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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.50 Belo Horizonte jul./dez. 2018

 

EDITORIAL

 

Círculo Brasileiro de Psicanálise e os 50 anos da edição da revista Estudos de Psicanálise1

 

Círculo Brasileiro de Psicanálise and the 50 years of existence of its publication Estudos de Psicanálise

 

Uma das provas mais evidentes da longevidade e do êxito de uma sociedade científica é o registro de suas produções em publicações próprias. No CBP, o principal meio de comunicação e divulgação dos frutos de seus trabalhos científicos é a publicação da revista Estudos de Psicanálise, que em 2019 completa cinquenta anos de existência. A capa da presente edição, o 50° número da revista, rememora a primeira capa editada em 1969.

Achamos interessante resgatar, nesta ocasião, a história do CBP, para que todos os sócios, veteranos e novatos, tenham conhecimento de nossas origens.

O Prof. Malomar Lund Edelweiss, um religioso austríaco, psicanalista, residente em Pelotas (RS), ativo diretor da Faculdade Católica de Filosofia de Pelotas e fundador do Instituto de Psicologia anexo a ela, estudando e se analisando com o Prof. Igor Caruso na Áustria, numa de suas viagens o convidou para palestras no Sul do Brasil.

Anteriormente, Caruso fora membro da Associação Psicanalítica de Viena e, em uma dissidência, em 1947, fundou o Círculo Vienense de Psicologia Profunda.

Sobre Caruso,2 o colega do Rio Grande do Sul Rogério Amoretti relata:

Caruso, nos seus primórdios, se identificava com os valores humanistas, cristãos e religiosos. [...] Porém, no período pós-guerra, houve uma grande transformação de suas diretrizes, e o Círculo (Vienense) passou a ser um centro de variada riqueza de estudos onde psicanálise, psicologia analítica e existencial, ecumenismo, psicologia genética, etologia, antropologia, filosofia, psicopedagogia, etc. [...] atraíram a atenção e a participação, em menor ou maior grau, de celebridades como Konrad Lorenz, Jean Piaget, Joseph Nuttin, E. Bohn, Jacques Lacan, entre outros (AMORETTI. 1992, p. 117-119).3

Estando o Prof. Caruso aqui, no Brasil, alguns colegas se reuniram em torno de seus cursos e palestras. E em 1956 foi fundado o Círculo Brasileiro de Psicologia Profunda em Pelotas. Sua ata de fundação teve as assinaturas do Prof. Malomar Lund Edelweiss e do Dr. Igor Caruso, entre outros. Em 1969 o Círculo foi transformado em uma federação de sociedades psicanalíticas, englobando sociedades de vários estados brasileiros, tendo sido editado o primeiro número da revista Estudos de Psicanálise, que seria daí em diante o principal meio de registro e divulgação da sociedade nascente. Em 1971 o Círculo Brasileiro de Psicologia Profunda passou a se chamar Círculo Brasileiro de Psicanálise.

A revista Estudos de Psicanálise n. 19 traz um artigo de Clovis Figueiredo Sette Bicalho, nosso colega de Minas Gerais, sobre os primórdios do CBP, dizendo que:

[...] a estada de Caruso foi um grande incentivo para o Prof. Malomar consolidar e expandir os estudos. [...] surgem as primeiras unidades filiadas – o CPRS, cuja fundação se confunde com a do CBP (1956), e depois, em 1963, o CPMG, à época em que o Prof. Malomar foi residir em Minas Gerais (BICALHO, 1996, p. 105).4

Esse artigo progride relatando a fundação das demais filiadas através de depoimentos e de cartas dos colegas Antônio Franco Ribeiro da Silva e Carlos Pinto Corrêa, quando no cargo de Presidentes do CBP. Traz ainda relatórios dos demais presidentes, bem como a preparação de sua projeção no cenário internacional através de seu ingresso na IFPS, em 1971. Discorre também sobre o planejamento de congressos, jornadas, publicações científicas e a carta de princípios do CBP.

Outro artigo relevante sobre a história do CBP é História e genealogia do CPRS e do CBP,5 do colega do Círculo do Rio Grande do Sul, Cleo José Mallmann, escrito em 2014.

Com o passar dos anos, em 1998 participamos também da fundação da FLAPPSIP, uma entidade da América do Sul, cuja ata de fundação foi assinada por Maria Mazzarello Cotta Ribeiro e Maria de Lourdes Mello Baêta, em Montevidéu, Uruguai.

Anos depois, o CBP se desvinculou da FLAPPSIP, mas se manteve filiado à IFPS sob a sigla CPMG, por motivos institucionais internos na época.

