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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.49 Belo Horizonte jan./jun. 2018

 

PSICANÁLISE: CLÍNICA E TEORIA

 

Psicanálise: uma relação dialética entre o individual e o social?

 

Psychoanalysis: a dialectical relationship between the self and the social?

 

 

Magda Maria ColaoI, II; Janes Teresinha Fraga SiqueiraI, III

I Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul
II Universidade de Caxias do Sul
III Universidade Federal de Santa Maria

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Ao longo de sua vida e obra Freud (ousado, rebelde, criativo) analisava sua própria metamorfose cultural, psíquica. Freud, ser político. Tinha arte; fez ciência; desenvolveu seu método de enfrentar o mundo; exercia com práxis sua profissão; conduzia com cortesia e humanidade o que desejou obter como resultado em todos os campos e relações. Sua vigorosa teoria, seu desejo de orientar a psicanálise como ciência contribuiu com uma nova concepção de subjetividade humana: terapêutica, social e humanística. Este é o significado fundamental da teoria da libido. Sua dialética não opôs o sujeito individual ao ente social, ou seja: não existiam para ele, fronteiras rigorosas entre ambos. O principal objetivo deste trabalho é debater nossa compreensão de que: pela formação cultural e legado de Freud, seria um equívoco considerá-lo como individualista, ou desarticulado do social, como se não considerasse o homem vivendo da natureza com seu meio social e nele desenvolvendo-se em suas relações. Em psicologia das massas e análise do eu, Freud, na vida psíquica do ser consagrou o individual, o Outro o qual é, via de regra, considerado enquanto modelo, objeto, auxiliador e adversário, e, portanto, a psicologia individual é também desde o início, psicologia social, num sentido ampliado, mas inteiramente justificado. A psicanálise lida com matéria viva: o ser humano, com seus sentimentos, fantasias, desejos, significações, bem como com sua inibição, sintoma e medo. Pensar a psicanálise significa conceber que cada sujeito tem sua arte e a arte é o social em nós diz Vigotski.

Palavras-chave: Psicanálise, Formação cultural de Freud, Dialética entre o individual e o social, Movimento de emancipação.


ABSTRACT

Throughout his life and work, Freud (bold, rebellious and creative) analyzed his own cultural and psychic metamorphosis. Freud, a political being. He had art; science; he developed his approach to the world; exercised his profession with praxis; pursuing the results he sought in all fields and relations with courtesy and humility. His vigorous theory and desire to guide psychoanalysis as a science contributed to a new therapeutic, social and humanistic conception of human subjectivity. This is the fundamental meaning of the theory of libido. His dialectic does not place the self and the social being in opposition; in other words, there were no strict boundaries between them. The main objective of this study is to debate our understanding that given Freud’s cultural formation and legacy, it would be a mistake to consider him an individualist or disconnected from the social, as if he did not consider man living in harmony with nature within his social environment and developing his relationships. In group psychology and analysis of the ego, Freud, in the psychic life of self, established the Other, who is typically considered a model, object, helper and adversary, and as such, from the outset individual psychology is also social psychology in a broader, but entirely justified sense. Psychoanalysis deals with living material: human beings, their feelings, fantasies, desires and meanings, as well as their inhibitions, symptoms and fears. Psychoanalysis means conceiving that each self has their own art and, in the words of Vigotski, art is the social within us.

Keywords: Psychoanalysis, Freud’s theory of cultural formation, Dialectical interplay between the self and the social, Emancipation movement.


 

A formação cultural de Freud

Grosskurth (1992, p. 2558-2559) testemunha a respeito de Freud:

[...] é uma das grandes figuras da história, depois da qual o mundo nunca mais foi o mesmo. Sua mente explorou áreas profundas da psique, de onde ainda estamos extraindo o ouro do lixo. [...] ele era um ícone que modelara a si mesmo com base em figuras nobres do passado

Sensível ao sofrimento humano, embora tivesse expressado:

[...] sempre precisei ter na vida um grande amigo e um inimigo implacável. Por vezes sendo eles representados pela mesma pessoa (FREUD, apud PERESTRELLO, 1996, p. 14).

“Freud era um homem muito complexo, modificado pelas decepções, pelos fracassos e sucessos de sua vida”, escreve Grosskurth (1992, p. 49).

O relacionamento de Freud com seu pai foi o oposto ao que teve com sua mãe.

Ela o admirava e favorecia, permitindo-lhe ser rei entre os irmãos – o pai era aparentemente um homem mais imparcial, se bem que não agressivo (FROMM, 1965, p. 63).

Freud denotava traços com certa dificuldade de aceitar críticas, rebeldia contra o pai e confiança em si mesmo. Aos dois anos já tinha um sentimento de importância e de superioridade em relação ao pai. As experiências arcaicas edificam o sujeito psíquico e constituem uma das causas mais importantes da evolução posterior, explica Fromm (1965).

No tear dos seus movimentos contrários por toda a sua vida, guardava em si uma boa continência dialética desde tenra infância.

Da mãe, herdou grande sensibilidade. Do pai o senso de humor, tão marcante em sua teoria sobre os chistes, e também o pessimismo quanto à humanidade e às vicissitudes da vida. Por influência dos dois, decidiu que iria se transformar num homem notável (FERREIRA NETTO, 2014, p. 12).

