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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.49 Belo Horizonte Jan./July 2018

 

PSICANÁLISE: CLÍNICA E TEORIA

 

A clínica psicanalítica com idosos: uma construção

 

Psychoanalytic clinic for seniors: a construction

 

 

José Maurício da Silva

I Instituto Santo Tomás de Aquino (ISTA) MG
II Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta algumas particularidades da clínica psicanalítica no atendimento a idosos. Instigado pelo aumento da população idosa em decorrência da longevidade, há maior visibilidade e demandas provenientes dessa categoria. Outra razão é a pouca produção psicanalítica abordando a questão do tratamento com idoso. Defendo a sublimação como meio de sustentação do desejo e, acima de tudo, como meio de transformação proveniente dos laços sociais convocando o sujeito idoso a assumir as rédeas da própria história, bem como o investimento que sustenta a existência. Não há idade para desejar. Por meio desse princípio o idoso é convocado a apostar na vida, mesmo que o corpo compareça como palco de enfermidades e sinalize para a finitude. Dessa maneira, a psicanálise convoca o sujeito a se “n’homear”, ressignificando sua história com a legitimidade de seus próprios desejos.

Palavras-chave: Idoso, Clínica psicanalítica, Sublimação.


ABSTRACT

This paper proposes some particularities of the psychoanalytic clinic in the care for the eldely. I would like to highlight the ageing world population and, particularly, with increased longevity, there is a greater visibility of the elderly as well their demands. Another reason is the scarcity of psychoanalytical research, that is, lack of literature explaining the question about ageing. This approach defends sublimation as a means of sustaining the wish and, above all, as a means of transformation provided by social bonds, aiming to make the subject the leader of his own history and assuming that investment is what upholds existence. There is no age for desire. Through this principle, one must “bet on life” even when the body becomes a sick stage, always pointing towards death. Thus, psychoanalysis summons the subjects to the hearing and remembering, which enable their own histories and reconcile them with the legitimacy of their own wish.

Keywords: Aging, Psychoanalytical clinic, Sublimation.


 

O envelhecimento não é uma invenção da pós-modernidade, porém só se constituiu como lugar comum no último século. Na pré-história a velhice era raríssima. Já no século XVII estima-se que 1% da população vivia mais de 65 anos. No século XIX, fala-se em 4%, segundo Stuart-Hamilton (2002). No mundo ocidental de hoje, segundo dados de 2008, 70% da população ultrapassarão os 65 anos, e 30-40% os 80 anos. Um bebê nascido em 1900, por exemplo, tinha como expectativa de vida 47-55 anos; atualmente essa cifra é de no mínimo 30 anos a mais. Segundo projeções das Nações Unidas, em 2050, pela primeira vez na história, haverá mais idosos do que crianças menores de 15 anos. Em 2012, 810 milhões de pessoas com 60 anos ou mais, constituíam 11,5% da população global. Estima-se que esse número ultrapasse um bilhão em menos de dez anos; e em 2050, atingirá uma média de dois bilhões de pessoas, ou seja, 22% da população global. E no Brasil, calcula-se que, ao redor de 2025, a população ultrapasse os 30 milhões, segundo Berquó (1996).

Os dados acima constituem, resumidamente, o chão de onde se parte para falar da urgência em se pensar a questão do envelhecimento. De antemão afirmamos que a psicanálise possui dispositivos tanto teóricos como metodológicos para abordar as mudanças históricas, sociais, bem como a relação com o sujeito, em nosso caso, o sujeito que envelhece. Nesse sentido, pergunto pela contribuição da psicanálise no tratamento com idosos. Sabemos que a psicanálise surge como um novo modo de pensar a cultura e a condição do homem na cultura.

Não há um ponto ou uma referência únicos para se dizer: aqui começa o envelhecimento. Estabelecer uma idade qualquer implica em equívocos, visto que não se trata de um processo homogêneo. Em linhas gerais, a gerontologia toma como referência 60-65 anos como indicativo, pois é nessa fase que aparecem os declínios físicos e psicológicos. A Organização Mundial da Saúde (OMS) e, no Brasil, o Plano Nacional do Idoso (PNI) seguem a mesma orientação.

O sujeito, para a psicanálise, é o sujeito do desejo, estabelecido por Freud por meio do conceito de inconsciente, caracterizado e movido pela falta, diferente, portanto, do sujeito biológico. O sujeito psicanalítico se constitui por sua inserção numa ordem simbólica que o precede, atravessado pela linguagem e tomado pelo desejo de um Outro e mediado por um terceiro.

