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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.50 Belo Horizonte jul./dez. 2018

 

ARTIGO

 

O aprendizado da metáfora na infância e sua relação com a construção do sonho1

 

The metaphor’s learning in the childhood and your relationship with the dream construction

 

 

Adriana Antunes de Almeida Poletto

I Universidade de Caxias do Sul
II Faculdade da Serra Gaúcha
III Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente texto relaciona o processo de aprendizagem da metáfora ainda na infância com a construção do sonho, pelo viés psicanalítico. A metáfora é um processo cognitivo que se desenvolve junto do pensamento. Em linguística essa aprendizagem acontece a partir do momento em que a criança consegue perceber a linguagem simbólica, relacionar-se com ela, bem como produzi-la. A partir dessa constatação, o estudo aponta que a produção onírica empobrecida de algumas pessoas possivelmente se deve ao parco desenvolvimento do conhecimento metafórico do mundo apreendido na infância.

Palavras-chave: Metáfora, Criança, Psicanálise, Sonhos.


ABSTRACT

The present text relates the process of learning the metaphor still in childhood with the construction of the dream, by the psychoanalytic view. Metaphor is a cognitive process that develops with thought. In linguistics this learning happens from the moment the child is able to perceive the symbolic language, to relate to it, as well as to produce it. From this finding, the study points out the possibility that people who have an impoverished dream production is also due to the poor development of the metaphorical knowledge of the world seized in childhood.

Keywords: Metaphor, Child, Psychoanalysis, Dreams.


 

Minha infância está atrás de mim,
no entanto, é o solo sobre o qual cresci,
ela me pertence,
seja qual for minha tenacidade em afirmar
que não me pertence mais.
O que sem dúvida para hoje não ser mais,
mas o que foi, também para que eu seja ainda.

PEREC, 1985, p. 20.

 

O ser humano espera viver não só cada momento da sua vida, mas ter uma verdadeira consciência da própria existência. Assim, um dos maiores desafios que encontramos nessa busca é fazer ter sentido aquilo que nos acontece. Quando o significado nos escapa, perdemos um pouco a direção na qual aponta nosso desejo pelo autoconhecimento.

No entanto, a compreensão do significado não é algo que se adquire apenas com o passar do tempo. É preciso que ocorra amadurecimento psíquico, insights das experiências vividas. Dessa forma, a cada avanço da idade deveríamos ser capazes de encontrar algum sentido, mesmo não completo, a partir da nossa capacidade de pensar.

Mas quando e como isso acontece?

Este artigo pretende levantar algumas questões sobre a importância do desenvolvimento cognitivo na criança, sua introdução na linguagem, sua capacidade de metaforizar acontecimentos no tocante a sua relação com processo de construção de sonhos na fase em que a censura onírica começa a se fazer presente.

Comecemos falando sobre linguagem. A linguagem é mental. Produzir linguagem, comunicar-se através dela, codificar, decodificar e recodificar os signos e significantes atribuindo-lhes um significado é uma capacidade especificamente humana. Essa constatação pode soar como trivial, uma vez que todos nós estamos imersos nesse sistema desde a nossa constituição enquanto sujeitos e indivíduos, além do que, esse é um processo construído e apreendido de modo inconsciente.

Assim, quando paramos para refletir sobre como nos comunicamos, sobre os mecanismos, os meios e as ferramentas de que dispomos, bem como suas falhas, seus excessos, suas dificuldades, suas articulações fonéticas e gramaticais, entre outras inúmeras capacidades que temos, percebemos o quanto o assunto é rico, vivo, complexo e profundo. A partir dessas primeiras constatações podemos perceber o quanto a linguagem é multifacetada e vai muito além do aprendizado de uma língua.

A linguagem pode ser pensada como um sistema arquitetado, regulado e retroalimentado por trocas intersubjetivas no meio sociocultural em fricção constante com sua estrutura cognitiva e afetiva. É do miolo desse processo que conotamos nossa existência semantizando os fatos e sua relação conosco e com o externo.

Quando conseguimos dar sentido, semantizar, iniciamos nosso percurso na construção das metáforas, e a partir desse processo que não é linear, ao contrário, é circular, abrimos espaço para a simbolização. A metáfora é a linguagem do símbolo.

A metáfora é uma figura de linguagem, ou seja, carece do desenvolvimento cognitivo para existir. É uma palavra que vem do grego e que significa mudança ou transposição. No latim meta significa algo e phora, sem sentido. O conceito utilizado aqui, neste artigo, refere-se à metáfora conceitual, ligada à teoria dos efeitos imagéticos.