Sua formação cultural é fascinante. Em sua vida como em sua obra Freud

[...] recebeu das múltiplas e diferentes fontes, quer como estímulo direto, quer sutilmente, como inspiradoras. Ei-lo: ambiente familiar; tradição judaica; atmosfera sociopolítica de Viena; escritores; filósofos; cientistas (PERESTRELLO, 1996, p. 9).

A literatura, as artes, as ciências humanas, entre outras áreas, receberam a influência de Freud. Enfim, Freud foi um judeu com

[...] intensos interesses culturais e científicos ocidentais e nele se acham imbricadas várias culturas; um judeu que, talvez tarde, mas até os dias de hoje, conquistou pelas suas descobertas um lugar no mundo ocidental e se impôs ao “outro lado” (PERESTRELLO, 1965, p. 70).

Para Fromm (1965, p. 127), Freud representa a culminância do racionalismo em suas descobertas.

[...] as origens das ações do homem estão no inconsciente, numa profundidade da qual a maior parte nunca se desvenda ao examinador, e como o pensamento consciente do homem só controla seu comportamento em pequeno grau, ele derruba a imagem racionalista segundo a qual a inteligência do homem dominava o cenário sem restrição ou contestação. A este respeito, a visão do poder das forças do “mundo subterrâneo”, Freud foi um herdeiro do romantismo, o movimento que procurou penetrar na esfera do não racional.

Ao longo da vida e obra de Freud ele mesmo analisava sua metamorfose cultural, psíquica. Freud político, tinha segundo Fromm (1965, p. 129), “[...] sede de verdade, fé irrestrita na razão e inabalável coragem para tudo arriscar nessa fé”. Um homem com política, ou seja, Freud tinha arte; fez ciência; desenvolveu seu método de enfrentar o mundo; exercia com práxis sua profissão. Conduzia com cortesia e humanidade o que deseja obter como resultados. “O seu método de enfrentar o mundo é vigoroso” (FROMM, 1965, p. 131)

Conforme Fromm (1965), Freud vivia a vida, com desejo humanitário. Exercia sua missão, seu destino com ações e sentimentos de justiça, amor, respeito à identidade, aos direitos dignos do outro.

Enaltece Fromm:

Sua luta íntima com ambição e com seu senso de valores, muitas vezes uma em conflito com o outro, cria uma torturada atividade espiritual (FROMM, 1965, p. 131).

E Perestrello (1996, p. 29) afirma:

A vida intelectual do jovem Freud era seminoturna; lia em geral das dez da noite às duas da madrugada [...]. Ao frequentar a faculdade de medicina, queixa-se de não ter tempo de ler romances e poemas contemporâneos [...]. Freud funciona como um verdadeiro crítico literário.

A concepção de homem, a totalidade do conceito de humanidade e humanismo “[...] baseia-se na ideia de uma natureza humana comum a todos os homens” (FROMM, 1965, p. 31).

A psicanálise é um produto histórico que contêm um saber universal. Emana necessariamente das condições e vicissitudes do desenvolvimento humano que se difunde, tornando-se popular no contexto sociocultural, recriando-se, visto que a vida afetiva é constantemente alterada conforme a condição psicológica estabelecida entre o sujeito e o meio.

Conta-nos Rieff (1979, p. 85) que Freud, ao realizar sua autoanálise, permanece singular entre os freudianos. “A psicanálise começa com uma exceção heroica”. “Ninguém mais poderá ser o primeiro a explorar estas profundezas”.

Freud tem talvez, também por essa coragem, a deferência dos analistas, a sua singularidade.

A psicanálise é, assim, ligada ao desenvolvimento pessoal de Freud, de uma maneira que as doutrinas científicas raramente estão com a vida íntima de seus fundadores (RIEFF, 1979, p. 85).

 

O eu mais profundo

O eu está muito bem escondido de seu próprio eu; de todas as minas de tesouro, o próprio eu é a última a ser escavada (NIETZSCHE apud RIEFF, 1979, p. 85).

Rieff (1979, p. 87) compreende que para Freud “[...] a mente não é tanto o que habita o corpo, falando metaforicamente, como o que forma o revestimento do corpo”. A mente teria, então, uma unidade básica. O inconsciente seria o “sistema primário”.

Rieff (1979, p. 87) explica: “[...] é a mente – por meio de sua unidade básica, o “desejo” que primeiramente define as necessidades do corpo”. O inconsciente, ou “sistema primário” como Freud às vezes o chama, “[...] é incapaz de fazer outra coisa a não ser desejar”. Porém há um conjunto de armadilhas psíquicas que aparecem entre o desejo e sua aprovação tais como: “repressão, amnésia parcial, deslocamento, sublimação”.1

Freud compreende que “[...] as forças instintivas são “obscuras”, e uma extensa porção do inconsciente, “a essência do nosso ser”, permanecerá sempre inacessível à consciência”.

Rieff (1979, p. 198) explica que

[...] as ideias de Freud representam um clímax, muito mais do que um novo começo, numa corrente notável de raciocínio sobre a relação entre a doença e o passado.

Destaca que Freud “[...] seguiu com especial cuidado os escritos contemporâneos sobre a psicologia dos primitivos” (RIEFF, 1979, p. 199).

