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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.48 Belo Horizonte jul./dez. 2017

 

SELETA DE COMUNICAÇÕES

 

 

O totem da deusa razão e o tabu do imperativo categórico: reflexões sobre ética e psicanálise na modernidade e na pós-modernidade

 

The totem of the goddess of reason and the taboo of the categorical imperative: reflections on ethics and psychoanalysis during during modernity and postmodernity

 

 

Michell Alves Ferreira de Mello

I Fundação de Apoio à Escola Técnica - RJ (FAETEC-RJ)
II Círculo Brasileiro de Psicanálise -Seção Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Através de uma interpretação possível do mito presente em Totem e tabu, de Freud ([1913] 2006) sobre a origem da lei, buscamos um olhar psicanalítico; assim, afastamo-nos de uma discussão étnico-historiográfica. De tal perspectiva, propomos uma construção que busca relacionar as características do totemismo antigo àquelas do mito da deusa razão dos iluministas. Da mesma forma, seguindo as trilhas de Freud, tecemos uma analogia entre o tabu a partir do totemismo, bem como o imperativo categórico kantiano a partir da ideia de razão iluminista. Se considerarmos o significante “razão” no contexto de Iluminismo, esse “totem” não existiria mais em nossa temporalidade pós-moderna, logo a lei do “nosso imperativo categórico”, citando o próprio Freud (1913), não possuiria mais sentido na atualidade. Estaríamos numa sociedade sem lei, no sentido psicanalítico? Alguns podem afirmar que sim. Porém, ao considerarmos o pensamento freudiano como maior herdeiro do Romantismo alemão do que do Iluminismo e do Positivismo, entendemos a noção de lei em Freud como um devir histórico-pessoal. Se, e somente se, isso for possível, nosso totem da deusa razão seria também um fluir histórico-pessoal: uma razão interpretativa. Assim, o saber psicanalítico, ou melhor, a vivência ou a experiência da psicanálise poderia se apresentar como um caminho possível para o homem diante do abismo de uma sociedade cujos totens e leis já não permanecem, mas são mutáveis. Isso nos permitiu um diálogo entre ética e psicanálise, tanto por argumentos psicanalíticos como por filosóficos.

Palavras-chave: Psicanálise, Ética, Totem, Razão, Tabu, Lei.


ABSTRACT

Through a possible interpretation of the present myth in Freud’s Totem and Taboo (1913) about the origin of the law, we aim to find a psychoanalytic overview, thus moving away from an ethnic-historiographic discussion. From that perspective, we propose a construction that intends to relate the ancient totemism characteriscs to those of the myth of the goddess of reason. The same way, we make an analogy between the taboo from the toteism and Kantian categorical imperative – based on the idea of reason of the Enlightenment. If we consider the sign “reason” during the Enlightenment, this “totem” would not exist in our postmodern time anymore. Thus the law of “our categorical imperative” (FREUD, 1913) would not make any sense nowadays. Would we be in a society with no law in psychoanalytical sense? Some would believe so. But we consider that the Freudian thought was more influenced by the german Romantism than by the Enlightement and Positivism, so we understand the notion of law in Freud’s work as a historical and personal becoming. If, and only if, this may be possíble, our totem of the goddess reason would also be a historical and personal flow: an interpretative reason. Therefore, the psychoanalytical knowledge, or rather, the experience of Psychoanalysis could be seen as a possible way of life for the human being, who is befor the abyss in a society in which totems and laws are so mutable. That enabled us to create a dialogue between Ethics and Psychoanalysis, using both psychoanalytical and philosophical arguments.

Keywords: Psychoanalysis, Ethics, Totem, Reason, Taboo, Law.


 

O corvo, estando doente, perguntou a sua mãe enquanto chorava:
mãe, roga ao deus para que me ajude.
Ela, porém, respondendo-lhe, disse:
a qual deles, meu filho, devo eu rogar e suplicar?
Qual deles não teve o sacrifício expiatório roubado por ti?

ESOPO

 

A quem recorreremos? A quem iremos? A qual pai? O que é um pai? Essas seriam algumas interrogações possíveis e decorrentes numa interpretação psicanalítica da conhecida fábula de Esopo.1 Talvez. A ideia de uma fábula, um animal dotado de sentimentos e percepções que consideramos humanos por seu teor moral, já transmite em si e através de uma metáfora esta mensagem: se não agirmos bem, racionalmente, conscientemente, temerosamente e alguns outros advérbios de modo, seremos como os outros animais. Seremos expulsos do paraíso. Sem benesses divinas ou demoníacas. Estaremos abandonados a nossa própria sorte. Seremos errantes.

Não temos intenção alguma de abordar aqui a chamada doutrina da graça, de Agostinho ou de qualquer outro, mas apenas desejamos assinalar que a graça seria uma dádiva, um dom ou um presente dado por um ser além, geralmente transcendente. A graça seria algo externo, acrescentado à natureza. Para muitos entre nós, todavia, esse discurso é vazio. Ora, nos dias de hoje, como talvez nunca antes na história, o ateísmo, e/ou suas vertentes teóricas, é uma das escolhas possíveis para criarmos nossa crença particular. Tudo isso devido a Feuerbach, o primeiro ateísta teórico, que propôs transformar toda teologia em antropologia, uma vez que Deus seria apenas a projeção do desejo dos homens de realização absoluta, mas como não conseguimos e nos frustramos, criamos um ente que representa essa perfeição absoluta. Também sabemos, por outro lado, que já havia desde muito tempo antes de Feuerbach o chamado ateísmo prático, fenômeno nada novo na humanidade.

