p. 257).

Segundo Freud, o discurso melancólico pode ser efeito de uma espécie de saber acerca das fantasias primitivas inconscientes. E nos pergunta: “É preciso adoecer para se chegar a uma verdade dessa natureza?” (FREUD, [1917/1915] 1996, p. 252).

Lacan ([1958-1959] 2016, p. 319) é quem responde, ao comparar Édipo com Hamlet, situando o não saber sobre o desejo como a

[...] bem-aventurada ignorância daqueles que estão mergulhados no drama necessário decorrente do fato de o sujeito que fala estar submetido ao significante (LACAN, [1958-1959] 2016, p. 319).

Para Lacan, o valor de Hamlet está em justamente permitir acesso ao sentido de , ou seja, de responder ao que está articulado no último piso do grafo do desejo – uma resposta para “O que queres?” – que, recebida ao avesso, situa o sujeito no nível de seu ser.

Em Hamlet, “a tragédia do desejo” é o fantasma do pai morto que dá as coordenadas e responde no nível de que o lugar destinado ao ser está ocupado, é que levanta o véu que pesa “justamente, sobre a articulação da linha inconsciente” (LACAN, [1958-1959] 2016, p. 319-320).

A “irremediável, absoluta e insondável traição do amor” revela o ‘enigmático da função fálica’, ou seja, a verdade acerca de um amor puro, testemunho da beleza, da verdade e do essencial está sacrificada no discurso do Outro.

“Ser ou não ser” é a questão, na medida em que o ‘falo enquanto indisponível’ leva Hamlet a um encontro com a morte, estreitando o intervalo entre os dois pisos do grafo, numa referência topológica que não lhe garante tempo de viver e de desejar.

O que ali falta é precisamente o que permitiria ao sujeito se identificar como o sujeito do discurso que ele profere. Ao contrário, na medida em que esse discurso é o discurso do inconsciente, o sujeito nele desaparece (LACAN, [1958-1959] 2016, 394)

Lacan ([1958-1959] 2016, p. 394) explica que a descoberta essencial de Freud é que “[...] a castração está envolvida sempre que o desejo enquanto tal se manifesta de maneira clara”. Para se situar na dimensão sempre presente, da qual se trata do desejo, o sujeito, enquanto fraquejante, terá de pagar a castração. Pagar com “algo real”, com o ‘a’ minúsculo, que intervém para suportar o momento em que ele não pode se nomear.

Podemos tomar o mito de Édipo como exemplo de comparação: Édipo, nome que significa pés inchados, que lhe foi dado pelos pais adotivos por causa da identificação de uma marca, da marca paterna em seu corpo, mesmo sem saber nada a respeito da verdade de seus pais, inicia desse ponto da cadeia significante uma existência que o remeterá ao desconhecido do desejo do Outro.

Na melancolia, na medida em que o falo enquanto significante está destituído de sua função é o objeto a, que na tragédia de Shakespeare está representado pelo personagem Ofélia, a via capaz de possibilitar ao sujeito se situar na rota do desejo.

 

Conclusão

A ciência, a medicina e a psiquiatria do século XIX, seguindo o critério de uma classificação suficientemente potente, capaz de separar e dividir as enfermidades psiquiátricas das entidades naturais produzem uma série de rupturas com os “sistemas humorais de compreensão do homem” (MEZZA, 2013).

O individualismo, que independe de uma autoridade divina ou real, é valorizado em nome da saúde e da felicidade.

A melancolia passa a sofrer divisões em categorias e subcategorias, o termo passa a ser considerado impróprio e vulgar. A substituição do termo melancolia por “depressões” designa a fragmentação do conhecimento construído através dos tempos, consequência da adaptação ao novo paradigma (SANTA CLARA, 2009, p. 5).

Se o inconsciente é o discurso do Outro, os ideais modernos comprometem uma leitura sobre o sentido das metáforas e das metonímias.

Lacan ([1958-1959] 2016, p. 386) irá destacar a diacronia6 como a dimensão radical em questão, restando “[...] redescobrir como pensar o desejo para situá-lo na sincronia”; o que pressupõe um resgate subjetivo pela via da fantasia cujo dispositivo clínico é a interpretação.

No interlace que amarra teoria e clínica, a melancolia é a perda da referência simbólica, o confronto com os limites da experiência clínica. Justo por isso, é ela que nos direciona de um modo mais crítico no campo dos processos de identificação e nos faz compreender as saídas diante das ameaças e das possibilidades de (des)subjetivação.

Albretcht Dürer, um dos grandes pintores do Renascimento alemão, criou Melancolia I, gravura misteriosa, carregada de simbolismo e elementos iconográficos que suscitam uma série de interpretações.

Melancolia I, de Dürer, é não um temperamento, mas um estado psicológico do processo alquímico, que equivale ao fim de um processo criativo. Retrata o momento em que a imaginação criativa decifra a realidade, um momento de perigo regido por Saturno, um prelúdio para a alegria do resgate das trevas pela influência benéfica de Júpiter (PANOFSKY, 1982).

