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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.50 Belo Horizonte July./Dec. 2018

 

ARTIGO

 

Intervenção de Orientação Psicanalítica a Tempo em bebês e crianças com impasses no desenvolvimento psíquico1

 

Psychoanalytically Oriented Early Intervention in babies and children with difficulties in psychic development

 

 

Isabela Santoro CampanárioI, II, III; Rogério LernerIV, V; Andrezza Souza Martinez MachadoI; Cintia Rezeck BragaI; Cleyde Simone França Netto ChiodiIII; Isabella Marçal SantosII; Simone Pereira Gordiano Hachem

I Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
II Prefeitura Municipal de Belo Horizonte
III Universidade Federal de Minas Gerais
IV Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)
V Associação Psicanalítica Internacional

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Trata-se de um estudo quantitativo descritivo feito em um serviço de saúde mental infantil da Secretaria Municipal de Saúde da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte ligado ao Sistema Único de Saúde. Investiga os efeitos de uma Intervenção a Tempo psicanaliticamente orientada em 49 crianças com impasses no desenvolvimento psíquico, mostrando resultados positivos tanto clinicamente quanto em relação à satisfação das famílias atendidas. Discute-se a importância de que se façam trabalhos posteriores para aprofundar o conhecimento acerca da Intervenção a Tempo psicanaliticamente orientada como estratégia clínica associada ao tratamento tradicional para esses bebês e crianças.

Palavras-chave: Bebês, Crianças, Impasses no desenvolvimento psíquico, Intervenção a Tempo, Psicanálise.


ABSTRACT

This paper is a descriptive quantitative study done in a child mental health service of the Municipal Health Department of the Belo Horizonte City Government which is part of the Brazilian Universal Health System. We investigate effects of a Psychoanalytically Oriented Early Intervention with 49 children with difficulties in psychic development, showing positive results both clinically and in relation to the satisfaction of the families served. We discuss the importance of further work to deepen the knowledge of a Psychoanalytically Oriented Early Intervention as a clinical strategy associated with traditional treatment for these infants and children.

Keywords: Infants, Children, Difficulties in psychic development, Early Intervention, Psychoanalysis.


 

Carta à Comissão Editorial

Solicitamos a publicação do artigo Intervenção de Orientação Psicanalítica a Tempo em bebês e crianças com impasses no desenvolvimento psíquico. A pesquisa não foi financiada e foi garantida a privacidade e o anonimato das pessoas envolvidas. Não há conflito de interesses.

Eu, Isabela Santoro Campanário, concedo à revista o direito de primeira publicação e declaro que o artigo intitulado Intervenção de Orientação Psicanalítica a Tempo em bebês e crianças com impasses no desenvolvimento psíquico, apresentado para publicação na revista Estudos de Psicanálise, não foi publicado sendo, portanto, original.

 

Introdução

Nos serviços de atenção à Saúde Mental da Infância e Adolescência da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte (PBH), até alguns anos atrás (2003), constatava-se o predomínio de encaminhamento de pacientes entre 6 e 12 anos, numa idade em que efeitos patológicos de quadros que afetam o psiquismo são mais difíceis de ser transformados, em comparação com tratamentos que se iniciam antes. Nos primeiros anos de vida, são pouco percebidos e ou valorizados pelos clínicos os sinais indicativos de que algo não vai bem com a criança. Somente a persistência de atraso da fala indica o recurso a encaminhamento para a saúde mental quando o quadro já está cristalizado e, portanto, mais difícil de ser tratado.

A intervenção do analista e dos profissionais de Saúde Mental não poderia ocorrer mais cedo?

O alcance do tratamento não seria maior em uma idade precoce?

Leo Kanner, psiquiatra que localizou o autismo como síndrome, desde seu artigo inaugural de 1943, reconhecia alguns sinais a partir do primeiro ano de vida: bebê que não se aninha no colo; que não faz movimento de estender os braços para ser carregado; que não apresenta resposta ao sorriso; que evita o contato visual e corporal; entre outros. Apesar disso, até cerca de 20 anos os sinais de problemas no desenvolvimento psíquico foram pouco valorizados.