Nesse contexto do ateísmo teórico nascente e crescente, Freud propôs uma visão de homem no início do século XX como um ente castrado, cindido, que se constituiu na e através da falta – algo mais radical que frustrado. Mais ainda, como humanidade, precisaríamos negar a castração ou a falta original através da graça, pensariam outros, e agora, para muitos, a graça ou o dom externo que ‘os humanos se lhes outorgam’ seria a razão, a sabedoria, o raciocínio, o bom-senso da vida pela razão – todos misturados e confusos tanto no senso comum como no escrito aqui. Algo herdado pela genética, pela evolução, pela Lei natural, etc., que também nos é externo como a graça da teoria agostiniana. A quem recorreremos? A qual razão? A qual conjunto de teorias? A qual novo guru do conhecimento? Qual deles não teve sua beleza roubada pela prática dos homens? Qual deles? Argumentos ad hominem aqui parecem não ser uma falácia, mas um a priori discursivo nada contingente ao se tratar de moral: uma sede de sentido que nos torna cegos – somos adictos ao sentido.

Há outra característica na fábula que é ressaltada aqui por nós: uma separação entre nós (os humanos) e os outros (os animais), entre os de nosso clã e os de fora, entre helenos e os bárbaros, entre o eu ideal e o eu empírico existente. Uma fábula já é em si uma cisão, e talvez tal fato se dê devido ao conteúdo moral das fábulas no geral, uma vez que o campo da moral está numa lacuna entre o pensar e o agir, numa lacuna ou num espaço, na divisão entre realidade interna e realidade externa: entre desejo e lei. Dualismo nada novo no Ocidente, desde Heráclito e Parmênides, devir e ser. O homem se encontra, poderíamos dizer, num espaço vazio entre estar aí e ser. Assim, nossas especulações éticas e/ou morais ao longo da história demonstram uma espécie de sofisticação através de recalque dessas relações.

A questão ética é muito ampla, porém irresistível para a própria psicanálise. Para melhor compreendermos nossa linha de pensamento neste ensaio, se faz necessária uma brevíssima delimitação do tema. Pedimos, assim, paciência a quem lê este texto.

A ética é considerada na filosofia contemporânea sob diversas perspectivas, bem ao caráter do chamado pensamento pós-moderno. Todavia, uma questão é crucial: o que é ética e se ela existe, teoricamente. Se considerarmos a quase unânime assertiva de que a filosofia é um conhecimento do universal, do geral, do conceitual, etc., então a ética poderia ser pontuada como uma teoria geral sobre o agir humano. Mas se a premissa anterior estiver correta, se filosofia ou conhecimento seguro só se fizer pelo universal, a ética não poderia ser objeto de especulação filosófica, ou ainda mais claro e radical, não existiria ética filosófica, universal e universalista (apenas moral e suas morais) – uma vez que toda ação livre e consciente seria sempre um ato individual. A expressão “teoria geral do agir” seria algo tão contraditório (e, por isso, revelador) que pode mesmo colocar a impossibilidade de tal área da filosofia. Alguns pensadores investiram em outras formas de ética, mas para isso foi preciso mudar a compreensão de filosofia e de ciência, tal como o II Wittgenstein, Austin, Derrida, Vattimo, Feyerabend, entre outros. Para nós, o interessante é o fato de que há cisão ou divisão até sobre a compreensão acerca do que seja a ética, se ela existe ou não. Neste espaço lacunar do não saber e do não fazer contra o desejar este saber e este fazer, parece que todos nos comportamos como o corvo doente da fábula de Esopo: “Mãe, suplica ao deus! qual deles, meu filho?” – e aí começamos a construir nossos totens2 para responder a grande questão: qual deles? E ao construir esses totens, transferimos a eles essa espécie de angústia existencial que a questão ética nos impõe e, apesar de nossos desejos, temos a Lei, o mando, a coação externos para responder ou preencher esse espaço cindido em nós mesmos. Ousaríamos aqui a dizer que esse externo-interno limitador e tranquilizador ao mesmo tempo seria chamado por Freud de supereu.

Aqui, partindo do mito de Totem e tabu (FREUD, [1913] 2006), desejamos pensar uma relação entre a moral da autonomia iluminista, sobretudo aquela expressa pelo imperativo categórico kantiano, e a criação de uma espécie de totem moderno: a razão – mais abstrato do que muitas outras espécies de totens e similares, uma vez que é algo escrito e não esculpido, porém não menos simbólico que aqueles que existem em algumas comunidades totêmicas.

Trata-se de um símbolo cujo auge pôde ser representado durante o século XVIII – novos mundos, novos regimes políticos, distâncias maiores percorridas em menos tempo, novos mercados no Oriente e na Oceania, novas descobertas científicas, novas crenças e muitas ramificações de um mesmo seguimento, o cristianismo. Em linhas gerais, a atmosfera do século XVIII causava tanto orgulho naqueles que a partilhavam que gerou o padrão vitoriano de comportamento algumas décadas depois. Um marco luminoso nesse processo, bem na sua gênese, foi Copérnico, que feriu realmente a humanidade, a primeira ferida narcísica segundo Freud: fez com que o referencial existencial do Medievo até o Renascimento fosse duramente abalado, e o homem teve que se perguntar, novamente: a qual pai ou a qual deus ou deusa vamos recorrer agora? Parece que as conquistas ou descobertas da modernidade impuseram uma nova deidade: a deusa razão. Do ego exaltado de Descartes ao sujeito universal de Hegel há uma espécie de entidade externa que se denominou razão e que deverá reger nossa existência. Uma verdadeira beraká judaica à razão podemos encontrar no conhecido texto O que é esclarecimento? (KANT, [1784] 2004, p. 416).

