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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.49 Belo Horizonte Jan./July 2018

 

PSICANÁLISE: CLÍNICA E TEORIA

 

Tornar-se analista: o produto de uma análise e seus impasses

 

Becoming an analyst: the outcome of an analysis and it’s impasses

 

 

Bruno dos Santos Oliveira

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente trabalho pretende abordar a produção do analista no âmbito da análise pessoal e a relação disso com o início da prática clínica. Um questionamento a respeito do final de análise enquanto produção de um analista e os possíveis impasses na direção de um tratamento. Que efeitos têm ocorrido na condução analítica daqueles que se propõem a clinicar quando não terminaram a própria análise? A discussão visa ampliar o debate a respeito da produção do analista a partir das construções lacanianas sobre final de análise, travessia de fantasia, estilo, e como isso impacta a psicanálise em intensão.

Palavras-chave: Final de análise, Ato analítico, Produção do analista.


ABSTRACT

The present work intends to approach the production of the analyst in the scope of the personal analysis and the relation of this to the beginning of the clinical practice. A questioning about the end of analysis as an analyst's production and the possible impasses in the direction of a treatment. What effects have occurred in the analytical conduct of those who propose to clinic when they have not finished the analysis itself? The discussion aims to broaden the debate about the production of the analyst from the Lacanian constructions on the end of analysis, crossing of fantasy, style, and how this impacts psychoanalysis in intensity.

Keywords: End of analysis, Analytical act, Production of the analyst.


 

A produção do analista é uma temática que tem ocupado meus pensamentos e de muitos colegas psicanalistas há bastante tempo. Desde a época de Freud esse assunto é tratado com um nível de seriedade e cautela devido ao assombro que paira quando se desenvolve ideias e teorias de como seria possível formar alguém para o exercício de conduzir uma análise. Essa dificuldade remete a muitas questões da própria prática pelas condições e exigências que se aplicam.

Em alguns dos textos conhecidos de Freud como em Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise (1912), A questão da análise leiga (1926), Análise terminável e interminável (1937), é possível perceber preocupação dele com a transmissão fidedigna da sua teoria. Entre os vários percalços enfrentados nessa história do movimento psicanalítico, é possível pontuar alguns obstáculos na transmissão assim como na sua produção. O próprio saber carrega consigo uma marca de sua impossibilidade, já que o seu criador coloca sua invenção ao lado do governar e educar como fazeres impossíveis da cultura. Tendo em vista que o cerne da prática analítica está pautado na castração e no furo estrutural irredutível da subjetividade humana, o saber em si mesmo traz o paradoxo que arrebata seu limite.

Soma-se a isso uma ruptura quase que dilacerante da mudança de posição que esse discurso analítico opera diante dos demais. Uma reviravolta diante de todo campo de saber vigente até então e sua forma de abordar os objetos de seu estudo, em que a psicanálise ocupa outro lugar, às vezes avesso, questionando as verdades desses discursos (LACAN, 1969).

A outra dificuldade perpassa pelo que Freud (1912) coloca desde muito cedo: para conduzir uma análise, é preciso que o analista tenha passado por uma, a sua própria. Ele acentua em suas recomendações aos médicos que exercem a psicanálise o caráter único e singular da prática. Utiliza de uma analogia com o jogo de xadrez e pontua que se pode pensar sobre o início de um tratamento, correspondente às condições do setting, e sobre o final, que seria a suposta cura dos sintomas. Mas o decorrer do processo permanece singular, próprio de cada análise. Ou seja, em uma análise não se trata sobre hipótese alguma da possibilidade de experiência enquanto científica. O que acontece em uma análise, pontuações ou intervenções, jamais serve a priori para outra situação qualquer, tanto de uma mesma análise quanto de outras. Ou seja, não se trata de ter atravessado uma análise para poder conduzir outras baseando-se na ideia de que sirva de experiência para entender um como se faz com os demais. A dedução é uma armadilha cruel em que se pode cair quando se pensa nesse caráter de cientificidade à qual a psicanálise é avessa.

Quais seriam, então, as justificativas de atravessar um processo analítico para que seja possível se colocar no lugar de analista?

Que impasses surgem com essa condição?