Essas questões surgiram a partir de uma experiência pouco comum em relação à tradicional oferta de tratamento. O trabalho se dá em um serviço da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte (PBH), na Regional Centro-Sul, a Equipe Complementar Centro-Sul, que serve de referência aos casos mais graves de Saúde Mental da Infância e Adolescência da regional.

Em 2003, por iniciativa própria, chegou ao serviço uma mãe solicitando atendimento para seu filho de dez meses, que apresentava dificuldades no desenvolvimento psíquico. O atendimento desse bebê foi realizado por meio de sessões com a presença da mãe, visando o laço mãe-filho através de sessões de psicanálise mãe-bebê. Atendemos em grupo multidisciplinar composto pelas três profissionais da Equipe Complementar Centro-Sul: fonoaudióloga, terapeuta ocupacional (TO) e psiquiatra infantil/ psicanalista. O trabalho mostrou-se um sucesso do ponto de vista terapêutico. Após cerca de oito meses, o bebê tinha mudado, passando a olhar as pessoas e a mãe e a emitir as primeiras palavras.

A partir desse caso, a Equipe Complementar da Regional Centro-Sul começou a procurar os pediatras da PBH, médicos generalistas e demais profissionais da Equipe de Saúde da Família (ESF) dos centros de saúde da Regional Centro-Sul de Belo Horizonte com o objetivo de sensibilizá-los para a pertinência do atendimento inicial de bebês com impasses no desenvolvimento psíquico.

Essa iniciativa junto aos pediatras – que geralmente são os responsáveis pelo acolhimento e tratamento de crianças nos primeiros anos de vida – repercutiu sobre um número razoável de profissionais. Durante dois anos (2004 e 2005), a equipe percorreu os centros de saúde da Regional levando material didático e fazendo matriciamento. Passaram, então, a chegar outros casos graves: bebês alheios ao mundo e aos cuidadores, criando impasses ao desenvolvimento psíquico.

Para identificar essa população, usamos nos encontros com os profissionais e nas nossas avaliações alguns dos marcos de desenvolvimento atrasado ou ausente na criança com problemas no desenvolvimento psíquico de Bandim (1995): bebê que não se aninha no colo nos primeiros meses de vida; que não faz movimento de estender os braços para ser carregado por volta do quarto mês; que evita o contato visual e corporal; que não reage quando levado frente ao espelho no oitavo mês; que tapa os ouvidos para alguns sons como a voz humana e não reage a outros sons de intensidade maior por volta do décimo oitavo mês; entre outros.

Procuramos também compartilhar com os profissionais que o desenvolvimento de um bebê ? nos aspectos psicomotor, cognitivo e de aquisição da língua ? não é um efeito do puro processo de maturação (que impõe certas condições orgânicas às aquisições), mas da articulação do orgânico ao ambiente familiar. A família, a escola, o meio ambiente e seus estímulos, são fundamentais para o desenvolvimento do bebê e podem modificar a forma de expressão da carga genética da criança, conceito altamente em voga na atualidade e que recebe o nome de epigenética.

A hipótese norteadora do trabalho é que, atendendo esses bebês antes da conclusão da constituição subjetiva, há maior chance de promover o laço dos cuidadores com as crianças pelo brincar livre, que é o agalma, a ligação que pode mudar o destino pulsional delas. Se conseguirmos enlaçar o bebê pela via erótica com seus cuidadores, podemos conseguir fazê-lo superar alguns dos impasses no seu desenvolvimento psíquico. O acolhimento é fundamental.

Ao ver que alguém aceita, acolhe e brinca com seu filho apesar de suas estereotipias, e de serem crianças algumas vezes difíceis de relacionamento, de muitas vezes apresentarem atraso na fala, ferindo a imagem narcísica do tão sonhado filho perfeito, através do amor de transferência que se estabelece dos cuidadores e da criança em relação ao analista, pode-se construir uma ligação com o Outro pelo amor que pode ter sido abalada pela gravidade do quadro da criança.

Através do tratamento, os cuidadores podem estabelecer laços eróticos com a criança, promovendo os momentos lógicos da constituição do sujeito (autoerotismo, narcisismo e, por fim, a entrada da Lei do Pai no Édipo), embora antes essas crianças estivessem com impasses nos primórdios da constituição do sujeito. Através da ligação erótica ao Outro, a criança com problemas em seu desenvolvimento psíquico poderá se tornar sujeito, podendo vir a falar na primeira pessoa, sobre si mesma e sobre os impactos que recebe da sua relação intensa e tumultuada com o Outro.