Esclarecimento é a saída do homem da menoridade pela qual é o próprio culpado. Menoridade é a incapacidade de servir-se do próprio entendimento sem direção alheia. O homem é o próprio culpado por esta incapacidade, quando sua causa reside na falta, não de entendimento, mas de resolução e coragem de fazer uso dele sem a direção de outra pessoa. Sapere aude! Ousa fazer uso de teu próprio entendimento! Eis o lema do esclarecimento.

Ora, toda louvação judaica de agradecimento ou beraká, além de indicar uma certa genealogia das benesses, exalta a bondade absoluta de Iavé e se algo não foi bom, é sempre culpa da parte humana – quanto à casuística, nela o inimigo político e religioso é sempre o culpado, se possível. Aqui vemos que o entendimento, ou a razão, ou esclarecimento, ou Iluminismo ou quaisquer nomes que se lhe possa classificar é algo inquestionavelmente bom e absoluto e, ou não o seguimos por limitações da nossa natureza (a casuística causada pelos “inimigos” ou fatores externos), ou por fraqueza de nosso caráter, algo que já indica no mínimo uma infantilidade do sujeito, pois ele não cresceu, não é adulto – menoridade da razão. E o homem é culpado de sua menoridade da razão, algo tão forte que poderia ser traduzido com o grito sartreano que reza: o homem é condenado a ser livre.

Ainda que absolutamente divergentes sobre ontologia e aspectos ônticos, entre teorias e práticas das coisas, Kant e Sartre, por sua vez, concordariam com uma coisa: a culpa gerada é por não obedecer ao uso ‘bom’ ou ‘correto’ da liberdade inerente ao homem. Um assume a culpa integralmente, outro a nega radicalmente – todavia concordam que a mesma culpa exista, uma vez que se faz assunto. Impossível mesmo é falarmos sobre o que não é, algo que não é o caso sartreano e de tantos outros sobre o tema da culpa.

Tal fato nos parece um tanto claro quando pensamos no tratamento dispensado aos chamados doentes mentais hoje e, sobretudo, no passado. Eles eram tratados ou como crianças, infantis (na melhor das perspectivas e prognósticos) ou como degenerados (a casuística da exclusão). A noção de degeneração moral (fortemente combatida por Freud, que defendia outra compreensão dos possíveis mecanismos da psique) nos levaria a uma relação com a degeneração mental, endo-orgânica talvez, e, numa espécie de convergência das opiniões dos comuns e dos nobres, ambas se converteriam. Se compararmos um internato psiquiátrico antigo a uma prisão, em termos estruturais, não veremos grandes diferenças: o importante é afastar o degenerado da cidade, aqueles que não seguem nosso totem: a razão. Poderíamos dizer que as qualidades atribuídas à deusa razão nos impõem uma endogamia (em sentido lato e metafórico) universal: ninguém que não “descenda” da razão deve permanecer entre nós. Um espaço entre a exogamia familiar e endogamia do grupo.

Se nos fosse permitida uma representação do que seria essa razão ética da autonomia, vamos chamá-la assim, seria à letra do imperativo categórico kantiano: age apenas conforme àquela máxima que você deseja agora, se ela se transformar numa lei para todos3 (KANT, 2004a, p. 226).

Trata-se de um processo racional, digamos que até difícil para entender, pois se trata de um princípio formal. O próprio Kant admite que a religião4 tem um papel de educadora moral para as pessoas mais simples (ou não esclarecidas). Todavia, se for permitida uma vivência particular, há alguns anos nós lecionamos filosofia em escolas do ensino médio e observamos que muitos alunos, mesmo os mais desinteressados, têm um certo tipo de orgulho intelectual quando entendem o imperativo categórico. Geralmente, antes mesmo de uma explicação conceitual, fazemos um exemplo: pisar na grama. Se eu individualmente piso na grama do parque, nada vai acontecer, sem problemas. Mas se eu posso pisar, todas as outras pessoas podem, e se todos pisarem, a grama morrerá. E isso não queremos.

Por se tratar de algo que faz sentido para tantas perguntas tanto dos adolescentes como dos adultos e, ainda que o sentido dado por um sujeito nunca esgota o significado que o termo possa assumir no uso, o imperativo categórico torna-se um fator de identidade do grupo na sala de aula, pelo menos na minha experiência docente.

Ousaríamos mesmo dizer, numa livre indução sem a finalidade da certeza, seguindo um estilo de quase mitologia freudiana, que a razão seria um totem da modernidade; o imperativo categórico, seu tabu. E cada tribo ou grupo social lhe confere características extras de sua cultura. Há xamãs que os conhecem e defendem sua legitimidade como instituição social: a moral, e a partir daí o estabelecimento da lei com sua força de coerção. Os desvios são punidos: a lei, o direito e tantas outras interdições que não passam necessariamente pelo processo de burocratização, regulam as mais diversas relações humanas e, ao regular determinado grupo de pessoas, lhes confere um sentimento de unidade, seja através do clã, seja através da lei.