A produção se pauta no tripé das condições necessárias:

• a construção da teoria, que permite o mergulho nas elaborações acerca do saber da psicanálise, de como é possível pensar a subjetividade não pelo viés biológico ou integrativo, mas tecer a ideia de uma relação do sujeito com o mundo através de uma estrutura pautada na ex-sistência, num furo mobilizante que afeta o indivíduo;

• a comunicação com os pares tanto na supervisão quanto na psicanálise em extensão, que fundamenta e norteia o fazer particular de cada um em seus consultórios, apesar de jamais prover garantias;

• a própria análise, talvez mais importante (QUINET, 2009).

É preciso articular, portanto, o que se passa em uma análise enquanto produção de um analista. Diante da singularidade de cada processo analítico, alguns pilares da prática são permanentes: a tática, a estratégia e a política, que visam manter certos fundamentos de uma análise levada a cabo.

Em seu texto A direção do tratamento e os princípios do seu poder, Lacan ([1958] 1998), faz uma analogia tomando o livro Da guerra, de Carl Clausewitz, relacionando a intervenção analítica com a tática, a transferência com a estratégia e a política com o ser.

A estratégia de uma análise, ou seja, a situação transferencial, precisa ser mantida mesmo que custe em alguns momentos abdicar da posição do discurso analítico no momento presente, que equivale à tática, em prol de sustentar a transferência. A política visada nessa circunstância é o ser do analista, que precisa estar sempre ausente, vazio. É a forma como o analista paga com seu ser.

A partir de 1969, em seu Seminário 17: o avesso da psicanálise, Lacan ([1969-1970] 1992) amplia com os discursos essa concepção da posição do analista diante de uma análise, em que, por mais que se privilegie o discurso analítico, é necessário em determinados momentos bascular de posição para manter a estratégia, a transferência em questão. Isso não implica que o processo deixe de se caracterizar como analítico, mas que uma análise comporta e exige uma ética que não está pautada unicamente na intervenção que visa produzir interpretações e na prática de tagarelice.

O que se pode pensar que se passa em uma análise a partir disso? Em toda a sua particularidade, é preciso que haja o ato analítico. Ato esse que tanto marca o pontapé inicial de uma análise quanto formaliza o seu fim. É possível haver transferência antes mesmo do encontro real com o analista, transferência simbólica da assunção do sujeito suposto saber (SsS) dirigido ao significante do analista. Mas o início de uma análise, para além das entrevistas preliminares, se dá a partir do ato analítico, em que o analista, ao responder à demanda de um outro lugar, de semblante de objeto a, possibilita uma mudança discursiva no analisante, retirando-o do discurso do mestre, identificado aos significantes enodados de gozo, colocando-o no discurso histérico, que possibilita um dizer sobre seu desejo. Com esse artifício singular e pontual, produz uma mudança na posição subjetiva de gozo, outra forma de satisfação. O discurso do analista provoca no sujeito o descolamento um a um dos significantes mestres (S1) com os quais se identifica e se aliena como resposta ao desejo do Outro (LACAN, 1967-1968).

A reviravolta que essa prática possibilita abre a cadeia significante para a emergência de outras significações, quebrando com o sentido de gozo sobre um sintoma e coloca o sujeito ($) diante de sua responsabilidade com seu desejo. A análise inicia-se, dessa forma, com a retificação subjetiva. A transferência passa a assumir não só uma configuração de repetição significante sobre o traço unário, mas também um caráter real.

No O seminário 8 Lacan ([1960] 1992) destrincha a transferência em três dimensões:

• a que era amplamente discutida por Freud e pelos pós-freudianos em seu caráter imaginário, o que traz consigo seu teor de resistência em relação à figura da presença do analista;

• a maneira simbólica ao se tratar do significante do desejo do analisante, que se dirige a um significante qualquer do analista, o qual instaura a ordem da repetição significante, das figuras parentais e amorosas;

• a transferência enquanto real, como ato no inconsciente, em que o analista assume um lugar especifico e único para o analisante: o lugar de objeto.

Apesar da instância privilegiada que a transferência possui na prática clínica em que se pautam as intervenções e a possibilidade de sustentar as condições do trabalho, o desenrolar de uma análise desemboca justamente na sua dissolução. Não enquanto liquidação da transferência ou seu fim, mas na resolução dela saindo do trabalho de transferência para transferência de trabalho (LACAN, 1967).

