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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.50 Belo Horizonte jul./dez. 2018

 

ARTIGO

 

Sigmund Freud - O manuscrito inédito de 1931 - As aventuras e desventuras de um texto e as ideias desconhecidas de Freud sobre o cristianismo e a sublimação

 

Sigmund Freud - The Original 1931 Manuscript - The adventures and misadventures of a text and the unknown ideas of Freud about Christianity and sublimation

 

 

Anchyses Jobim Lopes

I Círculo Brasileiro de Psicanálise
II Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro
III Universidade Estácio de Sá

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Publicação no Brasil do Manuscrito inédito de 1931. O texto não adulterado de Freud que constitui o primeiro capítulo do livro sobre o presidente americano Woodrow Wilson. Relato e alguns comentários sobre os três textos inéditos de Freud descobertos nos últimos trinta e poucos anos. Histórico da descoberta do texto desconhecido de 1931 por pesquisadores e da problemática parceria entre Freud e Bullitt. Resumo do Manuscrito inédito. Comparação entre o texto do Manuscrito Inédito e o que foi publicado em 1967. Supressões e censuras feitas por Bullitt e algumas de suas possíveis causas. Freud e a descrição da bissexualidade através da psicodinâmica da sequência repressão-identificação-sublimação no percurso edípico infantil. Interpretação inédita de Freud sobre o cristianismo e o papel de Cristo. Descrição do conceito de dupla identificação no texto inédito e ao longo da obra de Freud. A dupla identificação como trajeto à sublimação. Bissexualidade: sublimação e laços sociais.

Palavras-chave: Bissexualidade, Édipo, Dupla Identificação, Cristianismo, Sublimação.


ABSTRACT

Publication of Freud’s Original 1931 manuscript, the unadulterated first chapter of a book about the American president Woodrow Wilson. Account and some comments about the three unknown Freud texts discovered around the last thirty years. History of the discovery by researchers of Freud’s Original 1931 manuscript and of the troublesome partnership between Freud and Bullitt. Summary of the Original 1931 manuscript. Comparison between the manuscript and the 1967 published texts. Censorship and suppressions committed by Bullitt and some of the possible causes. Freud and the description of bisexuality through the psychodynamics of the repression-identification-sublimation sequence over the child’s Oedipal path. Freud’s original interpretation of Christianism and Christ’s role. Description of the double identification concept at the Original 1931 manuscript text and along Freud’s previous writings. Double identification as a path to sublimation. Bisexuality: sublimation and social ties.

Keywords: Bisexuality, Oedipus, Double identification, Christianism, Sublimation.


 

[...] essa identificação é capaz de uma façanha:
é a conciliação como que por milagre
de dois desejos extremamente potente e
absolutamente antagônicos [...]

SIGMUND FREUD

 

Introdução

Freud escreveu apenas dois livros em parceria com outro autor. O primeiro em conjunto com Josef Breuer, à época mentor mais velho, livro sempre publicado ao início das edições de suas obras psicológicas: Estudos sobre a histeria, de 1895. O outro livro em parceria só apareceu quase trinta anos após a morte de Freud. Obra em conjunto com um colaborador com idade de ser seu filho: William Bullitt. Segundo a versão difundida por Bullitt, Freud teria contribuído com a introdução, o primeiro capítulo e correções ao longo dos 34 capítulos seguintes.

Thomas Woodrow Wilson – um estudo psicológico, por Sigmund Freud e William C. Bullitt, só foi publicado em 1967, em inglês. Alguns nomes de peso na psicanálise (Max Schur, Erik Erikson, James Strachey) abalizaram que apenas a introdução era de Freud e avaliaram resto do livro como um desastre. Para os detratores da psicanálise foi um prato cheio. Além da história de uma coautoria repleta de controvérsias entre os coautores, que por divergências não concordaram na publicação à época em que fora escrito (1932). O livro foi rotulado como sendo uma psicobiografia superficial e mal escrita. Freud escreveu a introdução, da qual não havia dúvidas da autoria, e teria escrito também o primeiro capítulo, mas este foi considerado superficial, e a leitura pouco fluente. A autoria deste capítulo por Freud foi contestada.

O livro foi traduzido em alguns idiomas, inclusive no Brasil, em 1984 (FREUD; BULLITT) em uma edição cuidadosa, com apresentação por um nome conhecido e respeitado da psicanálise, Chaim S. Katz. Mas nunca foi reeditado no Brasil, ou incluído em qualquer edição estrangeira ou brasileira das obras completas de Freud. Exceto pela introdução, os críticos duvidavam que o resto sequer tivesse a mão de Freud. Não estavam de todo errados.

Um conhecido pesquisador da psicanálise e de sua história descobriu documentos inéditos em 2004, o que provocou que em 2017 o primeiro capítulo do livro, aquele que se julgava escrito por Freud, fosse publicado em sua versão autêntica no Brasil. Veio à tona um texto escondido dos anos 1930, que pode ser lido independentemente do resto dos demais capítulos e da introdução do livro de 1967: o Manuscrito inédito de 1931 (FREUD, 2017). Uma cuidadosa edição brasileira, com a tradução e o original em alemão cotejando cada página, acrescida por diversos psicanalistas de notas da tradutora sobre alguns verbetes, prefácio e posfácio.

Comparado o texto do primeiro capítulo da edição brasileira de 1984 com o de 2017, o resultado foi espantoso. O texto em inglês de 1967 e por tabela suas traduções, havia apagado desde frases, a metade de parágrafos, alguns deles inteiros e mesmo seguidos, indo até uma sequência de seis parágrafos. Numa breve avaliação, o texto de Freud fora censurado em mais de um terço. Censura é a palavra melhor e mais forte, porque os cortes no texto possuíam uma meta bem delimitada: apagar certos termos e certas ideias.

Do que teria ocorrido na parceria entre Freud e Bullitt surge uma série de pistas divergentes entre os biógrafos de Freud e os historiadores da psicanálise. Pistas necessárias para a tentativa de seguir os rastros do que se sabe da disputa entre os dois autores pelo texto, e que revela uma coerência tanto por detrás do motivo da censura, quanto na possível razão de Freud em não aceitá-la. Ao mesmo tempo, mais de três quartos de século depois, os motivos da censura ressaltam no texto inédito a ousadia das ideias desconhecidas de Freud.

Inicialmente será apresentado a novos leitores um esboço dos vários textos inéditos de Freud, seguido por um histórico da problemática parceria entre Freud e Bullitt. A partir daí serão feitos um resumo do Manuscrito inédito, com ênfase sobre as ideias originais e desconhecidas de Freud, acrescidas de uma genealogia a partir de seus textos anteriores publicados nas edições de suas obras completas. Faremos alguns comentários sobre as influências exercidas por psicanalistas das décadas de 1920/1930. O propósito final do artigo é incitar o interesse e a curiosidade para uma leitura direta do próprio Manuscrito inédito.

 

Os três textos inéditos de Freud (1985-2017)

Quando ouvimos sobre os textos inéditos de Freud vem à lembrança o primeiro a ser descoberto: O projeto para uma psicologia científica, manuscrito sem título encontrado no meio da correspondência de Freud com Wilhelm Fliess. Foi datado de 1895, publicado em alemão em 1950 e em inglês em 1954. Tanto o título alemão Dos primórdios da psicanálise (Aus den Anfängen der Psychoanalyse) quanto o título em inglês Projeto para uma psicologia científica (Project for a Scientific Psychology) são criações dos tradutores. Em um sentido amplo também podemos definir como inédito o Esboço de psicanálise, livro incompleto deixado por Freud e publicado no ano seguinte a seu falecimento.

Em lugar desses textos de longa data conhecidos e desde a década de 1950 publicados na Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, o termo “inédito” talvez seja melhor aplicado a três textos descobertos e publicados em separado nos últimos trinta anos. Textos de conteúdo bastante controverso, o que talvez explique sua difusão aparentemente não ter sido muito ampla no meio psicanalítico. Também não faremos referência às coleções de cartas de Freud, sempre crescentes e das quais muitas ainda guardam sigilo por diretriz deixada pelo próprio Freud.

