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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.49 Belo Horizonte Jan./July 2018

 

PSICANÁLISE: CLÍNICA E TEORIA

 

O embalo perdido e o ceramicar: a arte modelando o self

 

The lost rocking of a hammock and ceramics making: the art of modelling the self

 

 

Rosilda Maria Sá Gonçalves de MedeirosI, II; Maria Consuêlo PassosI, III

I Associação Nacional de Pesquisadores de Artes Plásticas
II Universidade Federal da Paraíba
III Universidade Católica de Pernambuco

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo traz um mergulho poético na experiência dolorosa com a morte da mãe de uma das autoras, sentida como uma cena primitiva de desamparo e simbolizada ao ceramicar artesanalmente uma rede em tamanho padrão. Essa obra de arte, peça central da instalação Repouso, nasceu como amparo para essa perda, de ressonâncias na criação do si mesmo, da ressignificação da vida e da experiência de elaboração da partida. O referencial teórico winnicottiano, sobretudo as noções de “criatividade”, “brincar”, “espaço potencial” e “self”, é utilizado como o foco que ilumina a relação entre a dor da perda e a criação artística. Esse entrelace marca a relevância dessa teoria psicanalítica para o entendimento da produção poética artística. Ao longo do texto, procura-se discutir sobre essa experiência da arte e da dor e revelar como o processo criativo se desdobra, se amplifica e se engendra na produção simultânea de si e de um trabalho artístico.

Palavras-chave: Criação artística, Ceramicar, Winnicott, Espaço potencial, Criação de si.


ABSTRACT

This article brings a poetic dip in the painful experience with the death of the mother of one of the authors, felt as a primitive scene of helplessness, symbolized by hand-crafting a standard-sized clay hammock. This work of art – the centerpiece of the installation Repouso – was conceived with support for this loss of resonance in the creation of oneself, the resignification of life and the experience of preparing for passing. The Winnicottian referential – especially the notions of creativity, play, potential space – is used as a focus that illuminates the relationship between pain of loss and artistic creation. This interlacing marks the relevance of this psychoanalytic theory for the understanding of artistic poetic production. Throughout the text, we try to discuss this experience of art and pain, revealing how the creative process unfolds, amplifies and engenders in the simultaneous production of self and artistic work.

Keywords: Artistic creation, Ceramics making, Winnicott, Potential Space, Self-creation.


 

Introdução

Ele me telefonou assim que soube do falecimento de minha mãe. Eu estava tomando banho, mas atendi ao telefone. Esse meu amigo desde a juventude, psicólogo, perguntou-me: “Como você está?”. Respondi-lhe chorando: “Estou lavando meu corpo para ir ver a minha mãe morta!”. Essa frase da minha resposta é muito forte e nos comovemos, e ela permaneceu no meu pensamento – de fato eu estava preparando meu corpo (e minha mente) para reconhecer o corpo morto de minha mãe. Para que seu corpo fosse liberado e preparado para o ritual fúnebre, seria preciso que fosse reconhecido. O funcionário da funerária, que trabalhava lavando e arrumando os mortos, estava me aguardando na pedra do hospital e me perguntou: “Como a senhora quer que eu prepare o corpo de sua mãe?”. Respondi-lhe: “Eu quero que o senhor a deixe linda!”. Ele atendeu ao meu desejo – há anos eu não via a beleza física dela – e minha mãe ficou linda! Tive vontade de fotografá-la, para registrar sua beleza, pois era bela como uma artista de cinema – mas achei inapropriado porque, na verdade, eu queria guardar sua imagem morta só na lembrança e deixar nas fotografias as imagens dela viva. Para mim, foi importante vê-la serena e bela, depois dos dias de sofrimento físico inenarrável durante a internação hospitalar. Morreu de dor, ao chegar ao limite do que o ser humano suporta.