Este trabalho trata, portanto, de tema atual e instigante, que muito pode beneficiar a clínica de bebês e crianças com impasses de desenvolvimento psíquico. É importante frisar que, a partir da experiência da Regional Centro-Sul, o trabalho de Intervenção a Tempo com crianças com problemas no desenvolvimento psíquico se tornou uma diretriz básica de atendimento em saúde mental infantil. No entanto, apesar de prioritário, poucas regionais trabalham com o projeto. Acreditamos que este estudo poderá favorecer o investimento na Intervenção a Tempo. Com a ampliação de um fonoaudiólogo e de um terapeuta ocupacional em cada regional ocorrida em janeiro de 2018, estamos em um momento crucial para a ampliação da Intervenção a Tempo.

Com base nesse trabalho prático desenvolvido na rede municipal de Belo Horizonte, a psiquiatra e psicanalista Isabela Santoro Campanário desenvolveu uma dissertação de mestrado defendida na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG a partir dos primeiros casos, quando da implantação do projeto, que atualmente está publicado como livro, intitulado Espelho, espelho meu. A psicanálise e o tratamento precoce do autismo e de outras psicopatologias graves (2008).

Posteriormente uma tese de doutorado (CAMPANÁRIO, 2013) foi defendida no mesmo programa de pós-graduação, contendo três casos em que houve uma melhora tão acentuada a ponto de parecer que os pacientes tinham superado os entraves no desenvolvimento psíquico, tese a ser confirmada após a fase da adolescência.

Esperamos que este saber seja difundido entre os pediatras e os generalistas a tempo de permitir outros destinos pulsionais para essas crianças. Também se faz necessário que os profissionais de Saúde Mental saibam tratar os bebês e suas mães recebidos através dos encaminhamentos precoces. É necessária uma capacitação para que se consiga um bom resultado nessa clínica, que exige sensibilidade e algumas diferenças de técnica do tratamento em idades mais avançadas.

Existem ainda poucas crianças tratadas mesmo entre os pioneiros nesse atendimento. O tratamento é difícil e tem muitas particularidades, sobretudo por ter que lidar com a devastação que ocorre nas famílias dessas crianças. Alguns dos pais chegam com uma angústia muito acentuada e extremamente extenuados. E algumas vezes chegam com uma negação do quadro que não ajuda em nada clinicamente.

Passamos a considerar a atividade do bebê na determinação de sua posição: ele apresenta, desde o nascimento, uma “recusa ativa ao Outro”. À mãe, longe de lhe ser imputada alguma culpa, cabe situar as razões que dificultam sua relação com o bebê. Ela se desanima caso o bebê não se faça olhar, não se faça escutar, não se faça “comer”.

Laznik (2004) nos alerta para a importância fundamental do bebê em causar o desejo da mãe e em mantê-lo vivo de tal forma que possa ocorrer a subjetivação da própria criança. A pesquisadora nos demonstra o papel central que o bebê desempenha em permitir que uma mulher possa se sentir mãe, desde que ele a convoque a essa posição através do olhar e da resposta aos cuidados maternos.

Apresentamos agora nossa hipótese sobre o que se passa no autismo (CAMPANÁRIO, 2013). Do lado do bebê, haveria uma “hipersensibilidade ao outro” desde o nascimento (LAZNIK, 2013), de origem ainda a esclarecer. Mais facilmente que os outros bebês, essas crianças percebem os traços faciais ou a voz reveladora de ansiedade, depressão, alegria e outros estados afetivos inevitáveis de seus cuidadores. Não é possível a nenhum cuidador evitar ou deixar de transparecer nos traços faciais e na voz estados afetivos desagradáveis. E o bebê hipersensível, então, recua do contato com os cuidadores para evitar perceber esses afetos. Essa hipersensibilidade faz o bebê se furtar da relação com o outro, não fazendo o Outro se constituir para eles.

O desejo materno, até então existente, pode se modificar, devido à pouca interação do bebê com quem faz a função materna. O bebê deixa de se prestar a ser objeto fálico da mãe, ou pelo menos um falo que possa ser trocado, daí emerge a devastação, evidenciando um gozo não delimitado pelo falo.