O primeiro dos “inéditos” é Neurose de transferência: uma síntese (FREUD, 1987). Trata-se do rascunho de um dos capítulos para um tratado de psicanálise, dos quais cinco outros capítulos foram publicados como artigos independentes e só postumamente englobados nas obras completas de Freud com o título Artigos sobre metapsicologia. O manuscrito de Neuroses de transferência: uma síntese foi descoberto no início dos anos 1980, entre a correspondência de Freud com Sándor Ferenczi. Foi publicado em alemão em 1985 e no Brasil em 1987, acrescido de um ensaio de Ilse Gubrich-Simitis, especialista e editora dos textos de Freud em alemão (FREUD, 1987). Até o momento não houve uma reedição ou outra tradução em português.

A parte inicial de Neuroses de transferência: uma síntese compreende um rascunho sobre a metapsicologia das neuroses. Os dois terços seguintes tratam, de modo bem mais discursivo e completo, sobre a origem das neuroses de transferência e narcísicas, a partir das vicissitudes passadas pelos antepassados da humanidade durante a era glacial. O meio ambiente teria se tornado mais perigoso, não havia comida para todos, e a procriação tinha de ser evitada. Surge uma hipertrofia do pensamento. Melhor a libido deslocada para a histeria e a neurose obsessiva, que a morte pela fome ou lutas por comida. Ideias que continuam os argumentos de Totem e tabu: a fuga dos filhos temendo serem mortos pelo pai, a culpa e a mania resultantes de seu assassinato, a castração psíquica em vez da física, por meio da demência precoce.

Resumindo, podemos dizer o seguinte: se as disposições para as três neuroses de transferência foram adquiridas na luta contra as necessidades dos tempos glaciais, então as fixações, nas quais se baseiam as neuroses narcísicas originaram-se da opressão do pai [...] a primeira luta leva para a fase cultural, a segunda leva à social (FREUD, 1987, p. 80).

O segundo texto “inédito” trata-se de conjunto de cinco extensos parágrafos de um pós-escrito para A questão da análise leiga. Os parágrafos foram suprimidos das edições alemã e inglesa, por Ernest Jones e Max Eitingon, com o aval de Freud (FREUD, 2017, p. 14). A primeira publicação no Brasil dos cinco parágrafos inéditos ocorreu em 2009 no livro O ofício do psicanalista: formação versus regulamentação, tradução de Eduardo Vidal ofertada pela Escola Letra Freudiana (ALBERTI; AMENDOEIRA; LANNES; LOPES; ROCHA [Orgs.], 2009). Um manuscrito original foi a origem do pós-escrito. Todo o material inédito foi descoberto por Ilse Grubrirch-Simitis (FREUD, 2017. p. 310).

Nos parágrafos suprimidos, Freud havia feito uma dura crítica à mentalidade americana de rapidez e lucro. Uma ideologia cujos efeitos sobre a terapia e a formação psicanalítica seriam de superficialidade no ensino e na prática clínica.

De todo modo o norte-americano não tem tempo. Ele se compraz com os grandes números, pelo aumento de todas as dimensões, e, em contrapartida, pelo encurtamento de tempo dispendido. Creio que chama isso de recorde. [...] Mas os discursos entre consciente e inconsciente tem suas próprias condições temporais que não condizem com as exigências norte-americanas. [...] O norte-americano também nada obtém de nossos institutos de ensino, pois geralmente permanece muito pouco tempo neles (FREUD, 2017, p. 303).

Freud percebeu que, cedo ou tarde, a maior parte da psicanálise americanizada perderia sua profundidade original, seria desfeita em terapias de ego e, em nome da rapidez, acabaria sendo substituída por outras ainda mais superficiais e de efeitos nada duradouros. Hoje vemos isso na literatura de autoajuda e na busca por curas que não comprometam o indivíduo com seus sintomas, que não tocam nas vivências da primeira infância e muito menos na sexualidade infantil. Práticas, quase todas de origem norte-americana, que proliferam também no Brasil, com os nomes mais diversos, seja em palestras motivacionais, seja nos currículos de faculdades de psicologia. Mas, à época, para Jones e Eitingon e, eventualmente, também Freud, tanta franqueza não pareceu politicamente hábil à difusão da psicanálise em solo americano.

O terceiro inédito de Freud foi publicado ano passado no Brasil com o título de Manuscrito inédito de 1931 (FREUD, 2017). É um texto de 24 páginas escritas a mão por Freud em alemão gótico, do que aparenta ser a versão original (e muito mais extensa) do primeiro capítulo do controverso livro Thomas Woodrow Wilson: um estudo psicológico, obra escrita a quatro mãos por Freud e William Bullitt (FREUD; BULLITT, 1984). As páginas manuscritas por Freud foram encontradas pelo historiador Paul Roazen em 2004, entre os documentos do diplomata William Bullitt, doados por sua filha e herdeira para a biblioteca da Universidade de Yale.

O texto do Manuscrito inédito de 1931 (FREUD, 2017) foi publicado em alemão em 2006 por Ilse Grubbrich-Simitis. No mesmo ano foi publicado em inglês por Mark Solms, precedido de um excelente artigo sobre a história do livro e de suas controvérsias (SOLMS, 2006). O Manuscrito inédito de 1931 foi publicado em edição italiana em 2015 e numa edição francesa apresentada por Elizabeth Roudinesco em 2017. Em seu artigo, Solms relata que Paul Roazen, autor de inúmeros livros sobre a história da psicanálise e sobre alguns de seus expoentes, como Victor Tausk e Helene Deutsch, estaria para publicar um livro sobre o controverso relacionamento entre Freud e Bullitt. Encontramos um artigo de 2005 do historiador no The Times Literary Supplement (ROAZEN, 2005), que aparenta ser uma prévia do livro. Mas Roazen faleceu no mesmo ano de 2005 e, até o momento, parece que a obra não foi publicada. Supomos que tenha sido por estar inacabada.

À semelhança do primeiro inédito, o terceiro traz interpretações sobre neurose e cultura, mas com ideias até então desconhecidas sobre o cristianismo, a função psicanalítica da figura de Cristo e a sublimação. Nesses temas insere-se, portanto, na linha traçada desde de Moral sexual “civilizada” e doença nervosa moderna (1908), Totem e tabu (1913), até Moisés e o monoteísmo (1939). Ao contrário do capítulo do livro publicado em 1967, o texto desconhecido de 1931 possui o mesmo estilo direto e crítico, e o mesmo dom para ideias polêmicas dos parágrafos suprimidos de A questão da análise leiga.

 

Histórico da problemática colaboração Freud/Bullitt

William C. Bullitt (1891-1967) foi um político, diplomata e escritor americano. Nomeado pelo presidente americano Woodrow Wilson, fez parte da delegação americana à Conferência da Paz ocorrida em Paris, entre 1919 e 1920, que gerou o Tratado de Versalhes, consagrou a dissolução dos impérios centrais (entre eles, o austro-húngaro) e impôs pesadíssimas indenizações aos derrotados. Bullitt se demitiu da conferência por considerar que as condições do tratado, impossíveis de ser cumpridas pelos derrotados, possuíam o germe para futuras guerras.

Os relatos sobre quando e como Bullitt e Freud teriam se conhecido são controversos. Segundo Roazen (2005), na década de 1920, Bullitt teria sido paciente de Freud. Foi a partir de então que Freud e Bullitt iniciaram uma amizade que continuou por cartas e alguns encontros pessoais. Entre os documentos doados para a Universidade de Yale, há algumas cartas de Freud para Bullitt, a primeira datada de 1927 (SOLMS, 2006, p. 1268).