Tal relação entre tabu e imperativo categórico foi assinalada pelo próprio Freud no seu primeiro ensaio “mitológico” no qual se pergunta

Por que, pode-se perguntar a essa altura, devemo-nos preocupar a tal ponto com esse enigma do tabu? Penso que não somente porque vale a pena tentar solucionar qualquer problema psicológico por ele mesmo, mas por outras razões também. Uma delas é começarmos a ver que os tabus [...] não se acham tão longe de nós como estivemos inclinados a pensar, a princípio; outra é que as proibições morais e as convenções pelas quais nos regemos podem ter uma relação fundamental com esses tabus primitivos e, finalmente, porque uma explicação do tabu pode lançar luz sobre a origem obscura de nosso próprio ‘imperativo categórico’ (FREUD, [1913] 2006, p. 41, grifo do autor).

A partir dessa perspectiva podemos criar uma imagem da deusa razão, assim denominada pelos enciclopedistas e iluministas como uma espécie de totem, inscrito à tinta e não talhada na madeira. O totem da deusa razão ou da racionalidade moderna não é menos poderoso do que aqueles talhados nos carvalhos.

 

1. O totem da deusa razão

Para melhor divagar a respeito desta parte do ensaio – a razão como um totem moderno – precisamos nos remeter à obra de Freud Totem e tabu, todavia encontramos em Roudinesco & Plon (1998, p. 758) uma síntese adequada a nossos objetivos quando ela apresenta um resumo da obra, dizendo que

Num tempo primitivo, os homens viviam no seio de pequenas hordas, cada qual submetida ao poder despótico de um macho que se apropriava das fêmeas. Um dia, os filhos da tribo, rebelando-se contra o pai, puseram fim ao reino da orda selvagem. Num ato de violência coletiva, mataram o pai e comeram seu cadáver. Todavia, depois do assassinato, sentiram remorso, renegaram sua má ação e, em seguida, inventaram uma nova ordem social, instaurando simultaneamente a exogamia (ou renúncia à posse de mulheres do clã do totem) e o totemismo, baseado na proibição de assassinato do substituto do pai (o totem).

O termo “totem”, advindo da língua ojíbua, do subgrupo das línguas alonquinas faladas na região dos grandes lagos norte-americanos, parece ter sido introduzido na etnologia evolucionista a partir do início da década de 1790. Um totem, para os autóctones norte-americanos, geralmente se constitui de um alto tronco de uma árvore, geralmente carvalho, esculpido com motivos étnicos e religiosos em cujo topo, ao ser colocado em posição vertical, apresenta um animal, mais raramente um vegetal, a ser reverenciado pelos membros daquela tribo, que se constitui um clã. Todos os pertencentes desse clã acreditam descender desse totem, de modo que não se pode inserir sua carne ou o vegetal relacionado, nem mesmo destruir nada que lhes diga respeito, exceto quando tal ação lhes é prescrita através de uma ritualística, uma espécie de festival religioso, sobretudo se tratando do culto dos ancestrais.5

Consideramos a teoria de Freud presente em Totem e Tabu (1913) como um aspecto também de uma teoria política porque diz respeito ao problema da vida coletiva e do espaço imaginário decorrente da convivência, da constatação de que l’enfer sont les autres,6 e da necessidade de regras básicas para sobrevivência individual e coletiva – que para os humanos está longe de ser mera sobrevivência, porém trata-se na realidade de uma metavivência, um estar constantemente no campo pulsional, não determinado a priori, mas predeterminado e predeterminante psiquicamente pelo conjunto das mesmas vivências, cujo desejo se projeta em prismas diversos a partir de si. Os desejos dos homens estão em conflito tanto interno como externo, e aí emerge o problema político, que em sua primeira instância é pedagógico, pois, de certo modo, disciplina: a cultura. A lei aparece como salvaguarda da vida individual em referência ao coletivo, ainda que em detrimento do desejo do sujeito singular.

Também consideramos ainda moderna (e não pós-moderna) a teoria de Freud sobre o totemismo por encontrarmos nela um certo humanismo prático e otimista quanto ao conhecimento, ou antes, uma negação de um a priori metafísico ao modelo dos medievais e que qualificasse a natureza humana a partir da forma exclusivamente, sem considerar a matéria-prima e as delimitações dela provenientes: a matéria-segunda.

Pensemos, por exemplo, em um Rousseau: “o homem nasceu bom, a sociedade o corrompe”; ou em um Hobbes, afirmando do outro lado do Canal da Mancha: “o homem é o lobo do homem”. Freud, todavia, poderia dizer: o homem nasce como um quase nada, uma quase pura virtualidade, e a sociedade o educa e o corrompe ao mesmo tempo, ou ainda, ‘o homem é o lobo de si mesmo e lobo dos outros’. Assim, este antropocentrismo humanista parece indicar o epíteto de humanista a Freud.

Em Freud, temos um humanista que presenciou a queda de seu mundo (a Primeira Grande Guerra e o fim do império austro-húngaro). Desse modo, esse humanismo não é tão otimista quanto aquele da Modernidade clássica, pois é um tanto pessimista quanto à hipotética natureza da bondade nos homens. Para ele, ao contrário, o homem nasce mau, selvagem, uma criança perversa polimorfa, e a sociedade lhe oferece os meios para se tornar o que compreendemos por homem. Mas ao educá-lo, a sociedade também lhe impõe restrições em benefício do bem-comum. Um tanto hobbesiano, diríamos. Lidar com isso parece ser a tragédia humana.7

Esta interpretação mais ético-política do que antropológico-descritiva é a que mais nos agrada para compreender essa obra freudiana, sobretudo as interpretações de Freud sobre o totemismo.

