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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.49 Belo Horizonte Jan./July 2018

 

PSICANÁLISE: CLÍNICA E TEORIA

 

Com a corda no pescoço: psicanálise e clínica em tempos atuais1

 

In dire straits: psychoanalysis and clinic in our time

 

 

Angela Maria Menezes de Almeida

I Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho traz, como eixo central de reflexão, alguns impasses apresentados pela clínica psicanalítica atual e consequentes desafios colocados aos psicanalistas para a construção de novos caminhos de intervenção. Diante de situações complexas em que a incapacidade de representação psíquica se faz presente no setting analítico, o saber-fazer da psicanálise, como potência e movimento, nos remete a um enquadre clínico, em que as sutilezas do processo analítico vão dando contorno a uma práxis analítica pautada no sensível. Fragmentos de um caso clínico corroboram essa visão.

Palavras-chave: Formação analítica, Impasses na clínica atual, Organizações narcísicas, Sensorialidade na práxis analítica, Construção de vínculo.


ABSTRACT

This paper has as it’s main reflexive axis some impasses exposed through actual psychoanalytical clinic, and the challenges posed to psychoanalysts to construct new intervention approaches. Facing complex circunstances, were there is no capacity for psychical representation at the analytic setting, the psychanalytical expertise, as potency and movement, send us to clinical frames were subtleties of the analytical process give us outlines to a psychoanalytical praxis lined through sensibility. Extracts from a clinical case uphold our view.

Keywords: Psychoanalytical training, Clinical impasses at our time, narcissistic disorders, Sensorality, Constructing links.


 

O país inexplorado no meio de
longínquos mares
É isso que eu digo às vossas velas
Que procurem e tornem a procurar.
NIETZSCHE

 

Refletir sobre a clínica psicanalítica de nossos tempos nos coloca diante de impasses que nos desafiam a buscar saídas no não sabido, no não confortável, no não estável, ou seja, somos, ao mesmo tempo enlaçados no processo em que a transferência/contratransferência nos remete, incitados, estimulados, desafiados a encontrar caminhos possíveis de construção de novas possibilidades de intervenção, diante das dores, dos vazios e dos excessos pulsionais que habitam a nossa clínica.

Como fazer isso psicanaliticamente?

Como intervir diante dos impasses da clínica atual, quando o trabalho analítico já não cabe dentro dos preceitos da associação livre/atenção flutuante?

Em que constructos teórico-técnicos nos apoiarmos para o desenvolvimento desse trabalho?

Que parâmetros considerar para nos autorizarmos a esse fazer clínico?

Freud, com quem nasce a ciência psicanalítica, busca dimensionar a complexidade dessa formação, ao vinculá-la ao famoso tripé: teoria, clínica e análise pessoal.

Por aí, já se percebe a impossibilidade de um fazer linear, garantidor de estratégias clínicas exitosas. Por aí, já se infere que não existe a psicanálise, mas uma multiplicidade de possíveis caminhos psicanalíticos, onde a singularidade de cada profissional, reassegurada fundamentalmente por sua análise pessoal possa abrir espaços para o surgimento do singular no outro.

Em Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise, ao ser perguntado como alguém pode se tornar analista, Freud ([1912] 1996, p. 130) sintetiza a questão na seguinte assertiva: “[...] torna-se psicanalista a partir de seu processo de análise”.

Ao final de sua obra, no emblemático texto Análise terminável e interminável ([1937] 1996), ele problematiza essa discussão, mostrando que há um ponto de irredutibilidade, quanto ao final da análise, a partir do qual se é convocado a uma produção singular.

Logo, somos psicanalistas em eterno processo de formação. Somos psicanalistas em devir. Essa é a nossa condição. Nunca estar prontos. É uma condição socrática: saber que não sabemos.