Freud foi alcançado pela literatura antropológica. O primeiro ponto exato do primitivo na vida mental do indivíduo, em Freud, “foi o sonho”. “Sonhar é um exemplo de regressão”. Essa análise levaria Freud “[...] a um conhecimento da herança arcaica do homem, do psiquicamente inato nele”.

O segundo ponto do primitivo encontrado por Freud em

[...] todos os estudos antropológicos2 de que ele dependeu, fizeram livre uso da analogia entre o primitivo e a criança (RIEFF, 1979, p. 199-200).

Foi mais de costume construir a era primitiva da civilização. Era como “a infância da raça” do que inverter a imagem, fazer da infância a era primitiva do indivíduo (RIEFF, 1979, p. 199-200).

Em Totem e tabu Freud (1913) faz uma comparação entre as fases do desenvolvimento da visão humana do universo e as fases do desenvolvimento libidinal do indivíduo.

[...] a fase animística corresponderia a narcisista, tanto cronologicamente quanto em conteúdo; a fase religiosa corresponderia a fase da escolha de objeto, cuja característica é a ligação da criança com os pais; por outro lado, a fase científica encontraria uma contrapartida exata na fase em que o indivíduo alcança a maturidade, renuncia ao princípio do prazer, ajusta-se à realidade e volta-se para o mundo externo em busca do objeto de seus desejos (FREUD, [1913-1914], 1969, p. 100).

Freud tornou psicológico o mito liberal da racionalidade humana em crescimento, na teoria de que o indivíduo “evolui do narcisismo para a sociabilidade libidinal amadurecida”.

Para Freud

[...] as crises pré-históricas da raça esclarecem o significado das crises neuróticas dos homens históricos. Ao mesmo tempo, as artes neuróticas dos homens históricos revelam as crises pré-históricas originais (RIEFF, p. 201-202).

A propensão de Freud foi considerar “[...] atos de violência como os substratos originais de toda a ação social”. Baseou-se em Darwin e sua conjectura de que: “[...] a forma primitiva da sociedade humana era a de uma horda dirigida despoticamente por um poderoso homem”.

Freud fez uma associação “[...] da natureza assassina do homem com o desejo de matar o pai”. Seu julgamento e associação “[...] foi detectado nos adultos neuróticos, em crianças, e na evidencia dos sonhos”. A pesquisa de Freud sobre a pré-história terminou “[...] numa harmonia clara entre o instinto e o evento primordial” (RIEFF, 1979, p. 203).

Ilustra Fromm (1965, p. 36), que em Freud,

[...] o homem primitivo é aquele que dá plena satisfação a todos os seus instintos, inclusive aos descabidos, que fazem parte da sexualidade primitiva. Mas este homem primitivo, plenamente satisfeito, não é criador de cultura e civilização.

Quanto mais a civilização avança e se desenvolve, mais o homem sublima, enfrenta suas castrações, frustrando seus impulsos libidinosos. Assim o ser humano se faz homem culto, sujeito a suas neuroses.

Para Freud, o homem é motivado [...] pelas contradições entre desejo de prazer sexual, luta pela sobrevivência e domínio do ambiente (FROMM, 1965, p. 41).

Descobrir o inconsciente é precisamente não um ato intelectual, mas também uma experiência efetiva, que dificilmente pode ser colocada em palavras. [...]. Ter consciência de experiência, pensamentos ou sentimentos que são inconscientes não significa pensar sobre eles, mas vê-los, tal como ter consciência da respiração não é o mesmo que pensar sobre ela (FROMM, 1965, p. 93).

Somos seres da falta, logo não somos animais, e sim desejo. A essência do desejo é infinito fim de possibilidades. E as possibilidades relacionam-se dialeticamente com a realidade, andam juntas, interpenetram-se continuamente.

 

O pensamento político, filosófico, antropológico de Freud

Freud viveu a Primeira Guerra Mundial e o comecinho da Segunda. Por sua natureza, experimentou inconvenientes em sua pátria. Durante a Primeira Guerra escreveu Conferências introdutórias sobre psicanálise [1915]. Nesse texto Freud tenta chamar a atenção de um grande público da Viena de sua época, que, conforme Melman (2009), “teria outras onças para cutucar”. Nele Freud conserva a dignidade e o essencial do que a psicanálise pode trazer tanto no campo da terapia quanto da cultura.

Melman (2009, p. 11).

É um texto hoje eminentemente tocante. Tocante porque a preocupação de Freud é fazer entrar as manifestações do inconsciente no campo da evidência. É imediatamente sensível a antinomia que pode existir, a heterotopia que pode haver aí entre, de um lado, o que chamamos de campo da evidência, ou seja, da realidade, e de outro, o que é atinente ao estatuto do inconsciente, à medida que é precisamente o que, à dita realidade, escapa.

Ao postular a existência do inconsciente subjetivo, ao mesmo tempo Freud afirma a natureza do sujeito psíquico, exterior ao homem e sujeita às suas próprias leis, seu conhecimento. Portanto, a psicanálise reconhece que há uma relação dialética entre vida subjetiva e vida objetiva. Logo, se interpenetram constantemente.

A experiência subjetiva carrega em si o mundo interno do sujeito (sonhos, medos, impulsos, fantasias, desejos, esperanças, autoimagens, percepções e reações psicológicas aos sintomas). Enfim, a verdade do sujeito psíquico. A ação do homem sobre a realidade que engendra o real como objeto e o homem como sujeito racional, ativo. “Essa ação do sujeito é necessariamente situada e datada, é social e histórica” (GONÇALVES, 2015, p. 149).

