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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.49 Belo Horizonte Jan./July 2018

 

PSICANÁLISE: CLÍNICA E TEORIA

 

A construção do sentido de corpo na psicanálise freudiana e possíveis contribuições para a educação

 

The construciton of the body’s sense on Freudian psychoanalysis and it’s possible contributions to education

 

 

Jeferson José Moebus Retondar

I Universidade Estadual do Rio de Janeiro
II Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste ensaio é refletir sobre o conceito de corpo na psicanálise freudiana ao longo do processo de construção da teoria psicanalítica e suas possíveis repercussões no campo da intervenção pedagógica. Foram considerados os primeiros escritos sobre a histeria (1893) até o texto O ego e o id (1923), no qual o sentido de corpo se consolida.

Palavras-chave: Psicanálise, Corpo, educação.


ABSTRACT

The purpose of this essay is to reflect on the concept of body in Freudian psychoanalysis throughout the process of construction of psychoanalytic theory and its possible repercussions in the field of pedagogical intervention. They were considered the first writings on hysteria (1893) to the text on the Ego and Id (1923), in which the sense of body is consolidated.

Keywords: Psychoanalysis, Body, Education.


 

Termos como narcisismo, atos falhos, imagem corporal, recalque, libido, desenvolvimento da sexualidade infantil, desejo, prazer, anorexia, bulimia, vigorexia, compulsão encontram-se relativamente presentes no vocabulário de muitos professores no ambiente escolar.

Assim, o olhar mais sistemático e rigoroso sobre o conceito de corpo na perspectiva da psicanálise poderá agregar valor a muitos outros sentidos remetidos pelo termo no campo da educação e com isso incidir em possíveis intervenções nas quais venha vigorar a sensibilidade e a escuta em detrimento da instrumentalidade e da coisificação.

Para a psicanálise freudiana o corpo aparece como lugar de observação, de reflexão e de teorização a partir dos Estudos sobre a histeria1 ([1893] 1996). Em tais estudos Freud contrapõe o corpo biológico das histéricas ao corpo como lugar de inscrição de significados, marcado por desejos inconscientes e de fundo sexual.

Ao se deparar com inúmeros casos de histéricas e estudá-los na companhia de Charcot no hospital parisiense de Salpêtrière, Freud começa a perceber que aquelas pessoas com corpos enrijecidos, exauridos por constantes dores, com hemiplegias, curvados sobre si mesmos, retorcidos, evocando diversos desconfortos tanto nos órgãos externos quanto nos órgãos internos, queixosos de surdez, de cegueira, de falta de concatenação na linguagem oral, perturbados por vozes, sons e ruídos alucinantes não apresentavam nenhuma causa física fisiologicamente averiguável.

Porém, do ponto de vista orgânico eram pessoas sadias, submetidas a inúmeros testes e exames que não mostravam empiricamente nenhuma disfunção, nenhuma irregularidade, nenhuma deficiência anatômica e fisiológica.

Freud irá dizer que a histeria é um processo deflagrado por algum evento vivido ou imaginado pelo paciente e que produziu uma soma de excitação muito grande em sua estrutura psíquica em face do impedimento da realização desse desejo. Sua descarga não foi possível de ser realizada por causa de algum tipo de sanção social e/ou moral, como a mulher que nutre um desejo profundo pelo marido da irmã e ao mesmo tempo se autopune por tal desejo que considera abjeto à luz da sua representação moral. Dessa tensão entre o desejo que quer se realizar, mas que se vê impedido para sua realização, pode-se deflagrar a manifestação histérica.

A trama histérica se dá no nível inconsciente. Numa instância psíquica em que as conexões conscientes não conseguem racionalmente explicar nem relacionar seus sofrimentos e suas manifestações com eventos e acontecimentos anteriores.

Daí Freud pedir a suas pacientes que falassem no setting de análise tudo que lhes viesse à cabeça sem nenhum tipo de censura ou concatenação lógica, pois é justamente por meio da fala inadvertida, que escapa à lógica racional e ao controle, é que se obtêm as pistas reveladoras dos desejos inconscientes, que só se manifestam por meio dessa linguagem indireta: lugar dos desejos reprimidos que se convertem no corpo.