É essa condição que nos impulsiona à busca, que nos faz desejantes de alcançar o novo, o não sabido: no externo e no interno, no outro e em nós mesmos, em uma linha de pensamento conflitante, que precisa se pautar no entre-dois, fora do âmbito de uma lógica discursiva de posições opositoras, que possa, assim, nos permitir uma aproximação com a realidade psíquica.

É essa condição, pois, que nos remete a várias indagações, a infinitas questões, possibilitando a ampliação de nossa mente para horizontes ainda não visitados. Portanto, pensar em desafios atuais da clínica psicanalítica é estar imersos nesse processo contínuo de procurar entender como a psicanálise pode contribuir com esses novos tempos.

Freud, numa carta a Binswanger, publicada pela Gallimard em 1969, traz a seguinte pontuação:

Não há nada para que o homem, por sua organização, esteja menos apto do que para a psicanálise. A organização “natural” da mente, o equipamento constituído do aparelho, os sedimentos adquiridos do saber, longe de favorecerem o funcionamento analítico, entravam-no (FREUD citado por PONTALIS, 2005, p. 216).

Isso nos remete a algumas reflexões importantes de considerar, ao buscarmos identificar o que estaria ou não no âmbito do fazer psicanalítico.

Em se tratando de psicanálise, sabemos que nada deve ser objetivado. Não é da lógica cartesiana que se trata. A competência teórica não é o carro-chefe desse trabalho. Não se trabalha com percursos definidos, a priori. Não se definem pontos estratégicos a alcançar. Não se é dono do tempo necessário às possíveis elaborações. Também, não se trabalha com certezas.

O que nos interessa enquanto psicanalistas é o desconhecido. O conhecido é irrelevante para a psicanálise. O enigmático é o que nos faz pensar, o que nos traz a possibilidade de criar e, consequentemente, de chegar ao novo. Pensar psicanaliticamente é, pois, pensar num processo de comunicação de inconsciente para inconsciente, que se dá numa dimensão relacional, transferencial, em que o progresso da análise depende fundamentalmente do que possa surgir no espaço-tempo analítico, criado pelas duas partes aí implicadas: analista e analisando.

Nesse âmbito, a psicanálise seria um movimento, uma potência e, assim, poderia realizar diferentes operações para recortar, para fazer circular, para remanejar tensões instituídas, ou mesmo para recuperar o sentido de “revolta”, termo cunhado por Julia Kristeva (2002), como retorno que visa à subversão, à mutação, podendo, de tal forma, reavivar a faculdade de representação e de questionamento que especifica o humano.

Outro aspecto importante a considerar quanto à amplitude do processo psicanalítico seria ater o olhar na própria história da psicanálise e perceber que ela consistiu menos em definir os limites de sua ação e mais em delinear o seu pensamento, procedendo a incessantes momentos de retificações de fronteiras. Um saber sempre aberto a reconstruções e a novas construções. Todo o seu material de estudo, estrutura nosográfica, teoria e técnica, foi se construindo numa linha de pensamento não redutor.

Essas questões nos levam a pensar que, em se tratando de psicanálise, não basta fazer com que os fenômenos patológicos caibam na estreiteza de um quadro clínico, nosograficamente considerado, mas inversamente de criar um enquadre para que o objeto psicanalítico possa se constituir correlacionado tanto com a construção teórico-técnica, quanto com a instauração da situação analítica e os elementos aí implicados.

A ciência psicanalítica sempre teve como princípio nunca recusar o irracional, o incoerente, o inquietante, mas pensar aquilo que não conseguimos pensar, aquilo que se apresenta para nós como a ultrapassagem do limiar do tolerável.

É nesse limiar que a clínica psicanalítica contemporânea se encontra. Assim é que o campo do analisável se apresenta a nós. Nossa ação não se dá a partir de um centro garantidor de estratégias teórico-clínicas de êxito. E isso talvez seja a mola propulsora que nos faz estar em constante questionamento, em busca de construir uma experiência de processo analítico singular para cada paciente que conosco venha a viver essa realidade.

Podemos afirmar que hoje estamos com a corda no pescoço?

