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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.49 Belo Horizonte Jan./July 2018

 

PSICANÁLISE: CLÍNICA E TEORIA

 

O lugar do sintoma no sofrimento psíquico: o que esconde e o que revela

 

The place of the symptom in psychic suffering: what is hidden and what is revealed

 

 

Noeli Reck Maggi

I Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul
II Centro Universitário Ritter dos Reis

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A proposta desta comunicação é refletir sobre o sofrimento psíquico que emerge do trabalho na clínica psicanalítica contemporânea e seus desdobramentos através do sintoma em que o simbólico é capturado pelo vazio existencial. A apresentação inclui considerações sobre a fragilidade do ser humano para tolerar verdades acerca de si mesmo, para enfrentar a dor insuportável, embora passível de nomeação e a busca pelo inconsciente das ações evitativas. O referencial teórico de Freud, Bion e Winnicott dá sustentação às reflexões propostas e apoio conceitual para compreender as implicações do lugar do sintoma no impedimento da formação de vínculos que permeiam o trabalho psicanalítico.

Palavras-chave: Sintoma, Clinica psicanalítica, Formação de vínculos.


ABSTRACT

The purpose of this paper is to reflect on the psychic suffering that emerges from the work in the contemporary psychoanalytic clinic and its unfolding through the symptoms, in which the symbolic is captured by existential emptiness. The presentation includes considerations on human frailty to tolerate truths about oneself, to deal with the unbearable, to face unbearable yet recognizable pain and the pursuit for the unconscious of avoidant actions. The theoretical framework of Freud, Bion and Winnicott give support to the proposed reflections and conceptual support to understand the implications of the place of the symptom in impeding the formation of links that permeate the psychoanalytic work.

Keywords: Symptom, Psychoanalytic clinic, Link formation.


 

A constituição da função simbólica

Para introduzir o tema referente aos desafios atuais da clínica psicanalítica e o lugar do sintoma no sofrimento psíquico, estão apontadas as bases constitutivas da função simbólica e da subjetividade humana. A função simbólica é um dos recursos necessários e evocados no atendimento psicanalítico junto aos pacientes que estão acompanhados de um vazio existencial obstruído muitas vezes pelos vínculos afetivos que sustentam sua existência.

A utilização de símbolos pelo ser humano constitui uma área da psicanálise de extrema importância, porque está relacionada à formação dos sintomas e à vida de relação do sujeito. O que coloca o ser humano na condição de humano é a função simbólica. O símbolo, a partir da linguagem, inscreve o homem na cultura. Portanto, a simbolização, seja através da palavra, seja através dos signos, representa objetos que guardam uma relação direta com a coisa representada.

O símbolo pode ser uma palavra, um gesto, uma imagem, um objeto materializado que requer a linguagem para expressar o que representa ou aquilo que ainda não foi traduzido. A simbolização é um processo que tem origem no amadurecimento psíquico do sujeito e se manifesta desde uma fase muito primitiva até uma fase mais evoluída, que no dizer de Melanie Klein ([1923] 1996) representa a posição esquizoparanoide ou uma posição depressiva.

Na posição esquizoparanoide o sujeito sente-se ameaçado pelo objeto que o frustra e o agride, enquanto na posição depressiva o sujeito se depara com a reparação. A trajetória que o ser humano segue envolve projeção e introjeção de modo a tornar-se diferenciado do outro, se reconhecendo através do processo de semelhança e de diferença.

É na posição depressiva que o sujeito se individualiza e se percebe separado do mundo externo. Símbolo e simbolizado não se confundem assim como não se superpõem o “eu” e o “não eu”. Prazer e desprazer se originam do mesmo objeto que agora já não estão mais cindidos, há um objeto total. Na posição depressiva o símbolo é utilizado na função de representação, enquanto na posição esquizoparanoide assume o lugar da coisa em si, assume o que é denominado de equação simbólica. Na equação simbólica nada transita, não existe mediação, ou seja, as relações assumem o lugar da concretude e de extrema materialidade.

Há uma proximidade entre o que acontece com alguém que não simboliza e o funcionamento psicótico. O psicótico tem dificuldade para atribuir significado ao seu mal-estar, à sua dor não compreendida. Embora o psicótico apresente essa dificuldade para exercer a função simbólica, os humanos são portadores, em sua personalidade, de uma parte psicótica protegida e respaldada por outra parte considerada não psicótica (BION, [1970] 2006).