Durante os quase dois meses em que minha mãe esteve internada no hospital para amputar a cabeça do fêmur e implantar uma prótese, até seu falecimento, iniciei e finalizei a construção de uma rede em tamanho padrão (Figura 1), peça central da instalação Repouso, 2014 (obra inédita). Depois de finalizá-la, defini como seria a ocupação do espaço da instalação e me dei conta, a posteriori, de que eu havia expressado a experiência que estava fazendo com a morte de minha mãe. Portanto, não se configurou como uma ação previamente planejada de superação da morte dela. Sou uma artista visual e me expresso através de pesquisas centradas na cerâmica. Ceramicar é uma das minhas formas de brincar. No meu entendimento, esse neologismo, inspirado no livro Ceramicando, de James e Vidal (1997), significa brincar com a cerâmica e seus elementos constitutivos.

 

FIGURA 1 – Rede para compor a instalação Repouso (obra inédita). Rosilda Sá, 2014. - Foto: Rosilda Sá.

 

 

Significar a experiência da morte da minha mãe, por meio de minha produção artística, gerou ressonâncias na criação de mim mesma – um trabalho psíquico para suportar a emoção da perda e elaborar essa partida. Simbolizar (transformar em símbolos) as coisas é uma necessidade, e o sofrimento psíquico precisa ser simbolizado, seja falando numa análise, seja transformando isso ao longo da produção de uma obra de arte. Nesse caso, simbolizei meu abandono através do embalo perdido de uma rede.

Sabe-se que a morte é um fato biológico, e é impossível impedir a partida das pessoas que amamos, mas é possível ressignificar a vida de quem permanece vivo. E eu ressignifiquei minha mãe, o sentido de sua vida para mim, sua presença constante, sua fundamental e imprescindível importância em minha vida através de sua partida. O trabalho de preparação do corpo dela por esse profissional, que cuida do corpo dos mortos e o prepara para a funerária, foi absolutamente importante para esse meu processo.

O serviço desse tipo de profissional foi retratado no premiado filme japonês A partida (2008), do diretor YojiroTakita. Compreendo que o trabalho desse profissional, mais do que preparar o corpo para o ritual fúnebre do velório, do enterro ou da cremação, é mediar o último encontro dos familiares vivos com o corpo do seu ente sem vida.

Despedir-me e me separar definitivamente de minha mãe, perder seu corpo para sempre por causa da sua morte e viver esse luto correspondeu a fazer um trabalho psíquico correlato ao que a mãe faz de separação do filho (do corpo dele) durante o seu processo maturacional desde a infância, mas sobretudo com as mudanças na adolescência, um processo irreversível de luto pelo corpo do filho/criança (ABERASTURY, 1981a, 1981b; WINNICOTT, 2011).

Digo correlato, mas é necessário guardar as proporções. De todo modo, o trabalho psíquico remete à necessidade de integrar novas experiências, de ampliar a percepção sobre si mesmo e de se reapropriar subjetivamente do seu corpo sem se esquecer de sua história (EMMANUELLI, 2008).

Ver a beleza da minha mãe, tocar seu rosto e suas mãos, dar-lhe os últimos beijos, agradecer-lhe por tudo o que fez por mim, cobri-la de flores, ainda que seu corpo estivesse sem vida (inerte), viver esse ritual fúnebre até o seu sepultamento me possibilitou fazer a experiência da despedida, já que sua partida era definitiva – nunca mais nos tocaríamos nem nos abraçaríamos, nunca mais eu poderia ouvir sua voz me dizendo “eu te amo”, nunca mais conversaríamos nem eu ouviria seus conselhos e sua felicidade com meu filho em seus braços. Tudo seriam lembranças. Voltei ao estado de desamparo original inerente ao recém-nascido que respira e me centrei nessa respiração que liga a vida (o princípio) e a morte (o fim).

Leloup (2003, p. 146) escreveu:

Ao expirar, pense em seu último suspiro, lá onde você irá após a morte; você já estará lá no fim de sua expiração. Ao inspirar, pense em seu primeiro sopro, lá onde você estava antes do seu nascimento; você ainda estará lá, na fonte de sua inspiração.