Com o governo do presidente americano Roosevelt, Bullitt ganhou grande destaque. Foi o primeiro embaixador americano na União Soviética e era o embaixador em Paris quando da anexação da Áustria pelos nazistas em 1938. Bullitt solicitou que o presidente americano interviesse a favor de Freud (JONES, 1979, p. 759), fez advertências ao embaixador alemão na França e por meses trabalhou em estreita colaboração com o cônsul geral americano em Viena, que tinha sido nomeado por instâncias suas (GAY, 1989, p. 563-565). A pressão sobre o governo alemão obteve êxito. Tanto é que cônsul John Cooper Wiley acompanhou de perto os últimos meses da permanência de Freud em Viena e permitiu que ele, sua família e mais uma dúzia pessoas próximas, como Max Schur, seu médico pessoal, conseguissem de sair da Áustria nazista. A fotografia do idoso Freud chegando a Paris, ladeado por Bullitt de um lado e amparado por Marie Bonaparte do outro é bastante conhecida.

Bem antes, em maio de 1930, Bullitt estivera pessoalmente com Freud. “Ele estava em Berlim para uma pequena cirurgia. Fui visitá-lo e encontrei-o deprimido” (FREUD; BULLITT, 1984, p. 14). Bullitt, então, contou a Freud que escrevia um livro bastante crítico sobre o Tratado de Versalhes e seus protagonistas, entre eles Wilson. “Os olhos de Freud brilharam e ele se reanimou bastante” (FREUD; BULLITT, 1984, p. 15). Se Bullitt havia considerado Wilson politicamente incapaz, Freud escreveu que “[...] a figura do presidente americano [...] foi-me antipática desde o começo, e essa aversão só fez crescer [...] com o passar dos anos [...]” (FREUD; BULLITT, 1984, p. 18). Freud, que já havia publicado O futuro de uma ilusão (1927), no qual terminara com a afirmação de que a religião era um delírio, via Wilson como um homem ignorante sobre a realidade europeia e identificado com ideais messiânicos. E na introdução ao livro publicado em 1967 escreveu:

Não sei como evitar a conclusão de que um homem capaz de tomar as ilusões da religião tão literalmente, e que é tão seguro de sua intimidade pessoal com o Todo-poderoso, seja inadequado para relacionar-se com os filhos comuns dos homens (FREUD; BULLITT, 1984, p. 18-19).

No final de 1930, Freud e Bullitt iniciaram a redação do livro, que foi enviado dois anos depois à editora, com a assinatura de contratos e uma considerável soma a Freud, como antecipação dos direitos autorais para publicação nos Estados Unidos. Mas divergências surgiram. Como escreveu o próprio Bullitt, “Freud e eu éramos teimosos e nossas crenças bem diferentes. Ele era judeu e se tornara agnóstico. Eu sempre professei a fé cristã” (FREUD; BULLITT, 1984, p. 16). Bullitt foi misericordioso. Freud era declaradamente ateu, materialista, tinha toda a “psyché” como resultante de neurônios e diagnosticou em vários textos a religião como a grande neurose (ou psicose) da humanidade (LOPES, 2008). Já em 1908, em Caráter e erotismo anal, escrevera que “[...] o diabo seguramente nada mais é que a personificação da vida instintual inconsciente recalcada” (FREUD, 1978, tradução nossa).

Além da introdução, Freud teria ficado responsável pelo primeiro capítulo do livro sobre Wilson: um resumo dos principais pontos de sua teoria e sua técnica para o grande público desconhecedor da psicanálise. A primeira hipótese sobre a coautoria deriva do que foi escrito por Bullitt na Apresentação do livro publicado em 1967. A introdução e o primeiro capítulo teriam sido escritos por Freud e os demais por Bullitt sob a supervisão de Freud. Os dois autores trabalharam no livro durante os anos 1931 e 1932. Parecia que o livro breve seria publicado. Mas, da pareceria com Bullitt, em dezembro de 1933, Freud escreveu em carta a Marie Bonaparte que “[...] nosso livro nunca verá a luz do dia” (ROAZEN, 2005, p. 1278). Os detalhes do que e por que ocorreu permanecem enigmáticos até hoje.

Segundo Bullitt, Freud teria acrescentado ao primeiro capítulo novos trechos aos quais ele se opunha (FREUD; BULLITT, 1984, p. 16). Mas, sobre esse capítulo, segundo a psicanalista e tradutora do Manuscrito inédito, Elsa Suusemihl, mais duas hipóteses são possíveis:

Teria sido escrito por Freud para uma publicação, e então editado por Bullitt, de acordo com suas próprias concepções e crenças, tornando duvidosa a autoria de Freud? Ou foi escrito para Bullitt com o simples propósito de muni-lo teoricamente para que ele pudesse proceder com a análise psicológica do caráter de Wilson? Autores como Gubrich-Simitis (2006) e Solms (2006) parecem ter visões contrastantes a respeito. E a controvérsia continua (SUSEMIHL, 2018 [c], p. 243).

Consideramos mais plausível a primeira hipótese da psicanalista. A de que o Manuscrito inédito tenha sido escrito por Freud, seja a partir de um texto bem mais curto de Bullitt, tido como muito incompleto, ou a partir um texto de Freud, original e completo, para publicação como o primeiro capítulo do livro. E que o texto teria sido drasticamente retalhado por Bullitt.

Com a descoberta do texto inédito, pode-se supor que Bullitt possuía inúmeras objeções ao texto de Freud, e a principal era a interpretação, única na obra de Freud, sobre o cristianismo e o papel psicológico da figura de Cristo. O político e diplomata americano esperava continuar sua carreira diplomática, e mesmo fazer carreira política em seu país. O texto de Freud, ou de seus supostos acréscimos, o comprometeriam de forma irremediável.

Comenta a tradutora do Manuscrito inédito para o português:

É provável que aí esteja o principal motivo para a divergência com Bullitt – cristão fervoroso e pouco propenso a polêmicas que afetassem sua carreira diplomática – mas é preciso cogitar alguma relutância do próprio Freud em ver tais ideias publicadas (SUSEMIHL, 2018[c], p. 243).

Consideramos ser pouco provável que Freud, já tendo escrito tanto e de modo tão crítico e iconoclasta sobre religião, relutasse em publicar o texto original. Arguto conhecedor das objeções que poderiam ser feitas a partir da moral católica da Áustria de seu tempo, Freud foi um homem que jamais relutou em expor suas ideias nesse campo, as quais continuaram até o final de sua vida, através de textos surpreendentes sobre as origens do judaísmo, onde menciona também origens do cristianismo e do islamismo.

Comparando com os outros textos inéditos, o Projeto e Neuroses de transferência haviam permanecido como rascunhos incompletos. E os parágrafos suprimidos da Análise leiga, pertenciam a um posfácio ao final do texto e não continham nenhuma discussão teórica. É pouco crível que Freud não tivesse se sentido à vontade diante da publicação de um texto completo e acabado como o Manuscrito inédito. O que é muito mais provável é que Freud tenha se recusado a aceitar os cortes que Bullitt teria feito em seu texto.

Também é muito pouco plausível que Freud tenha gasto tanto empenho em um texto denso e bem redigido apenas para dar uma aula de psicanálise para Bullitt. Até mesmo porque, além de jamais nomear o diplomata americano no Manuscrito Inédito, no início de um dos parágrafos ao começo do texto, Freud dirige-se diretamente a um genérico “leitor” (FREUD, 2017, p. 49).

Finalmente, segundo Bullitt, em 1938, Freud teria concordado com a publicação do livro sem os acréscimos ao primeiro capítulo.

Em 1938 os nazistas permitiram que Freud deixasse Vienna. Encontrei-o na estação ferroviária de Paris. [...] Levei o manuscrito a Freud, e fiquei encantado quando ele aceitou suprimir o que acrescentara no último minuto [...]. Visitei-o novamente em Londres e apresentei-lhe o texto final que ambos havíamos aceitado. Por uma questão de cortesia, resolvemos não publicar o livro enquanto vivesse a segunda senhora Woodrow Wilson (FREUD; BULLITT, 1984, p. 17).

Solms (2006, p. 1279) se mostra espantado com o fato de Bullitt ter feito seu pedido a Freud minutos após ele ter chegado de sua fuga de Viena. Outro complicador é que “[...] o fato de que ele concordou com que alguma versão fosse publicada [...]”, mas “[...] o que permanece obscuro é qual versão ele concordou em publicar” (SOLMS, 2006, p. 1278, tradução nossa, itálicos do autor citado). A versão, segundo Bullitt, com trechos acrescentados (“na última hora”) por Freud e depois suprimidos em 1932 ou uma nova versão de 1938 ou 1939? Em ambos os casos, o Manuscrito inédito de 1931 contrapõe-se fortemente como um texto completo, do próprio punho de Freud e muito coerente.