Dizer que o sujeito tem déficit de simbolização é dizer que ele se encontra fragilizado no enfrentamento das dificuldades cotidianas e que utiliza como forma de amenizar a sua dor a realidade física, concreta e materializada junto aos elementos que se apresentam em sua vida de relação. Também os sintomas, embora com recursos da função simbólica, podem revelar o desconforto dos humanos para falar do que lhes causa mal-estar.

 

O sintoma como forma de encobrir o desejo

Os sintomas são defesas que, por um tempo mais longo ou reduzido, representam uma forma de evitar a dor. São processos que preservam com vigilância os níveis de tolerância ao sofrimento do ser humano. Entende-se que esse sofrimento pode ser originado pela dificuldade de permitir-se vivenciar o prazer.

À medida que um paciente se permite falar em sua análise sobre o que lhe causou desconforto e que a partir de então já pode pensar, nesse momento pode-se desvelar o inominável. A liberdade de ser e de viver habitando o próprio corpo passa a fazer parte da vida do sujeito. O que fala a realidade interna do sujeito faz ressonância com os acontecimentos da vida real, mas é com o mundo interno que o analista se encontra para trabalhar, dialogar e se comunicar com o sentimento do outro.

O analista vai ao encontro do paciente no lugar onde ele se encontra e é nesse encontro que a escuta se faz presente para que possa ser desfeita a trama do sintoma que se oculta através de um novelo. O estabelecimento de vínculos iniciais, seja de amor, seja de desilusão, seja de alegria promove encontro entre paciente e analista.

A renúncia de defesas narcísico-maníacas protege os pacientes para se empenharem em vínculos afetivos, inicialmente estabelecidos transferencialmente com o analista e posteriormente estendidos ao que é narrado na relação em outros campos: seja com a experiência no trabalho, seja no lazer, seja na sexualidade.

No sintoma, a energia pulsional atende o compromisso inconsciente de ocultar um desejo considerado proibido e ao mesmo tempo denunciar o mal-estar resultante do investimento no que paralisa o sujeito para campos mais criativos.

O acolhimento do paciente com suas manifestações verbais, com seus sentimentos, suas atuações e suas encenações, se transforma em imagens que podem ser pensadas e representadas nas narrativas construídas e interpretadas a partir do trabalho clínico.

Para Bion ([1970] 2006), o que não é elaborado ou evacuado se torna elemento tóxico. Se os sinais de angústia não são recolhidos e metabolizados, a fantasia de que não possam ser falados e nomeados pode ativar sentimentos intensos de ataques aos objetos através de mecanismos de identificação projetiva, próprios da etapa em que prevalecem a onipotência e o narcisismo absolutos.

O resgate das emoções que permaneceram petrificadas por causa do excesso de controle por parte dos pais pode recrudescer as defesas dando origem aos sintomas. Ferro (2011, p. 22-23), no que se refere às crianças, diz que elas se tornam “gazelas tímidas, introvertidas”, uma vez que não lhes foi permitido viver as emoções. Não toleram frustrações porque não foram provocadas a metabolizar e expressar as emoções.

O objetivo da análise é gradativamente fortalecer os recursos do paciente e suas possibilidades de reconhecer, nomear, administrar e metabolizar suas pulsões originais traduzidas nos sentimentos de amor e de ódio. Essa forma de pensar a psicanálise privilegia mais os instrumentos para pensar e para sentir do que seus conteúdos. Os conteúdos assumem importância a partir da significação e da nomeação que lhes são atribuídas.

Uma mãe da vida real que é trazida para a análise como pouco generosa será vivenciada em outros campos e através de outros personagens. O processo analítico através das interpretações torna-se eficaz na medida em que o paciente metabolizou e digeriu a experiência vivenciada, falada com seu analista e estendida aos outros personagens que habitam seu psiquismo.

De modo geral, o sujeito nega ou desconhece conscientemente o que lhe causa ansiedade, desconforto ou mal-estar diante de fatos e situações que necessita enfrentar ou conviver.