Para este objetivo agora, vamos considerar o seguinte fragmento de Freud, que pergunta:

O que é um totem? Via de regra é um animal (comível e inofensivo, ou perigoso ou temido) e mais raramente um vegetal ou um fenômeno natural (como a chuva ou a água), que mantém relação peculiar com todo o clã. Em primeiro lugar, o totem é o antepassado comum de todo o clã; ao mesmo tempo é seu guardião e auxiliar, que lhe envia oráculos, e embora perigoso para os outros, reconhece e poupa os seus próprios filhos (FREUD, [1913] 2006, p. 22).

Daqui podemos destacar que o totem como substituto do pai primevo é algo que une o clã. A transferência primeva do pai morto para o animal sagrado feita pelos filhos dá ao clã um sentimento de pertencimento comum. A criação a partir de um crime deve ser algo admirado ou temido, quiçá os dois, por todos os membros do clã – algo comum, um elemento que universalize a vivência coletiva. As características do animal ou elemento totêmico são seguidas, respeitadas. Totem e lei são uma e única instituição social.

Agora vejamos a deusa razão. Não nos limitamos aqui ao culto francês pós-revolucionário à razão. Não é tanto a dessacralização da Catedral de Strasbourg pelos jacobinos, mas a inscrição da razão ‘esclarecida’ ou pensamento racional moderno como farol para a ética – e isso vemos claramente nos iluministas. A razão é livre (desde que não seja contraditória em si), pois podemos pensar o que quisermos, podemos criar utopias, desmentir o passado como fizera Copérnico, e assim, recriamos a visão de mundo de um determinado povo em uma certa época.

Ora, sabemos que os ideais da Revolução Francesa, entre eles a liberdade política, era um desejo almejado sobretudo pela burguesia iluminista. E não somente os homens, apesar do sexismo da época. Foram as mulheres, as damas organizadoras dos salões literários do século XVIII, que organizavam os encontros de discussão e estudo, que financiavam cientistas, pensadores e artistas com o dinheiro de seus cônjuges ou de sua família de origem – mas a nova classe, a burguesia, não tinha o estatuto de nobreza, embora já fosse mais rica em capital (talvez não em terras) do que a nobreza do antigo regime propriamente dita. Assim, muito paulatinamente, elas conseguiram uma certa expressão sociocultural maior do que tinham na época dos três estados do absolutismo, nem tanto para si (as mulheres), mas para a nova classe da qual elas faziam parte: a burguesia. A elas vinham artistas, filósofos, cientistas, livre pensadores.

A partir desse momento, o conhecimento identificado com a razão esclarecida passa ser o elemento comum de uma classe média ou burguesa que almeja liberdade política e econômica, e assim, homens e mulheres se unem nos chamados salões literários do século XVIII. Colocar a capacidade da razão humana como universal entre nobres e burgueses é torná-los iguais, pelo menos perante a lei. O que torna um homem grande não é mais o jus sanguinis ou direito de sangue do absolutismo, mas o jus rationis8 ou direito de razão desejado pelos iluministas. Mas há que matar o pai, há que matar a nobreza para nos unirmos sob a lei da razão – a guilhotina é mais do que justificada ao se tratar de liberdade, mais uma vez. Matar a antiga nobreza e estabelecer a ‘lei da razão’ é como o mito do assassinato do pai primevo.

O animal racional aristotélico é o animal totêmico dos iluminados, digo iluministas. Eles têm uma natureza comum com o totem: a razão, a arte de julgar o certo e o errado a partir do conhecimento. O desejo de liberdade vivido à época e a identificação com os mesmos ideais (ideais do eu partilhados?) tornam a razão um termo tanto subjetivo (cada sujeito segue sua própria razão) quanto objetivo (tal argumento não é racional para ninguém). Lembremo-nos do termo cunhado por Kant na Crítica da faculdade do julgar de uma subjetividade geral/comum ou allgemeine Subjetikvität (KANT, 2004c). Assim emerge um novo ente de razão: a intersubjetividade. Algo entre as duas subjetividades que não é claramente objetividade – a razão, sobretudo ética. Alguns preferem chamá-la de supereu.

Assim, a razão se apresenta muitas vezes na compreensão do senso comum como uma voz da consciência, um daimon cristianizado ou um supereu freudiano reduzido. O totem da razão envia também aos membros do clã seus oráculos, suas suposições, suas consequências: sua palavra é performática. O discurso da razão que leva à ação e tal ação repetida legitima o discurso racional, num incessante fluir circular. O desejo de liberdade que os une sob as benesses da razão é um desejo também de limite: O que posso conhecer? O que devo fazer? O que me é permitido esperar? – três grandes questões apresentadas por Kant (2004b). Espera-se a resposta dada pelo novo totem.

Vamos à segunda pergunta feita ao oráculo do saber, a razão: O que devo fazer? O próprio Kant responde com o imperativo categórico: age de tal forma que a sua máxima se torne o mais universal possível. Por mais livre que isso nos soe, uma vez que tal imperativo não tem nenhum conteúdo determinativo da ação, apenas a forma da ação (idealizada, digamos) é uma lei. Um imperativo meramente formal como esse é capaz de marcar a regra de distinção entre indivíduos, causada como qualquer outra norma cultural – aqueles que a cumprem e aqueles que não a cumprem. Judeus e gentios. Cristãos e pagãos. Civilizados e selvagens. Educados e incultos. Nem precisamos dizer que é interessante que quase todas, senão todas, tais combinações são binárias. Alguns chegaram a reduzir tal binarismo à biologia entre macho e fêmea, tudo face à formalidade estrita da ação.