Se pudermos lançar um olhar longínquo para a história da psicanálise e fazer valer os versos do poeta Fernando Pessoa/Alberto Caeiro (2002) “[...] eu não sou do tamanho da minha altura, mas do que os meus olhos podem ver”, talvez possamos vislumbrar que, desde seus primórdios, a psicanálise sempre viu no obstáculo o motivo desencadeante de seu constructo teórico e a moção pulsional de seu progresso científico.

É ali, onde o incompreensível se instala, onde algo resiste, onde o entrave se faz presente, onde o ato se coloca no lugar da palavra, que a psicanálise tem a possibilidade de se fazer existir. Sua existência sempre esteve condicionada ao encontro dos limites do analisável, não como barreiras, mas como possibilidade de transposição/transgressão, como abertura a novas vias de intervenção.

Então, lançar luz sobre certas patologias de pacientes, aparentemente inacessíveis, tão presentes em nossa clínica psicanalítica atual, é contribuir com o fortalecimento dessa ciência. É dar continuidade à construção/reconstrução do “saber/fazer” psicanalítico.

Ferenczi, autor que se dedicou ao estudo de “casos difíceis”, baseados em situações traumatogênicas, chama a atenção dos psicanalistas para o fato que ele aponta como

[...] tendência excessiva a perseverar em certas construções teóricas e a deixar de lado fatos que abalariam a nossa segurança e a nossa autoridade (FERENCZI, [1933] 2011, p. 115).

Quanto a isso, ele nos alerta que devemos ser analisados muitíssimo bem, para não nos desestabilizarmos diante de situações complexas, que se configuram fora da ordem dos quadros clínicos estabelecidos pela psicanálise clássica.

Pontalis, psicanalista francês e autor de expressiva obra na área de psicanálise, em seu livro Entre o sonho e a dor, é veemente na defesa da análise do analista, ao afirmar que

[...] um analista que ignora sua própria dor psíquica, não tem nenhuma chance de ser analista (PONTALIS, 2005, p. 278).

No percurso de leitura e estudo de autores que abordam casos clínicos que extrapolam as chamadas neuroses de transferência (histeria, fobia e neurose obsessiva), vamos encontrar uma gama de nomenclaturas, tais como, casos limites, casos difíceis, borderlines, autismo psicogênico, angústia primordial, organizações em ‘falso self’, falha básica, sofrimentos narcísicos identitários, entre tantos, todos eles configurando organizações narcísicas situadas num tempo longínquo, arcaico, do recalque primário, da clivagem do ego, ou seja, um tempo aquém da representação, o que dá ao psiquismo um peso de realidade, qualquer que seja a estrutura patológica em questão.

Julia Kristeva (2002), em As novas doenças da alma, identifica que o que está em jogo nesses casos é a ameaça de existência do ser, ou seja, trata-se de um ego extremamente fragilizado, ainda em busca de organização e, consequentemente, com precariedade no processo de simbolização ou mesmo com incapacidade de representação psíquica.

A atualidade analítica nos coloca, pois, de frente para problemáticas clínicas que poderíamos identificar como marcadas por narcisismos, depressões, adições e perturbações somáticas. Essas formas clínicas, tão presentes em nossa realidade, têm trazido questionamentos e desafios aos psicanalistas atuais, quanto ao seu modo de ser, à sua escuta e à sua intervenção junto aos pacientes.

Decifração, investigação ou mesmo arqueologia psíquica ainda seriam os pontos altos da ação psicanalítica dessa nova clínica?

E a questão da contratransferência, como reconhecê-la, não para se defender dela, mas para tirar proveito nesse novo fazer clínico?

Como lidar com a sensação de paralisação, quando a sessão se aproxima de um acting out e as palavras se tornam atos?

Continuamos com a corda no pescoço?

Na concepção de Pontalis (2005), o campo do analisável nas experiências clínicas atuais tem se apresentado em permanente oscilação entre o que pode ser dito e o que tem de ser calado ou gritado para ser escutado.