Freud, ([1925] 1976, p. 300) diz:

Não há prova mais contundente de que fomos bem-sucedidos em nosso esforço de revelar o inconsciente, do que o momento em que o paciente reage a ele com as palavras “Não sei isso” ou “Não pensei sequer nisso.

Por isso, o “não” representa a marca distintiva do “sim” e pode ser uma forma intelectualizada de manifestar o que se encontra reprimido.

A negação é a concepção do símbolo. O que isso quer dizer? Isso quer dizer que todo o trabalho analítico consiste em levar um sujeito a se reconhecer pelo fato de que você o reconhece. O que é isso senão uma inversão de uma negatividade? O que é senão o desejo? O que é senão essa experiência primeira crucial de Freud que se chama realização alucinatória do desejo? É o movimento que consiste em refazer os passos da experiência anterior, quando o objeto não está lá, para repeti-la. Melanie Klein suprime a realização alucinatória do desejo para substituí-la ou por uma idealização do bom objeto ou por angústias de aniquilação, angústias persecutórias acompanhadas de uma vivência de aniquilação atribuída por projeções ao mau objeto (GREEN, 2010, p. 302).

É através da transferência que são trabalhadas a repetição das experiências doloridas e a projeção para o exterior dos fantasmas com as identificações projetivas, através de relatos com as diferentes formas de expressão, veiculando sentidos, angústias, fobias ou experiências agradáveis.

A aquisição da capacidade simbólica, da capacidade para ampliar os pensamentos e as vivências pelos humanos se reproduz em cada sujeito. A função simbólica compreende uma relação de três elementos, quais sejam: o objeto simbolizado, o símbolo e a pessoa para a qual o símbolo tem representação.

As novas urgências na clínica psicanalítica contemporânea demandam do psicanalista uma escuta do que falam as representações trazidas pelo paciente, como estão representados os seus objetos internos e o que eles dizem. A tradução do que se escuta também passa pelo filtro dos mecanismos introjetados pelo psicanalista, portador de uma subjetividade agregada a muitas experiências e vínculos.

No período de funcionamento narcísico primitivo não existe distanciamento entre o que o ser humano pensa e sente do que está colocado na realidade. Nesse caso, as representações das imagens projetadas não transitam como possibilidades de ser ou de assumir papéis e lugares diferenciados. Em vez de pensar, transitar e deslocar-se nas nomeações, prevalece a equação simbólica.

Diante disso, o símbolo funciona como se fosse a coisa que ele representa em nível inconsciente. Sobre o simbolismo se constrói a vida de fantasia, as sublimações e a relação do sujeito com o mundo externo. Uma forma de o sujeito expressar simbolicamente sua vida de relação, especialmente enquanto criança, é através do brinquedo e, no adulto, por meio das associações e de suas representações de objeto.

Winnicott (1975) utiliza o conceito de espaço potencial para explicar a origem da subjetividade. Da unidade mãe-bebê, há um deslocamento para uma relação a três em que a criança, reconhecendo-se separada, cria símbolos para se manter unida na separação.

Inspirado nas ideias de Winnicott, Ogden (1995) sustenta que, quando a dialética do espaço potencial não pode ser mantida, o sujeito não expressa criatividade e tende a manifestar expressões psicopatológicas com o predomínio da fantasia ou de formas específicas de fracasso na criação de símbolos.

Uma desadaptação parcial do objeto gratificador às necessidades do sujeito em sua fase inicial do desenvolvimento é necessária para que ele se reconheça nessas faltas e possa manifestar o seu desejo, mas não podem ser demasiadamente repetitivas, para que não se tornem traumas cumulativos.

Ogden (1995) partiu da experiência clínica para incluir as seguintes hipóteses sobre a patologia do espaço potencial:

• o rompimento prematuro das gratificações iniciais e necessárias nos primórdios da vida psíquica;

• uma hipersensibilidade constitucional do sujeito;

• o trauma resultante desde a doença física até a morte psíquica ou física de algo ou de alguém e que não tenha sido elaborado.

O presente trabalho se propõe a refletir sobre os sintomas como formas de manifestar a subjetividade e o esforço do psiquismo para manter a dialética do espaço potencial. Isso pressupõe por parte do paciente uma necessária distinção entre o símbolo e o simbolizado.