Assim como as regras dadas pela ideia da força totêmica que une a coletividade a um totem chamamos de tabu, dizemos também que o imperativo categórico kantiano é o primeiro tabu para aqueles que seguem o totem da deusa razão.

Assim como o incesto e a exogamia marcam a diferença entre nós (deste clã) e eles (aqueles de um outro clã), o imperativo categórico separa o nós (que somos livres, cultos e civilizados porque seguimos o imperativo categórico, a voz da razão) e eles (que não são livres, pois estão na “menoridade” da razão por escolha própria ou por determinações maiores, ou são incultos e mal educados, não são civilizados).

Muito interessante é notar que Freud foi também um precursor da recusa a uma tabela axiológica para se comparar as culturas diversas; o máximo que fez foi comparar os ditos primitivos com as similaridades encontradas no comportamento infantil (quarto ensaio de Totem e tabu [1913] e Neuroses de transferência [1987]). Embora Freud admita a existência de estágios da cultura, pareceu-nos mais um cunho didático e/ou um espírito de época. No chamado manuscrito perdido ele compara certas práticas ditas primitivas a sintomas neuróticos, não limitando sua comparação às crianças.

[...] fica-se tentado a reconhecer, nas três disposições para a histeria de angústia, a histeria de conversão e a neurose obsessiva, regressões a fases pelas quais toda a espécie humana teve que passar do começo ao fim dos tempos glaciais. Assim como naquela época todos os homens passavam por essa experiência, hoje somente uma parcela passa em virtude da predisposição herdada e acionada por novas experiências. Os quadros não podem ser superponíveis, porque a neurose contém mais do que a regressão traz consigo. Ela é também a expressão da resistência contra essa regressão, um compromisso entre as coisas antigas dos tempos primitivos e a exigência do culturalmente novo (FREUD, 1987, p. 75).

Assim, Freud foi um dos primeiros, até onde conhecemos, a romper em teoria, e até onde lhe era possível, com a prática de classificar culturas em uma ordem hierárquica. A moderna etnologia comparada afirma que não há juízo axiológico sobre diferentes culturas no campo da pesquisa acadêmica, o que parece ser um consenso nos dias atuais. Freud, pelo menos em teoria, seria um dos precursores dessa visão, como o fizera com tantas outras cosmovisões.

 

2. O tabu do imperativo categórico

É difícil para nós encontrar uma tradução para ele [tabu], desde que não possuímos mais o conceito que ele conota. A palavra era ainda corrente entre os antigos romanos, cujo ‘sacer’ era o mesmo que o ‘tabu’ polinésio. [...]. O inverso de ‘tabu’ em polinésio é ‘noa’, que significa ‘comum’ ou ‘geralmente acessível’. Nossa acepção de ‘temor sagrado’ muitas vezes pode coincidir em significado com ‘tabu’. [...] As restrições do tabu são distintas das proibições religiosas ou morais. Não se baseiam em nenhuma ordem divina, mas pode-se dizer que se impõe por sua própria conta. [...] As proibições dos tabus não tem fundamentos e são de origem desconhecida. [...] A pena pela violação do tabu era, sem dúvida, originalmente deixada a um agente interno automático; o próprio tabu violado se vingava. [...] Dessa forma, os primeiros sistemas penais humanos podem ser remontados ao tabu (FREUD, [1913] 2006, p. 37-39).

Freud encontra no tabu a origem da lei e parte de uma interessante indução a partir dos étimos de diferentes idiomas – a impossibilidade de se traduzir o termo “tabu”. O que lhe chamava atenção, não somente em relação às neuroses, mas em seus estudos além e aquém da psicanálise, era a existência de uma palavra ou étimo com dois significados opostos em alguns idiomas como o egípcio antigo, o latim, o grego, etc., dependendo do seu uso na oração ou no contexto da fala. Já em A interpretação dos sonhos (1900) Freud fala sobre isso quanto à língua egípcia antiga. Em vernáculo, temos algumas palavras que se comportam da mesma maneira, muitas sendo usadas mais na linguagem corrente do que na escrita formal. O adjetivo “safado(a)” pode ser tanto um adjunto positivo ou negativo, dependendo do falante, sobretudo. Entre pessoas que se relacionam, afetiva e sexualmente pode ser um elogio se o termo se aplicar a uma visão de prática sexual, sobretudo na esfera privada. Todavia, em relação à esfera pública, o termo parece denotar uma atribuição negativa.

Em relação ao termo “tabu”, de fato, o termo latino sacer ou o grego hágios trazem essa ambivalência. O termo “sagrado”, em português, já influenciado pela cultura cristã, assume mais um caráter positivo referente às deidades do que uma ambivalência dos termos, tal como acontecera com o famoso daimon grego, ambivalente por princípio, que hoje se separa em dois termos distintos na maioria das línguas latinas e em muitas línguas indo-europeias modernas. Demônio é a parte negativa do daimon, assim como anjo seria o seu correspondente positivo (de ángelos, mensageiro).

Por um outro lado, o termo “tabu” e sua ideia estão como parte constante do uso da língua portuguesa. Muitas vezes escutamos numa conversa entre amigos: isto é um assunto tabu. Ao dizer isso, trata-se de uma assunto delicado, que pode trazer discórdia entre as partes, mas que ao mesmo tempo lhe é irrenunciável (um assunto tabu nunca nos é indiferente, todos causam um certa polêmica, que gera uma demanda de sentido).