Narra Mezan (1965) Viena e as origens da psicanálise. Freud recebeu em seu divã pessoas que viviam numa determinada atmosfera política, social, econômica e cultural e aprendeu a escutá-las. A partir da escuta clínica, Freud foi tecendo sua teoria, desenvolveu toda a sua prática.

Nesse ínterim, destaca Ferreira Netto (2014, p. 99), “o termo ‘complexo’” significa a presença de muitos fatores ao mesmo tempo. E chamou de “Édipo positivo” à sua primeira formulação. Tomando como modelo o mito e as observações feitas em si mesmo ou nos outros,” e organizou a compreensão do complexo edípico. A história sempre foi seu norte assim como seu trabalho com mulheres neuróticas judias da classe média vienense, e que, por isso, a psicanálise é algo caracteristicamente vienense. Viena era uma cidade vibrante de intelecto e de sexo. “Viena da Belle Époque” foi continente para a criação da obra de Freud.

Num sentido amplo a psicanálise seria a filha de Viena, porque o que ela afirma da vida humana se encontraria como que concentrado e potencializado pelas condições únicas ali reunidas (FERREIRA NETTO, 2014, p. 80).

O clima psicológico de Viena durante a decadência do Império e os sentimentos mórbidos que permeavam a cidade em consequência deste período, são bem pano de fundo digno, e mesmo necessário, para um exemplo extremo de grave conflito edipiano com o pai – neurose, sexo, homicídio e suicídio. Uma demonstração vívida e chocante das tendências destrutivas inerentes ao homem, que Freud iria investigar e descrever depois (BETTELHEIM apud MEZAN, 1965, p. 81-82).

Rieff (1979, p. 331) argumenta que Freud tinha uma variedade de fé na liberdade. Defendia em nível terapêutico o rompimento da escravidão do passado. Não advogava os códigos autoritários de conduta, mas Freud negava que a psicanálise realmente critica a sociedade ou que tem qualquer “coisa a ver com julgamentos de valor”.

Segundo Roudinesco (2016, p. 399) Freud afirmava,

A psicanálise não precisa e nem deseja criar um Weltanschauung3 de si própria. Não tenciona ser nenhuma doutrina, apenas um método.

Roudinesco apresenta-nos um Freud contraditório politicamente. Em suas palavras: “Freud nunca cessara de contradizer-se afirmando que a psicanálise não era uma Weltanschauung”.

No entanto, argumenta que

[...] sua doutrina sempre fora vetor de uma representação do mundo, de uma ideologia, de um projeto político e de um pensamento antropológico (ROUDINESCO, 2016, p. 399).

Lembra que em O mal-estar da civilização Freud (1930) fazia

[...] vibrante elogio dos progressos da ciência, para melhor fustigar, tudo junto, o bolchevismo, o marxismo e a obscura dialética hegeliana, ao mesmo tempo em que afirmando que a compreendia mal, uma vez que atribuía a formação das classes sociais às lutas ancestrais entre hordas humanas – ou “raças” – pouco diferentes uma das outras. [...] Freud continuava a interpretar as lutas dos povos pela emancipação pautando-se no modelo de Totem e tabu4 (ROUDINESCO, 2016, p. 400).

Dessa forma, Freud procurava

[...] se distanciar da filosofia e da teoria da história [...] ao passo que reiterava sua análise mitográfica das dinastias imperiais e sua concepção de uma república dos eleitos (ROUDINESCO, 2016, p. 400).

Roudinesco (2016, p. 400) considera um erro a atitude de Freud.

[...] em nome da recusa de toda Weltanschauung, se elaborou, com sua concordância a ideia de que, uma vez que era uma ciência, a psicanálise deveria permanecer “neutra” em face de todas as mudanças da sociedade, logo, “apolítica”.

A questão seria: como considerar a psicanálise neutra?

Mesmo depois de haver criticado o cientificismo e o positivismo, de pretender desafiar a racionalidade científica interessando-se pelo ocultismo, de ter inventado uma concepção original da história “arcaica” da humanidade, eis que ele se recusava a ver que sua doutrina era portadora de uma política, de uma filosofia, de uma ideologia, de uma antropologia e de um movimento de emancipação (ROUDINESCO, 2016, p. 400).

Freud “correu o risco de ver sua doutrina transformada em catecismo”.

Roudinesco (2016, p. 401) considera que

[...] nada era mais avesso ao espirito da psicanálise do que travesti-la numa pretensa ciência positiva e mantê-la afastada de todo engajamento político.

 

O homem psicológico

A verdade será relevada. “A psicanálise é, em essência, uma cura pelo amor”, escreve Freud.5 Tanto é verdade que não é suficiente para quem busca a psicanálise, apenas se autoconhecer, porém, desejar transformar-se, tanto algo em seu viver como na sua vida.

Ora, com o que trabalha a psicanálise? Com uma matéria viva: o ser humano com seus sentimentos, suas fantasias, seus desejos, suas significações. Ou seja: a consciência do inconsciente é uma experiência que se caracteriza pela sua espontaneidade e pelo inesperado.