Nas novas patologias psíquicas, a questão principal é a necessidade de consolidação de um ego, que se apresenta com falhas básicas. Esses pacientes precisam recorrer a “próteses psíquicas” para sentir que têm uma existência. Eles precisam adicionar algo ao corpo, como garantia de consistência. Daí a presença de diversas compulsões, como drogas, álcool, comida, sexo, jogos, autoflagelação, entre tantas outras.

Trata-se de um sofrimento que embaralha as fronteiras do corpo e da psique, do eu e do outro, ou seja, um sofrimento que, ao interceptar a fala, abre a possibilidade de empoderamento da realidade psíquica. Ou, mais ainda, abre a possibilidade de invenção/criação de uma realidade psíquica que precisa ser colocada no lugar do vazio, do nada existencial daquele ser.

A realidade psíquica, ausente, precisa ser restaurada ou até inventada; mais que ser reencontrada, precisa nascer (PONTALIS, 2005, p. 250).

Nesse âmbito, a psicanálise hoje – ao aprimorar a escuta específica a cada paciente, ao evitar a generalidade das estruturas e buscar focalizar a profundidade de sintomas específicos para melhor apreender a singularidade de cada um e ao se abrir a outros campos de atividades humanas, em especial, à arte, à literatura e à filosofia, com os quais poderia enriquecer e desdobrar seus próprios conceitos – estaria possibilitando que um novo olhar, uma nova escuta e um novo sentir se instalem no setting analítico.

Ivanise Fontes, psicanalista contemporânea brasileira e articuladora da ‘psicanálise do sensível’, vem destacando a importância da sensorialidade na práxis analítica de nossos tempos. Ela afirma haver momentos, durante um percurso de análise, em que se apresentam imagens/palavras aparentemente desvitalizadas, que possibilitam uma frágil aproximação entre o sensível e o inteligível.

Aqui, diz ela, a partir de uma escuta cuidadosa, um sentido pode surgir (2002).

Quando uma relação analítica encontra-se num nível primário, ou seja, quando a transferência atinge níveis mais arcaicos, as palavras não são mais possíveis, e as sensações têm lugar (FONTES, 2010, p. 20).

Assim, no manejo da transferência como recurso analítico fundamental estaria a possibilidade de consolidação de um ego extremamente fragmentado. Estaria a possibilidade de o analista metabolizar as sensações indizíveis do paciente em um discurso conciliável. Um caminho de construção e não mais de reconciliação com o passado.

Como sempre, a psicanálise continua a nos impulsionar a caminhar, a desbravar novos horizontes, a partir de questões que nos fazemos e de diálogos que travamos com autores e parceiros.

A palavra “analisar”, em seu sentido original, vem do grego analuein, que significa ‘des-ligar’, ‘de-compor’. Eu só posso desligar o que foi ligado, só posso decompor o que foi composto, ainda que esteja tamponado, recalcado. Desligar para religar, decompor para recompor.

No tocante às situações limites aqui mencionadas não é disso que se trata. Eu não posso desligar o que nunca foi ligado. Nesses casos, a ligação é absolutamente necessária. É preciso estabelecer o vínculo. É preciso construir algo em cima do vazio, do excesso de nada. marca de um estado de angústia impensável, presente de forma marcante na clínica de nossos tempos.

Como fazer isso?

Como nos autorizar a um saber-fazer psicanalítico, em que as sutilezas desse processo possam dar contorno a uma práxis analítica pautada no sensível?

A propósito, como está o processo de análise de vocês?

 

Fragmentos de um caso clínico

Se eu pudesse te dizer
Aquilo que nunca te direi
Tu poderias entender
Aquilo que nem eu sei.
FERNANDO PESSOA

 

1 A corda no pescoço do outro

Paciente em análise há quatro meses, uma vez por semana. Trata-se de um homem jovem, casado e pai de um filho.