Como tratar esses sujeitos que ultrapassaram a faixa de 60-65 anos? Em Freud encontramos algumas indicações que falam da dificuldade da análise com idosos. Assim, busquei em seus próprios textos, indicativos que deixassem possibilidades de pesquisa ou até mesmo análise.

Na tentativa de fundamentar teoricamente minha própria clínica e retornando a Freud em Dois verbetes de enciclopédia ([1923/1922] 1996), no final do artigo, referindo-se à psicanálise como corpo de conhecimento passível de expansão e reformulação, ele diz:

A psicanálise não é, como as filosofias, um sistema que parta de alguns conceitos básicos nitidamente definidos, procurando apreender todo o universo com auxílio deles, e, uma vez completo, não possui mais lugar para novas descobertas ou uma melhor compreensão. Pelo contrário, ela se atém aos fatos do seu campo de estudo, procura resolver problemas imediatos da observação, sonda o caminho à frente com auxílio da experiência, acha-se sempre incompleta e sempre pronta a corrigir ou modificar suas teorias (FREUD, [1923/1922] 1996, p. 269).

Nesse sentido, escutando o velho Freud, a partir dos desafios dos envelhecidos na contemporaneidade, esta discussão constitui um pequeno ensaio cuja preocupação também é se perguntar pelo papel da psicanálise na cultura e discutir qual é a sua contribuição no atendimento com idosos.

Partindo da frase escutada por um analista em supervisão, “Maurício, não há análise de idoso”, comecei a reler os artigos acerca das técnicas, do ensino da psicanálise e outros da clínica. Buscava na teoria freudiana algo que me autorizasse e fundamentasse minha experiência com idosos.

Lendo Princípios básicos da psicanálise quando Freud ([1913] 2010) fala da psicanálise como disciplina singular, em que se combina a pesquisa acerca das neuroses e o método de tratamento, encontro uma porta aberta para a clínica com idosos.

Diz Freud ([1913] 2010, p. 269):

Desde já, enfatizo que ela não é fruto da especulação, mas da experiência, e, portanto, é inacabada enquanto teoria. Mediante suas próprias inquirições, cada qual pode se persuadir da correção ou incorreção das teses nela presentes, e contribuir para o seu desenvolvimento.

E em outro texto, Linhas de progresso na terapia psicanalítica, quando discute o público a quem se destina a análise, Freud ([1919/1918] 1996, p. 181) fala da evolução do tempo e, consequentemente, da necessidade de se criar manejos específicos às novas condições: “Defrontar-nos-emos, então, com a tarefa de adaptar a nossa técnica às novas condições”. Entendo que, entre as “novas condições” na contemporaneidade, está a clínica analítica com idosos.

E nesse sentido, como diz Mucida (2006, p. 15), a psicanálise,

[...] é um dispositivo aberto àqueles que sofrem e querem construir um saber sobre o sofrimento. Esta oferta – abrindo-se como tratamento do real – na contramão das ofertas do mercado – toca o mais particular que habita cada sujeito, criando outra espécie de demanda ancorada no desejo.

Observamos que vários idosos que nos procuram levam como demanda, um desconforto quanto ao vazio de sentido que se expressa em perguntas como: “Tenho 70 anos. E agora? Que faço?” E nessas questões escutamos a inexistência de projetos de vida. De outro, “Não tenho mais tempo suficiente para...” Então? E falando das dores e perdas em que a morte é a perda maior, há que fazer o luto antecipado da própria morte. Tendo presente o tempo-Kronos, o que é possível? Qual o nosso alcance psicanaliticamente falando?

Assim, diante da visibilidade maior do idoso e das suas demandas, tais como depressão, vazio existencial, ausência de um projeto de vida, perguntamos:

Como os conceitos psicanalíticos – interpretação, transferência, construção em análise, associação livre – se inserem nessa nova realidade?

O que se pode fazer, que tipo de intervenções, quais as contribuições, quais são as particularidades que esta clínica apresenta?

Entendemos que a psicanálise permite uma escuta, um espaço onde o idoso fala, não é falado, em que será convocado e implicado na construção da sua singularidade.