Desde sua criação o CBP vem sustentando uma posição atenta e participativa junto à nossa sociedade. Desde o ano 2000 tem presença importante nas reuniões do Movimento da Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras, que se reúne no Rio de Janeiro, na luta para manter a psicanálise independente de propostas espúrias para sua regulamentação. Participou da edição do livro Ofício de psicanalista: formação vs regulamentação (2009), em que há um capítulo escrito por Anchyses Jobim Lopes e Maria Mazzarello Cotta Ribeiro.

No momento, mais uma vez, fez-se importante a participação do CBP junto com as demais instituições e contra o Projeto de Lei do Senado n. 174/2017, tramitando naquela casa, na Comissão de Assuntos Sociais, quando foi redigida pelas entidades integrantes do Movimento da Articulação uma carta endereçada à Sra. Senadora Fátima Bezerra, solicitando a retirada da psicanálise desse projeto, pois sua aprovação incorreria em “um desserviço à causa pública”. Nesse fato, atestamos que uma instituição sozinha não faria frente a um ato de governo. Disso advém a importância de uma filiação a uma entidade nacional e internacional que nos represente frente a um poder!6

Nesse questionamento sobre regulamentação/regulação ou não da psicanálise, encontra-se o CBP levando às reuniões da Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras o pensamento e o posicionamento das suas federadas. Têm sido momentos de esforço e persistência! Verificamos, através dos vários textos escritos ao longo desses encontros, que só através da reunião das forças institucionais é que teremos condições de manter nossa capacidade de enfrentamento às propostas aviltantes à psicanálise, bem como de recuperar o desgaste sofrido pelo repetitivo dispêndio de energia e tempo para garantir o legado freudiano, sustentado pelas sociedades psicanalíticas, contando com a seriedade com que preservam e transmitem a ciência do inconsciente.

O Círculo Brasileiro de Psicanálise tem um espírito pluralista como fundamento e uma abordagem intersocietária, que visa intensificar a comunicação e o contato entre psicanalistas localizados em sociedades ao longo do Brasil. No momento é constituído pelas seguintes instituições:

• Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro - CBP/RJ
• Círculo Psicanalítico da Bahia - CBP
• Círculo Psicanalítico de Minas Gerais - CPMG
• Círculo Psicanalítico do Pará - CPPA
• Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul - CPRS
• Círculo Psicanalítico de Sergipe - CPS

Cada edição da revista Estudos de Psicanálise traz artigos das diversas federadas pertencentes ao CBP tornando-se, assim, um mosaico representativo das diferentes sociedades brasileiras a ele filiadas. No momento é uma das únicas revistas de psicanálise no Brasil que ainda apresenta uma edição em papel, embora conte também com edição digitalizada. Está muito bem indexada e vem sendo mantida sua edição semestral.

O CBP não espera semelhança e confirmação de propostas entre suas federadas e sim, como nas palavras de Anna Carolina Lo Bianco (1998, p. 179), em vez de sermos o “[...] eco domesticado de nosso próprio discurso [...]”, prezamos a “[...] diferença que nos lembra a impossibilidade das certezas”. O discurso psicanalítico, embora tenha as mesmas bases e os mesmos critérios, não precisa ter os mesmos dispositivos operacionais.

O CBP, como entidade representativa do laço entre as filiadas, tem a função e o compromisso de tornar a psicanálise presente no mundo, tanto quanto dele participar e propor discussões de temas atuais que afetam seus membros, como indivíduos e a sociedade. Tem o dever de ser o elo facilitador desses debates.

Ser representante federativo imprime força ao movimento de sustentação do corpo psicanalítico contra as ameaças de confundir e banalizar a psicanálise e a formação do psicanalista.

O Círculo Brasileiro de Psicanálise é a única sociedade nacional que, desde sua fundação, acolhe, articula e consegue conviver com posições distintas dentro do estudo da psicanálise, respeitando a escolha de cada um.

Além de publicações, como a revista Estudos de Psicanálise, promove congressos, encontros científicos e políticos, como o Movimento da Articulação das Sociedades Psicanalíticas Brasileiras, a divulgação e a preservação da psicanálise.

Para sustentar a nossa diversidade, encontramos apoio nas palavras de Freud no seu texto O mal-estar na civilização, em que, após longa discussão sobre a agressividade, pulsão primária nos seres humanos, ele afirma que “[...] a oposição não é necessariamente inimizade, [...]” rompimento; “[...] simplesmente ela é mal empregada e tornada uma ocasião para a inimizade [...]”, o rompimento (FREUD, [1930] 1974, p. 134).

Um grupo pode ser mantido unido por laços de amor, com fim inibido, se puder transformar a agressividade em assertividade e deslocá-la para o que possa ameaçar sua coesão.

Ainda é Freud quem nos alerta para

[...] o perigo de um estado de coisas que poderia ser chamado de ‘pobreza psicológica dos grupos’. Esse perigo é mais ameaçador onde os vínculos de uma sociedade são principalmente constituídos pelas identificações dos seus membros uns com os outros, enquanto que indivíduos do tipo de um líder não adquirem a importância que lhes deveria caber na formação de um grupo (FREUD, [1930] 1974, p. 138).