O fato é que o corpo histérico se comporta como se a anatomia não existisse, pois o que está em jogo é um corpo fantasmático. Um corpo que manifesta uma determinada natureza psíquica por meio de uma conversão de fulcro erógeno e representacional. E a histeria acomete homens e mulheres, ainda que no início do século XIX Freud atendesse e estudasse os casos de mulheres histéricas.

No texto As neuropsicoses de defesa Freud [1894] (1996) afirma que o corpo expressa as representações recalcadas, aquelas que são impedidas de ser assumidas pela consciência do sujeito, em que enormes somas de excitação são convertidas para a inervação somática. Ou seja, os desejos querem se manifestar e, como não podem, o caminho psíquico dado a eles é o próprio corpo.

O determinismo freudiano indica que todas as representações têm uma base erógena. Ao elaborar o artigo sobre Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud ([1905] 1996) afirma que a atividade sexual perpassa a vida humana e se inaugura no nascimento, quando da primeira tensão entre prazer e desprazer vivida pela criança na amamentação.

A fome da criança é saciada duplamente: primeiro pelo leite que alimenta organicamente seu aparato fisiológico; segundo, pela prazerosa excitação do contato da mucosa da boca com o seio materno e da quentura do leite no seu esôfago, produzindo uma grande descarga de prazer. Daí a criança se sacia porque tem fome (necessidade de se alimentar) e desejo pela demanda de amor (afeto). Desse encontro, tem-se o primeiro ou um dos primeiros registros inconscientes de prazer que irá acompanhar o sujeito por toda a sua vida e sempre será perseguido.

A mamada para saciar a fome se relaciona com uma demanda de necessidade para a própria preservação da espécie e, ao mesmo tempo, para oportunizar o nascimento e a construção do corpo autoerótico, pois a boca inaugura o primeiro grande registro de prazer. Por isso é que somente os humanos comem além ou aquém do que necessitam. Somente os humanos engordam pelo excesso de comida ou se cadaverizam pela renúncia dela. Tanto num quanto noutro caso, é a ordem do desejo que impera e não da necessidade ou do instinto.

Um corpo autoerótico é aquele cujas pulsões como representante psíquico das excitações se encontra no interior do próprio corpo e chega ao psiquismo como uma medida de exigência de trabalho. Assim, por exemplo, as relações sádico-masoquistas e exibicionistas/voyeristas,2 enquanto pares de opostos das pulsões parciais, são vividas pelas crianças na tenra idade sob diversas formas. Somente com a chegada da puberdade é que essas pulsões irão se fundir na direção da função reprodutora. Ou seja, na relação com outro por intermédio das genitálias.

Nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade Freud ([1905] 1996) desconstrói a crença de que o homem nasce bom por natureza, e a sociedade é que irá corrompê-lo. Para Freud, o homem é um ser de desejo e luta constantemente para fazer valê-lo. Na interação com o outro, aprenderá conter seus impulsos com um enorme custo psíquico e com várias repercussões em relação à própria sanidade. Dessa forma, conviver com o outro é aprender a viver em certo sentido com o sofrimento de não conseguir fazer com que esse outro se curve às suas demandas e, por conta disto, o sujeito deverá aprender a cercear seus desejos em nome de algo maior do que ele: a própria vida civilizada.

A imagem romântica e barroca da criança assexuada como um anjo personificando o bem, a beleza e a pureza são contrapostas por Freud ao afirmar que a criança possui um quantum de perversão com intuito de atender exclusivamente seus interesses em nome de uma demanda de prazer sexual. Sexualidade que se limita não ao coito ou à reprodução, mas à busca de prazer que está além da genitália e que passa inicialmente pela descoberta do corpo como fonte desse prazer, inaugurada pela primeira mamada e que mais tarde será deslocado para outras partes do seu corpo e para o corpo do outro.