Conforme o transcorrer das sessões, fui percebendo que o quadro clínico que se apresentava extrapolava as neuroses clássicas.

Busquei estabelecer um clima em que a transferência pudesse se fazer. Ele vinha de duas experiências de análise, uma com forte identificação com a analista que, por motivo de mudança de cidade, precisou interromper o processo, [abandonado?] e o encaminhou a uma nova analista com quem ele não conseguiu estabelecer uma boa transferência [abandonou?].

[Foi cortado e cortou. Ficou desamparado.]

Para efeito de síntese, no momento de organizar esta apresentação, listei as características que foram se apresentando, nesse curto espaço de tempo:

• paciente em estado fóbico, bastante acentuado;
• alternância de estados de intensa agitação (caminhadas/pedaladas/área de “cracudos”) com quadros de profunda depressão (muito choro);
• ausência de consciência em alguns momentos;
• estados de irritação extrema;
• medo de perder o controle;
• momentos de autoflagelação (queimaduras com garfo/faca, aquecidos no fogo); [dor como possibilidade de existência?]
• necessidade de se proteger de ataques externos (corda de aço/aparelho de choque);
• pensamento paranoico muito presente;
• somatizações frequentes (vômitos)
• surtos de agressão a terceiros;
• uso de medicação psiquiátrica (há 4 anos)

Nesse momento, ressalta à minha escuta um fato que ele narra, me explicando com detalhes como faria uso da corda que trazia em seu bolso, como medida de proteção de um possível ataque externo: “Eu o paralisaria, com essa corda no pescoço”.

 

2 A corda no próprio pescoço

Após três meses de análise, num momento em que me narrou sentir que alguns sintomas estavam ficando mais fortes, falou-me que já havia alguns anos que não ia ao psiquiatra. Alegou que esse psiquiatra já era muito idoso e ele achava que nem estava mais trabalhando. No entanto, o paciente continuava fazendo uso dos mesmos medicamentos que conseguia adquirir numa farmácia.

Fiz, então, indicação de um novo psiquiatra. Aceitou muito bem. No dia da consulta com o psiquiatra, houve um atraso considerável no horário que havia sido estabelecido, o que gerou nele forte angústia (enviou-me mensagem/medo de perder nossa sessão).

Durante a sessão de análise, naquele mesmo dia, falou-me não ter se sentido acolhido por esse psiquiatra. Disse-me que não foi marcada uma data para possível retorno e que, apesar de suas queixas sobre o efeito dos remédios que estava tomando, não foi feita nenhuma nova prescrição. Comprometi-me a conversar com o médico.

Logo depois desse incidente, eu soube pela família que seu quadro havia se desestabilizado. [Repetição da cena anterior em que a analista faz uma indicação e ele, por não se sentir acolhido, sente forte transferência negativa que o leva a romper com o atendimento.]

Um dia antes de sua nova sessão, ele me envia uma imagem pelo WhatsApp: um palhaço, com uma corda no pescoço e amarrada a um arbusto, bem frágil e bem mais baixo que o próprio palhaço. Em uma das mãos, ele tem um regador e está regando esse arbusto. [Desejo de suicídio?]

Ele estaria preparando as condições favoráveis a essa realização?

Pelas condições do arbusto, parece que falta muito tempo para que isso possa acontecer. [Está me pedindo ajuda para que isso não aconteça?]

No dia de sua sessão, bem cedo, me envia uma mensagem, dizendo que não irá à sessão, porque não está se sentindo bem.

Envio-lhe outra mensagem, buscando saber como ele está e colocando-me disponível.

Ele não me responde e não vem à sessão.

[Forte transferência negativa comigo? Quebra da confiança, mais uma vez? Não vindo, estaria me protegendo de uma possível agressão?]

Na semana seguinte, dois dias antes de sua sessão, envio-lhe uma mensagem dizendo estar esperando por ele, em seu dia e horário.