Aristóteles (1996, p. 312) definiu metáfora, em seu livro A poética, como

[...] a transposição do nome de uma coisa para outra, transposição do gênero para a espécie ou da espécie para o gênero, ou de uma espécie para outra por via de analogia.

Essa definição inicial serviu de escopo para estudos posteriores até se chegar ao da metáfora conceitual, que mais se aproxima do contexto atual, mais dinâmico e complexo, pois pode ser aplicado ao ser humano como um todo e não apenas às questões de ordem gramatical.

Para Lakoff e Johnson (1980), o significado e a interpretação da metáfora que usamos em nosso cotidiano dependem do modo como aprendemos e experimentamos o mundo. Esse sentido é chamado de “realismo existencialista”, que defende a ideia de que mente e corpo não podem ser separados, já que a “[...] experiência, a cognição e a realidade são concebidas a partir de uma ancoragem corporal” (FERRARI, 2011, p. 171).

A teorização acima ajuda a compreender que a metáfora vai além da reprodução mimética das situações vividas e, apesar de se aproximar da retórica da poesia, não é a criação imaginativa pura. A metáfora (de)monstra como recebemos o mundo a nossa volta, mais do que simplesmente percebê-lo. Assim, ela descreve o abstrato sob os traços do concreto já existentes e assimilados.

Construir um sentido é diferente de entendê-lo.

Para Gnerre (1987, p. 21),

[...] nas sociedades complexas como as nossas é necessário um aparato de conhecimentos sociopolíticos relativamente amplo para poder ter um acesso qualquer à compreensão e principalmente à produção de metáforas.

A partir dessa constatação percebemos que o processo de interação e significação do mundo é fundamental para a constituição de sujeitos conscientes.

Mas quando nos transformamos em um?

Luciano Elia faz uma varredura por várias áreas do conhecimento, da filosofia à psicanálise, para tentar explicar o termo.

O autor frisa que não se trata apenas de situar os seres, de

[...] pensá-los através de uma ontologia, de uma metafísica, mas de colocar em questão o próprio pensar sobre o ser, que se torna assim também pensável (ELIA, 2004, p. 13).

Desse modo, o sujeito é aquele que pratica a ação. Ao praticá-la, imprime um propósito que sempre é carregado de significados, inclusive inconscientes. Nesse caso, quando falamos em sujeito, estamos falando da criança, objeto principal deste estudo.

A criança é introduzida neste mar semântico, que é a vida, desde a sua concepção. A língua, a palavra, a linguagem, o afeto, o brinquedo, o jogo, os pais, a escola, o meio, os sentidos são responsáveis pela construção psíquica e cognitiva desse novo ser. Junto a essa zona iluminada de desenvolvimento pleno e afetivo, há também zonas de penumbra. Falemos das iluminadas por primeiro.

Quando a introdução do pequeno no mundo se dá pelo acesso do lúdico e do afetivo, a criança aos poucos passará do mundo da fantasia à realidade. A metáfora, que será aprendida posteriormente, funcionará como uma espécie de dobradiça, fazendo um mundo dar acesso ao outro. Essa ponte necessária para a percepção do mundo externo é fundamental para a (re)criação do mundo interno.

Assim, a criança sai da fantasia para apreender os objetos e simbolizar. Sairá da sensação, da percepção à representação. Em outras palavras, a metáfora é a capacidade lógica de capturar o ilógico, o inconsciente.

Na perspectiva psicogenética, esse aprendizado se dá entre os cinco e sete anos de idade, pois nessa idade as crianças “[...] pensam, evidentemente, mais do que dizem” (PIAGET, 1986, p. 79).

Isso acontece porque a criança começa a pensar sobre o mundo que a cerca. Posiciona-se frente a esse espaço e a seu saber como um pequeno detetive, buscando soluções para os enigmas que se apresentam. No seu próprio ritmo, ela deixará a ilusão para adentrar num universo realístico, no qual o sonhado nem sempre é realizado.

Isso é fundamental, porque ela precisa, por exemplo, perceber que o cabo da vassoura não é mais o cavalo das brincadeiras, e sim, apenas um cabo de vassoura, que só terá sentido como um signo de infância se conseguir ser metaforizado um dia. Logo a seguir, entre sete e oito anos se dará o início da socialização do pensamento.