Há textos em que Freud fala das dificuldades de um trabalho psicanalítico com pessoas maiores de 50 anos, como por exemplo, em O método psicanalítico ([1904/1903] 1996) e em Sobre a psicoterapia ([1905/1904] 1996) quando afirma:

A idade dos pacientes tem assim essa grande importância no determinar sua adequacidade ao tratamento psicanalítico, que, por outro lado, perto ou acima dos cinquenta a elasticidade dos processos mentais, dos quais depende o tratamento, via de regra, se acha ausente - pessoas idosas não são mais educáveis - e, por outro, o volume de material com o qual se tem de lidar prolongaria indefinidamente a duração do tratamento (FREUD, [1905/1904] 1996, p. 274).

Em Análise terminável e interminável ([1937] 1996), Freud reitera sua concepção na não plasticidade psíquica de pessoas idosas, alegando a força do hábito ou pouca receptividade para tal.

Embora haja a contraindicação, o próprio Freud abre espaço no mesmo texto, quando diz que a não plasticidade psíquica e a rigidez não são características atribuídas somente aos mais velhos, pois tais características são provenientes dos processos dados pelas neuroses; dessa maneira, os mais jovens podem ser acometidos pelos mesmos males.

De maneira geral, o discurso cultural acerca do idoso tende à generalização e não leva em conta a singularidade do sujeito, em que as doenças, o sofrimento, encontram respostas em “é próprio da idade, ou é da velhice”. Aí não há diferença.

Em direção oposta, a psicanálise aponta para a singularidade do sujeito. E mais: para o sujeito que fala e que, ao falar, ressignifica sua própria história. Dessa maneira, há um ponto de interlocução nesse corpo finito e frágil, ou seja, o discurso. Via retificação subjetiva, o sujeito é convocado a perceber qual é a sua participação no próprio sofrimento, qual a sua implicação como sujeito em sua própria história, em suas ações e, em última análise, em seu desejo. O desejo é da ordem do inconsciente.

Entende-se, portanto, que é a partir dessa instância – sujeito do inconsciente –que se deve abordar a clínica com o idoso, condição necessária para ultrapassar a dimensão biológica, cultural e outras vertentes teóricas e concepções anônimas em que o significante envelhecimento ou velhice sugerem.

O objeto de estudo da psicanálise – inconsciente – autoriza-nos a afirmar que sujeito analítico é o sujeito do inconsciente, e este não envelhece, ou seja, quando falamos de realidade psíquica não há diferença entre um evento passado e um atual.

Como diz Mucida (2006, p. 18), na análise o mais importante

[...] é a forma como o sujeito se coloca frente à falta do Outro e sua relação com o desejo, que não é determinado pela idade e muito menos pela quantidade de material psíquico.

O conceito de pulsão é avesso a qualquer noção desenvolvimentista; sempre parcial. E a sexualidade adulta é a sexualidade infantil.

Em análise, o sujeito é convocado a falar de seus atos; atos que são marcados pelo inconsciente e, em última análise, estimulados pelo próprio desejo. O saber inconsciente – o que marca a diferença e a singularidade de cada um – fundamenta a relação entre sujeito e envelhecimento no que se refere a um trabalho de subjetivação.

Enfatizo, portanto, que a questão do sujeito do desejo é um conceito que firma e delimita o campo do saber psicanalítico em detrimento do anonimato e a descumplicidade que os vocábulos “envelhecimento” ou “velhice” evocam.

Dessa maneira, reitero o desafio em desconstruir uma concepção formatada de envelhecimento ou velhice como época obscura, de não plasticidade, em que o desejo deixa de existir; e por extensão, nega-se o que propõe a psicanálise. Há que deslocar a questão para o campo simbólico, “espaço” este, aberto às manifestações do inconsciente, para além dos tempos cronológicos.

Nesse processo, entendo que o Eu há que construir meios para responder às demandas pulsionais a partir do meio ambiente que se afunila e respostas às demandas do corpo biológico. O “ego tem que ser desenvolvido”, diz Freud ([1914] 1996, p. 84) em Sobre o narcisismo: uma introdução.

E falando das três instâncias – id, ego e superego – na Conferência XXXI, Freud (1933 [1932] 1996, p. 64) fala do ego: ”[...] afinal, o ego é, em sua própria essência, sujeito”. Assim, a psicanálise comparece como possibilidade para o envelhescente – sujeito –nessa construção ou reconstrução de sentido.

O envelhecimento é o encontro estranho de um corpo que se fragiliza com uma instância que não se envelhece: o inconsciente. Um desencontro, na verdade. Um desencontro que provoca um desajuste, que desperta sentimentos ou emoções que até então não eram sentidas ou não percebidas. Da mesma forma que o mal-estar é o que conduz o sujeito à análise, aqui esse desencontro ou desajuste é o que convoca o sujeito a um reposicionamento diante da sua existência.

