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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.50 Belo Horizonte jul./dez. 2018

 

ARTIGO

 

Bem vindo à ideologia do medo1

 

Welcome to the ideology of fear

 

 

Audrey Gonçalves de Castro

I Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Os sujeitos contemporâneos, passando por numerosas tentativas de obter garantias de felicidade e proteção contra o sofrimento, são submetidos a uma poderosa ideologia ocidental, incorporada na linguagem daqueles que detêm o poder: a ideologia do medo. A criação artificial de uma atmosfera de medo é vivenciada diariamente, e a linguagem do medo tornou-se uma arma de dominação e controle político de nossa sociedade, não apenas como construção social, mas também ideológica. Trata-se de criar e manter raízes sociais de desconfiança e conflito com o Outro, onde esse Outro é culpado pelo que aconteceu ou que pode acontecer. Essa ideologia, inserida na sociedade como proteção contra o sofrimento humano, está intimamente ligada à mídia contemporânea, que mostra uma possibilidade ‘terrível’ de se ter um ‘vizinho’ que pode nos trazer sérios ‘desprazeres’. As estratégias ideológicas de contenção e erradicação de um possível ‘usurpador’ de nossa felicidade incluem a luta constante contra uma ‘sombra virtual’ ameaçadora, através de discursos e iniciativas políticas, que incluem medidas especificamente concebidas para combater essa ‘rede de Outros’. Por fim, percebemos que nossa existência sempre exigiu a sensação de um roubo de nossa sociedade por um Outro histórico. Os eleitos oficialmente pela ideologia do poder fazem crer inatingível o funcionamento real de nossa sociedade diante desse Outro, o que nos faz sentir mais confortáveis, pois assim podemos continuar acreditando que não somos responsáveis por suas impossibilidades.

Palavras-chave: Ideologia, Medo, Felicidade, Terrorismo, Sociedade.


ABSTRACT

Contemporary subjects, undergoing numerous attempts to obtain guarantees of happiness and protection against suffering, are submitted to a powerful Western ideology, embodied in the language of those who hold the Power: the ideology of fear. The artificial creation of an atmosphere of fear is experienced on a daily basis and the language of fear has become a weapon of political domination and control of our society, not only as a social construction, but also as an ideological one. It’s about creating and maintaining social roots of distrust and conflict with the “Other”, where this “Other” is blamed for what has happened, or what may happen. This ideology, transposed with protection against human suffering, is closely linked to the contemporary media, which shows a “terrible” possibility of having a neighbor who brings us serious “displeasure”. The ideological strategies of containment and eradication of a possible “usurper” of our happiness include a constant struggle against a threatening “virtual shadow” through discourses and political initiatives, which include specifically designed measures to combat this “network of Others”. In the end, we realize that our existence has always required the sensation of a robbery of our society by a historical “Other”. Those officially elected by the ideology of power are supposed to make unachievable a real functioning of our society with the presence of this “Other”, which makes us feel more comfortable, as we can continue believing that we are not responsible for its impossibilities.

Keywords: Ideology, Fear, Happiness, Terrorism, Society.


 

1 O propósito da vida

Na mitologia grega clássica, Fobos, o deus do medo, é a personificação do temor trazido pela guerra. Filho de Ares e Afrodite e irmão gêmeo de Deimos, Fobos simbolizava o medo e acompanhava Ares nos campos de batalha, onde injetava a covardia e o pânico no coração dos inimigos, fazendo-os fugir. Fobos, então, era um deus protetor, que defendia quem se amparava nele, causando terror nos que dele se aproximavam. Daí o termo “fobia”: medo a um objeto específico.

Assim, nos campos de batalha mitológicos, Fobos era o objeto fobígeno que simbolizava os medos decorrentes da guerra. Entretanto, esse objeto era diferente daquele ao qual correspondiam as reais angústias dos guerreiros, tal qual ocorre na fobia.

É sabido que as experiências, a história de vida, os traumas, os sintomas, além dos medos e das angústias vivenciados pelo sujeito, são determinantes no modo pelo qual eles são inseridos em determinado contexto cultural e histórico, sendo decisivos em sua meta de vida dentro daquela sociedade.

Em seu trabalho O mal-estar na civilização, Freud ([1930] 2010) indaga sobre o que revela a conduta dos homens acerca da finalidade e da intenção da vida deles, especulando o que pedem e desejam alcançar.

Para ele,

[...] é difícil não acertar a resposta: eles buscam a felicidade, querem se tornar e permanecer felizes (FREUD, [1930] 2010, p. 29).

