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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.49 Belo Horizonte jan./jun. 2018

 

EDITORIAL

 

Por que um psicanalista escreve? Qual a função da escrita em nosso ofício?

A escrita em psicanálise nos leva ao bordejamento do impossível de ser dito. É um tratamento dado à angústia muitas vezes vivida na solidão de nossos consultórios, no silêncio da escuta de nossos pacientes. Silêncio imposto pelo apagamento do sujeito do analista para se fazer causa do desejo do analisando. A palavra calada vagueia na penumbra, às margens da linguagem para retornar em ato. É no só depois da escrita que ela se fará significante, ganhará potência para testemunhar uma realidade outra, outra cena, o inconsciente.

Mas os analistas também escrevem sobre o que elaboram da realidade de seu tempo – cultura, ciências, artes, política, crimes, sexualidade, tudo metabolizado pelo olhar da psicanálise, que nos leva a uma vertente para além da realidade dos fatos, ao questionamento do excesso de sentido dado pelo imaginário e na busca do furo, do desejo, que é o que nos faz humanos, o que nos faz seres falantes. Questionamento que parte também da escuta dos mecanismos inconscientes em ação no social, que leva em conta a singularidade dos grupos, das raças, dos gêneros e que respeita as diferenças num trabalho de psicanálise em extensão. Ao pensar os fatos da cultura, os analistas exercem um importante papel na cena da história, e a sua escrita tem, às vezes, a força de testemunho de uma realidade psíquica que não se restringe ao observável do comportamento, mas que também inclui as paixões que movem o sujeito e as massas.

É por isso que escrevemos, que precisamos escrever, permitindo que o verbo se faça corpo, se materialize em significantes que tentam dar algum sentido ao que nos escapa enquanto seres falantes, tratando o mal-estar que nos acomete. Congressos, seminários, discussão de casos, publicação de artigos de livros e revistas são veículos dos quais nos valemos para disseminar a peste freudiana. E é por isso que estou aqui, neste Editorial, tendo a honra de prefaciar mais uma edição da revista Estudos de Psicanálise, que nos traz trabalhos muito interessantes de colegas de todo o Brasil.

À guisa da apresentação geral dos artigos deste número, posso dizer:

A partir da obra de Freud e Ferenczi, Francisco de Assis Duque discute o conceito de empatia em psicanálise e sua importância na clínica, no texto Empatia psicanalítica: possibilidade e dificuldade.

A dificuldade de “filiar”, apresentada por alguns pais que se candidatam à adoção de crianças e sua implicação no obstáculo que se coloca à inscrição da criança adotiva em nova história é a reflexão que nos trazem os autores Sheila Speck, Edilene Freire de Queiroz e Patrick Martin-Mattera no artigo Desafios da clínica da adoção: devolução de crianças.

Já a criação artística e o trabalho com a dor da perda e a tensão gerada pela tarefa de aceitar as realidades interna e externa é abordada a partir do referencial winnicotiano pelas autoras Rosilda Maria Sá Gonçalves de Medeiros e Maria Consuêlo Passos no artigo O embalo perdido e o ceramicar: a arte modelando o self.

A arte é também o tema do artigo de Vivian Martins Ligeiro e Marco Antônio Coutinho Jorge Psicanálise e arte: o triunfo do real. Nele os autores relacionam e problematizam o real lacaniano e a arte contemporânea, refletindo sobre o lugar do real nesse estilo artístico, especialmente na performance.

No artigo Atravessado pelo mal-estar, Messias Eustáquio Chaves, a partir da leitura do texto O mal-estar na civilização, aponta a irritação de Freud com os preconceitos de sua época, assim como com a ilusão de felicidade e completude, ressaltando a importância do real da pulsão de morte e da incompletude do ser falante em sua estrutura psíquica.

No artigo A clínica psicanalítica com idosos: uma construção, José Maurício da Silva defende a sublimação como meio de sustentação do desejo e de transformação, lembrando que a única maneira de lidar com o desamparo estrutural é pela via do desejo e pela invenção de um estilo.