Referindo-se a esse momento, um dos clientes assim o define: “É um acerto de contas”. E outro acrescenta: “É preciso passar a história a limpo”. Fala-se de reposicionamento diante da existência.

O psiquismo tem por função a manutenção da continuidade do prazer, do interesse, do sentido, do fluxo constante de investimento tanto em si, como no corpo, nos outros, nas atividades, ideias e no mundo exterior. A função do psiquismo repousa na capacidade de investir fora do eu.

Esse princípio é de extremo valor, pois aqui reside o fio norteador da análise com idosos, ou seja, a importância de se criar os próprios sentidos na vida que auxiliem o eu a romper com a possibilidade da autodestruição subjetiva.

A título de exemplo: Eloá (nome fictício), cliente de 82 anos, viúva, me liga todas as manhãs e diz: “Doutor Maurício, já levantei, tomei café, tomei banho, tirei a camisola. Volto a dormir mais um pouquinho? E agora, que vou fazer hoje?”

O vazio pelo que fazer hoje, faz do seu dia um verdadeiro pesadelo, já confessado por ela. A construção de um sentido é a única possibilidade de tirá-la de sua concha narcísica. Tenho por hábito acolher e ser como uma “caixa de ressonância” (expressão de Jacques Miller) quando meus clientes idosos me lançam perguntas como a de Eloá. Costumo responder-lhe: “Legal. O que podemos fazer hoje?”. Percebo que a palavra “podemos” traduz uma possibilidade de auxílio – que o analista está com ela – por onde Eloá escorrega seu desejo na construção de um sentido. O conceito de mãe suficientemente boa, de Winnicott (1974), como sendo o primeiro polo de investimento fora do eu como modelo, ecoa na relação com Eloá.

A função do aparelho psíquico é manter a continuidade do ambiente interno via fluxo de trocas com o meio externo. Embora a sexualidade não seja mais o elo mobilizador como no passado, há que se buscar vias sublimatórias mesmo que o eu esteja marcado pela fragilidade. A sublimação consistiria, na clínica psicanalítica com idosos, o eixo fundante e mobilizador, pois há que se manter o fluxo do investimento para fora do eu e do próprio corpo, mesmo que as perdas atinjam tanto o eu como os objetos.

E diante da morte, castração radical, Bianchi (1993, p. 93) insiste na continuidade do sentido quando diz:

É nessa mobilização do investimento fora do Eu que se apoia (sic), quando se efetua o necessário trabalho psíquico do luto do EU-objeto e do corpo, isto é, a renúncia à continuidade biológica em projeto de uma substituição sublimativa que permite manter uma continuidade da natureza ideativa [...] é aqui que aparecem as continuidades substitutivas da crença, do saber e, de um modo geral, da identificação com entidades mais duráveis que do que o Eu: tudo o que lhe permite evitar reconhecer na morte uma castração radical.

A função do aparelho psíquico é de investimento como já falamos. Assim, pela via da sublimação, a análise com idosos poderia contribuir e enriquecer a teoria psicanalítica por esse viés. A sublimação, conceitualmente falando na teoria psicanalítica, nasce para dar conta da origem sexual do impulso criador do ser humano, que, ao transformar as forças das energias sexuais, converte-as em forças produtivas e criadoras. A sublimação seria um meio de atenuar essas forças irruptivas e violentas do sexual.

A clínica freudiana pontua constantemente a importância da singularidade. Nesse sentido, cada sujeito atendido implica uma clínica diferente, uma reinvenção da psicanálise, pode-se dizer. Partindo dessa experiência única é que se pode pensar a concepção do que seja estar velho.

Em O mal-estar da civilização, quando fala da felicidade, Freud ([1930] 1988) diz ser uma tarefa impossível, mas há que buscar o possível e, para tal, não existe um caminho igual para todos e afirma:

Não existe regra de ouro que se aplique a todos: todo homem tem de descobrir por si mesmo de que modo específico ele pode ser salvo (FREUD, [1930] 1988, p. 91).

Para ilustrar essa reflexão, apresento alguns fragmentos de sessão de uma idosa em atendimento. Eloá chega ao meu consultório com diagnóstico de síndrome do pânico, após cirurgia cardíaca de sucesso, aos 80 anos. Em uma consulta, o médico pede-lhe cuidados especiais, pois agora tem um coração artificial. A palavra “artificial” foi o elemento detonador de uma crise que a enclausurou em seu apartamento deixando-a apática, inerte e sem vida.