Mas, se o pedido na estação ferroviária de Paris parece mais do tipo de uma chantagem emocional e se Freud teve de escolher entre a concessão de apresentar suas ideias de forma mutilada e a gratidão por Bullitt, sua decisão pode ter sido muito humana, demasiadamente humana. Afinal, o americano teve um papel muito importante, senão o principal, em lhe salvar sua vida e mais a de uma dúzia de pessoas queridas, entre elas, sua mulher e sua filha Anna. Décadas depois é relatado que Anna ainda “[...] permanecia imensamente grata ao embaixador Bullitt” (SOLMS, 2006, p. 1279, tradução nossa). Quase trinta anos após a fuga de Viena, quando da publicação do livro, é provável que a filha de Freud também não se dispusesse a brigar sobre a autoria ou não do texto.

O livro só veio a ser publicado em 1967, composto por uma apresentação de Bullitt, a introdução de Freud, uma lista dos dados biográficos de Wilson copilada por Bullitt e 35 capítulos assinalados de ser da autoria conjunta de Freud e Bullitt, dos quais só o primeiro poderia ser considerado como da autoria exclusiva de Freud.

Já foi mencionado que, quanto à introdução de Freud nunca houve questionamentos. Mas o texto do primeiro capítulo, desde o início, gerou desconfiança no meio psicanalítico e nunca teve o aval de Anna Freud. Na década de 1960, antes da publicação do livro, ela pediu para reler e corrigir o texto de seu pai, e Bullitt recusou. Quando do livro publicado, o capítulo de autoria atribuída a Freud parecia mal escrito, superficial em muitos pontos e distante da fluidez do estilo freudiano. No restante do livro, que teria tido supervisão de Freud, as interpretações psicanalíticas parecem repetitivas e pouco profundas.

O tradutor e editor em inglês do Manuscrito inédito, Mark Solms, teve acesso na Universidade de Yale aos 22 itens de documentos doados pela filha de Bullit e publicou a descrição de seu conteúdo (SOLMS, 2006, p. 1267-1268). Entre os papéis, Solms descobriu um documento do próprio punho de Freud, em que a frase “Pela parte analítica, somos ambos responsáveis, foi escrita pelos dois em estreita colaboração” (FREUD; BULLITT, 1984, p. 20), constante da introdução tida como indubitavelmente da autoria de Freud, foi fortemente riscada pelo próprio pai da psicanálise e acrescentada em seu lugar:

[...] no que diz respeito à parte analítica, o trabalho principal e as principais conclusões são dele, Bullitt, mas fiz tantos acréscimos e mudanças, que posso compartilhar a responsabilidade pelo resultado (SOLMS, 2006, p. 1276-1277, tradução nossa, SUSEMIHL, 2018[c], p. 243).

De acordo com esse documento encontrado por Solms, Bullitt também teria publicado o livro sem a alteração feita por Freud para a introdução, pela qual colocava sua participação ao todo do livro num plano secundário. Segundo Susemihl, essa correção evidencia que “[...] Freud não se reconhecia como coautor da obra sobre Wilson” (SUSEMIHL, 2018[c], p. 243).

A esse documento de Freud soma-se que a comparação entre os textos do primeiro capítulo do livro publicado em 1967 e o original do próprio punho de Freud em 1931, sugerem que a publicação de 1967 é a do conteúdo do Manuscrito inédito, grosseiramente mutilado.

Passemos, então, a uma tentativa de análise de parte do conteúdo das 24 páginas em alemão com a letra de Freud, que compõem o inédito de 1931, e que tudo leva a crer ser a versão sem cortes e censura do primeiro capítulo do livro. E que a interpretação dos motivos subjacentes a esta censura também podem ser objeto de investigação psicanalítica.

 

Manuscrito inédito de 1931: o Édipo por Freud e as censuras por Bullitt

Freud inicia o Manuscrito inédito tecendo alguns comentários sobre Wilson e advertindo que não se trata de uma investigação psicanalítica, que só poderia ser realizada por meio de uma análise pessoal de Wilson, mas de um “estudo psicológico” realizado de modo indireto, através da leitura de biografias e relatos feitos por pessoas que trabalharam com o ex-presidente americano. Então discorre brevemente sobre a universalidade e a incompletude das descobertas feitas pela psicanálise (FREUD, 2017, p. 31-33).

Tendo por princípio que o público leitor para a biografia de Wilson desconheceria a teoria e a prática psicanalíticas, Freud redigiu nos trinta parágrafos seguintes, que constituem aproximadamente dois terços do Manuscrito inédito, uma síntese das principais descobertas e princípios da psicanálise até então. Trata-se de uma ampla sinopse dissertando desde a definição de libido, oscilação entre narcisismo e investimento objetal, bissexualidade, complexo de Édipo, angústia de castração até escolhas objetais. Continuando a discorrer sobre o destino do drama edípico na criança e da impossibilidade de satisfação libidinal absoluta, Freud passa aos três mecanismos possíveis para uma satisfação parcial: repressão,1 identificação e sublimação. Nessa sequência Freud disserta sobre os cinco caminhos da libido na criança pequena: narcisismo, passividade em direção à mãe, passividade em relação ao pai, atividade em relação à mãe, atividade em relação ao pai. Em seguida descreve o percurso da atividade e da passividade simultâneas da criança em relação a cada um dos dois genitores, o trajeto da libido através da dualidade objeto/identificação até a construção do supereu e a metamorfose da repressão e da identificação em sublimação.

Em uma primeira leitura, até aprofundar a questão da repressão, o Manuscrito inédito parece não apresentar maiores novidades aos escritos de Freud. Embora lido com cuidado, vê-se que, como sempre ocorre com autores criativos, que mesmo quando repetem suas ideias acrescentam algo e nas entrelinhas pode-se encontrar novidades. Mas quando desenvolve os temas da dupla identificação (termo que parece ser, até então, inédito na obra de Freud) e da sublimação, o texto passa também a apresentar ideias originais, que merecem ser mais detalhadas e comentadas. Tarefas a ser realizadas mais abaixo, em item separado.

Por outro lado, é surpreendente que em todo o Manuscrito inédito Freud faça apenas duas breves referências à pulsão de morte e à segunda teoria da pulsão, fato que só se tornou compreensível após a leitura do artigo de Solms. Nele ficamos sabendo que no terceiro dos documentos ao qual Solms teve acesso, redigido por Bullitt,e datado de 12 de dezembro de 1930, o diplomata americano afirma a respeito de Freud que “[...] ele finalmente concordou em reescrever a passagem, mas aferrou-se à opinião de que existe a pulsão de morte” (SOLMS, 2006, p. 1267, tradução nossa). Assim, presenciamos a discordância de Bullitt sobre a existência da pulsão de morte, que teve seu papel muito diminuído, mas cuja retirada completa do texto Freud recusou (parafraseando a resposta atribuída a Galileu diante da Santa Inquisição, deve ter resmungado entre os dentes, “no entanto ela existe”). Prenúncio do conflito maior entre os autores que deve ter ocorrido nos durante os anos seguintes.

Comparado com o texto do livro publicado em 1967, o texto do Manuscrito inédito chama muito a atenção dos termos e das extensas passagens omitidas. O livro mantém o uso da palavra “libido”, mas “pulsão” aparece pouquíssimas vezes e sem a qualificação de “sexual”. Quando é necessário mais um esclarecimento, o termo “libido” é associado por Bullitt ao Eros de Platão, não à pulsão sexual. A discussão sobre Édipo e bissexualidade no Manuscrito inédito, um dos textos mais extensos – senão o mais extenso - de Freud sobre o tema (FREUD, 2017, p. 53-59) foi toda apagada no livro publicado por Bullitt. Seis parágrafos inteiros de Freud sumiram.