Durante o autoerotismo, do nascimento a aproximadamente os 30 meses de vida, o par exibicionismo/voyeurismo também irá vigorar com muita força no universo infantil. É comum observar crianças que gostam de se vestir com roupas diferentes, fazer desfiles, colocar apetrechos e se apresentar fantasiadas ou com alguns adereços para seus pais ou seus cuidadores; olham-se várias vezes no espelho e brincam de se caracterizar. Mais à frente isso dará curso a se vestir conforme determinados personagens com intuito de ser visto e de provocar comentários, chamando à atenção para si. Para Freud, o movimento das pulsões parciais sadismo/masoquismo e exibicionismo/voyeurismo são constitutivos do ser humano.

No texto Os Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade Freud ([1905] 1996), conceituará a pulsão como uma força constante que exerce um nível de excitação ou pressão e que está sujeito à descarga. O objetivo da pulsão é a satisfação. Seu objeto pode ser qualquer coisa, e sua fonte é o processo somático que se situa no interior de um órgão ou de uma parte do corpo.

A pulsão se diferencia do instinto na medida em que neste último a resposta do corpo é automática e sempre dada da mesma forma em relação ao mesmo estímulo. Já na pulsão as respostas podem ser diversas em relação a inúmeras situações. O prazer pela comida e tudo que remete a ela podem criar inúmeras situações ritualizadas em relação àquilo que se come, o modo como se come, o local no qual ocorre a refeição e os sentidos que o espaço e a refeição servida evocam.

Como foi dito, a boca foi o primeiro órgão ou parte do corpo em que se registrou a primeira experiência de desprazer e de prazer intensos vividos pela criança. Posteriormente, o ânus e a genitália irão compor as outras zonas erógenas que, submetidas a determinadas estimulações, irão provocar intensas sensações prazerosas, se comportando como se fossem parte do aparelho sexual.

Ou seja, a pulsão converte a excitação corporal em movimento psíquico. Ela exterioriza no psiquismo aquilo que por coerência se manifesta no domínio corporal. Sem o corpo, nem a pulsão, nem o prazer de um órgão poderiam existir como fonte de prazer. E isso será demonstrado de maneira singular no texto A concepção psicanalítica da perturbação psicogênica da visão (FREUD, [1910] 1996).

Freud, ao se referir à cegueira histérica – perda da visão de uma hora para outra sem causa orgânica que a justifique –, irá afirmar que os fenômenos psíquicos se baseiam nos fenômenos físicos na medida em que estes se constituem como o local da primeira aparição da noção das pulsões.

Os dedos de um jovem que teve que renunciar à masturbação por causa de um impedimento moral em face de uma situação impactante vivida pela descoberta pública de seu ato por alguém estimado, serão os mesmos dedos que se recusam inconscientemente aprender a tocar piano ou jogar dama, por meio de dores lancinantes nas mãos diante de tais situações. Nesse caso, a mão foi um órgão corporal que sofreu uma dupla exigência: sua relação com o ego ou “personalidade” consciente e, ao mesmo tempo, com a sexualidade reprimida.

Mas, em Sobre o narcisismo: uma introdução Freud ([1914] 1996) sustentará a ideia de que o sujeito pode tomar seu próprio corpo como objeto de amor, isto é, aquilo que fora pontuado anteriormente nos Três ensaios é desenvolvido para que não reste dúvida de que a energia sexual é a energia que Freud compreende como constitutiva e impulsionadora da vida. [ou: dúvida de que Freud compreende/considera a energia sexual como constitutiva e impulsionadora da vida.]

A unidade do “Eu” não nasce pronta. É construída ao longo dos tempos. Na primeira infância, o sujeito vivencia o autoerotismo desde a sua fase como bebê até perceber que existe o outro em seu mundo. Ao começar a se descentrar de si e perceber que há o outro passível de interação e de barragem de seus desejos, uma nova ação psíquica entra em ação ajudando-o a desenvolver sua constituição corporal e subjetiva. Ou seja, aquilo que se define como estruturação do “eu” do sujeito de desejo invariavelmente está ligado ao narcisismo primário e ao narcisismo secundário.

No narcisismo primário, o sujeito não reconhece o outro. Trata-se de um olhar centrado nele mesmo através do qual a criança investe toda a libido em si. Já no narcisismo secundário, há um retorno da libido que tinha sido investida fora, na direção do outro e que se volta para o próprio ego. Ou seja, há uma corporeidade regulada pela alteridade, pelo princípio da realidade.