Parafraseando Winnicott,

[...] o espaço potencial jaz entre o símbolo e o simbolizado. [...] é distinguir o próprio pensamento daquilo sobre o que se está pensando, o próprio sentimento daquilo a que se está reagindo (OGDEN, 1995, p. 89).

 

Um breve relato clínico ilustra o que o sintoma encobre e revela

Um casal busca atendimento para seu filho de 10 anos. A queixa é que a criança, prestes a entrar no período da adolescência, revela comportamento negativista, opositor e por vezes transgressor ao que lhe é sugerido ou ao que é proposto em função das rotinas diárias.

Nas primeiras sessões a criança se detém a olhar a psicanalista e a manusear o jogo que traz junto aos seus pertences. Nas sessões seguintes o menino desenha solicitando que não seja interrompido no que está fazendo. Nas sessões subsequentes busca um jogo disponibilizado na sala e opera sozinho com ele; nega a possibilidade de participação da psicanalista junto ao que realiza.

Passados dois meses, com o mesmo modo de relação, agora a criança sugere que a psicanalista possa acompanhá-la alcançando peças ou resolvendo pequenos encaixes nos jogos. A partir dessas sessões o paciente revela seu desejo de estar presente e se fazendo coordenador das atividades.

Ao longo do trabalho clínico consegue verbalizar sobre o que ocorre na família, sobre as relações clandestinas mantidas pelos pais fora do casamento. A criança percebia na psicanalista a representação de uma invasora na vida da família e da sua, em particular.

O que essa criança escondia e ao mesmo tempo revelava na relação transferencial com a psicanalista? Escondia o temor da invasão clandestina de uma substituta da mãe (presente na vida real, mas não nomeada) e revelava sua insistente vontade de destruir essa personagem que invadia sua vida pessoal, deixando espaço para que ele, no caso o menino, se confrontasse com a mãe, inconscientemente bastante desejada, desde a passagem pelo Édipo. Uma relação clandestina dos pais, fora do triângulo familiar, o deixava vulnerável frente ao seu desejo infantil.

Como Freud ([1914] 1976, p. 194) diz,

[...] esquecer impressões, cenas ou experiências quase sempre se reduz a interceptá-las. [...] não apenas algo, mas a totalidade do que é essencial na infância foi retido nessas lembranças.

O sintoma traduz a dinâmica do psiquismo e revela na expressão do vazio existencial o desejo de que alguém o desvele.

 

Referências

BION, W. R. Atenção e interpretação (1970). Tradução de Paulo Cesar Sandler. 2 ed. Rio de Janeiro: Imago, 2006.         [ Links ]

FERRO, A. Evitar as emoções, viver as emoções. Tradução de Marta Petricciani. Porto Alegre: Artmed, 2011.         [ Links ]

FREUD, S. A negativa (1925). In: ______. O ego e o id e outros trabalhos (1923-1925). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 295-300. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 19).         [ Links ]

FREUD, S. Recordar, repetir e elaborar (Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise II) (1914). In: ______. O caso Schreber, artigos sobre técnica e outros trabalhos (1911-1913). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 193-203. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 12).         [ Links ]

GREEN, A. O trabalho do negativo. Tradução de Fátima Murad. Porto Alegre: Artmed, 2010.         [ Links ]

KLEIN, M. Amor, culpa e reparação e outros trabalhos (1921-1945). Tradução de André Cardoso. Rio de Janeiro: Imago, 1996.         [ Links ]

OGDEN, T. H. Sobre o espaço potencial. In: GIOVACCHINI, P. L. Táticas e técnicas psicanalíticas. Tradução de José Octavio de Aguiar Abreu. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. p. 79-95.         [ Links ]

WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade (1975). Tradução de José Octávio de Aguiar Abreu e Vanede Nobre. Rio de Janeiro: Imago, 1975.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: nrmaggi@gmail.com

Recebido em: 30/12/2017
Aprovado em: 10/03/2018

 

 

SOBRE A AUTORA

Noeli Reck Maggi
Psicóloga.
Psicanalista.
Membro do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul (CPRS).
Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Professora titular do Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter), em Cursos de Graduação e Pós-graduação Lato Sensu e Stricto Sensu, (Abril/1992 - Dez/2017).

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