Como consequência dos objetivos que regem as atividades humanas, diz Freud ([1930] 2010, p. 30) que o que estabelece a finalidade da vida é o programa do princípio de prazer. Esse princípio comanda o funcionamento do aparelho psíquico desde o início da vida humana e estará sempre em conflito com o mundo externo.

Para Freud, o propósito de que o homem seja feliz não faz parte do plano da criação. Assim, toda permanência de uma situação ligada ao princípio de prazer fornece apenas uma sensação tépida de bem-estar. Dessa forma, nossas possibilidades de felicidade são limitadas pela nossa própria constituição, e os obstáculos para experimentá-la são inúmeros.

Por isso, ele conclui que

É bem menos difícil experimentar a infelicidade. O sofrer nos ameaça a partir de três lados: do próprio corpo, que, fadado ao declínio e à dissolução, não pode sequer dispensar a dor e o medo como sinais de advertência; do mundo externo, que pode se abater sobre nós com forças poderosíssimas, inexoráveis, destruidoras; e, por fim, das relações com os outros seres humanos (FREUD, [1930] 2010, p. 30).

Sob a pressão dessas possibilidades de sofrimento, não espanta a Freud que os seres humanos costumem moderar suas pretensões e reivindicações quanto à felicidade, que já se consideram felizes simplesmente por terem escapado a infelicidades e resistido a sofrimentos. Assim, de um modo geral, a tarefa de evitar o sofrimento passa a ser um primeiro plano, deslocando-se a obtenção de prazer para um segundo plano.

 

2 A ideologia do medo

Os sujeitos contemporâneos, empreendendo inúmeras tentativas de obter garantias de felicidade e proteção contra o sofrimento, se encontram submetidos a uma poderosa ideologia ocidental, materializada pela linguagem dos que detêm o poder: a ideologia do medo.

A criação artificial de uma atmosfera de medo é vivenciada cotidianamente, obrigando o sujeito a tentar se proteger contra diversos contextos sociais. Por exemplo, após um desastre natural, político ou econômico, dá-se lugar a uma ansiedade coletiva, onde as pessoas passam a ter extremo medo dos riscos e das ameaças relativas a esse evento ‘fóbico’. A necessidade de proteção contra essa catástrofe torna-se um sentimento generalizado.

Assim, a linguagem do medo se transformou em uma arma de dominação política e de controle da sociedade, como uma construção não só social mas também ideológica. Trata-se do enraizamento de uma desconfiança e de um conflito com o ‘outro’, em que é atribuído a esse ‘outro’ a culpa pelo que aconteceu ou que pode acontecer. Isso gera, portanto, uma necessidade de proteção.

Percebemos que essa ideologia, travestida de proteção contra o sofrimento humano, é estreitamente ligada aos meios de comunicação contemporâneos, que são transmitidos instantaneamente através da internet e da televisão.

O medo do ‘outro’ está cada vez mais expresso em termos da terrível possibilidade de ele se tornar um ‘vizinho’ e nos trazer graves ‘desprazeres’. É no contexto do medo e da ansiedade que emergem de todos os cantos do planeta temores culturais de sujeitos que abrigam o potencial de se tornarem intrusos em nosso modo de vida ‘feliz’.

Dessa maneira, as estratégias ideológicas de contenção e erradicação do ‘outro usurpador’ incluem uma constante luta contra uma ameaçadora ‘sombra virtual’, através de discursos e iniciativas políticas, de medidas de combate especificamente projetadas para combater essa rede de ‘outros’.

Ao se exercer um olhar mais crítico nas estratégias americanas de ‘afastamento dos demais’ que, inicialmente, incluem o amor, a parentalidade e o envolvimento da comunidade, consegue-se perceber a radicalidade desse ‘recurso imaginário’ que discrimina e segrega. Lembremos, por exemplo, dos discursos do então candidato à presidência dos Estados Unidos, Donald Trump, que se elegeu com subterfúgios para se detectar, apreender e erradicar o ‘outro invasor’, e agora as vêm colocando em prática. Sua eleição foi a clara demonstração de como, através de um discurso ideológico, uma fantasia cultural global é produzida e reproduzida pelo poder.

Nesse contexto, lembremos dos dizeres de Freud ([1930] 2010, p. 30), quando concluiu que

[...] o deliberado isolamento, o afastamento dos demais é a salvaguarda mais disponível contra o sofrimento que pode resultar das relações humanas.

Ousemos apontar, então, que o pensamento freudiano no sentido do afastamento dos demais vem sendo utilizado na atualidade em prol de uma disfarçada garantia de felicidade que, de fato, encobre o discurso ideológico sobre o medo das relações humanas, que se torna cada vez maior e mais paralisante.