No jargão popular, o narcisismo secundário equivale dizer que o sujeito está aprendendo a “jogar verde, para colher maduro”, consciente e inconscientemente, pois saiu de seu centramento de si para o descentramento de si, isto é, reconhece que existe o outro e que este pode também lhe proporcionar prazer.

O sujeito aprende que algumas de suas ações em relação ao outro podem se voltar favoravelmente para ele sob a forma de carinho, de concessões, de adulação/bajulação e toda sorte de benefícios que aprendeu a extrair do investimento que faz nessa direção. Mas, em O ego e o id que Freud ([1923] 1996) dirá que o “Eu” é essencialmente corporal.

Nesse momento Freud passa a considerar a possibilidade de que a pulsão pode não ter um objeto, ao contrário do que afirmara anteriormente nos seus primeiros escritos sobre a pulsão. Cita os casos, por exemplo, da angústia e da compulsão à repetição, dizendo que nesses casos o id passa a ser o lugar da pulsão sem representação: pulsão de vida e pulsão de morte.

Dito de outra maneira, o id – como lugar do qual emanam os desejos mais viscerais na medida em que não sofre mais o apelo moral da censura imposto pelo superego e não o ego para mediar o que pode sair da tensão com o superego, – se rompe e se manifesta como energia que deseja a satisfação total de maneira ininterrupta e que nunca atingirá seu fim, pois o desejo total é a própria supressão do ato de desejar, a morte. Daí que o compulsivo é aquele que não consegue cessar, pois não há limite para seu desejo.

E no caso da angústia, o sofrimento, o mal-estar e a sensação negativa que invadem o sujeito não possuem nenhum tipo de motivo ou representação. É aquilo que está além do princípio de qualquer prazer.

A pulsão que agrega, que junta, que impele o sujeito a estabelecer relações e conexões com seus semelhantes, é chamada de pulsão de vida ou Eros. Pulsão que constantemente tenciona com a pulsão da agressividade, da hostilidade, da dissolução, que busca separar o sujeito das relações de alteridade conduzindo-o ao inanimado, chamada de pulsão de morte e representada pela figura grega de Thânatos.

Na sua primeira tópica ou na sua primeira forma de conceber o aparelho psíquico (Consciente, Pré-consciente e Inconsciente), Freud compreendia que todo sintoma ou sofrimento está ancorado em alguma representação vivida ou fantasiada pelo sujeito. Devido ao recalque do desejo impedido de se realizar, tal vivência ou fantasia provocava um elevado nível de excitação no aparelho psíquico em função das forças morais e imperiosas da consciência do sujeito que provocavam um enorme sentimento de culpa.

Na segunda tópica (Ego, Superego e Id), o Ego, ou a consciência, passa a ser considerado também uma parte dos impulsos instintuais do Id, o reservatório das pulsões, influenciado de maneira direta pela cultura e pela vida sexual. Daí não necessariamente a intensidade vivida no aparelho psíquico é capaz de materializar um determinado representante, pois, dependendo de sua força, há um “transbordamento” no qual a própria intensidade se autorrepresenta pelo excesso de excitação e não por algum tipo de representação.

A dor do enlutado é simbolicamente a morte do outro e de uma parte de si mesmo. Instaura-se, de maneira impossível de ser calculado, o tempo de convivência com essa ferida e de recondução do investimento que tinha sido feito em relação ao outro o recuperando para o próprio sujeito.

Na melancolia, ou na versão contemporânea e médica denominada de depressão, o sujeito não consegue reconhecer ou identificar aquilo que perdeu com a perda do outro (aquilo que morreu nele quando o outro morreu) e passa a viver sob a égide da pulsão de morte, impulso que pode conduzi-lo ao definhamento, à segregação e ao alijamento de sua relação com o mundo se não houver intervenção profissional.