Por exemplo: Inibição, sintoma e medo. A inibição tem função: sexual, alimentação, locomoção, trabalho profissional. As inibições são restrições das funções do eu, assim como as emoções.

Medo é reação ao perigo. Se o afeto de medo pode conquistar uma posição de exceção na economia psíquica, não se pode rejeitar a ideia de que isso tenha uma conexão com a essência do perigo (FREUD, [1924], 1976, p. 135).

Fromm (1965, p. 93) ressalta que

[...] o processo da descoberta do inconsciente pode ser descrito como uma série de experiências de âmbito cada vez maior, sentidas profundamente, e que transcendem ao conhecimento teórico e intelectual.

Fromm (1965, p. 93) reporta;

Na questão da possibilidade de tornar o inconsciente consciente é da maior importância reconhecer os fatores que impedem esse processo. Há muitos fatores que tornam difícil chegar à percepção do inconsciente. São eles a rigidez mental, falta de orientação adequada, incapacidade, falta de qualquer possibilidade de modificar as condições realistas. Mas não há provavelmente nenhum fator isolado mais responsável pelas dificuldades em tornar consciente o inconsciente do que o mecanismo que Freud chamou de “resistência”.

A resistência, uma das categorias da psicanálise, produzida pela censura, é uma defesa que envolve o desejo do sujeito psíquico.

O desejo (MAFRA, 2004, p. 31) é algo constituído no

[...] vértice entre a necessidade e o amor, a partir do ponto em que essa necessidade se transforma em demanda por sua insuficiência contingente e esse amor é alienado por essa necessidade.

A resistência defende a doença do sujeito. Pode ser consciente, pré-consciente ou inconsciente.

Todas as resistências possuem o mesmo denominador comum:

[...] tentativa de evitar sentimentos desagradáveis, seja, eles de raiva, culpa, ódio, amor (se dirigido a um objeto proibido, como terapeuta) inveja, vergonha, luto, ansiedade ou alguma combinação deles (GABBARD, 2016, p. 22).

A resistência também vem a ser uma tentativa de proteger-se de um medo.

Estrutura Freud ([1925] 1976, p. 43):

[...] a teoria da repressão tornou-se a pedra angular da nossa compreensão das neuroses
[...]. É possível considerar o recalque como um centro e reunir todos os elementos da teoria psicanalítica em relação a ele.

Enfim, demarca Freud ([1925] 1976, p. 54):

[...] as teorias da resistência e do recalque, do inconsciente, da significação etiológica da vida sexual e da importância das experiências infantis – tudo isso forma os principais constituintes da estrutura teórica da psicanálise.

A psicanálise tenta fazer-nos ver aquilo que pensamos ser alheio a nós e precisa ser negado ou rechaçado constitui, na realidade, uma parte muito significativa de nós próprios, sendo por isso vantajoso reconhecermos o que é e integrá-lo à nossa personalidade. (BETTELHEIM, 1982, p.109).

O sujeito psíquico carrega inibições, medos e sintomas. As inibições, reafirma Zwick (2016, p. 47), [...] “são restrições das funções do eu, ou por precaução, ou em decorrência de um empobrecimento de energia”.

Em 1909, Freud acrescentaria uma nota no texto A interpretação dos sonhos:

Aliás, o ato do nascimento é a primeira experiência de angústia e, portanto, fonte e modelo do afeto de angústia (ZWICK, 2016, p. 23).

E o medo por sua vez “produz o recalcamento. [...] O medo da castração é o motor da oposição do eu” (ZWICK, 2016, p. 28).

Em Além do princípio do prazer, Freud (1920) recorda que a neurose traumática é duplamente afetada pelo medo. “O objetivo da vida é a morte” (FREUD, ([1920] 1976, p. 56).

Indaga Zwick (2016, p. 35):

[...] quando, hoje, vivemos sob o impacto dos terrorismos, de Estado e não só, a questão do medo volta à ordem do dia. Que medo é esse que impera em nossas sociedades? É real ou neurótico?

Zwick entende que [...] um alimenta o outro e que um dos graves sintomas dessa cultura do medo é a proliferação de muros em nosso mundo. Cidades e países se tornam bunkers.

A doutrina da segurança, ou seja, a política da violência impõe muros, exclusões, banimentos. Também o outro é isolado. O “isolamento”, como formulado por Freud, é uma técnica, ao lado da “anulação”, que substitui, em um sintoma, o recalque. Viver o signo do medo é viver tanto banindo o outro como também tolhendo a nós mesmos (ZWICK, 2016, p. 36).

Pensar a psicanálise significa que cada sujeito tem sua arte e, ao ser mencionada subjaz razões relacionadas e correlação de ligações da realidade interna como da realidade externa do sujeito.

Vigotski (2001) diz que a verdade da arte e a verdade da realidade estão numa relação sumamente complexa. Tanto a psicanálise quanto a criação artística conseguem chegar à essência investigada pela correlação de organizar contradições e atribuir novas narrativas. Ambas contêm meios indispensáveis para atingir a unidade integrativa do sujeito psíquico com o todo.

O objeto de estudo da psicanálise é o inconsciente, e o da psicologia é o comportamento humano, este “[...] é o mais difícil que existe no mundo, o que menos se deixa estudar”; sua maneira de conhecer terá de estar cheia de subterfúgios e precauções especiais para proporcionar o que dela se “espera” (VIGOTSKI, 2004, p. 390).