 

3 Os medos atuais e os meios de comunicação

E quais são alguns dos medos contemporâneos? Hoje temos novos medos, sem quaisquer precedentes. Aos medos tradicionais de uma doença, da morte, do inferno, da guerra, da velhice, da fome, dos desastres naturais, foram adicionados medos inéditos ao vasto rol de nosso imaginário, seja o receio de um novo poder, os ‘fantasmas’ de ficar sem trabalho ou de termos nosso poder de compra reduzido, seja o medo dos atos de terrorismo, o temor dos imigrantes, etc.

Ao contrário dos usurpadores anteriores do poder, dos inimigos de outrora, essas novas estruturas “fóbicas” contemporâneas não têm rosto nem identidade. Talvez sejam poderes menos ostensivos, mas pensemos como são penetrantes, poderosos e crescentes. São medos que desejam imobilizar o sujeito, que vão de encontro às moderações subjetivas de pretensão à felicidade, como já dizia Freud. Em outras palavras, o modelo freudiano de pensamento pode, hoje em dia, ser utilizado ideologicamente da seguinte maneira: se eu estiver protegido do “outro invasor”, já posso me considerar feliz.

Vejamos como as discussões políticas atuais, muitas das vezes, apenas exploram quais riscos devem nos preocupar mais. Temos atores políticos em uma simbiose perfeita com a mídia de massa, uma vez que assustar as pessoas, sem dúvida, é o que vende mais jornais, atrai mais pessoas para telas de TV e para os sites da internet.

Quanto medo nos aflige! Tememos as mudanças climáticas provocadas pelo aquecimento global, pois os furacões podem se tornar mais violentos, os deslizamentos mais frequentes, as inundações mais destrutivas. No reino das possibilidades em nosso imaginário, todas as catástrofes estão dentro do nosso alcance, sejam as ecológicas, sejam as causadas por uma bactéria mortal contida dentro de um simples envelope. Lembremos novamente de Freud, ao trazer o mundo externo como uma possibilidade inexorável de destruição.

Por outro lado, somos bombardeados ideologicamente não só com informações sobre vírus e bactérias mortalmente perigosos, ataques terroristas e desastres ecológicos, mas também com professores pedófilos, adolescentes suicidas e alimentos que matam aos poucos. É tentador dizer que os meios de comunicação desempenham um papel tão importante na ideologia do medo que um perigo, ou uma catástrofe, se torna realidade apenas quando recebe a cobertura da imprensa ou o interesse do internauta.

 

4 A comunicação do medo

É fácil sermos ideologicamente levados a não refletir sobre uma situação nos apresentada e, simplesmente, acreditar no que o poder dominante nos ‘ensina’ como sendo a realidade. Como esse poder pode interferir em nosso imaginário nos faz ir novamente ao encontro da atualidade dos dizeres de Freud sobre os aspectos do sofrimento inerente ao ser humano, que pode atualmente ser utilizado ideologicamente para que se tema cada vez mais o estabelecimento de relações com os outros seres humanos.

Isso é bem ilustrado no filme de M. Night Shyamalan The Village, de 2004. Os habitantes de uma aldeia vivem como colonos americanos no século XIX. A aldeia é uma espécie de sociedade fechada, onde há monstros assustadores vivendo na floresta, o que aterroriza os habitantes que desejam deixá-la. No decorrer do filme, percebemos que os moradores não estão vivendo no século XIX, mas na atualidade, e que os anciões dessa aldeia, que haviam sido vítimas de crimes violentos, criaram sua própria sociedade a qual possui um número substancial de regras. Tais regras são baseadas em uma moralidade conscientemente construída. Também percebemos que os monstros assustadores da floresta são ilusões, criadas pelos anciões, a fim de manter os jovens no interior da aldeia. A ideia de algo aterrorizante ‘lá fora’ mantém aquela sociedade unida. Assim, o medo tem um efeito incrível na integração do grupo, o qual, ao mesmo tempo promove animosidades em relação a outros grupos.

The Village nos faz analisar a sociedade e a política contemporâneas. O fardo é que se deve obedecer às regras da aldeia, uma vez que só elas podem garantir a segurança dos habitantes. As regras, no entanto, possuem um efeito de isolamento. A manutenção da aldeia como uma unidade compacta é a ‘suposta’ segurança de seus habitantes, mas o preço pago por essa segurança é a limitação da liberdade e uma vida baseada em um medo paralisante.

A situação política no mundo de hoje nos é apresentada para despertar em nós uma quantidade máxima de medo, pois assistimos diariamente a imagens de uma violência tamanha que irá destruir toda a nossa civilização, caso medidas políticas firmes não sejam tomadas. De maneira ideológica, percebemos que o medo político é usado como uma ferramenta para o controle social.