O que se marca nesse momento do pensamento freudiano é que o ego passa a ser considerado um ego corporal, ou seja, o corpo não é apenas uma superfície, uma carcaça que traduz passivamente as informações psíquicas, mas é ela mesma a projeção de uma superfície. Significa dizer que o corpo intervém na formação do Eu, e o Eu passa a ser estruturado como corpo, ao mesmo tempo compreendido como limite e como extensão do psiquismo.

O corpo materializa, de maneira plástica, a singularidade psíquica e, ao se manifestar, também interfere na própria vida psíquica. Uma vez que a pulsão se localiza entre o psíquico e o somático, o modo como os sujeitos se apropriam de seu corpo pode mobilizar investimentos diversos que irão reverberar no aparelho psíquico e especificamente no ego.

E no seu último grande texto, Moisés e o monoteísmo Freud ([1938] 1996, p. 89) afirma:

Os traumas são ou experiências sobre o próprio corpo do indivíduo ou percepções sensoriais, principalmente de algo visto ou ouvido, isto é, experiências ou impressões.

Na primeira tópica, o corpo é atravessado pela linguagem, pela lógica da representação, superando a concepção anatômica de corpo. Na segunda tópica, o que entra em cena é aquilo que não se inscreve no corpo por conta do excesso pulsional que resiste a toda representação, pois o Id, nesta segunda ótica, incorpora e avança em relação ao sentido de inconsciente, postulado na primeira teorização. É a pulsão sem representação.

 

Síntese possível do percurso da psicanálise freudiana sobre o corpo

O que um sujeito é capaz de dizer, de racionalizar, de descrever e de falar sobre si, e sobre seus objetivos de vida, sobre seus feitos e sobre seus sonhos é a expressão de um conteúdo latente, isto é, daquilo que o orienta no contexto de uma lógica moral e formal em relação a sua própria linguagem.

Por outro lado, o conteúdo inconsciente, isto é, manifesto, acolhe as ambiguidades, as contradições, os paradoxos morais da linguagem e impulsionam o seu agir por caminhos aparentemente desconexos, inusitados e, em muitos casos, contraditórios em relação ao seu dado de consciência.

Das compulsões ao autoflagelo, passando pelos objetivos de heroicização ou de vitimização, entre outros fatores, é o inconsciente, ou o Id, o lugar onde as determinações eróticas do sujeito em relação à construção de sua vida abriram caminhos ou marcas na tenra idade. O Id sempre exigirá do sujeito o seu retorno a elas de alguma forma, seja para reverenciá-las, para exortá-las, seja para negociar o que for possível em relação às suas novas andanças.

O inconsciente, ou as forças pulsionais do Id, manifestam-se no cotidiano por intermédio:

• dos atos falhos, aquilo dito ou feito e que depois de concretizado assusta o próprio sujeito ao tentar se desculpar ou se recompor diante do inesperado realizado ou falado;

• da transferência, mais conhecida popularmente como “bode expiatório”, implacável para alguém que está num determinado lugar e num determinado momento cumprindo o papel daquele que deveria estar lá e não está, esse outro acaba sendo alvo de um enorme investimento afetivo do sujeito que consegue parcialmente escoar uma grande carga de afeto para o bem ou para o mal;

• dos sonhos, que compreendem realizações de desejos inconscientes e que, mesmo quando se apresentam maneira fractal, confusa, contraditória e ambígua, no setting de análise se transformam em pistas reveladoras para o próprio sujeito.

A imagem corporal ou o modo como o sujeito se vê, como deseja ser visto e como ele imagina ser visto pelo outro só pode ser contornada pelo observador. Não há como tacitamente fazer uma afirmação definitiva numa ou noutra direção em relação ao sujeito. Justamente pelo dinamismo do inconsciente e por sua lógica de funcionamento, que é diametralmente oposta à lógica da linguagem da vida, tentar reduzir a complexidade psíquica ao matematizável e ao controlável é desvirtuar a própria complexidade daquilo que é inerente ao humano: o desejo.

A imagem corporal ou corpo é o amálgama da trama inconsciente no contexto da estrutura psíquica do sujeito, ancorado no seu lugar social e cultural que ocupa e que se encontra em permanente movimento.