Responde-me, com uma palavra desvitalizada: [Perfeito]

 

3 A corda no meu pescoço

Chega a essa sessão e me dá um presente: uma echarpe. Agradeço. [Culpa?] Começamos a conversar sobre a imagem do palhaço que ele me enviou. Está muito curioso em saber o que eu pensei. Diz que enviou a outras pessoas, que a relacionaram a suicídio. Devolvo a pergunta a ele. Fala que não pensou em suicídio, mas no momento político que estamos atravessando. “Somos feitos de palhaços”. Mas diz que vê no palhaço duas posições: “babaca” e artista.

Falo sutilmente que faz sentido o que ele me diz, mas que aquilo que chama a nossa atenção, mesmo que não saibamos, tem a ver conosco.

Pontuo o aspecto positivo que ele viu no palhaço: o que traz alegria, esperança.

Digo-lhe também que vejo naquela imagem uma árvore muito pequena, sem a menor chance de se configurar a tragédia anunciada. E que, se ele a enviou a mim, tal fato configurava um ato de confiança/esperança de juntos revertermos esse processo. O “nó da garganta” poderia ser desatado.

Ainda ‘com os meus botões’, pensei numa outra posição ocupada pelo palhaço: “o bobo da corte” que, com o seu non sense é o único que pode dizer a verdade sem nenhuma interdição; tem abertura para dizer a verdade.

Retornando para casa, naquela noite, coloco a echarpe no pescoço (a noite estava fria).

No carro, em determinado momento, percebo que “estou com a corda no pescoço”. Rio sozinha e penso: “Agora, estamos os dois com a corda no pescoço?”. “O que isso pode significar, além de um possível desejo de agressão?”.

Resolvo me deixar levar pela sensação.

[O que estou sentindo com essa corda-echarpe no meu pescoço?

Percebo que é uma sensação boa: maciez, quentura...

Penso no seio materno que aquece e nutre...

Será que uma corda pode se tornar um laço?

Estamos unidos nessa dor?

Com essa echarpe que me enlaça, ele estaria me dizendo de seu desejo de vínculo comigo?]

Na sessão seguinte, ele esteve muito bem, falando de seus projetos profissionais. Parecia satisfeito consigo.

 

4 Movimento de transformação no processo de comunicação

Dias antes da próxima sessão, ele me enviou uma mensagem em que dizia:

Ontem completou quatro anos que tudo começou. Eu sabia, mas nem me abalei. Mas hoje foi uma espécie de déjà vu. Deu um nó na garganta. Quando precisei passar uma roupa para sair. E não consegui. Acho que fiquei com medo de voltar ao que era.

Vejo um processo de regressão. Chama a minha atenção, mais uma vez, o “nó na garganta”. Só que, aqui, já não é a linguagem pictográfica que se apresenta. Ele divide comigo sua dor, no momento em que está tomado por ela, através das palavras que me escreve. Ainda não dá para falar de sua dor.

Na véspera de sua sessão, ligou-me falando de seu intenso mal-estar naquele momento.

Conversamos, pelo celular. Consegui acalmá-lo.

Aqui, no momento da dor, a voz se fez. Longe... fraca... mas voz.

Quero destacar dois aspectos nesses fragmentos:

• O movimento de transformação, no processo de comunicação da dor, que se faz num seguimento evolutivo, num momento de intenso sofrimento:

- através de uma imagem (linguagem pictográfica);

- através de um texto (linguagem gráfica) e

- através da voz (linguagem fônica).

• Os elementos -corda no pescoço, nó na garganta- num primeiro momento, quero pensar como esses elementos ressaltaram à minha escuta. Pensar na complexidade, na dureza que é o processo de escuta analítica.

[O que ocorre para que, de certo modo, possamos identificar algo que faça sentido no aparentemente sem sentido?]

Isso me remeteu a um texto de Clarice Lispector (1998, p. 19), referindo-se à dureza do ato de escrever, em que ela diz:

Não, não é fácil escrever. É duro como quebrar rochas. Mas voam faíscas e lascas, como aços espelhados.