Para chegarmos à questão da arte do estruturante do sujeito psíquico em psicanálise, é conveniente considerar que o processo de formação do homem acontece junto ao ambiente cultural que lhe atribui significados e constrói narrativas em seu viver.

Amanta Vigotski (2001. p. 81) afirma que

[...] não é necessária uma perspicácia especial para perceber que as causas mais imediatas do efeito artístico estão ocultas no inconsciente, e que só penetrando nesse campo conseguiremos estudar de perto as relações dialéticas entre o individual e o social.

Isso denota a história das relações do mundo interno e externo do ser humano na sua ação de viver.

Trata-se de uma questão de extrema complexidade, porque “a arte é o social em nós” e, mesmo que o seu efeito se registre em um indivíduo à parte, isso ainda não nos autoriza a afirmar que as raízes e essência da arte sejam individuais, assim como seria ingênuo imaginar o social apenas como coletivo, como somatório de pessoas6 (BEZERRA, 2001, p. XIV).

Vigotski (2001, p. 11) sustenta que o pior e o melhor de nossos pensamentos e ações passam pela

[...] fórmula proposta por Pliekhánov para exprimir a relação entre base e superestrutura: (1) o estado das forças produtivas; (2) as relações econômicas; (3) o sistema político-social; (4) o psiquismo do homem social; (5) as diferentes ideologias, que refletem em si as propriedades desse psiquismo.

Bettelheim (1982, p. 128) pontua:

A vida boa, na opinião de Freud, é aquela que está repleta de significado, através de relações duradouras, nutrientes e mutantes satisfatórias que estamos aptos a estabelecer com aqueles que amamos, e através da satisfação que derivamos do conhecimento de que estamos engajados num trabalho que nos ajuda e ajuda outros a ter uma vida melhor. Uma vida boa não nega suas dificuldades reais e frequentemente dolorosas, nem os aspectos sombrios de nossa psique.

Vigotski (2001, p. 83) afirma que

“[...] a psicanálise é esse sistema psicológico que escolheu como objeto de estudo a vida inconsciente e suas manifestações”.

Desse modo, esta reflexão tem sua arte que não deixa de ser

“[...] um meio direto de satisfazer desejos não satisfeitos e não realizados, que na vida real não tiveram concretização” sinaliza Vigotski (2001, p. 85).

Roudinesco (2000, p. 14) alerta:

O homem de hoje transformou-se no contrário de um sujeito. Longe de construir seu ser a partir da consciência das determinações inconscientes.

Maravilha poder ser sujeito desejante e não homem-máquina,

“[...] condenado ao esgotamento pela falta de perspectiva revolucionária” (ROUDINESCO, 2001, p. 19).

E a psicanálise está aí evoluindo em função da sociedade que se manifesta e dos corações que narram, desabafam, enlouquecem.

Grimberg (2017) compreende a genialidade de Freud quando busca e tenta unificar o mundo externo e interno de cada ser humano. A essência da psicologia individual se constitui como uma psicologia social.

Escreve Grimberg (2017, p. 2):

La genialidad de Freud, residió en su resolución de las polaridades entre realidad y fantasía, mundo interno y mundo externo, sujeto y objeto, infancia y adultez. Uno de los grandes méritos de Freud fue haber logrado romper la dicotomía entre individuo y sociedad. Sostuvo que la psicología individual constituía, por su propia esencia, una psicología social.

Em Grimberg (2017, p. 1) compreendemos que

[…] cada una de las actitudes del ser humano, en su expresión más profunda, solo podía ser comprehendida en su relación con el otro: su semejante.

Grimberg (2017, p. 1) compara o estudo das neuroses com o estudo das relações humanas.

En última instancia, el estudio de las neurosis significa el estudio de las relaciones humanas pero encarándolas en todos sus aspectos, en forma muy particular, en el conflictivo.

O ousado e revolucionário Freud foi quem teve, em sentido profundo mais insight humanista conforme Grimberg (2017, p. 1)

Freud, creador genial da psicoanálisis, fue un verdadero humanista en el más amplio sentido. Sobre todo porque pudo integrar la concepción humanista con la concepción terapéutica.

Definitivamente, explica Grimberg (2017, p. 2):

Gracias a Freud se puede comprehender la discontinuidad entre la intencionalidad racional de la ... durante la vigilia y la aparente irracionalidad del sueño y del mundo de la fantasía. El reconocimiento freudiano de los profundos procesos inconscientes em acto creativo ha contribuido en mucho a nuestra comprensión de la relación entre el artista, el humanista y el científico. La notable imaginación de Freud permitió integrar los puntos de vista trágico, dramático y científico de las necesidades del hombre.

Grimberg (2017, p. 3) supõe que Freud não caiu na dialética simplista ou sutil de “oponer el “sujeto individual” al “ente social”. Não há fronteiras rigorosas.

E afirma:

[…] la primacía de uno u otro equivale a prejuzgar que existen entre ellos fronteras rigorosas, desconociendo los elementos sociales de la personalidad, o los elementos personales de la sociabilidad (GRIMBERG, 2017, p. 3)

Ao escrever sobre o interesse da sociologia em relação à psicanálise Freud destaca:

[...] é verdade que a psicanálise tomou como tema a mente individual, mas ao fazer investigações sobre o indivíduo, não podia deixar de tratar a base emocional da relação dele com a sociedade (FREUD, [1913] 1979, p. 223).