Para esclarecer melhor: a devastação incide sobre a mãe e sobre a criança, já que reedita um reencontro da mãe enquanto bebê com a falta de resposta dada por sua própria mãe ao singular do feminino e o reencontro dessa falta ao tentar se relacionar com seu filho autista, que não responde. Pela lógica do transitivismo, em que a mãe transpõe para o filho o que ela está sentindo, confirma-se a devastação. Como consequência, vemos uma devastação desse outro e, devido ao transitivismo, uma devastação também do bebê. Rompe-se o delicado equilíbrio de gozo necessário à constituição do sujeito, e quando algum gozo assume a primazia sobre os outros, devasta e traz impasses à constituição do sujeito.

Os tratamentos precoces se mostraram mais eficazes no tratamento da devastação das famílias e desses pacientes do que quando tratamos em idades mais avançadas, um dos motivos para o sucesso terapêutico dessa clínica (CAMPANÁRIO, 2013). Além disso, há uma enorme plasticidade do cérebro. Todo estímulo dado nessa época é extremamente eficaz (MURATORI, 2014). Nossa intervenção pode mudar o futuro dessas crianças. É a aposta deste trabalho.

Na prática, observamos várias crianças que deixaram de apresentar impasses ao desenvolvimento psíquico e que hoje necessitam de bem menos atendimentos nas áreas de saúde e educação. Pela nossa observação clínica, há economia em termos de recursos humanos do atendimento precoce em relação ao atendimento em idades mais avançadas, além do melhor resultado clínico e da satisfação das famílias.

 

Descrição da intervenção

No centro de saúde, o projeto acontece em grupo. Trabalhamos em cada grupo com até três crianças na faixa etária de 0-5 anos e seus responsáveis. Hoje há 32 crianças em atendimento. Os grupos ocorrem na própria sala de atendimento do centro de saúde e contam com as três profissionais da equipe (fonoaudióloga, terapeuta ocupacional e psiquiatra infantil), além de um estagiário da residência em saúde mental ou um estagiário de pesquisa. Recebemos também colegas de outras regionais que têm interesse em se capacitar para o projeto.

Utilizamos brinquedos, objetos e atividades que dão às crianças a possibilidade de socialização, comunicação e criatividade. Durante o grupo, surgem oportunidades de intervenção da equipe com os acompanhantes (mãe, avó, pai) e entre os próprios responsáveis, formando um espaço rico na troca de experiências e na ajuda mútua. O atendimento visa estabelecer o vínculo mãe-cuidador pelo brincar livre. A teoria que dá suporte a este trabalho é a psicanálise, porém são utilizadas algumas técnicas de outras abordagens, como a integração sensorial, a musicoterapia, etc. As crianças também recebem atendimento individual de fonoaudiologia, terapia ocupacional e psiquiatria, se necessário.

 

Descrição da população que faz parte do estudo aqui apresentado

Segundo o registro pessoal da terapeuta ocupacional Luciana Del Prete, 71 crianças já tiveram alta do programa desde 2003. No princípio do tratamento a idade delas variou entre 5 meses e 5 anos.

A renda média das famílias, em sua maioria, era baixa; a maior parte demandou o benefício LOAS do INSS e foi atendida. No entanto, há algumas crianças residentes em regiões de baixo risco social. Os atendimentos foram realizados no Centro de Saúde Tia Amância, localizado na Regional Centro-Sul de Belo Horizonte ligado ao SUS.

 

Instrumentos utilizados

Esta primeira pesquisa quantitativa objetiva estudar algumas dessas crianças, além de quantificar sua melhora através do protocolo Childhood Autism Rate Scale (CARS), aceito mundialmente em pesquisas sobre o autismo e já validado para o português.

O CARS é uma escala com 15 itens que auxiliam avaliar a gravidade de crianças com autismo. A sua importância consiste em mensurar o grau de comprometimento do autismo entre leve, moderado e severo. Sua aplicação é rápida e trata-se de um dos instrumentos mais confiáveis em pesquisas sobre o autismo.

Além do protocolo CARS, foi elaborada uma entrevista semiestruturada, que pesquisa a satisfação das famílias com a Intervenção a Tempo, além de outros dados como adesão ao tratamento, número de profissionais envolvidos no atendimento dessas famílias e efeitos relevantes na promoção da melhoria da qualidade de sua vida.