Inconsciente, pré-consciente e consciente, termos utilizados por Freud na sua primeira tópica ou na sua primeira elaboração acerca do aparelho psíquico, equivalem-se e são aperfeiçoados pela nova linguagem do Id, do Ego e do Superego, que reforça a complexidade psíquica do sujeito.

Os desejos querem e precisam se manifestar. Os valores morais e culturais fazem exigências na contramão de tais desejos. E o sujeito, o Eu da consciência tenta equilibrar, mediar, negociar o que é possível naquele momento para ofertar tanto para os desejos quanto para as exigências da vida civilizatória uma solução menos dolorosa psiquicamente. Nasce, então, a “normalidade” do sujeito, que significa passar a conviver com suas neuroses, com um quantum possível de sofrimento em nome de algo maior que ele mesmo.

 

Conclusão ou de que maneira o sentido de corpo na psicanálise freudiana pode ajudar as intervenções pedagógicas

O corpo ou a imagem inconsciente do corpo é o conjunto das primeiras impressões gravadas no psiquismo infantil pelas sensações desde bebê até 5-6 anos de vida. Tais impressões serão o mote estrutural do sujeito em relação ao diálogo permanente com a sociedade e com a cultura na busca de sua singularidade.

O aluno é antes de tudo um sujeito. Portador de desejos inconscientes que guiam sua vida. Sua razão lhes fornece os meios, mas são seus desejos que apontam para os objetivos e as finalidades.

Ao tratar ou considerar o corpo de alguém, o professor não pode se esquecer de que a plasticidade, seu objeto de observação e de julgamento de valor é a manifestação expressiva de desejos e de tramas intrapsíquica de um sujeito, que sempre quer dizer algo além ou aquém por intermédio de sua materialidade física. O que é visto é a aparência de uma enunciação e não o discurso propriamente dito do corpo. Este se manifestará por pistas ao longo de um tempo de maior observação e de maior confiabilidade entre professor e aluno.

Diante de situações nas quais o sujeito coloca seu corpo em situações limites como na anorexia, na bulimia, na vigorexia, na violência e na hostilidade gratuita com os outros, deverá muito mais acolher o sujeito no sentido de provocá-lo a falar de si, de seus atos e de sua vida, dentro do possível, do que desfiar um cabedal de orientações morais que o sujeito está cansado de ouvir.

Não que o professor tenha que se eximir na responsabilidade que lhe cabe em falar, em orientar, em explicar, em se posicionar; pelo contrário, mas muito pouco ou nada adianta a repetição exaustiva do mesmo discurso para um sujeito de desejo que por meio de seu sintoma se reconhece como tal.

É preciso sensibilidade para em tais casos o professor falar menos e ouvir mais. Se o aluno se disponibilizar em falar, é porque sente algum nível de confiança no professor e, por meio da fala, ele pode aprender a descortinar determinados fios condutores de sua vida relacionados ao seu corpo que até então não tivera oportunidade de acessar.

Ao falar sobre si, o aluno aprende consigo mesmo. E ele fala por intermédio da linguagem oral e pela linguagem sensível não verbal, desde que se sinta acolhido, com menos receio de julgamentos preconcebidos sobre ele e sobre seu modo de agir e de ser.

Ter a clareza de que o corpo pode negar ou exaltar a linguagem oral da maneira mais grotesca e não convencional é considerar que não há nenhuma separação dessas instâncias. O nível de coerência quando escapam a aparência e a concatenação lógica da observação imediata ocorre porque no nível inconsciente tudo pode estar funcionando muito bem e se apresentando por meio de fractais; de estilhaços de fragmentos que na sua aparente errância e incoerência enunciam verdades que de outra forma seriam insuportáveis para o sujeito.

Isso considerado remete à relativização por parte do professor para acolher as diferenças em todos os sentidos. Significa compreender que, se não há sentido imediato a ser visto na atitude de um aluno, não significa que não há sentido naquilo que ele está realizando.

É preciso garantir mais observação, mais sensibilidade e ir cruzando as informações em vias de se chegar a uma pista mais consistente sobre o próprio sujeito visando uma intervenção profissional de maneira mais cuidadosa e menos taxativa sobre quem é e o que quer o outro.