Com a experiência da partida de minha mãe, voltei ao estado de desamparo, mas sem estar nos braços dela me embalando, olhando nos meus olhos e cantarolando uma música suave para eu ouvir e repousar tranquilamente. Justamente porque ela foi, parafraseando Winnicott (1975), minha “mãe-ambiente suficientemente boa” – que me embalou incontáveis vezes, cuidou de mim e me deu o holding necessário desde quando nasci até enquanto precisei – exercendo o seu papel decisivo de “primeiro objeto subjetivo”, o que configura sua importância humanizadora e estruturante para a constituição do meu aparelho psíquico e contribuiu para que esse estado de desamparo da ocasião não se tornasse um desespero.

 

A criatividade e o espaço potencial: entre a vida e a arte

Essa experiência dolorosa da perda foi, sem dúvida, suportada pelo processo de produção da obra Repouso. À medida que estava sendo criada, algo se transformava na artista, e isso não era um efeito material do surgimento de um trabalho de arte, mas sobretudo uma experiência de reinvenção da vida, baseada nos entrelaces dos diferentes sentidos da criatividade.

Criar está relacionado, em princípio, à criação da própria existência. É, para Winnicott (1975), ser capaz de dar seguimento à linha da vida que nos trouxe ao mundo e que prossegue até nossa morte. No início, precisamos da sustentação da mãe para, juntos, darmos continuidade a essa linha; depois, prosseguimos com mais autonomia e damos curso à sua jornada.

Winnicott (1975), em sua teoria do desenvolvimento humano, abordou, de modo inédito, a criatividade, apresentada como universal e inerente à natureza humana. A criatividade e seu potencial são aspectos que se relacionam com o estar vivo – situados desde os primórdios da vida psíquica, quando os fenômenos estão ligados a experiências não discursivas, pré-reflexivas, de vulnerabilidade e dependência absoluta em relação à mãe-ambiente. Isso ocorre antes de se adquirir o recurso linguístico e gera consequências para a vida adulta (BEZERRA JR., 2007; SAFRA, 2008, 2009).

O psicanalista britânico postulou sobre a fundamental importância, na primeira infância, do cuidado e do apoio da “mãe suficientemente boa” (WINNICOTT, 1975), não necessariamente a mãe biológica, mas quem se considera/ocupa a “figura de mãe” – pessoa devotada e amorosa, presença que sustenta, oferece contenção, relaxamento e confiança ao bebê para criar, ou seja, iludir-se com o que é subjetivamente concebido no período fusional com ela. Nesse período, o bebê tem a ilusão de criar o seio da mãe durante a amamentação. Paradoxalmente, ele cria o objeto (ou o mundo), ao mesmo tempo em que o encontra, pois o objeto (ou o mundo) já está ali.

A integração das experiências criativas primárias vividas pelo bebê quando ele tem a ilusão onipotente de estar criando aquilo com que entra em contato, se bem conduzida pela mãe, vai contribuir para constituir sua vida psíquica. Safra (2008, 2009) compreende a criatividade como constitutiva e refere que é por meio de experiências criativas que ocorre o processo de constituição e organização de si mesmo (self). Assim, observa-se que a provisão ambiental tem importância vital no início da vida infantil.

Embora o ser humano saudável usufrua de sua criatividade com mais complexidade ao longo do contínuo amadurecimento, a origem dela é inerente à “criatividade originária”. Se houver falha precoce e grave em relação a esse cuidado nos primórdios da vida, no tempo presente, aparecerá o sintoma referente à situação traumática que compromete o potencial criativo do self e sua capacidade de viver espontaneamente (WINNICOTT, 2011; DIAS, 2003).

Entre a mãe e o bebê há uma área denominada de “espaço potencial”, onde se iniciam as experiências culturais. Com o acúmulo de experiências que produziram confiança ao bebê, advindas da devoção, do amor materno, do ambiente suporte, ele se sentirá atendido em suas necessidades e confiará em si mesmo e no mundo. Esse processo é fundamental para que ocorra a “transicionalidade”.

É nessa área intermediária da experiência, lugar hipotético e mutável, ao mesmo tempo psíquico e real – o “entre”, a área de experimentação, do brincar/jogar – onde ocorre simultaneamente a emergência do sujeito e do ambiente cultural compartilhado (do mundo). É a área da ilusão, “do descanso necessário aos seres humanos em sua eterna tarefa de discriminar entre fatos e fantasia” (WINNICOTT, 1990, p. 127).

