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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.50 Belo Horizonte jul./dez. 2018

 

ARTIGO

 

Humanidades, arte e saúde

 

Humanities, art and health

 

 

Déborah Pimentel

I Universidade Tiradentes
II Universidade Federal de Sergipe

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Reflexões críticas sobre o modelo atual da graduação de médicos e psicólogos e o papel da arte na formação humanística dos profissionais de saúde inclusive dos psicanalistas. De um lado, o paciente, autor da sua própria biografia e, portanto, de arte genuína, história e vida; e do outro, o profissional de saúde, com formação humanística, na condição de observador e intérprete. Ambos necessariamente interagem diante da obra.

Palavras-chave: Humanidades, Arte, Saúde, Psicanálise.


ABSTRACT

Critical reflections on the current graduation model of physicians and psychologists and the role of art in the humanistic training of health professionals, including psychoanalysts. On one hand, the patient, author of his own biography and therefore of his genuine art, history and life; and on the other hand, the health professional, with humanistic training, as observer and interpreter. Both necessarily interact in front of that work of art.

Keywords: Humanities, Art, Health, Psychoanalysis.


 

Uma das minhas metas como psicanalista e professora de ética médica é criar possibilidades para que os profissionais de saúde se humanizem e exerçam o seu oficio com empatia e compaixão.

A arte indubitavelmente desperta essas questões. Todas as expressões da arte, dentro de suas peculiaridades, promovem um novo olhar sobre o ser humano, sua subjetividade e sobre a pessoa que sofre, adoece e morre, mas que, antes de ser portadora de uma doença, é autora de sua própria biografia, rica de sonhos, projetos e desejos realizados ou não. Através da arte é possível compreendermos um pouco as nuances da alma e das dores dos nossos pacientes.

O saber em saúde advém da clínica, ou seja, do conhecimento da realidade do paciente, frente a uma boa entrevista, envolvendo não só aspectos estritamente biológicos, como também, e principalmente, os biográficos.

Realmente acredito que a arte e a literatura enquanto experiências sensoriais podem despertar sensibilidade, sem, no entanto, o profissional abdicar dos seus conhecimentos científicos dando um valor humanístico às suas observações clínicas, tal qual ocorre com um artista que usa a realidade como matéria-prima.

Podemos afiançar que os grandes artistas, são grandes psicólogos, por essência. E com essa convicção deveríamos aprender com eles. Temos que estimular práticas de saúde centradas no sujeito, e eu entendo isso como saber humanístico, aquele que mora na filosofia, na literatura, na arte, sem desmerecer a etiologia dos problemas, quer físicos, quer psíquicos.

Com o avanço científico e tecnológico, principalmente a partir do século XX, houve uma reorganização do saber médico que, paulatinamente, foi desconsiderando as fontes de saber humanístico. E entramos em uma era de desumanização e de práticas de saúde que geram desconforto e distanciamento na relação entre profissionais e pacientes. A saúde transformou-se em mercadoria.

Mas como fazer o resgate de práticas humanizadas, senão investindo na própria formação médica? E como isso é possível? Dentro desse bojo valorizamos o papel da própria história, da filosofia, da literatura, da poesia, do cordel, do teatro, das pinturas e das esculturas, para uma evolução das práticas de saúde.

Esses conhecimentos humanísticos tornam o profissional mais sensível e, por conseguinte, mais habilitado a entender a alma humana e, assim, respeitar o sujeito que sofre e pede ajuda, como o autor da própria história, considerando a sua realidade e a sua dor, percebidas dentro de um contexto sociobiopsicológico e espiritual e com uma subjetividade particular e única, tal qual uma obra de arte.

As obras de arte precisam ser vistas, analisadas, sentidas empaticamente e interpretadas. Elas expressam ações, fatos, histórias e dão um sentido à existência ou à morte.

De um lado, o paciente, autor da sua própria biografia e, portanto, de arte genuína, história e vida; e do outro, o profissional de saúde, com formação humanística, na condição de ‘observa-dor’. Ambos necessariamente interagem diante da obra.