O significante “artificial” remete à própria existência quando afirma:

Meu marido me colocou numa redoma de vidro [...] não me deixava fazer nada [...] a minha vida toda foi um teatro [...] só cenas. Agora não dá para encenar mais. Não tem como esconder mais.

Um terror a paralisou diante da possibilidade da morte. E é nesse contexto que o tempo nos aproximou.

Há três fragmentos de sessão que resultaram numa mudança significativa em sua análise. O primeiro fragmento refere-se ao seu fisioterapeuta. Relata Eloá que, um dia, o fisioterapeuta se colocou diante dela, segurou suas mãos (pela maneira como relatou, deu a entender, de forma muito carinhosa) e ela se assustou, e disse-me: “Me pareceu que ia dizer alguma coisa, que fosse se declarar a mim. Eu fiquei assustada, soltei de suas mãos e levantei-me depressa”. Após esse evento, Eloá sempre buscava justificativas para não comparecer às sessões de fisioterapia.

No segundo evento, ela estava caminhando no playground de seu prédio e aí encontrou-se com um vizinho que há tempo não se viam. Pergunta pela sua esposa e ele a convida a visitá-la, o que Eloá faz imediatamente. Ele gentilmente se oferece para acompanhá-la, oferecendo-lhe o braço. Ao encostar seu braço no braço cabeludo do vizinho, Eloá sente arrepios pelo corpo todo e, assustada, tira o braço com rapidez. E me diz: “Doutor, onde já se viu, uma mulher da minha idade pensar nessas coisas, sentir essas coisas... não... pelo amor de Deus”.

Como diz Freud ([1925] 1996, p. 265) em A negativa, que

[...] o conteúdo de uma imagem ou ideia reprimida pode abrir caminho até a consciência, com a condição de que seja negado.

O “não” de Eloá é uma maneira, um caminho de entrar em contato com o que está reprimido.

No terceiro evento, Eloá estava em um jantar, aliás, de seu aniversário de 82 anos. Um senhor, sentado à sua frente encostou as pernas nas suas, o que a deixou incomodada. E ela me diz: “Doutor, o senhor viu? Todo mundo agora assim comigo. Credo, uma mulher velha pensando nessas coisas!”

No fragmento anterior, Eloá nega o que está sentindo, o que fala da suspensão da repressão, como afirma Freud ([1925] 1996) embora isso não signifique aceitação do reprimido. Aqui, neste fragmento, já se admite a possibilidade de estar pensando.

Ao narrar os três fragmentos da sessão já mencionados, apenas digo: “Que bom, né, Eloá! Você está viva!” Ela esboça um sorriso, abaixa a cabeça. O sorriso, entendo, resulta da autorização que esperava. Posso sentir, não é pecaminoso, um idoso pode viver a sexualidade.

Assim, algo extremamente prazeroso ocorreu nessa sessão. Ao pontuar o caráter punitivo referindo-se ao braço machucado, Eloá levanta a cabeça, olha bem firme e me diz: “Doutor, quem é o louco aqui, eu ou o senhor?” Fui pego de surpresa, e sua pergunta provocou-me um riso que foi acompanhado pelo de Eloá, aumentando até a produção de gargalhadas. Como se não bastasse, foi necessário ficarmos em pé, momento em que as gargalhadas se intensificaram.

Nesse sentido, Freud ([1927] 1998), afirma em O humor que a essência do humor é banir o sofrimento para que em seu lugar apareça o prazer humorístico e que, além de seu caráter libertador, apresenta algo de grandeza, que se encontra relacionado ao triunfo do narcisismo e à afirmação vitoriosa do eu que insiste em obter prazer, mesmo em momentos difíceis e hostis. Nesse caso, o inconsciente de Eloá provoca um chiste e o humor aqui responde a:

[...] uma contribuição feita ao cômico pela intervenção do superego. Se é realmente o superego que, no humor, fala essas bondosas palavras de conforto ao ego intimidado, isso nos ensinará que ainda temos muito a aprender sobre a natureza do superego. Se o superego tenta, através do humor, consolar o ego e protegê-lo do sofrimento, isso não contradiz sua origem no agente paterno (FREUD, [1927] 1998, p. 169).