O “espaço potencial” está relacionado, portanto, à experiência do viver de cada pessoa, que se inicia com os “objetos transicionais”, e ao modo como o bebê elege e usa determinado objeto (real) externo ao seu corpo, que fará parte da transição de um estado fusional com a mãe para um estado de diferenciação. A mãe, então, passa a ser percebida como algo externo e distinto de si mesmo, em vários momentos denominados de “fenômenos transicionais”. Nesse período, é fundamental o apoio que a mãe dá ao bebê para ele suportar a frustração/desilusão da onipotência criativa, que culmina com o desmame e o gradativo contato com a realidade compartilhada (WINNICOTT, 1975).

Na “transicionalidade”, o bebê substitui a mãe por algum objeto, de modo que o subjetivamente concebido dá lugar ao objetivamente percebido. A primeira brincadeira e o primeiro uso de um símbolo por uma criança estão na experiência de um objeto transicional. Passado o período da transicionalidade, a criança, ao brincar/jogar, continuará a se ilusionar e a entrar em contato permanente com o universo cultural (WINNICOTT, 1975). Transpassados os limites da família e iniciada a subjetivação, é na cultura que cada pessoa encontrará o lugar para o contínuo processo de subjetivação, partilhando com seus pares o que lhe tem valor simbólico.

Viver criativamente ao longo da vida é saber brincar, é ter prazer e perceber sentido no que se faz; significa criar e recriar o mundo. Essa é a condição da existência criativa. Brincar é um exercício de liberdade que precisa ser praticado, não é algo técnico, não pressupõe o falar e não é prerrogativa específica da criança. Brincar é uma forma de o ser humano estar no mundo, uma experiência que possibilita transitar entre o mundo interno e o externo, portanto é dimensão subjetiva, experiência de vida que transforma o sujeito em seu ambiente. A dificuldade que a criança ou o adulto sentem de brincar expressa certas impossibilidades e pode revelar marcas de um funcionamento defensivo e, por vezes, rígido, que pode impor impasses e adoecimentos. A potência de criar a si mesmo continuamente tem na capacidade de brincar um de seus pilares. Esse estado, constantemente renovado, desdobra-se em boa qualidade de vida, em saúde (WINNICOTT, 1975).

Desde o nascimento até o último suspiro, a criatividade é a capacidade que cada ser humano tem de criar o mundo de uma nova maneira, constantemente, de ver tudo como se fosse a primeira vez. Isso pertence à experiência infantil, mas não cessa enquanto o ser humano estiver vivo. Paradoxalmente, a compreensão intelectual acerca do fato de o mundo preexistir ao indivíduo não suprime seu sentimento de que o mundo foi criado por si, ainda que isso seja fruto de sua produção mental desde a fase da “criatividade originária”.

Winnicott (1975) entende que a atividade criativa no adulto é o equivalente à continuidade do brincar infantil. Do mesmo modo como a experiência ilusória e de onipotência possibilita o início da atividade criativa do bebê como recurso essencial e constitutivo para a criação de si (self), ao longo da vida, as experiências criativas se complexibilizam e são igualmente fundamentais para o contínuo processo maturacional e às transformações daí decorrentes.

Assim, a condição para que a pessoa seja criativa é que ela precisa existir, em outros termos, ter um sentimento de existência em forma de apercepção. Aperceber-se é estar diante dos fenômenos do mundo – objetos e situações – de modo que a experiência seja pessoal, singular (SAFRA, 2008), assim como é absolutamente singular a experiência de perder a mãe. Ela não está mais entre nós, os vivos, mas o fio que nos liga não foi cortado com sua morte. A morte dialoga com a vida, a experiência da perda humaniza os vivos, a vida continua, e nós continuamos brincando. Ceramicando...