 

Referências teóricas

Para que uma criança possa se comunicar, não basta simplesmente um processo maturacional ligado ao desenvolvimento da aquisição da linguagem, mas fundamentalmente que possa ter ocorrido no laço dos pais com o bebê uma transmissão da estrutura da linguagem. Para que a criança, para além da aquisição da língua, possa se tornar sujeito, é preciso que os pais ou cuidadores sustentem esse laço, apesar de muitas crianças se recusarem ao que é oferecido pela família.

Uma importante referência teórica é a pesquisa IRDI (indicadores de risco para o desenvolvimento infantil) (KUPFER et al., 2009), que preconiza um protocolo de detecção precoce de crianças em risco de desenvolvimento psíquico e seus desdobramentos, o AP3 (entrevista psicanalítica aos 3 anos).

Outra importante referência teórica é a obra da psicanalista Marie-Christine Laznik, que desenvolve um trabalho clínico com essas crianças. Sua hipótese é de que é possível reverter casos de impasse no desenvolvimento psíquico desde que atuemos precocemente com a mãe e o bebê. Laznik (2004) já tem vários casos publicados em seus livros: A voz da sereia (2004), O autismo e os impasses da constituição do sujeito e A hora e a vez do bebê (2013). Atualmente, cocoordena uma pesquisa multicêntrica sobre o tema da intervenção precoce em bebês com problemas de desenvolvimento psíquico na França e na Itália, que já estudou cerca de 25.000 casos e foi cofundadora do projeto PREAUT - Prevenção do Autismo, que já existe em vários locais do Brasil.

Analisando vídeos caseiros dos primeiros meses de vida, Laznik (2013) considera haver um fechamento primário precoce da criança, por uma hipersensibilidade ao outro. Há uma dificuldade no estabelecimento do terceiro tempo do circuito pulsional, e o bebê não provoca o cuidador para ser visto, beijado, olhado. Como a criança não responde ao contato secundariamente, os agentes que ocupam a função materna e paterna param de buscar o contato com o bebê, que não se oferece a eles, por exaustão.

 

Procedimentos metodológicos

Objetivando estudar primeiro os 71 pacientes que já tiveram alta do programa desde 2003, convocamos todos eles para uma entrevista, quando foram aplicados o CARS e uma entrevista semiestruturada. Foi feita uma análise de conteúdo dessa entrevista.

A decifração estrutural é feita levando-se em conta a enunciação, o discurso e a narrativa. Assim, procura-se compreender o interior de cada fala, e a análise ocorre na transversalidade temática (BARDIN, 2011). Por meio da codificação, torna-se possível transformar dados brutos em conteúdos representativos por meio de unidades.

Ao ler as entrevistas, as unidades de registros são selecionadas, a fim de obter uma

[...] significação codificada e correspondente ao segmento de conteúdo considerado base, visando à categorização e a contagem frequencial (BARDIN, 2011, p. 134).

Como regra de enumeração, utiliza-se a medida frequencial, em que todos os conteúdos possuem o mesmo peso (BARDIN, 2011).

Os pacientes tinham avaliação clínica multiprofissional registrada na gestão de saúde da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte desde a amannese inicial e posteriores evoluções clínicas. Os diagnósticos foram feitos pela CID (10) com diagnóstico ou suspeita de diagnóstico do grupo F 84 (transtornos globais do desenvolvimento). No entanto, antes de 2017 não fazíamos a aplicação de outros instrumentos de avaliação. A equipe resolveu implantar o protocolo CARS desde janeiro de 2017 como rotina inicial de avaliação, complementando a avaliação clínica.

Foi viável a realização deste projeto na Equipe Complementar Centro-Sul sem comprometer os atendimentos clínicos e respeitando sua ética. Foi feito um consentimento informado a ser assinado pelos pais e um termo de assentimento a ser assinado pelas crianças e adolescentes que puderam assinar.

 

Resultados da pesquisa sobre a intervenção a tempo

A participação foi bem significativa (69%). Conseguimos fazer 49 entrevistas com pacientes que já haviam recebido alta do projeto. Como não tivemos um instrumento inicial para comparação, fizemos apenas uma análise descritiva da amostra.