Essa sessão foi como se abrisse uma torneira para escoar algo que até então estava represado. Tornou-se uma referência e, quando as sessões ficam difíceis, Eloá pergunta pelas gargalhadas: “Quando vamos repetir aquela sessão?”.

Após essa intervenção, por conta própria, Eloá cortou duas sessões, ficando apenas uma e ainda desmarcando outras. Retorna para a fisioterapia, onde é recebida com festa. E me diz depois: O “Carlos” me disse: “Vem aqui, Eloazinha, quero você pertinho de mim”. “Ele tece elogios a mim o tempo todo. Ele é uma gracinha”. Autorizada a sentir e acolher o que vivencia, vai elaborando a concepção de pecado e castigo que tomou conta de sua vida.

Eloá comparece às sessões bem vestida, maquiada, com joias e sorriso fácil. Muito afetiva, carinhosa, conquista a atenção de todos por onde passa. Descobriu recentemente um hospital carente em que os pacientes passam dificuldades, pois o espaço é pobre, janelas com vidros quebrados, o que a deixa indignada, e diz: “Onde já se viu uma coisa desta [...] estão lá doentes, e passando frio [...] é um absurdo”. Descobriu um meio de ajudá-los. Resolveu tecer sapatinhos de lã.

Em Escritores criativos e devaneio Freud ([1908/1907] 1996), enfatiza a importância da criação e da imaginação no processo da sublimação, entendendo sublimação como maneira de escoar o pulsional no sentido de prazer. E aqui neste texto, Freud concebe o prazer não como descarga total da pulsão (inércia), mas como meio alternativo de satisfação de um desejo e que também resulta em prazer. Dessa forma, no ato de sublimar, há a possibilidade de obtenção de prazer com o pulsional, indiretamente via construção simbólica.

Segundo o texto Escritores criativos e devaneio ([1908/1907] 1996), o sujeito insatisfeito, pulsionalmente falando, cria outras possibilidades de satisfação, via sublimação, transformando o desejo sexual em algo prazeroso por meio da construção simbólica, evitando, assim, a desistência do desejo. Portanto, a sublimação, como processo psíquico, aponta a realização do desejo em outro contexto e por meios de outros objetos.

Eloá convida senhoras idosas e ‘praticamente’ monta uma sapataria para tecer sapatinhos de lã em sua casa. Recebe lã de várias pessoas. Grande parte do dia é dedicada aos trabalhos manuais, que sempre ganham modelos novos, fruto de pesquisas em revistas e com amigas. O dia da entrega é uma festa. Sente-se feliz, reconhecida e usa a sessão toda só para falar dos elogios. Os olhos brilham! E diz: “Nossa, é muito bom poder ajudar as pessoas, né?”.

 

Considerações finais

Ao criar novos sentidos, a clínica psicanalítica, segundo Birman (1997), põe em cena a ética e a estética. Ou seja, referindo-se à ética, o sujeito se coloca diante de sua verdade, de seu desejo, de seus impulsos sexuais. E diante do próprio desejo, quais os caminhos possíveis? É uma questão de singularidade, e o destino que cada um dá ao seu desejo é o que particulariza o ser como singular. Já sob a perspectiva da estética, frente à impossibilidade de realização do desejo, a cura em análise consistiria em uma transformação do desejo.

Frente ao desamparo, cada sujeito busca criar, via sublimação, uma forma única de existência e um jeito próprio de habitar seu mundo interior. Nesse sentido, a única maneira de dar conta do desamparo é continuar desejando, inventando um estilo, ao invés de se refugiar em ideais fálicos. Já que o desamparo é estrutural, pelo menos pode-se gerenciá-lo.

 

Referências

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STUART-HAMILTON, I. A psicologia do envelhecimento: uma introdução. Porto alegre: Artmed, 2002.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: mauricio@agostinianos.org.br

Recebido em: 28/02/2018
Aprovado em: 25/04/2018

 

 

SOBRE O AUTOR

José Mauricio da Silva
Doutor em psicologia pela PUC Minas (2015).
Mestre pela PUC Minas (2007).
Graduado em Filosofia pela PUC Minas (1985).
Graduado em psicologia pela Universidade Gama Filho (2000) Rio de Janeiro.
Especialização em Teoria e Clínica Psicanalítica Universidade Gama Filho (UGF) Rio de Janeiro (2002).
Professor em pós-graduação em Ciências da Religião, no Instituto Santo Tomás de Aquino (ISTA) MG.
Candidato em formação no Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG).

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