Freud ([1913] 1979, p. 224) revela que:

[...] os sentimentos sociais contêm invariavelmente um elemento erótico – elemento que, se for superenfatizado e depois reprimido, tornar-se-á um dos sinais distintivos de um grupo particular de distúrbios mentais.

Reconheceu a psicanálise que

[...] em geral, as neuroses são associais em sua natureza e visam sempre a impulsionar o indivíduo para fora da sociedade e a substituir a segura reclusão monástica dos primeiros dias pelo isolamento da doença (FREUD, [1913], 1979, p. 224).

Freud demonstrou, por um lado, a relação existente entre o “[...] intenso sentimento de culpa que domina tantas neuroses constitui uma modificação social da ansiedade neurótica”.

Por outro lado, ressalta que demonstrou plenamente que

[...] o papel desempenhado pelas condições e exigências sociais como causadoras de neuroses. As forças que, operando desde o ego, ocasionam a restrição e a repressão do instinto deve fundamentalmente sua origem à submissão às exigências da civilização (FREUD, [1913], 1979, p. 224).

Ao tratar da Psicologia das massas e análise do eu Freud ([1921], 2016, p. 4) analisa as relações e as contradições da luta coletiva:

É certo que a psicologia individual se dirige ao ser humano particular, investigando os caminhos pelos quais ele busca obter a satisfação de seus impulsos instintuais, mas ele raramente, apenas em condições excepcionais, pode abstrair das relações desse ser particular com os outros indivíduos.

Rieff, (1979, p. 329) expõe que:

“[...] a pedagogia psicanalítica é dedicada ao estudante fraco na compreensão das possibilidades limitadas da vida”.

Assinala que

“[...] Freud está, portanto, entre os grandes professores que tomaram todas as pessoas como seu sujeito em potencial”.

Segundo Rieff, o propósito de orientação espiritual de Freud era “[...] desacostumar o ego, tanto de uma atitude heroica quanto condescendente para com a comunidade”.

Para sustentar suas ideias, Freud diferiu dos médicos de fé estabelecida, dos propagandistas de crenças antigas, dos socialistas e interessados na absorção do indivíduo na comunidade.

Conforme Rieff (1979, p. 330)

“[...] as próprias velhas crenças produziram a doença que ainda procuravam curar”.

O psicanalista não pode

“[...] conduzir o paciente para procurar se libertar, juntando a “comunidade católica, protestante ou socialista”.

O necessário em Freud é “libertar o homem das comunidades doentias”. Emancipar o “eu” do homem do “nós” comunal é uma orientação espiritual” no melhor sentido que Freud poderia dar às palavras” interpreta Rieff (1979, p. 330).

Se o movimento do qual Freud participou já tivesse amplamente realizado sua tarefa emancipatória, do que poderia Freud nos libertar agora? pergunta Rieff (1979, p. 337).

Talvez a resposta se relacione com a reflexão de Rieff (1979) ao explicar as três ideias de homem que dominaram sucessivamente a civilização ocidental.

O homem político transmitido pela Antiguidade clássica, o homem religioso, legado do judaísmo através do cristianismo que dominou a civilização antes do iluminismo, o ideal de homem econômico, modelo da nossa civilização liberal, formado e transmitido pelo iluminismo (RIEFF, 1979, p. 351).

Explica Rieff (1979, p. 351) que a era da técnica nos invade e conquista nossa vida interior e a própria psique colocando em cena um novo tipo de caráter: “[...] o homem psicológico, um filho não da natureza, mas da tecnologia”. O homem constitui “sua própria economia, cuidadosa da vida interior” (RIEFF, 1979, p. 351).

“O homem psicológico não vive nem pelo ideal de grandeza, nem pelo de direito que confundiu seus predecessores”.

Rieff compreende que o homem

[...] vive pelo ideal de insight prático, experimental, que leva ao domínio de sua própria personalidade. O homem psicológico saiu de um mundo sempre em guerra, onde o Ego é uma força capaz de conseguir armistícios, mas não a paz (RIEFF, 1979, p. 351).

Refere-se o autor ao homem da metade do século XX, do pós-guerra. Escreve:

Deixando o ideal ocidental de ação voltado para a salvação dos outros, além de nossa própria, o homem psicológico se aderiu ao ideal oriental de salvação, através da manipulação autocontemplativa (RIEFF, 1979, p. 352).

O autor considerou irônico, com base em Freud, que essa adesão

[...] aconteceu justamente no momento histórico em que o Oriente cujo posto avançado mais ocidental é a Rússia, adotou o ideal ocidental de uma atividade salvadora do mundo (RIEFF, 1979, p. 352).

O freudianismo considera o legado clássico do homem político arcaico. Esse novo homem deve viver acima da razão.7 Assim

“[...] encerra a discussão há muito estabelecida do homem ocidental com seu próprio espírito” (RIEFF, 1979, p. 352).