 

 

Em relação ao sexo, segue o padrão de várias pesquisas sobre o autismo: proporção de cerca de quatro homens para cada mulher.

 

 

O tratamento foi bem avaliado de maneira geral. As entrevistas foram realizadas por pesquisadoras que os pacientes não conheciam, de modo que pudessem ter liberdade de fazer críticas. Foi feita uma análise do discurso da resposta obtida dos pais dessas crianças.

 

 

 

 

O acolhimento também foi bem avaliado. Como comentamos anteriormente, acolher bem é fundamental. As críticas parciais foram em relação ao tempo (algumas poucas das famílias entrevistadas gostariam de mais tempo de atendimento).

 

 

 

 

Em relação ao tratamento precoce, a maior parte das famílias o considera importante.

 

 

 

 

 

 

O termo “autismo” ainda vem envolto em muito preconceito e temores. Por isso, a equipe do serviço prefere de maneira geral dar o diagnóstico depois que o paciente e a família estão em tratamento e com boa transferência, ou depois que o tratamento começa a apresentar resultados positivos. Em crianças abaixo dos três anos, não é dado o diagnóstico, mas nomeados alguns sinais da criança para motivar a aderência dos pais ao tratamento.

Algumas vezes, o diagnóstico é dado por outros profissionais de saúde, neurologistas e profissionais da ESF de uma maneira muito rápida, o que pode ser tomado como uma violência numa família muitas vezes devastada. Por outro lado, para pais de pacientes que já tenham percorrido vários locais em busca de respostas, o diagnóstico pode ser apaziguador. Portanto, o diagnóstico deve ser dado dependendo do singular de cada caso, dependendo do momento de cada família.

Cabe ressaltar a falta de profissionais que possam fazer uma busca ativa no caso de abandono. Os resultados podem ser melhorados com uma integração maior entre as Equipes de Saúde da Família (ESF) e a Equipe Complementar.

 

 

O resultado da aplicação do protocolo CARS foi positivo, como se vê na TAB. 8: 57% dos pacientes não preenchem mais os critérios para autismo pelo CARS. Grande parte desses pacientes teve alta da saúde mental: 18% saíram do tratamento com grau de autismo leve/moderado. Dentre os 25% de autismo grave a maioria abandonou o tratamento.

 

 

Há relato de autismo de pais, irmãos, primos e tios. Cabe ressaltar que não foram aplicados instrumentos para avaliar a veracidade desses relatos. No caso de primos e irmãos mais novos, temos aguçado a escuta para possibilitar outros tratamentos precoces. Vários trabalhos preconizam a avaliação clínica dos irmãos e recomendamos também dos primos.

 

 

Quanto à participação em tratamentos, vemos uma prevalência de atendimentos pela Equipe Complementar. A participação de outros profissionais de saúde ainda é pequena, especialmente os psicólogos que têm participação durante a Intervenção a Tempo de 22% e depois da alta do grupo a participação sobe para 37%. Cabe ressaltar que alguns desses profissionais não atendem crianças.

Recursos pedagógicos ainda são insuficientes, porém é notório o enorme salto de qualidade depois da ampliação das vagas das UMEIs (Unidade Municipal de Educação Infantil), que são importantes parceiros da Intervenção a Tempo. Praticamente todas as crianças para quem solicitamos vagas prioritárias conseguiram. No entanto, o professor de apoio ainda não existe de maneira satisfatória para a demanda, e sua qualificação muitas vezes é insuficiente. O AEE tem crescido em parceria, mas ainda necessita de mais vagas.

A participação em esportes ainda é insuficiente: a maior parte dos casos da Regional Centro-Sul está em ONGs e ou parcerias privadas. O Projeto Superar, que era um importante parceiro, deixou de funcionar em nossa região. Cabe ressaltar a importância dos esportes para a boa evolução dos pacientes, bem como para auxiliar no uso de menos medicamentos psicotrópicos e minimizar alguns dos seus efeitos colaterais como o ganho de peso.

Outros tratamentos seriam fundamentais e inexistentes na rede municipal, como musicoterapia, psicomotricidade e integração sensorial. Laznik (2013) indica sempre a psicomotricidade associada ao tratamento psicanalítico.