Bullitt tentou explicar o complexo de Édipo sem qualquer referência à castração. Das quatorze menções feitas por Freud do termo, seja isoladamente, seja em compostos como “angústia de castração” e “ameaça de castração”, treze desapareceram. O que é coerente com o desaparecimento de frases ou parágrafos, todas as vezes em que o texto de Freud discute sobre passividade e atividade e sua soldagem com masculinidade e feminilidade. E, por mais que seja uma abordagem criticada da ótica de Freud, por ser patriarcal e machista, desapareceu do texto toda a descrição do complexo de Édipo na menina. Por fim, para Bullitt, homossexualidade masculina parece ter sido tema proibido. Dado o fato de que no livro publicado a palavra ‘homossexualidade’ e suas derivações, utilizadas quatorze vezes no Manuscrito Inédito, todas sumiram.

O resultado final é que, da grande complexidade e das várias combinações possíveis de construção da sexualidade infantil e das escolhas objetais descobertas por Freud, pouco sobrou no livro publicado. Seja pelos termos freudianos à época, seja pelo termo mais atual de gênero, masculino e feminino ficam bem delimitados desde o nascimento a pouco mais que acasos da natureza ou do divino. Tendo reforço no fato de que some a menção sobre as teorias sexuais infantis e a frase na qual Freud repetia no Manuscrito inédito que:

Na idade precoce do surgimento do complexo de Édipo, o menino ainda não tem o conhecimento a respeito da diferença corporal entre os sexos (FREUD, 2017, p. 53).

O Manuscrito Inédito, principalmente na parte mais mutilada por Bullitt, apresenta uma síntese do tema que perpassou toda a obra freudiana. De como a feminilidade e a masculinidade,

decorrentes da bissexualidade constituinte do ser humano e relacionadas, mas não determinadas, pelas diferenças anatômicas dos sexos, se relacionam com as experiências de vida na infância, resultando na maneira individual de cada um em se haver com os conflitos do complexo de Édipo e se tornar um indivíduo único e singular” (SUSEMIHL, 2018 [b]).

A comparação entre os textos de 1931 e 1967 fundamenta de modo inequívoco o porquê dos leitores afeitos à obra de Freud, quando do livro publicado na década de 1960, terem achado o texto truncado, superficial e sem a tradicional fluidez da escrita freudiana.

Não é crível que Freud tivesse, ele mesmo, feito isso com seu texto. Nos casos dos inéditos acima mencionados, as supressões ocorreram porque Freud não os terminou (o que já acontecera com o Projeto), ou os parágrafos suprimidos não comprometiam o resto do texto. No caso do Manuscrito inédito, são cortes em um texto densamente teórico-clínico, descrevendo o centro da maior parte das suas descobertas. Também é pouco crível que Bullitt tivesse realizado a extensa mutilação do texto do Manuscrito apenas tendo em vista o público que leria o livro e o futuro de sua carreira política. Muito mais parece uma necessidade pessoal, sintoma de profundas crenças religiosas, mesmo que tenham se encaixado muito bem ao oportunismo de um político.

Se até então a censura havia sido feita a partes do Manuscrito que reafirmavam ideias já descritas antes, quando, na segunda metade do texto, atingiu até páginas inteiras abordando algo inédito da obra freudiana conhecida, a perda se tornou muito grave. Mas, como escreveu Solms na apresentação do texto em inglês do Manuscrito inédito:

Aí ocorreu um inesperado final feliz para este conto triste: a sobrevivência do manuscrito [...] (SOLMS, 2006, p. 1279, tradução nossa).

 

As ideias inéditas de Freud sobre o cristianismo e a figura de Cristo

No Manuscrito inédito, a partir da narrativa sobre o Édipo no menino, Freud descreve a construção do supereu e da ideia de deus a partir da imagem paterna da infância, trecho que não foi suprimido por Bullitt.

Ficamos sabendo que, na imaginação de toda criança, o tamanho e o poder do pai são exagerados, porém, em alguns casos, esse exagero é tão monstruoso que o pai, com o qual a criança se identifica e a partir do qual ela forma seu supereu, coincide com próprio todo-poderoso Deus-Pai. Então o supereu exige do eu o impossível. [...] Você é o filho amado do pai, você é o próprio pai, você é Deus (FREUD, 2017, p. 65).

Mas o desenvolvimento posterior de Freud sobre as derivações da relação do menino com a figura paterna em temas religiosos foi drasticamente retalhado no livro publicado em 1967.

Todos os exemplos de termos censurados e das distorções entre os nexos de ideias causados pelos cortes de Bullitt podem ser demonstrados no trecho possivelmente mais polêmico de Freud e censurado por Bullitt. Trata-se de um parágrafo de quase duas páginas em português do Manuscrito inédito, no qual Freud escreve que:

[...] O homem cuja passividade em relação ao pai não pode encontrar uma saída direta tentará obter por ajuda por meio de uma dupla identificação (doppelt Identifizierung). Identificar-se-á com o pai e procurará um homem mais jovem, que ele identificará consigo mesmo e a quem entregará o mesmo amor que deseja receber do pai em consequência de sua passividade não satisfeita. Pode vir a se tornar dessa maneira um homossexual ativo. Em muitos casos um homem cuja posição passiva em relação ao pai não encontrou uma expressão direta pode consegui-la por uma identificação com Jesus Cristo. Essa identificação é, por assim dizer, um acontecimento que se dá com bastante regularidade na vida psíquica de um cristão e pode ser demonstrada em pessoas totalmente normais de acordo com o testemunho da psicanálise (FREUD, 2017, p. 77-79, negrito nosso).

No mesmo trecho, na versão publicada por Bullitt de Thomas Woodrow Wilson – um estudo psicológico, consta:

[...] Um homem cuja passividade em relação ao pai não encontra descarga direta, frequentemente se servirá de uma identificação dupla. Identificar-se-á com o pai, e procurará um homem mais jovem que se identificará a si próprio. Dará então ao jovem o tipo de amor que a passividade insatisfeita em relação ao pai lhe faz desejar obter deste último. Em muitos casos, um homem cuja passividade em relação ao pai não encontrou uma descarga direta, acaba por descarregá-la através de uma identificação com Jesus Cristo. A Psicanálise descobriu que esta identificação está presente em pessoas inteiramente normais (FREUD; BULLITT, 1984, p. 60-61).

Em concordância com todas as censuras ao longo do texto publicado, a palavra e a frase com referência à homossexualidade foram suprimidas. Bem como foi deletada toda a primeira parte da última frase na citação acima do Manuscrito Inédito. Nessa frase podia-se entender que um acontecimento que ocorra “com bastante regularidade” não implica que seja necessário ou obrigatório. Agora, o leitor de Bullitt pode ficar tranquilo que sua identificação com Cristo além de ser universal, é completamente normal, abalizada por A psicanálise e não ofende qualquer cânone religioso contra sexualidades diversas, ocorrendo através da mais espiritual das sublimações.

A continuação desse parágrafo e do seguinte do texto de Freud foi completamente suprimida do livro publicado por Bullitt. Quase duas páginas inteiras na edição brasileira do Manuscrito inédito, contendo ideias até há pouco desconhecidas de Freud. Continua a citação acima:

Isso não nos deve espantar, pois essa identificação é capaz de uma façanha, a conciliação como que por milagre2 de dois desejos extremamente potentes e absolutamente antagônicos por meio da satisfação simultânea de ambos. Os dois desejos são: ser totalmente passivo e submisso em relação ao pai e completamente feminino e, por outro lado, ser totalmente masculino, poderoso e dominador como o próprio pai. Cristo foi capaz de realizar isto: ao submeter humildemente a vontade de Deus-Pai, tornou-se ele próprio Deus, e, ao se entregar à mais completa feminilidade, alcançou a meta mais extrema da masculinidade. Dessa forma torna-se compreensível que a identificação com Cristo seja realizada tão frequentemente para resolver o mais importante dos dois problemas do complexo de Édipo, isto é, o relacionamento com o pai (FREUD, 2017, p. 79).