Com base nessas premissas, tenho oferecido aos meus alunos de medicina uma experiência diferente e temos discutido arte, promovendo sessões em que eles buscam obras e as interpretam, desenvolvendo uma sensibilidade que pode ser transmitida e percebida contratransferencialmente na relação com os seus futuros pacientes. Creio que a formação humanística implica estudos de sociologia, psicologia, filosofia e artes em geral.

Mas será que estamos falando apenas da formação médica? Isso não seria importante para todos os profissionais que lidam com pessoas e, em especial, aqueles que lidam com saúde? Será que isso não seria importante para psicólogos e psicoterapeutas, e entre eles, os psicanalistas?

Ter a graduação formal em psicologia ou medicina não garante uma boa prática. Devemos entender também que a habilitação legal por capacitação universitária é insuficiente para o exercício profissional e não prepara nenhum médico ou psicólogo o bastante, pois o seu saber está além do saber universitário. Claro que o saber universitário tem um enorme peso, porém quanto mais culto, mais vantagens tem esse profissional no exercício de seu mister e na compreensão dos sofrimentos do corpo e da alma.

Assim, não podemos nos distanciar do fato de que a apreensão teórica da psicanálise não é suficiente para que se forme um analista. Somente diante da experiência do seu próprio inconsciente é que esse candidato se capacita ao exercício de escuta em um registro que possa ser qualificado de psicanalítico. Não será um título de especialista devidamente registrado em um conselho que autorizará um psicanalista ao seu ofício.

A formação psicanalítica em todas as boas instituições está montada em um tripé: análise pessoal, estudo teórico e supervisão. E defendo que esse estudo não seja apenas da teoria formal psicanalítica, mas faça interface com as artes, a literatura, o cinema, o teatro, a poesia, o cordel, e o que mais vier como janelas que dão acesso a uma melhor compreensão do outro. Acredito que Freud nos convidava à criatividade emergente do inconsciente de cada analista que se autoriza ao exercício da prática psicanalítica.

Quem se arvora a uma formação em psicanálise e não vive a inquietude da análise e as suas vicissitudes ligadas à criatividade como consequência de uma demanda da própria teoria analítica e do desejo do saber, não pode, por conseguinte, alcançar o status de psicanalista. Até mesmo porque a formação de um analista só pode ser resultante da análise de um sujeito, processo esse impossível de ser enquadrado e ter efeitos previsíveis e, portanto, sem garantias.

Tenho convicção de que a formação humanística, aliada a uma boa análise pessoal, favorecem esse profissional. Mas também é fundamental uma supervisão adequada, em que o jovem analista aprende a ler e interpretar as dores e as angústias dos seus pacientes, em uma relação de inconsciente a inconsciente, revelando a história, as escolhas impossíveis e as vicissitudes da alma humana, que se revelam como uma grande e enigmática obra de arte.

A arte é absolutamente democrática e alcança todos indiscriminadamente que queiram sobre ela se debruçar, levando a sua mensagem que é interpretada individualmente, e de acordo com as necessidades específicas de cada um. E peço licença poética para dizer que cada um é o seu próprio ‘interpreta-dor’.

O cordel é um desses maravilhosos exemplos. Leva a todos, de forma simples e direta, a melhor mensagem do poeta, contribuindo de alguma forma para alertar, esclarecer, fustigar, provocar a alma humana, criando e recriando na obra, oportunidades de se aprender com as experiências e lições de vida, além de dar a chance de transformar condutas e refletir sobre a vida e a morte.

A obra Saúde mental em cordel, da presidente da Academia Sergipana de Cordel, a “marbela” cordelista destas paragens, a Izabel Nascimento, um verdadeiro girassol, é de grande relevância, pois traduz com palavras simples e diretas aquilo que muitos carregam como dores, medos, angústias e sintomas psíquicos, mas que muitas vezes não são reconhecidos como expressão de algum diagnóstico clínico.

Com poesia e arte ela traduz sentimentos e emoções indizíveis para quem os sente, porém passíveis de identificação e reconhecimento para quem ouve os seus versos. O seu papel é educativo, informativo, é um alerta para aquele que sofre ou para um ente querido impotente diante da angústia do outro a quem ama e que acorda para necessidade de ajudar ou ser ajudado.