Em trabalho anterior (MEDEIROS, 2011), ficou ressaltado que ceramicar, modelar a argila – o barro primordial, permissivo, plástico, a terra doce, a matéria branda – é um gesto mítico, ancestral, afetivo, lúdico portanto um gesto poético. Usá-la requer ações de manipulação, acúmulos, repetições, entre outros procedimentos. Essas ações modelam não só a matéria, mas também, poeticamente, o artista. Portanto, são ações simultâneas e complementares.

Ostrower (1989, p. 51) apontou essa dimensão autopoiética centrada no fazer cerâmico:

Quando vemos uma jarra de argila produzida há 5 mil anos por algum artesão anônimo, algum homem cujas contingências de vida desconhecemos e cujas valorizações dificilmente poderemos imaginar, percebemos o quanto esse homem, com um propósito bem definido de atender certa finalidade prática, talvez a de guardar água ou óleo, em moldando a terra moldou a si próprio. Seguindo a matéria e sondando-a quanto à “essência de ser”, o homem impregnou-a com a presença de sua vida, com a carga de suas emoções e de seus sentimentos. Dando forma à argila, ele deu forma à fluidez fugidia de seu próprio existir, capturou-o e configurou-o. Estruturando a matéria, também dentro de si ele se estruturou. Criando, ele se recriou.

Assim, a exploração das capacidades expressivas, processual e semântica da argila bem como as extensões relativas às distintas possibilidades poéticas que levam o(a) artista/ceramista a criar a arte possibilitam que ele(a) experimente ressonâncias na criação de si. Tal criação pressupõe movimentos contínuos ao longo da vida. Modelar é se fundir com a argila e simultaneamente modelar a si mesmo (em autopoiesi).

 

A intensa experimentação com a arte

Os artistas transformam a própria vida em arte, pois a confluência entre vida e arte é de tal ordem que o movimento existencial é impulsionado pelo ininterrupto processo singular de criação artística. Essa é a força vital do artista, o que o move, seu movimento criador.

Viver uma experiência intensa com a morte de um ente familiar a quem se ama mobiliza a “complexidade do mundo interno” e as “forças” inerentes à natureza humana:

Para termos um vislumbre da tarefa de organizar as coisas depois de uma experiência instintiva, teremos de nos remeter ao trabalho dos artistas que (devido à sua técnica excepcional e à sua confiança no que fazem) são capazes de arriscar praticamente todas as forças [...] que existem na natureza humana (WINNICOTT apud NEWMAN, 2003, p. 6).

Assim, a experiência poética na produção da obra de arte potencializa sentimentos profundos, e isso possibilita aos artistas dimensionar o investimento dessas “forças”. A criatividade postulada por Winnicott não está relacionada à produção artística, embora ele seja sensível ao grande valor da arte para a potência subjetiva da vida:

Os artistas nos proporcionam algo de particularmente valioso, pois estão constantemente engajados na criação de novas formas, que são rompidas para serem por sua vez substituídas por formas mais novas. Os artistas nos permitem permanecer vivos quando as experiências da vida ameaçam destruir nosso sentido de uma existência real e viva. Os artistas, melhor do que ninguém, lembram-nos de que a batalha travada entre nossos impulsos e nosso sentido de segurança (ambos vitais para nós) é uma batalha eterna, que se desenrola em nosso interior por toda a extensão de nossa vida (WINNICOTT, 2011, p. 48).

Observa-se que esse autor atribuiu aos artistas a possibilidade de criar objetos que nos mantêm vivos, que contribuem para dar vigor e potencializar a vida. Segundo sua visão, a arte nos ajuda a enfrentar a difícil tarefa de aceitar as tensões e os paradoxos advindos dos nossos impulsos e da demanda por segurança. Essa experiência tem lugar na “área intermediária de experiência” ou, dito de outra maneira, no espaço potencial (WINNICOTT, 1975).

Nesse contexto, o processo criativo artístico pode ser um modo de viver o verdadeiro self, que é o centro de cada pessoa, é ser a si mesmo e se expressar no mundo de modo singular, atravessa o processo maturacional e depende das articulações que ocorrem com o ambiente (BEZERRA JR., 2007). O potencial criativo do self favorece a capacidade de viver espontaneamente, é um canal aberto em relação com o mundo, e isso amplia as possibilidades de viver e de criar a si mesmo constantemente.