Vale lembrar que por volta dessa idade inicia-se também o processo de alfabetização. Mais do que simplesmente ensinar as regras de uma língua, esse aprendizado auxilia a criança a dar ordem ao caos interno. Isso evidencia uma busca lógica para a falta de compreensão do mundo. Eis aqui o princípio da zona de penumbra mencionada antes.

Yolanda Reyes (2012), educadora colombiana, diz que a mesma escola que introduz a criança no universo lógico e concreto, destrói a construção simbólica.

A autora afirma:

Todos nós tivemos a oportunidade de aprender um sem número de dados, datas, listas de obras e autores. E, infelizmente, com essa aprendizagem, incorporamos também uma lição não tão explícita quanto as definições do dicionário, mas provavelmente tão contundente quanto: a linguagem é uma espécie de retórica oficial; essa retórica alheia à vida e às palavras que a constituem – as palavras subjetivas e emaranhadas com que expressamos nossa experiência vital (REYES, 2012, p. 18).

E isso ocorre desde os primeiros anos de educação. Esse divórcio entre simbólico e vida marcará o sujeito ao longo dos anos, sejam eles relacionados aos processos de aprendizagem, sejam de experiência de vida. Talvez por isso, afirma Yolanda Reyes, as férias são uma coisa, e a redação sobre elas é outra.

Finalmente, por volta do quinto ou sexto ano, quando a criança está com 10, 11 anos, irá aprender as figuras de linguagem, entre elas, a metáfora e a metonímia. Esse momento é decisivo, pois a criança, outra vez, será desafiada a cruzar territórios. O ensino da metáfora diz respeito à capacidade da criança de partir agora do mundo concreto para o abstrato. Entra em jogo a imaginação. A imaginação é o território da fantasia inconsciente e é dentro desse universo subjetivo que os fatos sofrem a pigmentação da simbolização.

A criança introduzida no processo do pensamento aliado à comunicação precisa agora superar o simplismo da expressividade. Precisa ultrapassar os seus próprios recursos, porque precisa aumentar seu repertório, desenvolver melhores soluções de linguagem e aprofundar a percepção do real e de si mesma. O desafio que se apresenta agora é: como reverter a cisão implementada nos primeiros anos de ensino para o mundo concreto, (re)aproximando-a do abstrato?

Não estou aqui realizando uma crítica ao processo de ensino/aprendizagem, no entanto minha experiência com crianças e posteriormente com adultos em sala de aula universitária tem demonstrado que esses sujeitos apresentam dificuldades de simbolização, de lidar com a tensão provocada pela frustração, com a aproximação da realidade. Quanto maiores são as dificuldades de lidar com a realidade, mais confundem compreensão com interpretação.

Quando vasculho o passado de aprendizagem desses seres, descubro que ensino, educação, sociedade, escola focaram esforços no sentido de dar conta do mundo concreto, mas pouco investiram na apreensão do subjetivo. É claro que existem argumentos sociais, culturais e até políticos para que isso aconteça, mas elucidar esse ponto não é objetivo aqui.

O fato é que dessa dicotomia surgiu meu questionamento: como a metáfora, agora psicanaliticamente falando, se constrói em sonhos de adultos, se quando crianças sofreram falhas no desenvolvimento cognitivo, no tocante à capacidade de simbolização?

Para Ella Sharpe (1971, p. 1), sonhar é uma atividade psíquica inseparável da vida. Segundo a autora, “o sonho, então, pode ser considerado típico da mente humana”, ou seja, estamos outra vez falando de afeto e pensamento. Por isso, me pareceu instigante investigar a aproximação de duas atividades que dependem do desenvolvimento das ideias: sonhos e metáfora.

Freud (2014), voltando aos textos de conferências que tratam sobre os sonhos, denominou as leis do inconsciente que governam todas as produções oníricas como condensação, deslocamento, simbolização e dramatização, divididas em processo primário e secundário. Para ele, os sonhos indicam o ambiente cultural do indivíduo, ou seja, também estão ligados às experiências vivenciadas ao longo da vida.

Sharpe, nessa correlação condensação/metáfora, afirma ainda que o processo onírico aproxima-se do fazer poético, “as leis do fraseado poético, desenvolvidas pelos críticos a partir da grande poesia e as leis de formação onírica, tal como descobertas por Freud (2014, p. 5), originam-se das mesmas fontes inconscientes e possuem muitos mecanismos em comum”.

Mas por que falar em poesia?