Acho que é isto: na persistência de se apurar a escuta, em toda a sua dureza, lascas de sentido batem em nós, reverberando em nossos pacientes.

Num segundo momento, quero buscar significar esse elemento “corda no pescoço”, buscar pensar psicanaliticamente sobre ele:

• impasse/impossibilidade/impotência/paralisação;
• “pescoço”, canal por onde passa a voz;
• “nó”, aquilo que intercepta a voz, não deixa que a palavra se faça;
• se a palavra não pode advir, o ato se instala;

Observo também o movimentodeslocamento que o elemento “corda no pescoço” vai fazendo no transcorrer das sessões:

• a corda no pescoço do outro (corda de aço = concreta) – possibilidade de destruição/agressão... pulsão de morte, em intensidade, no comando;

[Possibilidade de interceptação de uma vida?]

• a corda no próprio pescoço (corda de fibra = uma imagem);

[Surge numa imagem pictográfica, pela impossibilidade da palavra? É um pedido de ajuda? Traz a esperança de poder reverter o processo que a imagem anuncia?]

• a echarpe/corda - echarpe/laço em meu pescoço (de lã macia = simbólica);

[Desejo de construção de uma nova forma de lidar com a sua dor? Desejo de um vínculo de afeto comigo, para a construção de algo prazeroso sobre o excesso de nada que o inunda?]

Essas são algumas questões que deixo com vocês.

Quanto a mim, nenhuma certeza. Apenas um jeito ético de me conduzir pelos intrincados caminhos da psicanálise e uma abertura à sensibilidade poética, para que a sensorialidade possa se fazer presente, instalando um novo jeito de olhar, de escutar e de sentir a dor do outro.

E, para isso, meu tripé da formação psicanalítica continua armado e em ação.

 

Referências

FERENCZI, S. Confusão de línguas entre os adultos e a criança (1933). São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. p.111-121. (Obras completas, 4).         [ Links ]

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FONTES, I. Psicanálise do sensível - fundamentos e clínica. São Paulo: Ideias & Letras, 2010.         [ Links ]

FREUD, S. Análise terminável e interminável (1937). In: ______. Moisés e o monoteísmo, esboço de psicanálise e outros trabalhos (1937-1939). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 231-270. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 23).         [ Links ]

FREUD, S. Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise (1912). In: ______. O caso Schreber, artigos sobre técnica e outros trabalhos (1911-1913). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 125-133. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 12).         [ Links ]

KRISTEVA, J. As novas doenças da alma. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.         [ Links ]

LISPECTOR, C. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.         [ Links ]

PESSOA, F. O guardador de rebanhos. Mensagem. São Paulo: Martin Claret, 2002.         [ Links ]

PONTALIS, J.-B. Entre o sonho e a dor (1988). Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Ideias & Letras, 2005.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: ammalmeida.49@gmail.com

Recebido em: 13/03/2018
Aprovado em: 06/04/2018

 

 

SOBRE A AUTORA

Angela Maria Menezes de Almeida
Pedagoga.
Psicanalista.
Membro efetivo do CBP-RJ.
Coordenadora de seminários no curso de formação de psicanalistas do CBP-RJ.
Coordenadora de cursos livres na área de psicanálise.
Especialista em metodologia do ensino superior e em pedagogia empresarial pela UNIGRANRIO-RJ.
Mestre em educação pela UNIVERSO-RJ.
Autora de artigos psicanalíticos publicados nas Revistas Estudos de Psicanálise (CBP) e Cógito (BA).
Coautora e organizadora do livro Gestão escolar: ações, reflexões e compartilhamentos na Baixada Fluminense (Rio de Janeiro: Arco-Íris, 2008).

 

 

1 Trabalho apresentado na VIII Jornada de Psicanálise do CBP-RJ Desafios atuais da clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Hotel Mirador, 16 set. 2017.

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