Descrever essa forma de resolução do complexo de Édipo por meio de uma dupla identificação com o pai já fora formulada por Freud antes, mas não com o termo “dupla identificação”. Mas a genealogia deste conceito pode ser traçada a partir de textos anteriores de Freud.

Em a História de uma neurose infantil [“O homem dos lobos”], escrito em 1914, mas só publicado em 1918, último dos cinco grandes casos clínicos de Freud, aos quatro anos, o pequeno Serge tem o sonho com os seis ou sete lobos imóveis sentados na árvore que o olham fixamente. Surge, então, a fobia aos lobos e por eles ser devorado. Freud aplica suas ideias descritas em Totem e tabu sobre o animal totêmico, tanto em relação às fobias infantis, quanto à figura de deus e a origem das religiões. Pouco depois, aos quatro anos e meio, o pequeno Serge é iniciado nas ideias cristãs e transforma sua fobia de animais, notadamente de lobos, em uma neurose obsessiva.

No sadismo ele conservava a antiga identificação com o pai, no masoquismo ele o escolhia como objeto sexual. [...] O conhecimento da História Sagrada lhe dava agora a possibilidade de sublimar a postura masoquista predominante frente ao pai. Ele se tornou Cristo, o que era favorecido pelo dia do seu nascimento. O garoto de certo modo intuiu a ambivalência afetiva para com o pai, subjacente a todas as religiões [...]. Se ele era Cristo, seu pai era Deus (FREUD, 2010 (1914-1918), 2010, p. 86-89)

Entretanto, em O homem dos lobos, Freud não generalizara o percurso da pulsão de Serge como mecanismo psicológico básico do cristianismo. Mas já o caracterizara pela satisfação simultânea dos polos opostos ser-o-pai/ser-o-objeto-do-pai, sadismo/masoquismo. atividade/passividade. E o termo “dupla identificação” ainda não fora criado. Durante sua longa exposição nesse caso clínico sobre a neurose obsessiva e religiosa, ao abordar as diferentes correntes e suas metas sexuais, embora não se referisse diretamente às dicotomias da frase anterior, Freud utiliza pouco adiante da citação acima, pela primeira vez em alemão, o termo “cisão” [Spaltung] numa acepção psicanalítica e não mais como um termo psiquiátrico. Agora se refere a um mecanismo inconsciente, que também separa conteúdos em parte inconscientes, em parte conscientes, termo que, a partir dos escritos da década seguinte, ficará associado à psicose e à perversão.

O extenso parágrafo, que se segue no Manuscrito inédito ao parágrafo da função psíquica trazida pela dupla identificação permitida pela figura de Cristo, também foi todo suprimido por Bullitt. Escreveu Freud:

Talvez não tenha seja um acaso que a difusão do cristianismo no mundo durante os primeiros séculos após o nascimento de Cristo tenha coincidido com uma extraordinária regressão da expressão direta da homossexualidade e uma supressão desta. [...] A identificação com Cristo ofereceu à homossexualidade uma forma de expressão que não somente encontrou tolerância na sociedade, mas que também precisava estar de acordo com o supereu, que de fato, anseia por uma semelhança com Deus. Cristo é justamente a conciliação mais perfeita da masculinidade e feminilidade [...] (FREUD, 2017, p. 80-81).

Como foi descrito mais acima, aqui também foram retiradas de todas as menções às fantasias e à angústia de castração. Isso leva o leitor a crer que toda transformação psíquica da dualidade objeto/identificação no cristianismo ocorra de modo tranquilo, sem ameaças ou violência externa ou interna através das ameaças de castração ou condutas autodestrutivas infligidas por um supereu sádico. Também some toda discussão sobre feminilidade e homossexualidade, derivada do polêmico conceito de bissexualidade, extensamente defendido por Freud desde 1905 nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade.

 

Sublimação: além da religião, uma explicação inédita de Freud

Freud segue a sequência a que se propusera descrever as vicissitudes da libido no Manuscrito inédito: repressão-identificação-sublimação. Ao desenvolver o tema da identificação, Freud o vai transformando no tema da sublimação. Deixa bem claro que há um avanço psicodinâmico e uma maior e melhor forma de satisfação da libido por meio da sublimação. Desse modo mais além da identificação com Cristo, há uma outra via para uma melhor resolução do Édipo do menino. Outra forma de dupla identificação. Em realidade duas formas de dupla identificação. A primeira com o pai, da qual Freud taxativamente afirma ser a “única normal dada pela natureza”, tendo antes escrito que:

Existe ainda outra via para a resolução definitiva do problema paterno do complexo de Édipo, uma via que passa por uma dupla identificação (doppelt Identifizierung). Quando o menino se torna um homem e concebe seu próprio filho, ele identifica esse filho consigo mesmo quando criança e se identifica com seu próprio pai [...] ele dá [ao filho] o amor que uma vez desejou receber do próprio pai (FREUD, 2017, p. 81-83, negrito nosso).

Mas a passividade em relação ao pai também surgiu de uma identificação com a mãe, tema extensamente trabalhado no sonho e na cena primária de O homem dos lobos.

Além da dupla identificação do menino com o seu pai e com seu próprio filho, a outra via será necessária, nesse caso, para elaborar a identificação com a mãe. Identificação que foi reforçada à medida que a mãe for abandonada como objeto sexual. Essa segunda via, por sua vez, irá também dividir-se no Manuscrito inédito por dois caminhos. Pelo primeiro deles, a passividade e a atividade em relação à mãe são transferidas para outras mulheres. Através de deslocamentos, o menino transfere a busca de satisfação da libido a elas, cada vez mais distantes do núcleo familiar, até aquela que será a sua própria companheira. Mas Freud acrescenta que:

Quanto mais semelhança com sua mãe, mais rico será o afluxo de libido [...]. Mas a esse relacionamento materno ainda estão ligados muitos impulsos para discórdia (FREUD, 2017, p. 85).

Pelo segundo caminho, o menino compensa a perda da mãe, reforçando sua identificação com ela. De modo semelhante à dupla identificação com o pai, o menino também se identifica com a mãe, ao mesmo tempo que toma por objeto aquele que ele fora para ela. Complementamos com a observação, na obra de Freud, que esse objeto pode ser reconhecido no lugar de outra criança pertencente à mãe, logo interdito pelo tabu do incesto, por ser objeto de uma corrente terna e não sensual, dicotomia sobre a qual escrevera Freud em 1912, na segunda das três Contribuições para psicologia da vida amorosa. E, no passo seguinte, por meio de uma segunda dupla identificação, já descrita antes do caso de O homem dos lobos e retomada em 1921, no capítulo Identificação, de Psicologia das massas e análise do eu. Contudo, fora descrita pela primeira vez já em 1910, no livro Uma recordação da infância de Leonardo da Vinci, e que Freud repete no Manuscrito inédito:

Ao longo da vida, ele vai dar a outros homens, que se colocam no seu lugar de criança, uma parcela do amor, que como criança ele desejou obter da mãe. [...] a sublimação, consiste, como já mencionamos, na substituição de metas originais da libido, por outras que não encontram oposição por parte do supereu ou da sociedade (FREUD, 2017, p. 83-85).

A dupla identificação com o pai busca satisfazer o Édipo do menino por meio da relação direta pai-filho, que não pode ser uma satisfação sexual direta – genital – e sim uma transformação da libido em desejo de provimento e proteção, tanto diretamente ao filho, quanto através da sua mãe. Desejo de provimento e proteção implica em condutas ativas e práticas em relação ao mundo. Outra forma de dizer que para o menino a atividade deixa de ser a identificação com uma submissão pela força, mas torna-se necessária ao primeiro momento da sublimação, que é o reconhecimento da realidade e suas imposições: limite/lei do pai. E ser objeto do pai não é apenas submeter-se a ele passivamente e de modo masoquista, mas identificar-se com seu conhecimento e sua capacidade de ação sobre o mundo. E, num segundo momento, ser o pai, mais que uma atitude ativa e sádica de impor sua força e vontade aos outros, mas principalmente ativa e amorosa de provê-los a partir do mundo e protegê-los do mundo.