Porque a poesia, assim como a metáfora, é uma retórica da ordem pictórica. Tanto a poesia quanto a metáfora encapsulam a resposta. Funcionam como um símile, pois condensam a informação e criam imagens.

Segundo o poeta Octávio Paz (2012), a arte é capaz de travar diálogo com a ausência. Na poesia como nos sonhos, através da metáfora, as coisas mudam de natureza, pois os signos são dotados de mobilidade. Pode-se, assim, supor que, quanto mais o sujeito domina a arte de metaforizar, mais simbólicos serão seus sonhos? Do ponto de vista cognitivo, parece que sim.

Mas a metáfora não depende somente do desenvolvimento do pensamento, carece de uma carga afetiva, proporcionada pela proximidade com as áreas humanas e de artes para aproximar-se do sentido e da simbolização.

A criança nasce imersa nas trocas, nas interações e nas ações com o outro. Brincar é inventar e expressar vida psíquica. É transformar o cabo da vassoura num cavalo. Mas geralmente visa aludir a vivências externas e mostrar a repercussão interna. Gostariam de tomar sorvete durante o dia e sonharão com o sorvete à noite. Essa questão diz respeito ao fato de que enquanto pequenos têm pouca censura, sim, mas também porque ainda não sabem simbolizar.

Simbolizar não é fantasiar. Simbolizar é da ordem da semântica. É transformar em símbolos a experiência do real que não deu conta da criação de significados. E um dos meios usados para resolver isso é a metáfora.

Para perceber em que nível está a pessoa que elabora seus pensamentos a nossa frente, é preciso seguir o conselho de Paul Ricouer (2000) e ater-se às palavras que são usadas para descrever as possíveis metáforas. É a palavra que carrega o sentido metafórico. A metáfora vai além do lugar dela dentro do discurso proferido. Ela é o próprio processo metafórico.

É na palavra que identificamos, inclusive nossa (parca) capacidade de compreensão e a partir dela a nossa competência de significar a falta de sentido e, talvez assim, captar o invisível imagético de quem sofreu as falhas nos vínculos e agora constrói sonhos sem unidade de base.

Ou, isso tudo não passa de retórica e as metáforas produzidas nos sonhos movem-se como alusões sobre um rio chamado vida e independem de tropo de definição.

 

Referências

ARISTÓTELES. A poética. Porto Alegre: Globo, 1996.         [ Links ]

ELIA, L. O conceito de sujeito. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.         [ Links ]

FERRARI, L. Introdução à linguística cognitiva. São Paulo: Contexto, 2011.         [ Links ]

FREUD, S. Conferências introdutórias à psicanálise (1916-1917). Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. (Obras completas, 13).         [ Links ]

GNERRE, M. Linguagem, escrita e poder. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1987.         [ Links ]

LAKOFF G.; JOHNSON, M. Metaphors we live by. Chicago: Chicago University Press, 1980.         [ Links ]

PAZ, O. O arco e a lira. Tradução de Ari Roitman e Paulina Watch. São Paulo: Cosac & Naify, 2012.         [ Links ]

PEREC, G. A memória da infância. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.         [ Links ]

PIAGET, J. A linguagem e o pensamento da criança. Tradução de Manuel Campos. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1986.         [ Links ]

REYES, Y. Ler e brincar, tecer e cantar: literatura, escrita e educação. Tradução de Rodrigo Petrônio. São Paulo: Pulo do Gato, 2018.         [ Links ]

RICOUER, P. A metáfora viva. São Paulo: Paulinas, 2000.         [ Links ]

SHARPE, E. Análise dos sonhos: um manual prático para psicanalistas. Tradução de Cristiano Monteiro Oiticica. Rio de Janeiro: Imago, 1971.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: a.adriantunes@gmail.com

Recebido em: 08/09/2018
Aprovado em: 20/09/2018

 

 

SOBRE A AUTORA

Adriana Antunes de Almeida Poletto
Doutora em Letras pela UCS/UniRitter.
Mestre em Letras, Cultura e Regionalidade pela Universidade Caxias de Sul (UCS).
Professora do Programa UCS Sênior da Universidade de Caxias do Sul (UCS).
Professora do Centro de Comunicação da Faculdade da Serra Gaúcha (FSG) de Caxias do Sul (RS).
Membro em formação psicanalítica do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul (CPRS).

 

 

1 Trabalho apresentado na Jornada de Psicanálise do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, em 9 dez. 2017.

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