Para a segunda pesquisa estamos propondo uma intervenção em psicomotricidade para alguns pacientes. Os pacientes têm alta do grupo aos cinco anos, mas às vezes ainda mantêm atendimentos individuais, dependendo da necessidade clínica.

 

 

Como temos várias outras formas de abordar o autismo e as psicoses infantis, o uso de medicamentos psicotrópicos acontece apenas se necessário, cabendo ressaltar que 39% dos casos não foram medicados. Quando medicados, houve prevalência do uso de neurolépticos, antidepressivos e estabilizadores de humor. Note-se na TAB. 11 o baixo uso de estimulantes como as anfetaminas, usadas em larga escala em outros serviços e de suplementos alimentares de eficácia não comprovada cientificamente. Alguns dos pacientes usavam mais de uma medicação.

 

 

Não apresentavam comorbidades 78% dos casos, ou seja, outros diagnósticos além do autismo. Mas 22% apresentavam outros diagnósticos havendo indicação de participação da reabilitação nesses casos.

 

 

Apenas 3 pacientes foram encaminhados para tratamento no primeiro ano de vida e 6 no segundo ano de vida.

 

 

Como o encaminhamento nos dois primeiros anos de vida ainda é raro, o tempo de permanência na Intervenção a Tempo fica reduzido, portanto sua eficácia diminui.

 

 

A linha vermelha no GRÁF. 1 é a suposta normalidade pelo protocolo CARS, ou seja, 30 pontos. Nota-se como a média do CARS entre os pacientes que não aderiram ao tratamento é de 50 pontos (autismo grave). Os que ficaram até 6 meses em tratamento tiveram média de 35 pontos, ou seja, autismo moderado; de 6 meses a um ano tiveram média de 31 pontos, ou seja, autismo leve. Os que tiveram de 2 ou mais anos de permanência na Intervenção a Tempo tiveram média no protocolo CARS abaixo de 30 pontos e são considerados sem autismo.

 

Gráfico 1

Fonte: Elaboração própria.

 

As crianças que chegaram com até um ano de idade ao tratamento obtiveram média de CARS de 23 pontos, ou seja, sem autismo. As que chegam entre 1 e 2 anos obtiveram média de 25 pontos. As que nos chegam entre 2 e 4 anos vão ter média de 29, 9 pontos, ainda dentro do limite de normalidade do protocolo CARS. As que chegaram com mais de quatro anos vão ter uma média de CARS de 39, que já é considerada autismo grave.

Vejamos o GRÁF. 2.

 

Gráfico 2

Fonte: Elaboração própria.

 

A média do CARS entre os que foram frequentes ao tratamento foi de 30 pontos; entre os pouco frequentes foi de 35 pontos e entre os que abandonaram, 40 pontos.

Vejamos o GRÁF. 3.

 

Gráfico 3

Fonte: Elaboração própria.

 

Dos pacientes que começaram o tratamento no primeiro ano de vida 100% não foram considerados com autismo segundo a CARS; de 1 a 4 anos a média cai para em torno de 67%. Apenas 25% dos que nos chegaram acima dos 4 anos não foram considerados com autismo segundo a CARS, com o mesmo investimento da equipe em tratá-los.

 

 

Dos pacientes que tiveram CARS abaixo de 30 pontos, 100% ficaram 2 anos ou mais na Intervenção a Tempo.

 

 

Conclusão

A Intervenção a Tempo ocorre desde quando paciente chega até a idade de cinco anos, quando a neuroplasticidade e a abertura ao Outro diminui muito. O uso de instrumentos como o IRDI e o PREAUT, no quadro de uma ampla capacitação da rede para seu uso, poderia ocorrer em nível central para aumentar os encaminhamentos em idade inicial.

Agora, diferentemente de 15 anos atrás, a maior parte dos pacientes (61%) nos chega entre 2-4 anos, mas cabe ressaltar que apenas 4% nos chegaram no primeiro ano de vida e 8% no segundo ano, quando a eficácia da Intervenção a Tempo é maior.

A Intervenção a Tempo parece apresentar resultado positivo tanto clinicamente quanto em relação à satisfação das famílias atendidas. A idade de chegada e o tempo que a criança fica no tratamento se relacionam diretamente com a sua boa evolução.