A outra dupla identificação, calcada mais na passividade e na figura materna, pode resultar na homossexualidade idealizada e não fisicamente concretizada que Freud atribui a Leonardo da Vinci. Mas também pode ser mais abrangente e generosa, não é direcionada incestuosamente aos próprios filhos ou à adolescentes idealizados, mas a todos os seres humanos: a sublimação. O Homem dos Lobos em parte solucionou sua neurose. Mas é Leonardo quem continua sendo o modelo de Freud para sublimação. Freud não foi de todo claro no Manuscrito inédito como se daria essa parte da passagem da identificação à sublimação. Contudo, algumas folhas antes, Freud escrevera com sua caligrafia gótica no mesmo texto:

É verdade que, enquanto bebê, ele tem no seio da mãe um objeto, mas ele não pode fazer outra coisa que não seja incluir este objeto no seu eu e tratá-lo como parte de si mesmo (FREUD, 2017, p. 37).

De onde podemos levantar a hipótese da identificação, muito intensa e precoce, com o seio e que permita tê-lo dentro do próprio eu. Para uma criança um pouco maior permitiria que, ao identificar-se com a mãe, já não seria mais apenas na forma de uma passividade masoquista, mas uma possibilidade, a partir de uma boa dose de satisfação de parte da libido, manter em suspensão dentro do eu um excedente de libido, base para um eu estável e seguro, mesmo com os defeitos e a ausência externa do seio e da mãe. Em um segundo passo, ofertar esse seio a outros. No menino, e mesmo na menina em que, quando adulta, a amamentação pode ser concretamente realizada, mas por períodos limitados, essa oferta será ainda mais prazerosa, se em vez de poucos ou muitos filhos, puder ser infinitamente direcionada a todos os seres humanos.

Não foi acaso que a última citação de Freud soou estranhamente kleiniama. Freud escreveu o Manuscrito inédito no mesmo ano de 1931 que o artigo Sexualidade Feminina, texto em que ele cita sua leitura de Melanie Klein e mais três outras psicanalistas mulheres. Texto que se seguirá no ano seguinte com a conferência Feminilidade. O artigo de Klein mencionado por Freud era Fases precoces do complexo de Édipo [Early stages of the Oedipus complex], publicado em 1928. Freud já mencionara Klein em 1930, em um livro escrito e parcialmente já publicado em 1929: O mal-estar na civilização. Por sua vez, ela já também já havia escrito em 1923 Análise precoce [Early analysis], onde discorrera muito sobre o artigo de Freud Uma lembrança da infância de Leonardo da Vinci e sobre a sublimação.3 Há um traçado das influências e confluências entre os temas do Édipo e da sublimação, ambos com uma maior ênfase sobre o feminino e a passividade.

Freud propôs no Manuscrito inédito um mecanismo explicativo dinâmico para a sublimação. A palavra “sublimação” foi usada em 20 textos na tradicional edição completa da Standard, desde os Três ensaios (1905) até o póstumo Esboço de psicanálise (1938 [1940]). Mas sobre qual o mecanismo psíquico para obtê-la, sempre permaneceu a sombra de uma incógnita. Consultados todos os textos da obra freudiana publicada onde ocorre o termo ‘sublimação”, tudo que se encontra são variantes de um comentário meramente descritivo, e não explicativo, como aquele escrito em Uma recordação da infância de Leonardo da Vinci (1910):

O instinto sexual se presta muito bem [...], por ser dotado da capacidade de sublimação, ou seja, pode trocar seu objetivo imediato por outros, possivelmente mais valorizados e não sexuais (FREUD, 2013 [1910], p. 136-137).

No Manuscrito inédito Freud vai além. Transpõe a dinâmica da repressão e da identificação, transformando-os em sublimação, por meio de duas duplas identificações, que possibilitam uma sucessão de deslocamentos, ao início um tanto ao desagrado do menino, porque inicialmente impostos pelas ameaças e a angústia de castração e pela repressão. A posição passiva e a satisfação sexual direta da libido homossexual são substituídas, de modo que não há mais objeções do supereu e da sociedade. Além disso, menino não tem mais que lutar com a identificação embebida em narcisismo e pulsão de morte formadora de um supereu sádico como na relação entre filho/Cristo e pai/Deus. No Manuscrito inédito, Freud também adverte do que este modo de identificação exorbitante, caso não seja atenuada a angústia de castração, pode produzir.

Ficamos sabendo que na imaginação de toda criança, o tamanho e o poder do pai são exagerados, porém, em alguns casos, esse exagero é tão monstruoso que o pai, com o qual a criança se identifica e a partir do qual ela forma seu supereu, coincide com o próprio todo-poderoso Deus-pai (FREUD, 2017, p. 65).

Contudo, se a pulsão, agora depurada dessas características terríveis e prenhes de narcisismo, for transformada pelas duplas identificações e sublimada, será a fonte de pulsão sexual para a arte e a ciência. Mas Freud irá além. A libido sublimada não apenas cria produtos para a sociedade, mas a própria sociedade, ela mesma.

Já no Caso Schreber (1911), Freud havia descrito a ponte entre homossexualidade, sublimação e laços sociais, tema retomado em Psicologia das massas e análise do eu (1921). No Manuscrito inédito novamente ele apresenta essa sua tese. Além disso, resume outra, muito aprofundada em Schreber, sobre a origem da paranoia a partir da homossexualidade (parágrafos também suprimidos por Bullitt).

No Caso Schreber, Freud escrevera que, após ser alcançada uma escolha objetal heterossexual, a libido homossexual que sobra da bissexualidade, por meio de um apoio (anáclise), será combinada com porções das pulsões do eu, construindo as pulsões sociais e

[...] assim contribuindo para um componente erótico para a amizade e o companheirismo, para o esprit de corps e ao amor da humanidade em geral (FREUD, [1911] 1978, p. 61, tradução nossa).

Dois anos depois, em Totem e tabu (1913), Freud também postularia a hipótese de que o aumento da libido homossexual foi determinante para a união entre os irmãos. Só assim foi possível o aniquilamento do pai primevo. Os temas do assassinato do pai primevo, da identificação do cristão com Cristo e de que “[...] parece seguro que o amor homossexual é bem mais compatível com laços de grupo, mesmo quando aparece como impulso não inibido [...]” (FREUD, 2011, p. 110), são retomados em vários trechos de Psicologia das massas e análise de grupo. Mas ainda não com tanta radicalidade como em 1931.

No Manuscrito inédito, após descrever as duplas identificações e sua relação com a sublimação, Freud retoma o tema da origem das pulsões sociais ou, utilizando um termo mais recente, dos laços sociais. É quando, num raro momento da obra freudiana, surpreendente para quem dois anos antes havia escrito num tom tão pessimista O mal-estar na civilização, no Manuscrito inédito surge um tom de otimismo sobre o destino dos laços sociais:

Caso os homens não desenvolvessem nada além da atividade, e as mulheres nada além da passividade, a espécie humana teria se extinguido há muito antes do alvorecer dos tempos históricos, pois os homens teriam se exterminado mutuamente. É a homossexualidade, não em sua forma manifesta, mas em suas sublimações, que garante a continuidade da comunidade humana e que talvez consiga um dia unificar todas as raças da humanidade em uma grande fraternidade (FREUD, 2017, p. 87).

É claro que toda essa continuação do texto de Freud sobre a sublimação e laços sociais no Manuscrito inédito também foi censurada por Bullitt.

 

Primeira conclusão: Freud, o feminino e a censura de Bullitt

Foi mencionado acima o fato de que O manuscrito inédito de 1931 data do mesmo ano em que Freud escreveu e publicou Sexualidade feminina que, no ano seguinte, foi seguido pela conferência Feminilidade. Nesse outro texto do ano de 1931, Freud revela que havia lido Jeanne Lampl-de Groot, Helene Deutsch, Karen Horney e Melanie Klein. Todas eram psicanalistas que divergiam de suas opiniões sobre o Édipo na menina e a equação entre feminino e passividade. A discussão sobre passividade e atividade e sua combinatória com diferentes escolhas objetais constituiu um dos pontos no Manuscrito inédito onde Freud foi um tanto além do que até então deveria ter sido quase uma apostila didática. E que também o levará em 1932 a deixar de lado a ideia de que, por levar à atividade, a libido seria sempre masculina e a escrever em Femilidade que:

Existe apenas uma libido, que tanto serve às funções sexuais masculinas, como às femininas. À libido como tal não podemos atribuir nenhum sexo (FREUD, [1932] 1996, p. 130).