Em um dos trechos do seu cordel sobre a depressão ela diz:

Desejo que você saiba
Digo com muita certeza
Depressão não é frescura
Não é sinal de fraqueza
Portanto, vá pensando
Deus não está castigando
Numa atuação do mal
Tem cura, tem tratamento
Pra te livrar do tormento
Que é doença cerebral

Depressão não tem idade
Não escolhe Sul ou Centro
Às vezes quem ri por fora
Está chorando por dentro
Busquem quem lhe compreenda
Um profissional que atenda
E nova chance se dê
Para alcançar a saída
Ver de volta a cor da vida
Eu acredito em você!

Sobre ansiedade a cordelista diz em sua primeira estrofe:

Transtorno de ansiedade
Tem se tornado frequente
A mente está no futuro
O corpo está no presente
A palavra é conhecida
Mas será que em nossa vida
Tem alguma utilidade?
Disso é bom saber direito
Qual o real conceito
Da palavra ansiedade?

Sobre a prevenção do suicídio, ela diz:

As pressões do dia a dia
A depressão recorrente
Os padrões da sociedade
Vão minando a nossa mente
Até que chega um instante
Que tudo é angustiante
O mundo fica sem cor
Uma ideia suicida
Não quer dar fim à vida
Mas quer acabar com a dor.

Não é drama, nem frescura
Nem para chamar atenção
Não, não é falta de Deus!
Esta dor tem solução
É preciso conversar
Terapeuta para ajudar
Ver que não está sozinho
Tirar o peso, a tristeza
Acreditar. Com certeza
Viver é o melhor caminho!

A obra de Izabel está marcada no seu DNA. É filha de Pedro Amaro do Nascimento, reconhecido internacionalmente pelo Papa Bento XVI no seu livro sobre o pontificado de Paulo II. Esse poeta, homem simples, de muita sabedoria e riqueza linguística, entre inúmeras obras literárias em cordel, nos brindou com uma “belezura” de um livro intitulado Medicina e arte.

Assim, conclui-se que, para que desenvolvamos práticas humanísticas em saúde e entendamos melhor as múltiplas demandas de amor, não podemos prescindir de viver uma relação mais íntima com as artes de qualquer natureza.

Fecho meu discurso com fragmentos da poesia em cordel de Pedro Amaro:

O médico tem mente aberta
Conhece a situação
Sem a atuação do médico
Seria contradição
Qual um livro sem leitura
Qual um povo sem cultura
Ou criança sem ter pão.

Psiquiatria é intento
De estudos especiais
É o centro dos fenômenos
Sobre distúrbios mentais
Violência e desengano
Mudando o cotidiano
Das causas habituais.

Psicologia é ciência
Estuda o comportamento
E nas relações humanas
Dá um bom discernimento
Caminhos, definições
Sentimentos e emoções
Que se tem no pensamento.

Neste século XXI
Se eu fosse gênio, traria
Poesia e Medicina
Na mais perfeita harmonia
Todos poetas desejam
Que todos médicos sejam
Amigos da poesia.

Aos que cuidam da saúde
Todos especialistas
Nossos agradecimentos
Pelas ações e conquistas
A função mais concorrida
Protagonistas da vida
São veteranos artistas.

 

Referências

NASCIMENTO, I. Saúde mental e cordel. Aracaju: Faculdade Estácio de Sergipe, 2018.         [ Links ]

NASCIMENTO, P. A. Medicina e arte. Aracaju: J. Andrade, 2016.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: deborah@infonet.com.br

Recebido em: 10/11/2018
Aprovado em: 10/12/2018

 

 

SOBRE A AUTORA

Déborah Pimentel
Mestre e doutora em Ciências da Saúde pela Universidade Federal de Sergipe (UFS).
Professora titular e coordenadora do módulo Habilidades de Comunicação do curso de Medicina da Universidade Tiradentes.
Professora Adjunta IV das disciplinas Ética Médica e Habilidades de Comunicação; além de Medicina Legal e Deontologia do Departamento de Medicina da UFS.
Membro do Comitê de Ética em Pesquisas da UFS (2007-2016).
Membro do Círculo Psicanalítico de Sergipe.
Imortal da Academia Sergipana de Medicina.
Membro da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores.

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