É interessante pensar que o senso comum chega muitas vezes a conclusões semelhantes àquelas de Freud: os atos e/ou comportamentos obsessivos são muito semelhantes à magia e às práticas religiosas, sem explicação lógica plausível, causam um espanto nos outros. Tornam-se tabus. É possível escutar pelo menos na região da cidade do Rio de Janeiro a seguinte expressão: “deixa para lá, assunto tabu.” Se seguirmos esta própria linha de raciocínio, ainda que precária, chegamos à constatação de que em determinados círculos sociais alguns temas éticos são considerados tabus também. Nesse caso, seria algo que se evita numa discussão. Cada indivíduo possui sua dóxa ou “opinião verdadeira” sobre determinado aspecto da sua realidade e, ao expressá-la fora do seu círculo concordante, pode receber o termo classificatório tabu.

Por que a visão de mundo individual, sobretudo se relacionada a assuntos da ética, é chamada de tabu no português hodierno? O que há de sagrado e profano nesse aspecto? A consciência moral, ou como preferimos, o supereu, instância psíquica que atua sobre os desejos, de forma tanto consciente como inconsciente, é algo sacer, sagrado (referimo-nos aqui ao discurso religioso). O eu está numa relação de forças entre o isso e o supereu – aliás, o tema da ambivalência é tratado por Freud com afinco praticamente durante os quatro ensaios de Totem e tabu ([1913] 2006) e nas Neuroses de transferência: uma síntese (1987).

Em termos gerais, para o homem dos livros que era Freud, um vitoriano na vanguarda das transformações sociais da segunda metade do século XX e início do século XXI, o supereu tinha uma certa imagem ou reflexo na filosofia prática: o imperativo categórico.

Ele poderia ter apontado o tabu como a origem da lei natural, da aplicação de valores ontológicos às ações, do discurso performativo, do contrato social exclusivamente, etc. – mas marcou claramente o imperativo categórico e disse mais enfaticamente, ‘nosso próprio’ imperativo categórico (FREUD, [1913] 2006, p. 41). Uma das possíveis razões talvez seja porque assim ele conseguiria salvar a individualidade, a lei interna que nos leva a agir externamente, o determinismo psíquico explicado pela meta-história da passagem da filogênese para a ontogênese, a aplicabilidade da psicanálise enquanto padrões universalizáveis, mas nunca absolutamente como universais unívocos. A instância sagrada, o tabu, é a capacidade de agir por si mesmo, pensar por si mesmo, dentro dos limites de si mesmo; enfim, a maioridade da razão. Como o imperativo categórico não tem conteúdo material, pode servir como paradigma para toda e qualquer ação em qualquer época; como é estrutural, depende somente do sujeito (ainda que o sujeito, para ser sujeito, dependa de inúmeros outros fatores, inclusive e sobretudo de objetos). Isso não poderia ser considerado, no contexto histórico em que Freud se encontrava, um ‘noa’, algo comum e acessível. Era algo sagrado. E causava terror: o medo e a culpa.

O descumprimento ou desrespeito ao tabu do imperativo categórico implica castigo ou punição – a culpa. Um peso por ter ido contra aquilo que se acredita como o certo, um “eu deveria” constante. Essa constância ilustra o comportamento obsessivo (FREUD, [1913] 2006, p. 99ss.). Freud também trata do assunto nesses escritos, mas aqui nos interessa a relação de autopunição entre o imperativo categórico e o tabu decorrente de sua infração: a culpa. Possivelmente, dependendo da gravidade do tabu, quem o desrespeitasse seria banido da tribo, diríamos excomungado, ou até mesmo morto. Nada muito distinto observar que os sentimentos de culpa mais fortes e avassaladores, ao se tornarem pensamentos obsessivos, ou mesmo outras formas de neurose, fazem com que o sujeito sinta-se expulso ou banido de si.

Se a culpa disser respeito a uma relação entre duas pessoas, por exemplo, muitas vezes essa culpa é camuflada pela rápida perda de interesse e investimento libidinal sobre tal aspecto ou processo, muitas vezes considerando esse aspecto morto ou perdido em absoluto, trazendo todo o excedente de investimento libidinal que restou sobre o próprio eu.

Lembramos aqui uma das primeiras histéricas de Freud que teve a perna paralisada devido a uma conversão por um abuso ou fantasia de abuso enquanto cuidava do pai doente (FREUD, [1895] 2006). O assunto havia ‘morrido’, fora punido, todavia o peso sobre a perna, o abuso ou sua fantasia, o que não era permitido, permaneceu sobre ela. E lhe causava a paralisia, ou seja, uma certa forma de interdição.

De onde advêm as interdições do nosso próprio imperativo categórico? Freudeanemente falando, dizemos que do nosso determinismo psíquico. Muitas máximas morais que possuímos nos são desconhecidas em sua origem, apenas as seguimos. Elas estão entre as mais básicas e inconscientes, como hábitos de cordialidade e higiene. Trazer o tema do tabu para o imperativo categórico é a admissão da terceira ferida narcísica: o inconsciente dinâmico – não somos senhores do universo e da Terra, nem senhores dos animais. E agora nem senhores de si somos mais.

 

Considerações finais

O tabu de infringir a deusa razão é imanente, o determinismo psíquico é a implacável Moira, o factum, o amor fati, de Nietzsche: nossa riqueza, nossa fragilidade. Um eterno retorno a si mesmo. Talvez uma das nuances mais tarde explicitadas por Freud através da noção de pulsão de morte. A analogia do imperativo categórico com o tabu, mais do que uma explicação do primeiro pelo segundo, trata-se de uma metáfora para a filosofia e para a ética através de um olhar psicanalítico.