Freud, em Análise terminável e interminável (1937) já esbarrava nessa condição quando se remete ao fim de análise no momento que se depara com o rochedo da castração, o umbigo do sonho, que não pode ser simbolizado. Eis o momento em que uma análise chegaria a seu fim.

Lacan buscou ultrapassar esse limite do rochedo da castração ao longo do seu ensino na medida em que propõe um além, que sairia da tentativa exaustiva de significar tudo que seja possível. O analisante, através da proposta da associação livre, dirige sua fala ao lugar que o analista ocupa, o Outro do amor, visando extrair daí um saber sobre seu desejo. E nessa tentativa de achar um significante que possa representar a si mesmo enquanto sujeito, um significante que diga sobre seu desejo e responda à demanda do que o Outro quer de si, há o encontro com o impossível de significar, de representar. É o momento, não pontual, em que os significantes não dão conta e deixam o sujeito na condição de falta, falta-a-ser, como uma despersonalização. A figura do analista enquanto sujeito suposto saber cai, já que não há um saber que responda à demanda do Outro, e a busca por um significante que represente o sujeito se esvai. Essa operação é designada por Lacan como destituição subjetiva (LACAN, 1967-1968).

O fim de análise perpassa, assim, pelo conceito da travessia do fantasma fundamental ($<>a). A fantasia enigmática – janela para a realidade – em que o sujeito dividido consiga encontrar o objeto que o complete, é atravessada, o que não quer dizer que seja desfeita, mas ultrapassada do lugar de subjetivação, divisão de suas demandas, para a condição de objeto a, puro objeto de gozo. Nessa travessia, o desejo que outrora buscava uma resposta, um significante advindo do analista, detentor de um saber suposto, deixa de esperar por algo e passa para um desejo puramente enquanto condição faltante. E para o analista sobra o resto. É o momento em que o analisante se depara consigo mesmo como objeto a, objeto de resposta a uma demanda de amor do Outro (A) e que fracassa. Há, então, a destituição subjetiva, resolução da transferência e fundamentalmente uma mudança na posição de gozo (LACAN, 1967-1968).

Essa passagem, que Lacan nomeia em A proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola, de passe na psicanálise em intensão, pode ser pensada enquanto um instante pontual ou como um processo de passagem. Após a entrada na análise há o endereçamento da demanda ao sujeito suposto saber, que por sua impossibilidade tem sua consequente queda, desembocando num luto do analista.

Esse período varia de sujeito para sujeito, a depender do investimento libidinal feito no objeto do qual o analista fez semblante. Isso implica que o final de uma análise se trata de uma passagem – da busca de uma verdade para um luto do fato de que não há um significante que nomeie e represente o desejo – até que o analisante consiga resolver a transferência estabelecida, se dessubjetivando enquanto sujeito dividido e suportando, percebe-se como objeto.

Essa alternância do desejo de ser o correspondente da demanda do Outro para desejo de saber é o que está implicado na causa analítica. Eis, portanto o porquê da afirmação crucial de que toda análise, para Lacan, é didática se levada até o seu fim. Pois toda análise irá produzir um analista, na medida em que o ato analítico, causador do fim de uma análise, produz a destituição subjetiva, que é a condição essencial da possibilidade de poder ocupar o lugar de semblante de objeto para outros sujeitos. O final de análise, portanto, se trata um processo que o analisante atravessa e não se equivale pontualmente ao fim da relação transferencial e ao fim dos encontros com o analista propriamente (LACAN, 1967).

Que impasses se revelam a partir da prática clínica em que o analisante se propondo a atender não tenha passado por esse processo que produz, logicamente, um analista?

Essa questão se reporta ao fantasma fundamental ($<>a). Se o sujeito ainda se encontra em um momento da sua análise em que se vê transferencialmente ligado ao analista enquanto sujeito suposto saber, fixado na condição de busca pela sua completude fantasmática, ao se propor conduzir a análise de outros sujeitos, se verá em um dos dois polos de sua própria fantasia.