 

5 O ‘Outro’ invasor

A territorialização também é produtiva de ‘traços relacionais’. Pensemos no exemplo do amigo, que se define como tal tão somente baseado numa territorialização, da qual emerge uma afetividade. A territorialização é útil para aprofundar a compreensão do processo de tornar-se próximo através das relações que os sujeitos territorializados têm em determinada sociedade, bem como para se entender o processo de ‘coisificação’ do ‘outro’, como um intruso, um aniquilador da felicidade.

A teoria da violência do filósofo e psicanalista Slavoj Zizek (2014) demonstra como um sujeito fantasiado pode ser construído a partir de um sistema montado de fatos, dados e informações. Esse sujeito ‘territorializado’ procura pelos agentes da violência subjetiva (aparente) e, embora fantasie que a verdade está no sistema em algum lugar, suportada por um agente subjetivo final, ela é, na realidade, difundida em um campo montado de informações que, por ser invisível, escapa ao nosso olhar.

Um bom exemplo é a obsessão pós 11 de setembro por encontrar Osama bin Laden e os sequestradores de aviões. O foco sobre quem exerceu o ato terrorista obscureceu a compreensão histórica sobre a violência sustentada contra o Oriente Médio, ou seja, sobre a própria história que inspirou as frustrações dos agentes terroristas, antes de exercerem qualquer ato violento.

Estamos dentro do espaço ideológico propriamente dito no momento em que esse conteúdo – ‘verdadeiro’ ou ‘falso’ (se verdadeiro, tanto melhor para o efeito ideológico) – é funcional com respeito a alguma relação de dominação social (‘poder’, ‘exploração’) de maneira intrinsecamente não transparente: para ser eficaz, a lógica de legitimação da relação de dominação tem que permanecer oculta. Em outras palavras, o ponto de partida da crítica da ideologia do medo tem que ser o pleno reconhecimento do fato de que “[...] é muito fácil mentir sob o disfarce da verdade” (ZIZEK, 2003a. p. 75).

Como vimos, vivenciamos uma política ocidental que releva o medo ao seu supremo princípio mobilizador, o medo do ‘outro’. O sujeito que teme algo, normalmente, tenta evitar o que ele acredita que está lhe ameaçando, ou seja, a ação para o medo é se criar a maior distância possível do objeto temido, para se encontrar fora da faixa de perigo. Assim, cria-se uma barreira entre si e esse ‘outro’, como uma forma de proteção e sobrevivência e é dessa maneira, por exemplo, que percebemos o funcionamento do medo de imigrantes e as barreiras que lhe são impostas na atualidade.

Para Zizek (2014, p. 58),

[...] uma vez que o Próximo é originariamente (como Freud suspeitou há muito tempo) uma coisa, um intruso traumático, alguém cujo modo de vida diferente (ou, antes, cujo modo de jouissance diferente, materializado em suas práticas e ritos sociais) nos perturba, abala o equilíbrio dos trilhos sobre os quais nossa vida corre, quando chega perto demais, esse fato também pode dar origem a uma reação agressiva, visando afastar o intruso incômodo.

Exemplifiquemos a jouissance no sentimento de nacionalismo como uma fantasia ideológica. Nesse contexto, uma comunidade organiza os seus enjoyments [divertimentos] e crenças instalando o discurso da ideia de uma Nação que é única, integrada, mas ameaçada por um “Outro” externo e perseguidor. Esse ‘Outro’ ameaça roubar o enjoyment dessa Nação, por exemplo, arruinando o seu modo de vida, suas práticas quotidianas. Esse ‘Outro’ também pode possuir um ‘gozo’ excessivo, que pode vir a oprimir os sujeitos dessa Nação (ZIZEK, 1996).

 

6. Conclusão

Zizek (2003b, p. 21) entende que o jouissance é ditado pelo meio social. Assim,

[...] a situação tradicional do sujeito burguês liberal, que recalca, por meio de sua ‘lei interna’, seus impulsos inconscientes, que tenta dominar, por meio do autodomínio, sua própria ‘espontaneidade’ pulsional, sofre uma inversão, na medida em que a instância do controle social não mais assume a forma de uma lei ou de uma proibição interna que exige a renúncia, o autodomínio, etc, mas antes, assume a forma de uma instância “hipnótica”, que inflige uma atitude de “se deixar levar pela correnteza”, e cuja ordem se reduz a um “Goza!.