Na sociedade dita pós-moderna, ou seja, sem um modus definido, a lei interna, subjetiva, frágil, ambígua, lacunar, etc., ainda assim é a lei (pelo menos para os analistas) – e se há lei ou tabu, há o assassinato do pai primevo. Esse vislumbre edípico ou triangular da antropologia psicanalítica coloca-nos, a nós que estudamos a psicanálise, a lei tanto frágil como implacável. A qual pai recorreremos? A qual deus? A qual razão? Eis aí o lugar do analista como alguém que pode pontuar alguma direção neste caminho – a morte do pai e a introjeção da lei como num banquete totêmico. Temos no Édipo o núcleo da psicanálise. Como cada sujeito vivencia o complexo de Édipo de forma singular, nossa ética é singular, individual e profundamente subjetiva, por ser psíquica. Talvez seja uma das possibilidades de se apresentar o pensamento ético no contexto da pós-modernidade.

Assim, eis mais uma tentativa de refletir a ética na e através da psicanálise. E como todas as grandes propostas morais da história tiveram uma mitologia9 em sua origem, Freud também não poderia deixar de criar uma para si e sua psicanálise.

O vaticínio de Freud ([1913] 2006, p. 104) reza: “Assim, a primeira imagem que o homem formou do mundo – o animismo – foi psicológica”. Esse é o (seu/nosso) imperativo categórico.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: mafmello@gmail.com

Recebido em: 17/11/2017
Aprovado em: 05/12/2017

 

 

SOBRE O AUTOR

Michell Alves Ferreira de Mello
Doutor em Filosofia pela Basel Universität (Suíça).
Mestre em Filosofia pela PUC-RJ.
Professor e coordenador de Filosofia da FAETEC/RJ.
Candidato em formação no CBP-RJ (4o ano).

 

 

1 Não abordaremos a questão da existência ou não de Esopo. Todavia, cabe-nos um fantasiar sobre como (alguns? todos?) mitos antigos não têm autor determinado, o que nos conduz diretamente à fantasia do pai primevo. Mas isso seria tema para outro texto.
2 Sobre a visão que temos da constituição do fenômeno do sagrado e do religioso, nos remetemos aos textos de Mircea Eliade, principalmente sua História das religiões, A origem dos mitos e O sagrado e o profano.
3 Tradução nossa do texto numa outra formulação além da usual.
4 Para Freud, ao contrário, a educação religiosa não traria nenhum benefício nem para a criança nem para a sociedade.
5 Sob a sombra do totem, eles se (re)conhecem como singulares entre si e diferentes dos outros clãs. Seria necessário aqui um tratado sobre etnologia para abordar o mínimo satisfatório sobre o assunto, bem como as grandes controvérsias da interpretação freudiana sobre o totemismo, mas tempus urgit e pela objetividade, ainda que algo imaginário, precisamos abrir mão destas questões temporariamente. Apenas ressaltamos que a obra de Freud nos pareceu mais um tratado pedagógico através de uma utopia pessimista, digamos assim, cujo enfoque é a política moderna e, sobretudo, romântica, muito mais do que um tratado de etnologia comparada. Toda a cultura nasceu de um crime, e por ele somos responsáveis – talvez haja muitos pesquisadores que intuíram uma possível ligação entre o mito do nascimento da cultura através de um crime com a culpa decorrente do pecado original após os primeiros míticos humanos terem comido ‘o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal'. Se continuarmos a construção dessas analogias mitológicas poderíamos até dizer que no mito freudiano o culpado eterno é o homem, o pai, e os criminosos são os filhos, criminosos e heróis ao mesmo tempo. No mito cosmogônico hebreu, é a mulher a culpada, e através dela o homem também se corrompe. Sem contar a figura mítica da serpente – não encontramos nenhum animal mítico falante no mito freudiano. Ou ainda poderíamos pensar no assassinato de Abel por seu irmão Caim. Ou no mito dos fundadores de Roma, ainda. Mas voltemos ao nosso objetivo.
6 O inferno são os outros, de Sartre. Mantivemos no original apenas para deixar o texto barroco.
7 Como todo herdeiro do Romantismo, Freud vive no sonho de encontrar um tempo mais primitivo e originário, uma Urzeit, na qual tudo começou e se formou – explicado sob a égide da deusa razão. Além disso, ele assume outra característica dos românticos: a ideia de tempo em espiral, em forma de élan, quase cíclico, ou mesmo cíclico propriamente dito. A ideia de ‘fase' ou ‘estágios' de um desenvolvimento – o tempo cíclico e teleológico romântico, um evolucionista – numa linha dúbia entre otimismo e pessimismo social. Ele mantém também, para manter a ambivalência quanto à sociedade, os elementos da política kantiana, comuns e enraizados em sua cultura: necessidade de um ponto de fundação da sociedade ou comunidade, uma lei e a renúncia ao despotismo.
8 “Direito de sangue” e “direito de razão” são expressões jurídicas.
9 Chama-nos a atenção aqui o fato de Freud ter denominado a metapsicologia de sua mitologia. Todavia, Freud parece criar algumas mitologias para justificar sua clínica, e isso não é algo estranho a tantos outros pensadores. Trata-se de uma mitologia moderna, baseada sobretudo na deusa razão.

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