Ora como sujeito dividido e desejante colocando os seus analisantes enquanto objetos de suas fantasias – respondendo através da contratransferência e conduzindo a pessoa e não a análise, ora ocupando o lugar encarnado de objeto dos seus analisantes, em vez do faz de conta de objeto, que proporciona o ato analítico. Ou seja, a travessia da fantasia é a condição fundamental para que se possa conduzir uma análise (QUINET, 2009).

Essa problemática quanto à produção do analista e do processo da análise tomou Lacan ao longo de seu ensino, possibilitando formas de poder teorizar e compreender como se opera e o que se produz disso, tal como inovando radicalmente os meios institucionais no movimento psicanalítico quanto à produção dos analistas em sua Proposição através do mecanismo do passe.

Mas ainda levanta sérios questionamentos quanto à autorização dos analistas no meio institucional. Sua emblemática afirmação de que “[...] o psicanalista só se autoriza de si mesmo” (LACAN, 1967, p. 248) evoca um certo mal-entendido institucionalmente.

Autorizar-se por si mesmo implica a passagem do analisante a analista, em sua análise pessoal na causa psicanalítica. Isso não equivale à ideia de que qualquer um pode suportar o lugar de analista, mas somente na travessia de seu próprio processo é possível exercer a função do analista.

Exercer a prática psicanalítica perpassa de forma lógica por uma função, por um desejo que emerge na análise pessoal – o desejo de saber que se equivale ao desejo do analista. Isso não quer dizer evidentemente que se trate do desejo da pessoa que ocupa o lugar do analista, mas justamente o seu oposto, desejo do analista enquanto puro des-ser, ausência do seu ser, de sua condição subjetiva, estando ali para responder às demandas a partir de uma função de manter as condições de uma análise. Essa função, esse lugar é o de semblante de objeto a. Um faz de conta em ato, sem premeditação, sem intenção ou pensamento, um ato analítico que funda e determina o fim de uma análise.

O desejo do analista é o único desejo de sustentar a condução das análises que sigam seu percurso dirigindo ao seu fim e que possibilitam a emergência do ato analítico. Se o passe proposto por Lacan (1967) em sua Proposição não consegue garantir essa passagem de outros analistas, é de se questionar o porquê de tantas instituições e escolas ainda buscarem num Outro do saber a autorização e a legitimação do que acontece no particular de cada um. Esse fato aponta que as questões quanto à produção do analista perpassam por uma partilha da psicanálise em intenção, assim como de sua própria passagem, mas bancando aquilo que a análise mais fundamenta, de que o Outro é, acima de tudo, barrado ().

 

Referências

FREUD, S. A questão da análise leiga: conversações com uma pessoa imparcial (1926). In: ______. Um estudo autobiográfico, Inibições, sintomas e ansiedade, A questão da análise leiga e outros trabalhos (1925-1926). Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 179-248. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 20).         [ Links ]

FREUD, S. Análise terminável e interminável (1937). In: ______. Moisés e o monoteísmo, esboço de psicanálise e outros trabalhos (1937-1939). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 231-270. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 23).         [ Links ]

FREUD, S. Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise (1912). In: ______. O caso Schreber, artigos sobre técnica e outros trabalhos (1911-1913). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 125-133. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 12).         [ Links ]

LACAN, J. O seminário, livro 15: o ato analítico (1967-1968). Escola de Estudos Psicanalíticos, Porto Alegre. Publicação interna.         [ Links ]

LACAN, J. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (1969-1970). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Ari Roitman; consultoria de Antonio Quinet. Rio de Janeiro: Zahar, 1992. (Campo Freudiano no Brasil).         [ Links ]

LACAN, J. O seminário, livro 8: a transferência (1960-1961). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Dulce Duque Estrada. Revisão de Romildo do Rêgo Barros. Rio de Janeiro: Zahar, 1992. (Campo Freudiano no Brasil).         [ Links ]

LACAN, J. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da escola. In: ______. Outros escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 248-264. (Campo Freudiano no Brasil).         [ Links ]

QUINET, A. A estranheza da psicanálise: a escola de Lacan e seus analistas. Rio de Janeiro, Zahar, 2009.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: bruno.so@msn.com

Recebido em: 30/11/2017
Aprovado em: 10/01/2018

 

 

SOBRE O AUTOR

Bruno dos Santos Oliveira
Psicólogo. Psicanalista.

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