Do contrário, encontramos o falso self, com o ser ameaçado e esvaziado pela submissão ao ambiente externo. Para Winnicott (1975), a submissão está associada a não valer a pena viver. Viver criativamente é poder manter a capacidade de brincar estendida para todos os sentidos da vida, sendo ativo e criando um estilo próprio, singular de viver. Desse modo, a vida vale a pena ser vivida porque tem sentido. Portanto, a criatividade faz parte da experiência de vida individual em intrínseca interação com o mundo, com a cultura e com a realidade compartilhada.

Khan ressaltou que, próximo ao final da vida, Winnicott (2000, p. 21) teve especial interesse

[...] pelo modo como a cultura, com seu amplo vocabulário de símbolos e suas atividades simbólicas, ajuda o indivíduo a encontrar e a realizar a si mesmo.

O processo criador, particularizado neste artigo, está intrinsecamente envolvido com a linguagem artística da cerâmica – como sistema simbólico – e ao manejo subjetivo e criativo de lidar com a forma significante.

Nesse sentido, Langer (2006, p. 249) esclareceu:

[...] A forma não discursiva na arte tem uma função diferente, a saber, articular conhecimentos que não podem ser expressos discursivamente porque ela se refere a experiências que não são formalmente acessíveis à projeção discursiva. Tais experiências são os ritmos da vida orgânica, emocional e mental [...], que não são simplesmente periódicos, mas infinitamente complexos, e sensíveis a todo tipo de influência. Juntos eles comporão o padrão dinâmico do sentir. É esse padrão que apenas as formas simbólicas não discursivas podem apresentar, e esse é o ponto fundamental e o propósito da construção artística (grifo da autora).

Pode-se depreender que, quando produz, o(a) artista tem a possibilidade de viver processos complexos de elaboração, somados com diversos elementos que são inerentes à criação profissional em arte, como os conhecimentos técnicos (relativos a cada linguagem artística), estéticos e históricos. Esses aspectos são conscientes para criar suas poéticas artísticas, impulsionado também por intenções, desejos, emoções, tensões e marcas do inconsciente.

A produção da referida rede esteve imersa no fazer artesanal, na linguagem tradicional da cerâmica, presente na modelagem de fios de argila. Depois da secagem natural, os nós e os laços foram queimados entre 600º e 900ºC, no processo tradicional de cocção em forno de estrutura fixa a lenha, para obter a terracota (SÁ, 2001). Esse tipo de produção dialoga com misturas e concepções que dilatam o próprio limite da cerâmica e envolve dois polos distintos: a produção de raiz ligada à tradição oral, associada à contemporaneidade, em que se misturam distintos materiais, portanto, um fazer cerâmico híbrido, expandido (MEDEIROS, 2011).

 

Costurando fios entre nós

Em um mergulho poético na experiência dolorosa da morte de minha mãe, entrelacei elementos do mundo interno com os do mundo externo, costurando fios de cobre entre nós e laços de terracota (em várias tonalidades), ensejando a criação de uma rede em tamanho padrão, com franjas bordadas com fios de alumínio e miçangas, também de terracota. O processo poético de modelagem dessa rede evidenciou o diálogo entre a cerâmica e o metal (Figura 2). Esses materiais têm fisicalidade e aspectos distintos com qualificativos em suas essências.

 

FIGURA 2 – Detalhe da rede para compor a instalação Repouso (obra inédita). Rosilda Sá, 2014. - Foto: Rosilda Sá.

 

 

O uso desses materiais e, mais especificamente, a produção dessa obra permitiram um resgate da experiência relacional mãe-filha, principalmente dos momentos envolvidos na criação de uma infância e uma maternidade. Nessa conjunção, nós nos criamos e tecemos os nós de nossa existência. Muitos deles, representados nessa rede que marca tudo o que podemos construir e destruir para existir de novo.