As questões da feminilidade e sua relação com a maternidade são o tema do artigo Feminilidade e maternidade no discurso contemporâneo, de Priscila Ribeiro Guimarães Costa. Nele a autora defende a ideia de que tanto o tornar-se mulher quanto o tornar-se mãe envolvem uma série de simbolizações que não ocorrem sem perdas ou sacrifícios.

Rafael Kalaf Cossi, no texto Stoller e a psicanálise: da identidade de gênero ao semblante lacaniano, parte da obra de Stoller e contrapõe Stoller e Lacan. Ele afirma que a identificação sexual não consiste em se crer homem ou mulher e que o homem só pode se afirmar como tal em relação à mulher, e vice-versa.

A trajetória do conceito de Outro (A) na obra de Lacan e sua formalização é o que Breno Ferreira Pena e Ronildo Deividy Costa da Silva abordam no artigo O Outro no ensino lacaniano: algumas considerações. Os autores fazem um percurso desde o Outro como campo do simbólico do sujeito trabalhado por Lacan no início de seu ensino até o Outro inexistente.

Angela Maria Menezes de Almeida compartilha, no artigo Com a corda no pescoço: psicanálise e clínica em tempos atuais, sua visão da clínica psicanalítica atual, na qual a incapacidade de representação psíquica se faz presente, trazendo impasses e exigindo a construção de novos caminhos de intervenção.

No texto Shakespeare - a tragédia de Coriolano. Uma interpretação psicanalítica a partir de Robert Stoller, Judith Butler e do filme de Ralph Fiennes, Anchyses Jobim Lopes aborda a manifestação da pulsão de morte em sua face sádica e masoquista através da ira, do excesso e da violência, centrais no texto.

A construção e a consolidação do conceito de corpo na obra de Freud, entre 1893 e 1923, e sua repercussão nas intervenções pedagógicas é abordada por Jeferson José Moebus Retondar no artigo A construção do sentido de corpo na psicanálise e possíveis contribuições para a educação.

Magda Maria Colao e Janes Teresinha Fraga Siqueira assinam o artigo Psicanálise: uma relação dialética entre o individual e o social. As autoras acreditam que em sua obra Freud não opôs o sujeito individual ao ente social e, por sua formação cultural e seu legado, seria um equívoco considerá-lo individualista ou desarticulado do social.

A relação entre o ideal de feminilidade, a sexualidade feminina e a infecção de mulheres por HIV são os temas investigados por Ana Cleide Guedes Moreira, Milla Maria de Carvalho Dias Vieira e Paulo Roberto Ceccarelli no artigo Sexualidade e ideal de feminilidade: contribuições para o debate.

A teoria da loucura em Lacan como crítica ao patetismo da doença mental é o artigo de Martín Mezza. Nele o autor se propõe a apresentar a tese de que a “fórmula geral da loucura”, tal como foi elaborada por Lacan, implica, necessariamente, a crítica da doença mental.

Noeli Reck Maggi, no artigo O lugar do sintoma no sofrimento psíquico: o que esconde e o que revela, a partir do referencial teórico de Freud, Bion e Winnicott reflete sobre o sofrimento psíquico presente no sintoma que, em última instância, revela o vazio existencial do sujeito e o desejo de que alguém o desvele.

A produção do analista no âmbito de sua análise pessoal e a relação disso com o início da prática clínica é a reflexão que Bruno dos Santos Oliveira nos traz no artigo Tornar-se analista: o produto de uma análise e seus impasses, a partir das construções lacanianas a respeito do tema.

Todos os artigos refletem o olhar arguto de seus autores sobre os temas escolhidos e trazem a interlocução da teoria psicanalítica com a clínica e com outros campos do saber – arte, educação, sexualidade, cultura. Reflexões que nos mobilizam e nos levam a pensar acerca do sujeito e suas relações na contemporaneidade.

Boa leitura!


Maria Carolina Bellico Fonseca

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