 

 

Melancolia I. Albrecht Dürer, 1514. Gravura.

 

Aqui está sentada uma figura
que encarna o poder do intelecto humano,
coroada pelos louros da fama, rodeada pelos símbolos
do conhecimento humano e de seu poder,
utensílios e figuras geométricas.
Esta potente figura cai finalmente cansada,
consciente de suas imperfeições.
Assemelha-se à criança que está sentada sobre a roda
fazendo somas e exercícios em uma tábula.
A figura invejada do cachorro, a qual tem apetite pelo conhecimento.
Os números, símbolos da limitação do espírito humano.
A pequena altura da escada é uma piada,
já que pode ser alcançada pelo homem.
A ampulheta, o sino, a balança, o quadro com os números,
todos esses símbolos nos falam da ingenuidade
sem finalidade alguma da mente humana;
espaço e tempo limitam o intelecto humano.
Consciente de sua limitação em relação ao universo,

o gênio olha sem esperança,
sua mão repousa sobre o livro no qual o mistério é revelado,
e sobre o compasso pelo qual pode medir o mistério.
Todo o quadro nos diz e nos sugere um pensamento:
podemos saber muito pouco ou nada.
Dürer escreve a seguinte confissão:
‘O erro está na percepção,
a obscuridade é tão grande em nosso interior
que apenas nosso tentar já é um fracasso’

(KNACKFUSS, 1900. Bertrand Revista Online).7

Saturno é resumido como a putrefação – a nigredo – o ensino de uma ressureição – que está dentro de cada morte, a etapa fundamental quando se trata da renovação dos valores que regem a vida e que abre caminhos para novos modos de existência.

 

Referências

BERTRAND, J. A. “La melancolía”, de Alberto Durero: un pequeño tratado de alquimia. Disponível em: http://adamar.org/ivepoca/node/1191. Acesso em: ago. 2017.         [ Links ]

BRANDÃO, J. S. Mitologia grega. v. I. 14. ed. Petrópolis: Vozes, 2000.         [ Links ]

FREUD, S. Luto e melancolia (1917 [1915]). In: ______. A história do movimento psicanalítico, artigos sobre a metapsicologia e outros trabalhos (1914-1916). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 245-263. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 2).         [ Links ]

FREUD, S. Psicologia das massas e análise do eu (1921). In: ______. Além do princípio do prazer, psicologia de grupo e outros trabalhos (1920-1922). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 79-154. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 2).         [ Links ]

FREUD, S. Sobre o narcisismo: uma introdução (1914). In: ______. A história do movimento psicanalítico, artigos sobre a metapsicologia e outros trabalhos (1914-1916). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 81-113. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 14).         [ Links ]

LACAN, J. O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud (1953-1954). 2. ed. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Betty Milan. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. (Campo Freudiano no Brasil).         [ Links ]

LACAN, J. O seminário, livro 10: a angústia (1962-1963). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; versão final Angelina Harari e preparação de texto André Telles; tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. (Campo Freudiano no Brasil).         [ Links ]

LACAN, J. O seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação (1958-1959). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução Claudia Berlinet. Rio de Janeiro: Zahar, 2016. (Campo Freudiano no Brasil).         [ Links ]

MEZZA, M. Transtorno bipolar: nuevo cuadro líquido. Um recorrido por las reglas discursivas de la classificación psiquiátrica y por los condicionantes sócio-históricos de nuestra época. Límite. Revista Interdisciplinaria de Filosofia y Psicologia, Arica (Chile), v. 8, n. 27, p. 75-87, 2013.         [ Links ]

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PERES, U. T. Melancolia. São Paulo: Escuta, 1996.         [ Links ]

SANTA CLARA, C. J. S. Melancolia: da antiguidade à modernidade - uma breve análise histórica. Mental, Barbacena, v. 7, n. 13, 2009. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-44272009000200007&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: ago. 2017.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: gabilazarini@gmail.com

Recebido em: 29/11/2017
Aprovado em: 10/12/2017

 

 

SOBRE A AUTORA

Gabriela Lazarini
Psicóloga pela Faculdade Ruy Barbosa (Salvador/BA).
MBA em Psicologia Organizacional, Relações de Trabalho e Gestão de Pessoas pela Faculdade Ruy Barbosa (Salvador/BA).
Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico da Bahia.

 

 

1 Advinhas que utilizam como meio a evocação de espíritos ( Priberam Dicionário Online ).
2 Intervenção da autora do artigo.
3 Tradução: Você é.
4 Tradução: Eu Ideal.
5 Referência ao texto Sobre o narcisismo: uma introdução ( Freud , [1914] 1996).
6 Sincronia: ação ou efeito de sincronizar; estado ou condição de dois ou mais fenômenos ou fatos que ocorrem simultaneamente, relacionados entre si ou não. Diacronia: descrição de uma língua ou de uma parte dela ao longo de sua história, com as mudanças que sofreu; gramática histórica; linguística diacrônica.
7 Tradução livre do espanhol.

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