Como não há um protocolo inicial para complementar a avaliação clínica, sugerimos trabalhos posteriores para aprofundar a validação da Intervenção a Tempo como estratégia clínica associada ao tratamento tradicional de bebês e crianças com impasses no desenvolvimento psíquico.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Isabela Santoro Campanário
E-mail: isabelasantoro@uol.com.br

Rogério Lerner
E-mail: rogerlerner@usp.br

Andrezza Souza Martinez Machado
E-mail: andrezza_martinez@yahoo.com.br

Cintia Rezeck Braga
E-mail: cintiarbraga@globo.com

Cleyde Simone França Netto Chiodi
E-mail: simonefnchiodi@gmail.com

Isabella Marçal Santos
E-mail: isabelamarcalsantos@gmail.com

Simone Pereira Gordiano Hachem
E-mail: simonegordiano2007@hotmail.com

Recebido em: 10/11/2018
Aprovado em: 24/11/2018

 

 

SOBRE OS AUTORES

Isabela Santoro Campanário
Pós-doutoranda pelo IPUSP (Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo).
Médica pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Mestre em Psicologia, área de concentração em Estudos Psicanalíticos pela UFMG.
Doutora em Psicologia, área de concentração em Estudos Psicanalíticos pela UFMG.
Pós-doutoranda pelo IPUSP.
Foi preceptora da residência em psiquiatria do IPSEMG de 2001 a 2004 e professora convidada da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais por cerca de 15 anos.
Médica psiquiatra da infância e adolescência da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte (desde 1996) e preceptora da Residência Multiprofissional em Saúde Mental e em Pediatria do Hospital Municipal Odilon Behrens.
Professora de cursos de formação em psicanálise no Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG) desde 1998.
Autora do livro Espelho, Espelho meu. A psicanálise e o tratamento precoce do autismo (2008) e de vários artigos na área do autismo infantil.
Implantou o projeto Intervenção a Tempo (atendimento psicanalítico mãe-bebê em risco de constituição do sujeito) desde 2003, na rede municipal de Belo Horizonte, projeto considerado uma das diretrizes em saúde mental do município de Belo Horizonte (PBH).
Consultório particular nas áreas de psiquiatria e psicanálise.

Rogério Lerner
Psicólogo pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP).
Mestre e doutor em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano do IPUSP.
Pós-doutor pela Universidade Pierre et Marie Curie - Paris 6.
Livre-docente em psicologia e professor associado do IPUSP.
Fellow do College of Research Training Programm University College London/International Psychoanalytical Association.
Tem publicado livros, capítulos de livros e artigos em periódicos nacionais.
Atua na área de psicologia do desenvolvimento, psicanálise, parentalidade e constituição psíquica.
É coordenador ou membro de diversos convênios nacionais e internacionais de pesquisa e intercâmbio acadêmico, com destaque para o Núcleo de Apoio à Pesquisa em Neurodesenvolvimento e Saúde Mental.
É líder dos grupos de pesquisa do CNPq “Transtornos do espectro de autismo: detecção de sinais iniciais e intervenção” e “Formação de profissionais para atuação intersetorial na promoção do desenvolvimento infantil, detecção de sinais iniciais de problemas e intervenção oportuna”, tendo sob sua responsabilidade verbas de pesquisa oriundas de órgãos de financiamento nacionais e internacionais.
Membro do Subcomitê de Pesquisa Geral da Associação Psicanalítica Internacional e do Comitê Científico do Núcleo Ciência pela Infância (INSPER/FMCSV).

Andrezza Souza Martinez Machado
Psicóloga.
Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora.
Candidata em formação do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.

Cintia Rezeck Braga
Pedagoga.
Psicóloga.
Especialista em psicomotricidade.

Cleyde Simone França Netto Chiodi
Terapeuta ocupacional.
Psicanalista.
Especialista em psicanálise.
Experiência docente e assistencial na Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais e na UFMG.

Isabella Marçal Santos
Psicóloga.
Trabalha na Prefeitura Municipal de Belo Horizonte.

Simone Pereira Gordiano Hachem
Psicóloga.
Psicanalista.
Consultora em educação inclusiva.

 

 

1 Aprovação da pesquisa pela Plataforma Brasil e Conselho de Ética em Pesquisa da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte (Secretaria Municipal de Saúde- PBH). CAAE 78602317.1.0000.5140

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