Estamos inseridos em uma sociedade supostamente permissiva que, por ‘trás dos panos’, nos dita a todo momento como deve ser a nossa forma de prazer. Acreditamos ser livres, e, por isso, não podemos permitir que o ‘outro’ destrua a nossa liberdade. Não percebemos que, em nossa sociedade de jouissance, nossas ‘liberdades e permissões’ são somente máscaras para as nossas verdadeiras submissões aos medos que nos são impostos ideologicamente.

Passamos a acreditar que não conseguimos ser ‘felizes’ porque o imigrante quer roubar o nosso emprego e nosso modo de vida, porque o muçulmano, sinônimo de terrorista, nos espera no metrô, porque o homossexual ‘invade’ nosso ambiente, como um corpo estranho que perturba as nossas certezas, porque o refugiado pode se instalar em nosso quintal, como uma metástase cancerosa, a princípio pedindo abrigo e depois exigindo um reconhecimento de cidadão.

Imigrantes, terroristas, muçulmanos, negros, refugiados, latinos, homossexuais... quantos ‘Outros’ nos causando tanto medo! Como vimos, eles são os responsáveis contemporâneos eleitos, culpados pela impossibilidade de um encontro verdadeiro e um funcionamento de fato da sociedade. Trazendo novamente O mal-estar na civilização, de Freud, para os dias atuais, diante de tantas possibilidades de sofrimento, podemos tranquilamente “moderar nossas pretensões à felicidade”, providenciando o afastamento do “outro intruso”.

De fato, enquanto ‘eles’ existirem para nos causar tanto medo, teremos sempre um lugar onde depositar a responsabilidade por todos os nossos incômodos.

Concluímos, então, que nossa existência pressupõe uma sensação de roubo da nossa sociedade por um Outro histórico. Essa é a justificativa ideológica crucial que encontramos para nós mesmos na tentativa de mascarar o fato de que uma sociedade funcionante é, de fato, impraticável.

Para tanto, precisamos eleger o nosso objeto fobígeno contemporâneo, trazendo para nossa vida o deus grego Fobos, cuja função é se posicionar frente ao ‘Outro’, enquanto vamos acreditando que este ‘Outro’ é o causador da nossa angústia, o invasor de nosso modo de vida ‘feliz’. Em outras palavras, é com o amparo de Fobos que encontramos uma eficiente estratégia de proteção inconsciente para não nos depararmos com nossas próprias angústias, as quais se encontram, verdadeiramente, não no ‘Outro’, mas sim em nossa condição de sujeitos imersos nos inerentes desencontros da sociedade, cuja funcionalidade é, como se vê, impossível de se obter.

Compramos o ingresso para o pertencimento a uma sociedade, mas acabamos por descobrir que habitamos o deserto da sua impossibilidade fundamental. A imagem do sujeito que tinha como intenção de vida ser regido e protegido pelos direitos de uma coletividade que lhe traria garantias a um mínimo de felicidade se mostra, de fato, a miragem de um deserto árido, onde é bem-vindo o medo e a angústia, intermináveis, e onde não é possível se aplacar nem um gole da sede ancestral daquele que um dia optou por abrir mão do caos pulsional que o constituía pela suposta ordem social que o ampararia.

 

Referências

A VILA. Direção de M. Night Shyamalan. United States of America: Buena Vista Home Entertainment. Manaus, AM: Videolar, 2004. 1 DVD (108 min), son., color. Tradução de The Village.         [ Links ]

FREUD, S. O mal-estar na civilização. In: ______. O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 13-122. (Obras completas, 18).         [ Links ]

WINDHOLZ, D. Ideologia do medo e demonização do outro semeiam o ódio entre judeus e palestinos. Entrevista concedida a Sul 21. [S. l.]: Sul 21, 30 nov. 2015.         [ Links ]

ZIZEK, S. Bem-vindo ao deserto do real! Cinco ensaios sobre o 11 de setembro e datas relacionadas. São Paulo: Boitempo, 2003a.         [ Links ]

ZIZEK, S. Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2003b.         [ Links ]

ZIZEK, S. The sublime object of ideology. New York: Verso, 1996.         [ Links ]

ZIZEK, S. Violência: seis reflexões laterais. São Paulo: Boitempo, 2014.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: audreydecastro@me.com

Recebido em: 19/11/2018
Aprovado em: 10/12/2018

 

 

SOBRE A AUTORA

Audrey Gonçalves de Castro
Advogada.
Candidata em formação no Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (2º tempo).

 

 

1 Trabalho apresentado no XX Forum da International Federation of Psychoanalyic Societies - New Faces of Fear - Ongoing Transformations in Our Society, Florença, Itália, Convitto della Calza, 17-20 out. 2018.

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