Esse movimento contínuo começou no momento em que nos oferecemos para construir nossas possibilidades de existir e de amadurecer nossas diferentes posições subjetivas e nossos lugares em um mundo transitório e transicional, que agora se expressa de forma dolorosa com a partida, a perda de sua presença física. “Sozinhas”, mas profundamente marcadas por sua presença em nossas histórias, prosseguimos.

O enfrentamento da dor está vivo em cada nó e em toda a tessitura dessa rede que agora embala uma nova forma de existir. Ela representa a capacidade humana de enlaçar a criação do existir e, ao mesmo tempo, da obra de arte e expressa a possibilidade do ser humano, tão cara a Winnicott, de sobreviver à destruição ou o desaparecimento do outro que nos constitui. Tal desaparecimento, paradoxalmente, pode representar uma espécie de revitalização, porquanto nos permite reconstituir esse outro numa perspectiva diferente e nos possibilita uma nova forma de representar o objeto e de conviver com ele.

Foi isso que Winnicott nos ensinou, quando apresentou sua noção de uso de objeto, do qual precisamos nos aproximar para, em seguida, nos apropriarmos dele e usá-lo, compreendendo que tal uso não o destruirá, ao contrário, podemos ressignificá-lo de diferentes formas e em diferentes momentos de nossa vida.

Essa rede será a peça central da instalação Repouso (obra inédita). Na síntese composicional, quando essa instalação for montada, terá a rede suspensa, apoiada em armadores fixados em duas paredes pintadas de branco; a iluminação será dirigida apenas para a rede, e no piso, uma camada espessa de areia clara. A obra joga com duas estruturas formais e conceituais – o nó e a rede. Topologicamente, os nós compõem a rede, fazem parte dela, dão sustentação e flexibilidade. Como uma imagem mental da complexidade, um elemento ambíguo, o nó pode ser usado como metáfora de tensão, de aliança, de problema, de abraço, etc.

Enquanto figura de fixação de um estado determinado, aliado tanto à noção de crise, morte, complicação, torção, assim como também da solução e da liberdade, na atitude de atar e desatar, tão presente na literatura e na religião como força que liga e desliga, o e seus correlatos [...] oferecem um leque infinito e labiríntico de possibilidades de apreensão (NINO, 2000, s/p, grifos da autora).

Por isso, o nó é um campo de possibilidades, mas ressaltamos sobretudo as possibilidades de movimentos e transformações. Isso significa dizer que são possibilidades de mudanças, como a própria vida em devir.

A obra joga também com alguns paradoxos. Inicialmente, na relação entre o título e a própria estrutura formal da rede – ou seja, entre o significado do termo “repouso”, que se refere à tranquilidade, à falta de movimento, de tensão, de agitação ou à ação do verbo “repousar” vinculado a descanso, inatividade, dormir ou jazer, remete também à composição da rede que se configura de leveza, pelos vazados dos desenhos com fios que deixam aparecer o contexto físico e de peso e desconforto, por causa da impossibilidade de acolher um corpo devido aos materiais utilizados – terracota e metal.

A obra dialoga com a rede de tecido resistente que acolhe o corpo em aconchego, conforto, descanso e recolhimento, um processo semiótico em que matéria, forma e função são inerentes a esse objeto. Mas, nesse caso, uma forma em que ninguém consegue deitar, ninguém pode se embalar. Não estamos falando do acolhimento e do conforto, mas de algo que se perdeu, e materializamos algo que é extremamente precioso para nós, mas a que não temos mais acesso, por isso é bonito, rico, porém tão desconfortável. A obra fala do perdido, do que só existe agora dentro de nós.

Por essa razão, não é necessária uma foto da mãe morta, porque queremos a lembrança dela em nós, já que esse embalo só existe agora dentro de nós. Um objeto suspenso sobre a terra, como se não fizesse mais parte do plano real. Por fim, é uma despedida e reflete um profundo abandono.

Cada artista traz sua bagagem intelectual e vivencial, que potencializará seus níveis de aprofundamento e complexidade nas proposições artísticas – sua capacidade de pensar sobre as coisas e de traduzi-las visualmente. Ainda que a artista (uma das autoras) tenha explicitado o seu pensamento visual reflexivo entrelaçado com conceitos winnicottianos, ao abordar, neste texto, a gênese da instalação Repouso, a obra guarda suas relações polissêmicas que dão margem a outras interpretações.