Prazer pelo prazer é derrisão. O significativo é o que mobiliza e que mexe nas entranhas, que suscita dúvidas, que incomoda e, no melhor sentido do termo, aquilo que provoca o sujeito a pensar e a repensar suas ações no contexto de uma atmosfera afetiva de valorização e de garantia de espaço para a comunicação e expressão.

Qualquer tentativa protocolar de teste de medição, de conexões dedutivas como palavra final sobre a imagem corporal do aluno é no mínimo imprópria. Na realidade, é mais um rótulo, uma preconcepção com os ares de uma pretensa ciência, que aos meus olhos se transforma em senso comum “científico” ou em uma doxa diferenciada da grande massa, mas, ainda assim, uma opinião.

Nesse sentido, anorexia e bulimia, só para citar dois exemplos, não são distúrbios alimentares de um corpo que tem de voltar a funcionar normalmente por conta de um desajuste orgânico. Mas antes um sofrimento psíquico que assola o sujeito e que na negação obstinada, dolorosa e disciplinada rotina de negação do alimento talvez esteja querendo negar alguma outra coisa, firmando para si uma nova imagem dele.

A cadaverização do corpo, o suplício da dor orgânica advinda da carência alimentar talvez crie um elogio, um ganho e uma compensação psíquica que tanto para o sujeito anorexo quanto para o sujeito bulímico vale a pena permanecer no sofrimento, mesmo que socialmente esteja posto na contramão da geração saúde e daquilo que se propala como normalidade. Daí tais casos, antes de ser doenças, são, para a psicanálise, sintomas. Ou seja, manifestação de uma tensão intrapsíquica de desejos que só podem se manifestar se travestidos de dor e de certo sofrimento.

Diante de tal situação, o professor poderá se posicionar em relação às suas perspectivas quanto à saúde, aos limites do corpo e a toda sorte de orientação estética e moral. Mas, feita essa primeira rodada orientadora, cujos efeitos provavelmente dirão muito pouco ou quase nada para o sujeito imbricado nessa trama, sugiro que o professor acolha seu aluno com carinho, com amor, com consideração e abra um canal de diálogo em relação a tudo: do trivial ao sério, do gratuito ao político, do moral ao religioso, do estético à saúde, sem qualquer tipo de tentativa de enquadramento ou de aconselhamento em relação a ele. Apenas permitindo que o outro, que sofre com e por meio de seu corpo, fale, se expresse com sinceridade na sua aula, firmada pela negociação, pela confiança e pelo acolhimento.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: retondar@oi.com.br

Recebido em: 21/11/2017
Aprovado em: 10/02/2018

 

 

SOBRE O AUTOR

Jeferson José Moebus Retondar
Doutor em educação Física pela Universidade Gama Filho (UGF).
Professor Associado do Instituto de educação Física e Desportos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (IEFD/UERJ).
Líder do Diretório do Grupo de Pesquisa (CNPQ) - Laboratório do Imaginário Social Sobre as Práticas Corporais e Lúdicas (LISACEL/UERJ).
Formação em Ciências Sociais (IFCS-UFRJ).
Certificado de Curso Teórico de psicanálise.
Candidato do Curso de Formação Psicanalítica do Centro de Estudos Antonio Franco Ribeiro da Silva do CBP-RJ.

 

 

1 Derivada da palavra grega hystera (matriz, útero) a histeria é uma forma de neurose em que conflitos psíquicos inconscientes se exprimem de maneira teatralizada e por intermédio de forte simbolização, caracterizada por quadros clínicos variados, como convulsões de aparência epilética, hemiplegias, cegueira, fobia, alucinações diversas.
2Termos forjados por Freud a partir de “sadismo” e “masoquismo”, para designar uma perversão sexual baseada num modo de satisfação ligado ao sofrimento infligido ao outro e ao que provém do sujeito humilhado. Assim também “voyeur” e “exibicionista” remetem simultaneamente a uma perversão baseada na satisfação de ver o outro em situação erótica, real ou imaginada e ao se colocar de maneira evidenciada ao olhar do outro.

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