A modificação sobre a importância do feminino encontra-se também no Manuscrito de 1931 como um dos pontos-chave, que culmina no ápice do texto, quando então propõe ideias inéditas de uma psicanálise do cristianismo e de uma psicodinâmica da sublimação. Inéditas tanto nas considerações sobre o feminino na identificação e sua função na psicologia do cristianismo e da figura de Cristo, quanto no desenvolvimento da tese da dupla identificação como básica à sublimação.

Na descrição da sequência repressão-identificação-sublimação, há um aperfeiçoamento de um mesmo mecanismo básico. Freud escreve que este se transforma de sua forma menos eficiente – a da repressão, indo em direção ao melhor de todos, tanto em termos psicodinâmicos como de produto de sintoma: a sublimação.

Ao descrever simultaneamente identificação e religião, as funções psicológicas do cristianismo e da figura de Cristo como resultantes do conflito edípico, Freud as coloca como transições em direção à sublimação e ao conhecimento. Freud não repete sua longa lista de diatribes antirreligiosas espalhadas por uma multidão de textos e cartas. Essa crítica seria desnecessária no capítulo inicial, porque todos os 34 capítulos seguintes teriam por fulcro mostrar que a grave neurose religiosa de Wilson como o sintoma que o impediu de ser um líder eficaz, justo e, muito mais do que isso, humano. O próprio Wilson seria o exemplo acabado dos riscos da religião, tanto psicologicamente a um indivíduo, quanto coletivamente quando ele está em posição de poder.

Contudo, no Manuscrito inédito, fica claro, além da passagem da identificação à sublimação, que, na primeira, o menino só possui uma dupla identificação com o pai, enquanto que na segunda com ambos os genitores. Ao descrever a dupla identificação com o pai, Freud utiliza em um dos extremos as palavras “passivo” e “submisso” e no outro “ativo” e “dominador”. A palavra “masoquismo” aparece ao início do texto, mas seu par complementar – “sadismo” – nenhuma vez. Ficou a um passo da discussão sobre a origem do masoquismo e do sadismo, que foi feita em tantos de seus textos. E se usasse esses rótulos, teria de mencionar o que Bullitt não aceitava: a pulsão de morte. Assim também ficaria bem mais claro que o percurso em direção à complementaridade, dada por uma resolução mais equilibrada do Édipo, teria de englobar a bissexualidade, a passividade e a importância do feminino, que nos cânones dos grandes monoteísmos sempre foi a origem do mal.

A análise das frases e dos parágrafos suprimidos por Bullitt permite uma conclusão muito simples. Todas as censuras foram feitas de acordo com conceitos religiosos de superioridade do masculino, no qual características femininas seriam denegridoras de um modelo de uma absoluta separação do que é suposto como masculino e feminino e da proibição de sexualidades não de acordo com cânones bíblicos como pecaminosas. Consciente ou inconscientemente, Bullitt percebeu que as páginas de Freud iam, além de um estudo psicológico contra o presidente Wilson e seu fundamentalismo religioso, contra crenças e comportamentos arraigados da religião cristã. Subscrevemos o parecer do psicanalista Luis Carlos Menezes, autor do Posfácio à edição brasileira do Manuscrito inédito:

A homossexualidade passiva e ilimitadamente submissa de Jesus ao Pai, como em Wilson, encontra-se no centro da reflexão de Freud neste manuscrito, levando-o à afirmação de que “Cristo é justamente a conciliação mais perfeita da masculinidade e feminilidade” (p. 81) (desnecessário dizer que Bullitt cuidou para que nada disso constasse no escrito de Freud na publicação de 1966). (MENEZES, in FREUD, 2017, p. 116)

 

Conclusão: apesar de tudo....

Freud e Bullitt inicialmente não se deram conta da enormidade de diferença entre suas visões de mundo. Unidos por amizade pessoal e desgosto profundo com a figura de Woodrow Wilson, inocentemente acharam que isso seria o suficiente para trabalharem juntos. Freud possuía antiga amizade com Pfister, um pastor protestante, que durou até o final de sua vida. Mas lida a correspondência entre ambos, vê-se que nenhum deles deixou suas crenças em favor do outro. Muito menos se propuseram a um trabalho extenso conjunto.

Que a amizade entre Bullitt e Freud perdurou testemunha o esforço do americano de socorrer o patriarca judeu, sua família e alguns agregados em 1938. Mesmo que se considere, como Mark Solms, pouco ético o pedido de Bullitt para publicar o livro em momento tão dramático para Freud. Ainda menos ética, se de fato ocorreram contra a vontade, ou com o desconhecimento de Freud, as supressões e as censuras ao texto original do Manuscrito inédito.

Hoje, qualquer texto original de Freud parece sagrado. Opinião a qual provavelmente Freud acharia um tanto engraçada. Freud chegou a Londres em 6 de junho de 1938 e, no dia 18 de junho, escreveu a Bullitt:

Agora que estou aqui sentado, em tranquilidade, paz e beleza, depois de todas as experiências dos últimos meses, sinto-me obrigado mais uma vez a agradecer pela parte que você teve na minha própria liberação e dos membros de minha família. Não posso avaliar com precisão esta parte, porque tudo ocorreu pelos bastidores, mas foi provavelmente muito poderosa. E se houve, além de você, mais alguém nesta tarefa, sobre a qual oficialmente eu nada saiba, eu lhe peço, quando ocorrer a ocasião, que expresse meus agradecimentos. Espero que algum dia eu possa fazer você vir e lhe dar boas-vindas em Londres (FREUD apud SOLMS, 2006, p. 1279, tradução nossa).

Como foi descrito por Bullitt, numa citação sua mais acima, o desejo de Freud foi atendido. Não foi pesquisado ainda se esta última visita ocorreu já em 1938 ou em 1939.

 

Referências

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FREUD, S. A questão da análise leiga. Conversas com uma pessoa imparcial. In: ______. Fundamentos da clínica psicanalítica. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. p. 205-311.         [ Links ]

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Endereço para correspondência
E-mail: anchyses@terra.com.br
Página: http://www.anchyses.pro.br

Recebido em: 20/11/2018
Aprovado em: 28/11/2018

 

 

SOBRE O AUTOR

Anchyses Jobim Lopes
Médico e Bacharel em filosofia pela UFRJ, Mestre em medicina (psiquiatria) e em Filosofia pela UFRJ, Doutor em filosofia pela UFRJ, Psicanalista e Membro Efetivo do Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro (CBP-RJ), Professor do curso de formação psicanalítica do Centro de Estudos Antonio Franco Ribeiro da Silva do CBP-RJ, Supervisor clínico do Centro de Atendimento Psicanalítico (CAP) do CBP-RJ, Coordenador do Grupo de Trabalho Sobre Neo e Transexualidades (GTNTrans) do CBP-RJ.
Um dos editores da revista Estudos de Psicanálise, do CBP. Presidente do CBP-RJ 2000-2004, 2008-2012 e 2014-2018. Presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP), 2004-2006 e 2017-2019. Ex-professor assistente do quadro principal do Departamento de Psicologia da PUC-RJ e adjunto da Faculdade de Educação da UCP. Professor titular III dos cursos de graduação em psicologia e de especialização em teoria e clínica psicanalítica da UNESA.

 

 

1 Seguimos a tradução feita na edição do Manuscrito Inédito publicada no Brasil. Em alemão o termo é Verdrandung.
2 O itálico é da tradutora. No original alemão Freud sublinhou o texto.
3 Embora não citado diretamente por Freud, o artigo de Klein, de 1923, havia sido publicado na Imago, à época um dos dois únicos periódicos de psicanálise em alemão, dos quais Freud era editor ou coeditor e é mais que provável que ele lesse todos os artigos.

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