O ser idêntico ao outro não é o natural. Na natureza não encontramos no que é vivo o mesmo molde. E se a idealização torna os homens massificados, isso se assemelha ao que encontramos descrito no livro Os chistes e sua relação com o inconsciente, “a degradação do vivo no inanimado”, como definiu Freud ([1905] 1974, p. 237).

A pluralidade do CBP é a nossa marca. O pai fundador não se tornou um pai arbitrário nem manipulador das nossas ideias, deixando o caminho aberto à livre escolha das fratrias.

É nessa Federação assim constituída que lutamos por manter, como transmitido por Freud, ainda no artigo citado acima, a estima e o incentivo às mais elevadas atividades mentais do homem – suas realizações intelectuais, científicas e artísticas – e o papel fundamental que atribuímos às ideias na vida humana.

Para além da análise pessoal e da prática clínica este seria o tempo de desfrutar da Instituição como o lugar que acolhe os restos transferenciais, o narcisismo abalado e a aposta de que nossa formação é permanente. A Instituição serve de defesa contra nossas angústias de solidão e desamparo. É depositária de aspectos não trabalhados na nossa personalidade e, principalmente, o espaço para o reconhecimento e o reforço da nossa identidade profissional.

Ainda é na Instituição que encontramos a possibilidade de interlocução constante com nossos pares para os impasses clínicos, o aprimoramento do nosso ofício, a busca do avanço teórico e das novidades do nosso sua vida campo de interesse.

A psicanálise é um ofício/profissão que precisa ser sustentado pelos profissionais psicanalistas que dele fazem o sustento de sua vida. Se não lutarmos como cidadãos por uma entidade de classe, se não tivermos uma representatividade profissional, que se faz através dos órgãos institucionais, quem lutaria pela psicanálise e pela continuidade do nosso ofício?

Se não nos fortalecermos como grupo, individualmente não teremos visibilidade suficiente num mundo tão afeito ao rápido, ao glamour, ao descartável, ao ganho material a qualquer preço! Essa é uma força importante que vem sendo exercida pelo Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP) junto a outras sociedades psicanalíticas de grande porte!

E é, pois, com justificado orgulho e muita alegria que chegamos aos cinquenta anos de nossa revista Estudos de Psicanálise, uma prova da dedicação e empenho que temos pela psicanálise e sua divulgação.

Eliana Rodrigues Pereira Mendes
Maria Mazzarello Cotta Ribeiro

 

Referências

ALBERTI, S; AMENDOEIRA, W.; LANNES, E.; LOPES, A.; ROCHA, E. (Orgs.). Ofício do psicanalista: formação versus regulamentação. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009.

AMORETTI, R. Labirintos da identidade: fragmentos da história do CBP. Estudos de Psicanálise, Recife, n. 14, p. 113-123, 1992. Publicação semestral do Círculo Brasileiro de Psicanálise.

BICALHO, C. F. S. Círculo Brasileiro de Psicanálise - um percurso de 40 anos. Estudos de Psicanálise, Belo Horizonte, n. 19, p. 103-113, 1996. Publicação semestral do Círculo Brasileiro de Psicanálise.

FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930 [1929]). In: ______. O futuro de uma ilusão, o mal-estar na civilização e outros trabalhos (1927-1931). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1974. p. 75-171. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 21).

FREUD, S. Os chistes e sua relação com o inconsciente (1905). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1974. p. 13-265. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 8).

LO BIANCO, A. C. et al. Cultura da ilusão. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1998.

MALLMANN, C. J. História e genealogia do CPRS e do CBP. Estudos de Psicanálise, Belo Horizonte, n. 41, p. 75-86, jul. 2014. Publicação semestral do Círculo Brasileiro de Psicanálise.

MENDES, E. R. P. A presença de Igor Caruso no Brasil. Estudos de Psicanálise, n. 39, p. 47-52, jul. 2013. Publicação semestral do Círculo Brasileiro de Psicanálise.

RIBEIRO, M. M. C. Assim caminhou a humanidade - A cultura da imagem e a subjetividade hoje. In: Revista Estudos de Psicanálise, Belo Horizonte, n. 48, p. 25-32, dez. 2017. Publicação semestral do Círculo Brasileiro de Psicanálise.

 

 

1 Este texto é uma compilação de outros por nós já escritos ao longo dos 50 anos do CBP, acrescido de trechos inéditos.
2 Para mais informações sobre a presença de Caruso no Brasil, ver Mendes (2013).
3 Este artigo comemora o 35° aniversário do CBP.
4 É um texto minucioso sobre a história do CBP, que pode ser consultado para mais informações.
5 Trabalho apresentado na jornada comemorativa do CPRS (14 set. 2013).
6 Os trechos acima foram extraídos do artigo de Ribeiro (2017).

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