Hoje, século XXI, a técnica é mais avançada. Em nosso ponto de vista o homem que deveria viver ‘acima da razão’, não vive. Carrega em si heranças do homem político, do homem religioso e do homem econômico. Este talvez mais do que nunca, porque o liberalismo criou novas formas de disciplina e dominação diante de suas crises cíclicas. O homem psicológico tenta salvar-se no meio de tantas guerras que se fazem presente, de forma velada, ou não, entre os povos. O ser humano precisa ser mais humano.

 

Considerações finais

Psicanálise: uma relação dialética entre o individual e o social? Fromm (1965, p. 78) narra que, quando Freud tinha 17 anos, “[...] pensou seriamente em estudar direito [...], de se tornar líder político”. Refletir a dialética entre o individual e o social, psicanaliticamente, é relevante. Freud

[...] foi na verdade um grande cientista [...] que queria transformar o mundo. Sob a capa de terapeuta e de cientista ele foi um dos grandes reformadores mundiais do começo do século XX (FROMM, 1965, p. 92).

Fromm (1965, p. 101) salienta que “[...] até a linguagem empregada por Freud tinha este caráter quase-político”. Portanto, a missão de Freud foi não apenas a criação da psicanálise como também a produção de conhecimentos singulares, que por regra geral marcaram avanços tanto na identificação do que seja o desenvolvimento do sujeito psíquico quanto de dar passo a sua emancipação social.

Talvez Freud pudesse ter-se tornado um líder socialista ou um líder de um movimento cultural ético, ou, por outras razões, um líder do movimento sionista; talvez pudesse – todavia talvez não pudesse, pois à parte do seu desejo de solucionar o enigma da existência humana, ele possuía um interesse científico totalmente empolgante pela mente humana, começara uma carreira médica e era por demais sensível e cético para ser chefe político (FROMM, 1965, p. 105).

O Freud cientista sensível e cético descrito por Fromm tem unidade com este dizer:

O homem só pode aprender a verdade quando pode regular sua vida social de um modo humano, digno e racional, sem medo e, portanto, sem cobiça [...] (FROMM, 1980, p. 11).

Qual é o procedimento investigativo, metodológico diante da psicanálise, uma relação dialética entre o indivíduo e o social?

Elegemos uma contribuição de Fromm (1980, p. 17) na tentativa de responder:

O cientista não parte da estaca zero, mas o seu pensamento é determinado por seus conhecimentos anteriores e pelo desafio de áreas inexploradas.

Fromm (1980, p. 17) enaltece que

[...] é característico de um cientista que tenha o máximo respeito pelos fenômenos observados; muitas e grandes descobertas foram feitas porque um cientista prestou atenção a um pequeno evento que era visto, mas ignorado, por todas as outras pessoas.

Aquele que possui ciência e arte
Tem também religião;
Aquele que não possui nenhuma,
Que tenha uma religião.8

 

Referências

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Endereço para correspondência
Magda Maria Colao
E-mail: magdacolao@gmail.com

Janes Teresinha Fraga Siqueira
E-mail: janes.siqueira@hotmail.com

Recebido em: 11/12/2017
Aprovado em: 10/04/2018

 

 

SOBRE AS AUTORAS

Magda Maria Colao
Psicóloga.
Psicanalista pelo Instituto de Estudos de Psicanálise do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul.
Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, (PUCRS),
Linha de Pesquisa: Trabalho, Movimentos Sociais e Educação.
Professora Titular da Universidade de Caxias do Sul (UCS).
Integrante do Grupo de Pesquisa Internacional de Formação de Professores para o Mercosul (UFRGS).

Janes Teresinha Fraga Siqueira
Pedagoga: UNIFRA
Orientadora Educacional: Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Especialização: Planejamento da Educação pela UFRGS.
Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Linha de pesquisa: Educação e Trabalho.
Integrante do Grupo de Pesquisa Internacional de Formação de Professores para o Mercosul. (FACED/UFRGS).
Em formação psicanalítica no Instituto de Estudos de Psicanálise (IEP) do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul.

 

 

1 Esses esquemas complexos da anatomia mental foram apresentados em A interpretação dos sonhos (1900-1901) e em O ego e o Id (1921).
2 O autor cita Golden Bough de Frazer, Atkinson, Lubbock, Tylor, Robert Smith, Crawley, Marett, Lang,
3 Weltanschauung seria como uma concepção global da condição humana no mundo. A expressão não convinha a Freud preocupado em fazer da psicanálise uma ciência da natureza.
4 Freud atribuía a derrota do Império Russo, do tempo dos czares, tanto aos progressos das técnicas científicas como à incapacidade das dinastias reais de se renovar, em virtude dos cruzamentos consanguíneos (ROUDINESCO, 2016, p. 400).
5 Freud, numa carta a Jung. In: BETTELHEIM, B. Freud e a alma humana. São Paulo: Cultrix. 1982. p. 5.
6 BEZERRA: Prefácio à edição brasileira da obra de Vigotski. Psicologia da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
7 Viver ‘acima da razão’ talvez signifique crítica à intelectualização do sentir. “[...] a associação livre é uma técnica, entre outras, familiar à arte, por induzir a espontaneidade” (RIEFF, 1979, p. 105). Freud sugere “[...] que o paciente se renda a sua própria atividade mental inconsciente num estado de atenção flutuante, para evitar tanto quanto possível a reflexão e a construção de expectativas conscientes” (RIEFF, 1979, p. 103).
8 GOETHE. In: LUCKÁS, 1967, p. 576.

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