Sobre essa assertiva, convém ressaltar o que disse Cattani (2004, p. 139):

A arte não é discurso, é ato. A obra se elabora através de gestos, procedimentos, processos, que não passam pelo verbal e não dependem desse. Seu instrumento é plástico: suportes, materiais, cores, linhas, formas, volumes. O que resultará é um objeto, presente em sua fisicalidade, independente de todo e qualquer discurso, inclusive, do próprio artista. [...] É por seu caráter “não discursivo” que a arte pode acolher uma pluralidade de discursos. Todos poderão ser válidos, mas nenhum a “traduzirá” (grifo da autora).

Independentemente do viés abordado numa obra de arte pelo artista ou por especialistas ou não, abre espaço para experiências, questões e conhecimentos que não se esgotam. Por ser enigmática e livre, a arte é construída, coletiva e intersubjetivamente, a partir do encontro com seu público, que a cria paradoxalmente.

 

Considerações finais

As reflexões aqui desenvolvidas revelaram que o desamparo e o sofrimento decorrentes da perda materna foram experienciados e simbolizados na tessitura do ceramicar, que resultou na criação artesanal de uma rede com nós de terracota costurados com fios de cobre. A produção artística dessa rede ressignificou a dor da perda e, mais que isso, simbolicamente seu embalo proporcionou um resgate da história relacional mãe-criança e o acalanto necessário ao enfrentamento dessa perda.

O processo criador para se construir essa obra de arte está intrinsecamente envolvido com a linguagem artística da cerâmica – como sistema simbólico – com o manejo subjetivo de lidar com a forma significante. A exploração das capacidades expressivas, processual e semântica da argila que refletem nas incontáveis possibilidades poéticas dos artistas possibilita, concomitantemente, que cada um experimente ressonâncias na criação de si (self).

Nas argumentações tecidas com base nos conceitos winnicottianos de “criatividade”, “brincar”, “espaço potencial” e “self”, ficou evidenciado que a atividade criativa no adulto é o equivalente à continuidade do brincar infantil. Do mesmo modo como a experiência ilusória e de onipotência possibilita o início da atividade criativa do bebê como um recurso essencial e constitutivo para a criação de si (self), ao longo da vida, as experiências criativas se complexibilizam e são igualmente fundamentais para o contínuo processo maturacional e as transformações daí decorrentes.

Manter o processo criativo na arte é um modo de o artista lidar com a tensão gerada pela difícil tarefa de aceitar a realidade interna e a externa (compartilhada). O enfrentamento dessa tensão pressupõe um “espaço potencial” em que essas realidades se enlaçam e origina a criação artística e a vida. Assim, o processo criativo artístico pode ser um modo de viver o verdadeiro self e, por conseguinte, de ampliar as possibilidades de existir e de se transformar permanentemente.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Rosilda Maria Sá Gonçalves de Medeiros
E-mail: rosildasa@gmail.com

Maria Consuêlo Passos
E-mail: mariaconsuelopassos@gmail.com

Recebido em: 14/07/2017
Aprovado em: 28/10/2017

 

 

SOBRE AS AUTORAS

Rosilda Maria Sá Gonçalves de Medeiros
Artista visual.
Doutora em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP).
Mestre em Artes Visuais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Professora do Departamento de Artes Visuais da Universidade Federal da Paraíba (DAV/UFPB).
Membro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (ANPAP).

Maria Consuêlo Passos
Psicóloga.
Mestre em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Doutora em psicologia social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Realizou pesquisa Pós-doutoral na Université Paris V.
Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP).
Pesquisadora de psicanálise de família, processos de amadurecimento humano, adolescência, metapsicologia dos vínculos e estudiosa da obra de Freud, Winnicott e de críticos da sociedade, como Lipovetsky e Bauman, entre outros pesquisadores do contemporâneo.
Autora de diversos artigos de psicologia e psicanálise, bem como de capítulos e organização de livros.

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